Entardece. Escrevo esta palavra como se ela contivesse um
destino, como se o pôr-do-sol, ainda por chegar, anunciasse um crepúsculo
final, ao qual se seguiria a noite eterna. Este pathos que enterneceu gerações tomadas pela angústia existencial é
uma falsificação. As tardes são seguidas pelas noites e estas pelas auroras que
trarão manhãs que declinarão e ao meio-dia hão-de morrer nos braços da tarde,
numa monotonia sem fim. Não estava previsto que o narrador se entregasse a
estas divagações, que tentasse raptar os leitores do contacto com a vida, para
os enrodilhar em assuntos que não movem o mundo e, por isso, não interessam a
ninguém. Muitas foram as vezes que escutei isso não interessa ao Menino Jesus,
numa tentativa blasfema de limitar os interesses do filho do Homem.
Afastemo-nos do território escorregadio da teologia. Uma conversa chega aos
meus ouvidos. Vem cheia de realidade. Um drama qualquer, vidas desestruturadas,
gente perdida, abandonada pelos deuses. Gente desnorteada, oiço. Há exclamações
de espanto, comiseração, enquanto uma sombra se prolonga pela rua, pisada por um
transeunte de calções e boné que vai apressado para um encontro secreto,
imagino-o pelo andar comprometido, o olhar furtivo a espiar horizontes. Caio em
mim e digo-me que ninguém vai para um encontro secreto de calções e boné. Um
gato equilibra-se no muro, dá uns passos, procura uma mancha de sol e deita-se.
Dedilho o calendário e descubro que há dois feriados seguidos, um cívico e
outro religioso. A cada um a sua liturgia. As vozes não se calam, a desgraça é
infinita e o vozear limitado. Hoje é terça-feira, dia 9 de Junho. Enrolo-me na
tarde, esqueço o infortúnio, ponho de lado as tragédias e sento-me. Hei-de
abrir um livro e começar a ler ou pego em mim e obrigo as pernas a porem-se em
movimento.
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