sábado, 6 de junho de 2020

Um dia estragado

Acordei a desoras. A manhã corria já desenfreada para a tarde quando me levantei. Não gosto de estar na cama para além das nove da manhã, e isso apenas em dias excepcionais, mas uma insónia deu-me oportunidade para ler durante o amanhecer umas duas horas. Depois adormeci e foi o que se viu. Um dia estragado, pensei ao pôr os pés no chão e ir abrir a persiana da porta que dá para a varanda. Valeu-me ao humor a benevolência da balança. Continua cordata, evitando insultar-me ou entregar-se ao culto da hipérbole. Fui às compras numa grande superfície. Como numa festa de Carnaval, estava toda a gente mascarada, mas agora a dança tem uma nova particularidade. Os corpos afastam-se em vez de se aproximarem. Os passos não visam o encontro harmónico mas o afastamento prudente. Também é verdade que ninguém vai a um hipermercado para dançar, mesmo que seja com a rapariga da caixa. Um dia destes escrevo um ensaio sobre o erotismo em tempo de pandemia. Levantar tarde, tarde almoçar. Fico a olhar para estas palavras, com vontade de as apagar, mas resisto. A caixa de email está a sofrer um ataque aéreo. Parecem bombas a cair nela. Terei de lhe dar alguma atenção, montar as antiaéreas e começar a disparar sempre que o inimigo enviar um email. Ontem tive uma revelação. Estive tentado em escrever epifania. Um anúncio mostrou-me o caminho da salvação. Apregoava um dispositivo que se coloca em cima da página do livro e a ilumina, permitindo a leitura sem perturbar o sono de quem, ao lado, ainda há pessoas que dormem com outras ao lado, de quem, dizia, tenha dificuldade em dormir com luz. Apressei-me a comprar, mas segundo me informaram vai demorar tempo a chegar. Vem de longe, tem muito que andar. Só espero que não se transvie no caminho, pois não há coisa pior do que perder aquilo que nos pode salvar. Hoje é sábado, dia 6 de Junho. A temperatura está amena, a luz remeteu-se à sobriedade e o mundo rumoreja em diálogo com uma máquina doméstica que se excede no zelo para que foi criada. Até uma máquina foi criada para alguma coisa, só eu é que ainda não percebi para que fui criado. Não blasfemes, diz-me a consciência. No telemóvel, uma aplicação pergunta-me se eu quero optimizar as fotografias. Respondo-lhe que gostaria de optimizar muitas coisas, mas as fotografias podem ficar como estão. Não blasfemo.

4 comentários:

  1. Não quero desanimá-lo, mas há tempos comprei no Lidl um dispositivo para esse fim e foi um fiasco; digamos que permite ler as primeiras 4/5 linhas da página, para ler as restantes convém acender o candeeiro.
    Claro que podemos estar a falar de dispositivos diferentes...
    Depois conte, okay?

    Eu blasfemo, e espero que eles ouçam - enquanto clico no "agora não".

    Bom fim-de-semana, HV.
    🌻
    Maria


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    1. É bem possível que o dispositivo não funcione, até pelo preço, mas não me parece que possa ser esse o problema, o de só iluminar as primeiras 4 ou 5 linhas. Este distribui a luz lateralmente e, presumo, que possua vários pontos de luz e que não sofra dessa limitação. O que pode haver é zonas com diferente iluminação, fazendo sombras e dificultando a leitura. Também pode ser difícil de manejar, mas logo verei.

      Bom fim-de-semana, Maria

      HV

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  2. Pois...talvez o mais eficaz seja não ler na cama ou não dormir com alguém ao lado:)

    Eu não gosto de ler antes de dormir pois se o livro é mau não me apetece ler e se é bom tira-me o sono!

    ~CC~

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    1. Cada vez mais, a cama é o sítio em que mais gosto de ler. As leituras não me tiram o sono e muitas vezes preenchem-me as insónias e acabam por ajudar a adormecer.

      Quando leio no eReader, no Kindle ou no Kobo, não há problema. O pior são os livros em papel.

      HV

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