As ruas embrulham-se no ruído de antigamente. Vozes, rumores
de automóveis, roncos de motociclos sempre indispostos, gritos de crianças. Os
pássaros calaram-se. Estarão em algum estúdio a calibrar a potência do canto
para se sobreporem à novo situação. Com ímpeto muito moderado, avanço por
dentro de O Jardim dos Finzi-Contini.
Tendo lido já mais de cinco sextos do romance há um problema que não deixa de
me assaltar. Desconheço o nome do narrador – um narrador autodiegético, daqueles
que são protagonistas da história – e não faço a mínima ideia se alguma vez o
nome é referido ou não. Compenso-me imaginando que, por uma questão de contenção,
se tenha abstido de se nomear. Se for assim, compreendo-o muito bem, pois eu
também sou um narrador que não me autonomeio. Não porque seja contido, mas
porque sou destituído de nome. É possível que um dia, ao escrever mais um
destes textos infelizes, descubra o nome que me hei-de dar. À minha frente
tenho correspondência. Orçamentos para obras e uma carta de uma seguradora.
Tudo isto é cansativo. As cláusulas do orçamento, a informação de que ao preço
indicado acresce IVA, segundo as tabelas em vigor, as letras invisíveis da
seguradora, aquilo que ela segura e o que larga de mão. Não tivesse eu almoçado
há pouco e o sono não me chamasse, teria aqui uma grande oportunidade para
meditar sobre a prisão do mundo da vida nas malhas intrincadas da burocracia.
Que belas analogias haveria de fazer com os romances de Kafka ou com alguma das
distopias que a imaginação humana criou. A sonolência, porém, impede-me
meditações a esta hora. Tenho há dois dias um livro, ainda embrulhado, em
quarentena numa varanda. Desconfio que não devo estar bem, mas resisto em libertá-lo
do papel que o envolve. Hoje é quinta-feira, dia 4 de Junho. O tempo por aqui
está ameno, as horas deslizam sorrateiras, um casal passa na praceta em passo
cambado, ele à frente, ela atrás, cansados um do outro, esquecidos da ilusão
que os juntou. Um cão uiva e nesse uivo está toda a sabedoria do mundo.
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