quinta-feira, 11 de junho de 2020

O génio maligno e o canto do galo

Um aguaceiro não previsto encurtou a minha caminhada de hoje em mais de dois quilómetros. Estava eu tão docilmente disposto a acumular pontos cardio, que segundo a app que me monitoriza as deambulações, são recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e os elementos decidiram conspirar contra a minha saúde, a minha vontade de me roubar à inércia do ser sedentário que vive dentro do meu corpo. Conforme os anos passam e a experiência do mundo aumenta, mais convencido estou que a realidade é um tecido perverso que um génio maligno, mais poderoso do que aquele que assombrou as meditações melancólicas do senhor Descartes, vai tecendo para se rir dos mortais, estragando-lhes os projectos, baldando-lhe as expectativas, transformando a esperança na indiferença ou mesmo no mais profundo desespero. É possível, penso, que o desespero não tenha profundidade, que seja apenas um ser bidimensional, uma superfície, e que seja ilegítimo dizer profundo desespero. Tudo é possível neste mundo, mesmo as coisas mais dignas de descrédito. É inverosímil, mas a verdade é que estou a ouvir um galo a cantar, se é que se pode chamar canto à propensão vocal dos galarotes para o exibicionismo. Ele insiste, insiste, levado por uma estranha necessidade de manifestar a sua existência. Fora ele humano e seria caso de lhe recomendar uma terapia psicanalítica, deitá-lo no divã, para que rememorasse o acontecimento traumático passado na infância que o leva a este exibicionismo vocálico. Ele haveria de falar de sonhos e entregar-se à associação livre, enquanto o psicanalista tomaria notas num caderno de capas azuis. Sempre se trataria de um galarote e convinha não desmoralizá-lo com um caderno de capas cor-de-rosa. Desconfio que estas últimas palavras não serão particularmente apreciadas e adaptadas ao tempo em que vivemos, mas eu já não pertenço a este tempo. Seja como for, a linguagem sempre foi uma coisa perigosa e agora está cheia de vigilantes, não vá ela incendiar-se e atear um fogo maior que o grande incêndio de Roma. Hoje é quinta-feira, dia 11 de Junho. Feriado religioso do Corpo de Deus que há uns anos foi abolido, mas depois restaurado, colocando o corpo divino no seu devido lugar, com gratidão geral de crentes, agnósticos e ateus, e desespero daqueles que julgam que o ócio dos outros é vicioso e que só o trabalho liberta. Será esta frase uma versão da falácia reductio ad Hitlerum?

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