quarta-feira, 24 de junho de 2020

O pior é a Kryptonite

Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade, ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer hashtag, o que acrescentaria modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos. Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo, cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum lado ou de fugir dela.

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