Depois de almoço, o estilete de cristal do sono perfurou-me as têmporas e a cabeça descaiu, o queixo tombou contra o peito e devo ter ressonado. Se sonhei, não dei por isso. Quando acordei, um fio de baba corria-me da boca, mas há coisas em que convém ser parco na descrição. O computador tinha hibernado e aquilo que eu estava a fazer congelou. Terei agora de recorrer ao micro-ondas para o descongelar, para o retirar da gélida petrificação em que caiu. O mais acertado seria também meter-me no aparelho e descongelar-me, para ver se me ocorre alguma coisa que faça sentido. Tenho uma revista em cima da secretária há mais de duas semanas. Tinha intenção de ler um artigo, mas olho a capa onde a prosa se anuncia, encolho os ombros e passo para outra coisa. Noutra altura, penso. E se essa altura nunca chegar, por certo não perderei grande coisa. A realidade está de volta ao lar dos portugueses. Voltou o futebol, a metafísica da bola na trave, a estética do fora-de-jogo e a ontologia da bola na mão ou mão na bola. Pressinto uma parte da pátria apaziguada, depois de uma longa ressaca. Não deveria tecer comentários jocosos sobre uma indústria tão poderosa e que alimenta tanta gente. Cada um aguarda a morte como quer ou pode e há coisas piores do que a bola, que ao menos é redonda, e nisso está, como bem sabiam os gregos, toda a perfeição. Nos relatos de futebol que eu ouvia na infância, pois também eu tive infância e gostei muito de futebol, os locutores tratavam a bola por esférico. Hoje não sei se continuam influenciados pela geometria ou se a origem das metáforas com que narram o jogo será outra, mais rude, mais de acordo com uma massa que não suporta erudições. Isto são suposições de um velho que, vendo a areia da ampulheta a correr demasiado depressa para seu gosto, é tocado pela equívoca nostalgia dos bons velhos tempos, como se os tempos alguma vez fossem bons. Bom é aquilo que não muda, que não se move, que não corre, e o tempo não pára de mudar, mover-se, correr como uma lebre perseguida por um cão de caça. Esta triste analogia venatória era dispensável, bem o sei, mas foi a que consegui. Hoje é sexta-feira, dia 5 de Junho. O fim-de-semana anunciou-se e sinto calor. Se abrir uma janela, talvez a temperatura desça. Anoto na agenda não dormir após o almoço e nunca mais usar expressões ridículas como o estilete de cristal do sono. Um vómito.
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