domingo, 7 de junho de 2020

Não dar por nada


Uma vertigem, daquelas que se sentem quando se bebeu um pouco, mas não tanto que não se permaneça no estado de sobriedade. Depois, uma sonolência que não pára de atormentar as pálpebras, incitando-as a cerrarem-se, a cortarem-me as imagens do mundo, como se me tivesse esquecido de pagar a conta na operadora que prodigaliza os serviços de televisão. Olhei pela janela e a paisagem pareceu-me uma pintura de um pintor que muito se cultua por aqui, como se fosse um santo. O pior é que o lugar dos pintores não é o altar. Ele esteve em Paris, que é um lugar certo para pintores do tempo dele, naqueles anos em que tudo efervescia e as artes plásticas sofreram tal revolução que uma era nova começou. Ele não deu por nada. Talvez seja por isso que muito se gosta dele. Cultivamos com esmero quem não dá por nada e persistimos em não dar por nada. Uma luz esbranquiçada dilacera a tarde, abre-lhe sulcos, pequenos veios por onde deslizam os raios solares, sombras se algum objecto se interpõe pelo caminho. Uma das coisas mais inúteis que o homem inventou foi as instruções. Mesmo as mais claras e distintas não servem para nada. Não há quem as escute ou leia. Quem teve a ideia de criar instruções para facilitar a execução das tarefas sobrevalorizou a humanidade. Ninguém quer saber de instruções para coisa alguma. As pessoas preferem a tentativa e erro do que a comodidade de seguir uma instrução. Têm à sua frente a eternidade para fazerem aquilo que, seguindo as indicações coligidas com amor e destreza, se faria num abrir e fechar de olhos. Não sei o que me deu para estar aqui a moralizar. Deveria pegar em mim, pôr a máscara descer no elevador, tirar a máscara e ir ao campo comprar laranjas. Do outro lado da avenida, um jacarandá está exuberante. Deixo os olhos presos nele por alguns instantes, depois movo-os em direcção ao castelo e recolho-os em mim, fechando as pálpebras. Hoje é domingo, dia 7 de Junho. A semana que entra será na utilidade mais curta, mais sensata, pois também as semanas podem ser insensatas. Vou comprar laranjas ao campo ou limões à praça, desde que não necessite de instruções, pois também eu não as escuto ou leio. Eu bem tento encurtar os textos, mas depois esqueço-me.

2 comentários:

  1. Ter um limoeiro, isso sim, era acrescentar uma parcela de felicidade à minha vida. Boas compras e resto de bom domingo.
    ~CC~

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