domingo, 14 de junho de 2020

Não fora astigmático...

Hoje o meu pai faria anos, noventa e três, mas há muito que deixou de os fazer, ao tomar o comboio para aquele mundo que tem porta de entrada mas não de saída. A última vez que ele fez anos eu já sabia que seria a última, mas não me recordo desse dia, nem do que falámos. Minto como é habitual. Almoçou em minha casa, um almoço em família em que se comeu um prato de que ele gostava particularmente. Já não me recordo como se combinava em mim a alegria e a tristeza ou como nele se manifestava o saber da escassez do tempo. A memória é uma rameira fantasiosa, devemos olhá-la com desconfiança e não lhe dar crédito. Passo os olhos pelas primeiras páginas dos jornais. Descubro que após a quarentena o número de divórcios dispara. Consigo imaginar o número a empunhar um revólver e a disparar divórcios como se fossem balas para um alvo a 100 metros de distância. Só espero que o número seja melhor atirador do que eu. Um dia, no serviço militar, fomos à carreira de tiro que havia para os lados de Espinho. Foram-nos dadas 5 balas de G3 que tínhamos de disparar para um alvo longínquo. Cada tiro no centro valia dez pontos. Deixei o meu alvo imaculado e cheguei aos zero pontos em cinquenta possíveis. Em contrapartida, o disparador do lado, rapaz exímio no manejo de armas e filho de um famoso, na época, inspector da judiciária, alcançou a proeza de obter oitenta pontos em cinquenta. Depois de se conferenciar naquela linguagem que só existe no serviço militar pensou-se que eu teria disparado no alvo errado. Deve ser do astigmatismo, informei. Esta é uma boa explicação para o facto de na vida errar continuamente o alvo. Não fora eu astigmático e toda a minha existência seria outra. As pessoas nem imaginam como coisas sem importância, pequenos defeitos do cristalino ou da córnea, as desviam do alvo que seria o delas e da glória a que ascenderiam caso o defeito não lhes desviasse os tiros. No sítio onde estou, mas de onde me irei embora não tarda, as pessoas entregam-se à existência como se tivessem sido submetidas a uma longa provação. De todos os casais que avistei na caminhada matinal não sei quantos se divorciarão nem se neles há astigmáticos, prontos a falhar o próximo casamento ou divórcio. Hoje é domingo, dia 14 de Junho. A manhã levantou-se ensolarada, mas um manto de nuvens estende os seus tentáculos no céu e ameaça os que gostam de pisar a areia como se uma praia fosse o paraíso. Os pássaros não se calam e também eles foram vítimas do castigo imposto aos que se atreveram a erguer a torre de Babel.

2 comentários:

  1. Ora bem, acabei de saber a razão do meu insucesso na vida: tenho astigmatismo!
    Tivesse eu ido à tropa e teria sabido muito mais cedo que era inútil ter ilusões, jamais acertaria no alvo...

    O meu pai faria 98 dia 25.
    O comboio levou-o demasiado cedo.

    Bom resto de domingo, HV.
    🌻
    Maria


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    1. A tropa sempre tem as suas virtudes.

      Um bom resto de domingo, Maria

      HV

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