Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via
pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de
haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito.
Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos,
há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares
de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à
varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí,
quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que
encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo
para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que
encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini,
que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta
que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um
inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus,
talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se
passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as
transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao
arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro
conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de
mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a
volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta.
Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da
volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido
educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em
Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que
esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais
valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de
Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das
consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a
realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes
textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para
narrar.
Apanhar borboletas não é incompatível com a escrita de diários, ou mesmo livros. Conheço um senhor que praticou ambas as actividades com mestria e agora até querem censurar-lhe um livro: parece que a borboleta era demasiado jovem...
ResponderEliminarHá mais de mil anos passei umas férias fantásticas no Baleal.
Bom resto de tarde, HV.
🌻
Maria
Algum lepidóptero feminino chamado Lolita.
EliminarO Baleal é, de facto, um sítio fantástico.
Um resto de boa tarde, Maria.
HV