sexta-feira, 12 de junho de 2020

Ó meu santo antoninho

Estão incertos os dias de Junho, um humor volúvel, euforia e depressão. Onde me encontro neste momento, chove. Os pingos de chuva batem nos vidros da janela, fazem pequenas bolhas para depois deslizarem, enchendo o vidro de pequenos regatos que, ao confundirem-se, transformam-se em lago. O mundo está cheio destas metamorfoses, um conjunto de coisas que ao juntarem-se forma uma outra. Estava a ler o jornal e vejo a palavra palimpsesto. É uma bela palavra, dotada de musicalidade, embora eu não a recomendasse para uso poético. Todos nós somos textos que se escrevem no lugar onde outros textos foram escritos e logo apagados. Queria eu dizer que também as nossas vidas fazem parte de um palimpsesto de que não sabemos a origem nem temos a mais leve desconfiança como ele, um dia muito depois do nosso texto ter sido apagado, acabará. Talvez nas mãos de algum antiquário cósmico contrabandista de velharias. De manhã, caminhei durante seis quilómetros, o corpo começou a etapa muito exuberante, mas a partir de certa altura a energia começou a definhar e o ritmo da passada abrandou, deixando-me longe do record pessoal, que já de si é miserável. Cães ladram na rua e um buraco nas nuvens deixa ver um céu anil. Avisto duas torres altas, antigas chaminés industriais feitas em tijolo, por onde a fumaça negra se elevava aos céus, desenhando círculos, espirais, nuvens densas e tóxicas. São agora pacíficos adornos de memórias que, com o passar dos dias, mudaram de infelizes para o seu contrário, como acontece sempre. O meu email continua sob fogo inimigo. Como bombas, caem nele mensagens, ainda por cima já nem se pode matar o mensageiro que fica no resguardo do lar a disparar setas envenenadas como Cupido lançava as de amor, não menos venenosas, claro. O melhor é cessar por aqui, para que a deriva não me leve a mostrar a loucura que há muito disfarço, não sem algum êxito. Hoje é sexta-feira, dia 12 de Junho. Um tempo de santos populares – ó meu rico santo antoninho – pouco aberto a comemorações. As adolescentes da casa querem uns santos caseiros, com sardinhas e bandeiras de uma certa marca que se promove nestas ocasiões em Lisboa. Não digo qual, porque isto não é uma agência de publicidade. Antes fora, grita-me a consciência. Olho-a com desprezo e encolho os ombros. Sardinhas, então, mas no dia do santo. Sentença lida.

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