Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na
capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem.
Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim
perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à
instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que
lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na
consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software que uso seja de tão má qualidade que não
consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas
a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado,
cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de
política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a
vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as
estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar
as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões,
gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma
orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio
em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno
cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e
surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha
tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se
é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2
de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos
salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.
Essa de clicar no link neuronal e o texto deslizar na consciência seria a maior invenção do mundo, talvez desde a da roda ;)
ResponderEliminarActualmente, já me sinto feliz quando tenho a certeza que gostei muito de ler um livro: não saberia contar a história nem dizer o nome das personagens, mas sei que adorei aquele livro.
Patético, não é?
Um entardecer ameno, HV.
🌻
Maria
Era uma bela invenção. Talvez os engenheiros neuronais do futuro consigam fazê-lo. Parece-me plausível, apesar de tudo.
EliminarUma boa tarde,
HV