Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem
espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão
luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três
dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana
fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à
varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é
agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a
desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves,
aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que
faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num
café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a
subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o
Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão.
Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha
morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande.
Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra,
mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas
ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos
aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a
trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha
guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que
antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia
de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu,
foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que
está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu,
os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se
ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui
da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia?
É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é
sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais,
para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que
impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a
quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.
Impossível não me lembrar do poema do Drummond em que ninguém fica com quem ama, e no final até aparece um que nem entrava na história (ou será estória? - nunca sei...).
ResponderEliminarA pequena dos chocolates não apareceu?
Então o pinheiro está-lhe a roubar as vistas para o Castelo: pena não ser uma árvore de folha caduca. :(
Bom fim-de-semana, HV.
🌻
Maria
A pequena dos chocolates ficou em casa, para evitar a obesidade. Os tempos mudaram muito desde a altura em que havia tabacarias.
EliminarBom fim-de-semana,
HV