Um aguaceiro não previsto encurtou a minha caminhada de hoje
em mais de dois quilómetros. Estava eu tão docilmente disposto a acumular
pontos cardio, que segundo a app que me monitoriza as deambulações,
são recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e os elementos decidiram
conspirar contra a minha saúde, a minha vontade de me roubar à inércia do ser
sedentário que vive dentro do meu corpo. Conforme os anos passam e a experiência
do mundo aumenta, mais convencido estou que a realidade é um tecido perverso
que um génio maligno, mais poderoso do que aquele que assombrou as meditações
melancólicas do senhor Descartes, vai tecendo para se rir dos mortais,
estragando-lhes os projectos, baldando-lhe as expectativas, transformando a
esperança na indiferença ou mesmo no mais profundo desespero. É possível,
penso, que o desespero não tenha profundidade, que seja apenas um ser
bidimensional, uma superfície, e que seja ilegítimo dizer profundo desespero.
Tudo é possível neste mundo, mesmo as coisas mais dignas de descrédito. É
inverosímil, mas a verdade é que estou a ouvir um galo a cantar, se é que se pode
chamar canto à propensão vocal dos galarotes para o exibicionismo. Ele insiste,
insiste, levado por uma estranha necessidade de manifestar a sua existência.
Fora ele humano e seria caso de lhe recomendar uma terapia psicanalítica,
deitá-lo no divã, para que rememorasse o acontecimento traumático passado na
infância que o leva a este exibicionismo vocálico. Ele haveria de falar de
sonhos e entregar-se à associação livre, enquanto o psicanalista tomaria notas
num caderno de capas azuis. Sempre se trataria de um galarote e convinha não desmoralizá-lo
com um caderno de capas cor-de-rosa. Desconfio que estas últimas palavras não
serão particularmente apreciadas e adaptadas ao tempo em que vivemos, mas eu já
não pertenço a este tempo. Seja como for, a linguagem sempre foi uma coisa
perigosa e agora está cheia de vigilantes, não vá ela incendiar-se e atear um
fogo maior que o grande incêndio de Roma. Hoje é quinta-feira, dia 11 de Junho.
Feriado religioso do Corpo de Deus que há uns anos foi abolido, mas depois
restaurado, colocando o corpo divino no seu devido lugar, com gratidão geral de
crentes, agnósticos e ateus, e desespero daqueles que julgam que o ócio dos
outros é vicioso e que só o trabalho liberta. Será esta frase uma versão da
falácia reductio ad Hitlerum?
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