Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez
porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz.
Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros
de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as
salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm
distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é
alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos
corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as
possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a
casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje
passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual
nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo,
aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na
Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses
que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre
é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno
dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal,
ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me
preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de
nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me
apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no
assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo
hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor
penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando,
para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não
tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá
saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas
as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo,
a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.
Sem comentários:
Enviar um comentário