sexta-feira, 19 de junho de 2020

Diferenças ontológicas

Devias paragrafar estes textos, mudas de assunto a torto e a direito e vai tudo de seguida, as pessoas cansam-se. Uma das coisas que há para aprender na vida é que não se deve dar atenção ao que diz aquele daimon, como se translitera o raio da palavra?, que vive dentro de nós para expelir, a torto e a direito, opiniões que não lhe pedimos. Sim, não foi apenas Sócrates que teve um daimon, eu também tenho um e conheço pessoas que têm vários. Esta será aliás a melhor explicação para a heteronímia de Fernando Pessoa, embora me abstenha de dar opinião sobre tal assunto. Respondi-lhe, ao daimon, que sou dado a monoblocos, portanto fazer parágrafos nestes textos está fora das minhas cogitações. Ainda bem que não te dá para escreveres romances, atirou ele, pois teríamos oitocentas páginas com um único parágrafo. Olhei-o de soslaio, ameaçador, e ele desapareceu para as caves da minha consciência. Quando não temos nada para dizer sobre o mundo, como é o meu caso, inventamos coisas sem nexo, só para preencher o espaço em branco. Ontem o meu neto esteve aqui e confirmei que existe uma diferença ontológica entre rapazes e raparigas. Quando as minhas netas tinham a idade dele, mesmo a mais azougada, e azougue e autoridade não lhe faltavam, se sentadas comigo à secretária, ficavam a ver em sossego A Galinha Pintadinha no computador, negociando apenas o episódio que se seguiria. Ele, ao fim de uns minutos de ambientação, achou que o programa não seria ver a Masha e o Urso mas trepar para cima da secretária e mexer nos monitores, nos teclados, no rato e no mais que houvesse à disposição do dedo em riste. À minha frente tenho uns livros, na verdade são apenas dois, de um filósofo norte-americano sobre a construção da realidade social. Talvez ele me explique por que razão um aglomerado de electrões e protões fica quieto a ver a galinha pintadinha e o pintinho (é assim mesmo) amarelinho e outro julgue que a sua função é cabriolar em cima de secretárias. Hoje é sexta-feira, dia 19 de Junho. A semana desliza para o momento em que entregará a alma ao criador. Num poema de Eugénio de Andrade leio Toda a manhã procurei uma sílaba, mas noutro de Luís Quintais depara-mo com uma resposta extravagante Cruéis miragens, / pânico de moribundos. Evito a discussão e fecho ambos os livros. Consta que a epidemia continua e os infectados se multiplicam. Acho que vou almoçar. Eis uma coisa que me devolve a humanidade.

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