Hoje o meu pai faria anos, noventa e três, mas há muito que
deixou de os fazer, ao tomar o comboio para aquele mundo que tem porta de
entrada mas não de saída. A última vez que ele fez anos eu já sabia que seria a
última, mas não me recordo desse dia, nem do que falámos. Minto como é
habitual. Almoçou em minha casa, um almoço em família em que se comeu um prato
de que ele gostava particularmente. Já não me recordo como se combinava em mim
a alegria e a tristeza ou como nele se manifestava o saber da escassez do
tempo. A memória é uma rameira fantasiosa, devemos olhá-la com desconfiança e
não lhe dar crédito. Passo os olhos pelas primeiras páginas dos jornais.
Descubro que após a quarentena o número de divórcios dispara. Consigo imaginar
o número a empunhar um revólver e a disparar divórcios como se fossem balas para
um alvo a 100 metros de distância. Só espero que o número seja melhor atirador
do que eu. Um dia, no serviço militar, fomos à carreira de tiro que havia para
os lados de Espinho. Foram-nos dadas 5 balas de G3 que tínhamos de disparar
para um alvo longínquo. Cada tiro no centro valia dez pontos. Deixei o meu alvo
imaculado e cheguei aos zero pontos em cinquenta possíveis. Em contrapartida, o
disparador do lado, rapaz exímio no manejo de armas e filho de um famoso, na
época, inspector da judiciária, alcançou a proeza de obter oitenta pontos em
cinquenta. Depois de se conferenciar naquela linguagem que só existe no serviço
militar pensou-se que eu teria disparado no alvo errado. Deve ser do
astigmatismo, informei. Esta é uma boa explicação para o facto de na vida errar
continuamente o alvo. Não fora eu astigmático e toda a minha existência seria
outra. As pessoas nem imaginam como coisas sem importância, pequenos defeitos
do cristalino ou da córnea, as desviam do alvo que seria o delas e da glória a
que ascenderiam caso o defeito não lhes desviasse os tiros. No sítio onde
estou, mas de onde me irei embora não tarda, as pessoas entregam-se à
existência como se tivessem sido submetidas a uma longa provação. De todos os
casais que avistei na caminhada matinal não sei quantos se divorciarão nem se
neles há astigmáticos, prontos a falhar o próximo casamento ou divórcio. Hoje é
domingo, dia 14 de Junho. A manhã levantou-se ensolarada, mas um manto de
nuvens estende os seus tentáculos no céu e ameaça os que gostam de pisar a areia
como se uma praia fosse o paraíso. Os pássaros não se calam e também eles foram
vítimas do castigo imposto aos que se atreveram a erguer a torre de Babel.
Ora bem, acabei de saber a razão do meu insucesso na vida: tenho astigmatismo!
ResponderEliminarTivesse eu ido à tropa e teria sabido muito mais cedo que era inútil ter ilusões, jamais acertaria no alvo...
O meu pai faria 98 dia 25.
O comboio levou-o demasiado cedo.
Bom resto de domingo, HV.
🌻
Maria
A tropa sempre tem as suas virtudes.
EliminarUm bom resto de domingo, Maria
HV