quarta-feira, 10 de junho de 2020

A vida assim

São precisas umas coisas do supermercado. Muito bem. Entra-se no carro e vai-se direito ao templo onde o necessário é vendido como se de uma simonia se tratasse. Quando se chega, descobre-se que são muitos os que tiveram a mesma precisão, uma fila enorme de fiéis que tenta manter a distância e aguarda que o acólito lhes dê entrada. O carro nem pára. O melhor é ir a outra paróquia. Constata-se que a nova igreja tem menos fiéis. Onde está a máscara? Põe-se a máscara, entra-se, higieniza-se as mãos e lá se descobrem as coisas de que havia precisão. Não me agradam os vinhos que por aqui há, digo. Sai-se, tira-se a máscara e sorve-se o ar lentamente. Uma esplanada à espera. Quero ver o que há para comer. Onde pus o raio da máscara, pergunto-me. Lá a descubro. Ponho-a, entro, higienizo as mãos e escolho. Saio, sento-me e tiro a máscara. Torno a sorver o ar com lentidão. Uma chamuça, ainda antes do almoço, oiço. Haveria de ser um rissol, um croquete? É o que há. Também quero avô. São duas, então. Temos de tornar a higienizar as mãos, pergunta a mais nova, para logo querer saber se há bolos. Não há. A vida agora é isto, já nem sei onde pôr as mãos, os olhos, a boca, o nariz. Vale-me a chamuça, que me há-de aumentar o colesterol, mesmo se higienizo as mãos. Chegado a casa ligo o computador depois de higienizar as mãos e mudar de roupa. A máquina informa-me que está actualizar, só mais um momento, mas este dilata-se, dilata-se num nunca mais acabar. Pego num livro de poemas e num verso vejo a palavra inconsútil. Franzo o sobrolho. Não seria melhor usar sem costura, interrogo-me. As actualizações continuam. Só um momento, não desligue o computador. Não desligo e agradeço por ele não me tratar por tu, ao menos ele, dou-lhe os momentos todos e até me actualizava a mim se pudesse, só para lhe agradar. Leio desci pela imponente escada da juventude e fico perplexo, o que fará ali o adjectivo? Os pneus das bicicletas estão vazios, retine nos meus ouvidos. Eu sei, já trato disso, respondo. Hoje é quarta-feira, dia 10 de Junho. A pátria celebra-se na voz do presidente. O cardeal poeta assevera que Camões desconfinou Portugal e eu penso na chamuça, nos meses que passaram sem ter ido a Lisboa, que não ponho um pé num restaurante indiano ou goês, que não deixa de ser indiano, mas tem um travo do desconfinamento camoniano. Tenho de procurar a bomba das bicicletas das crianças.

4 comentários:

  1. Gosto tanto de chamuças...mas também sou afilhada de uma indiana e tenho dois irmãos nascidos na Índia...por isso nada de admirar, já com restaurantes indianos tenho dificuldade(s), recomenda algum bom em Lisboa?
    Também tenho um blogue chamado Rua da Índia embora seja uma rua de Luanda...(mas não sei se lê blogues).
    ~CC~

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    1. Não sou especialista em resturantes ou em gastronomia, mas quando vou a um concerto na Gulbenkian, costumo jantar na Casa Nepalesa, aliás o último restaurante a que fui em Lisboa antes do confinamento. Fica na Elias Garcia. Tem comida do Nepal e da Índia. Gosto de ir ao Delícias de Goa, na Rua do Conde Redondo, talvez porque ache as pessoas muito simpáticas. Há uns anos ia a um na rua Sol ao Rato, mas não sei como está. Também costumo ir ao Segredos de Goa, em Campo de Ourique, mesmo junto ao mercado. Sala mínima. Julgo, porém, que a oferta é muito ampla. Lembro-me de ir a outros, mas já esqueci nome e localização.

      Às vezes leio blogues, mas não tenho muito tempo para o fazer com assiduidade. Rua da Índia é um belo nome para um blogue. Irei passar por lá.

      HV

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  2. Gostei muito que o seu narrador o tivesse posto hoje a contar coisas tão divertidas. Só agora vou ligar a tv para tentar perceber o que se passou no país e no mundo, para além do que contou aqui.
    Não vou a um hiper desde 4 de Abril, já tinha muita dificuldade em respirar com o ar muito quente... com óculos e máscara só tentarei entrar num com o ar condicionado bem fresco. Não sei como irei sobreviver até lá...
    Amanhã também é feriado, não é?
    Então bom feriado HV.
    🌻
    Maria

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    1. As coisas tornaram-se uma enorme seca. A relação espontânea que se tinha com os objectos parece liquidada. Depois, o põe e tira máscara é cansativo.

      Sim, amanhã também é feriado. Dia de Corpo de Deus. O que não deixa de ser interessante, pois Deus é incorpóreo, na definição tradicional.

      Um bom feriado.

      HV

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