segunda-feira, 8 de junho de 2020

Um grito escalofriante

A sala é desmesurada para o meu tamanho, para a experiência que tinha do mundo. Ao fundo, um friso de professores com ar inóspito, mapas nas paredes. Depois de mostrar sabedoria sobre as produções das províncias ultramarinas, um eufemismo em voga, vou para o quadro negro. Vestido com bata branca, um dos oficiantes inquire-me sobre questões esotéricas, tais como aritmética, geometria. Escrevo na ardósia, resolvo problemas, faço contas, desenho figuras, apago. O cabelo do interrogador era branco, talvez tivesse sido louro, e a face rubicunda, com ar severo que lhe sublinhava a dignidade, apesar do tom rosáceo da pele. Havia espectadores numa bancada improvisada. Não podiam, suponho, aplaudir ou patear, mas guardar reverente silêncio. Estou ali solitário perante um tribunal que me julgará sem piedade. Faltavam-me ainda uns meses para ter dez anos. Isto não foi um pesadelo, mas uma memória antiga que irrompeu em mim depois de almoço. Por vezes sou assaltado por fragmentos do passado, coisas mortas que ressuscitam, sem que eu saiba como. Vêm da terra do esquecimento, abrem caminhos sinuosos e desembocam na grande praça da consciência. Não sei o que fazer deles. Se a minha fosse uma alma de coleccionador juntava-os para os catalogar e depois arrumar numa vitrine e os contemplar de quando em vez. Estou a falar de um tempo muito arcaico, onde a vida ainda era regulada por ritos de passagem, mas do que tenho saudades é de uma certa literatura de aventuras do oeste, livros pequenos, com 64 páginas e seis desenhos, letras minúsculas, organizados em colecções com nomes como 6 Balas, Cow-Boy, Fúria dos Bravos e, supremo encanto, Gatilho. Naqueles dias em que as férias se prolongavam por três meses, as tardes de calor eram enfrentadas com a pistola na mão e o dedo no gatilho. Se havia pandemias, não me informavam, mas os bons ganhavam sempre aos maus e a justiça não era uma quimera. Não me perguntam, mas se perguntassem que livros influenciaram o meu gosto literário, diria de imediato os da colecção 6 Balas ou Fúria dos Bravos. Como é que se pode ler Kafka, Mann ou Dostoiévski, se nunca se leu Um Milionário no Far-West ou A Terra das Caveiras? Sim, é verdade, não tenho assunto. Hoje é segunda-feira, dia 8 de Junho. A temperatura está moderada e o sol cordato. Leio: Recuperando o revólver, despejou a carga sobre o segundo assaltante, quando este tentava apanhar Bill Shaterly desprevenido, no momento em que carregava a arma. O meliante soltou um grito escalofriante – isso mesmo, escalofriante – e, em seguida, caiu de bruços, com o estômago perfurado (Uriah Moltan, Matar ou Morrer). Se o leitor não sabe o que é escalofriante nem tão pouco um escalofrío, recomendo um dicionário de espanhol. Eu também não sabia.

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