terça-feira, 2 de junho de 2020

As frívolas amenidades

Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem. Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software  que uso seja de tão má qualidade que não consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado, cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões, gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2 de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.

2 comentários:

  1. Essa de clicar no link neuronal e o texto deslizar na consciência seria a maior invenção do mundo, talvez desde a da roda ;)
    Actualmente, já me sinto feliz quando tenho a certeza que gostei muito de ler um livro: não saberia contar a história nem dizer o nome das personagens, mas sei que adorei aquele livro.
    Patético, não é?

    Um entardecer ameno, HV.
    🌻
    Maria

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    1. Era uma bela invenção. Talvez os engenheiros neuronais do futuro consigam fazê-lo. Parece-me plausível, apesar de tudo.

      Uma boa tarde,

      HV

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