Ao levantar-me fui espreitar a rua para ver a máscara com
que o dia se apresenta. Como se fora vítima de um sortilégio, fiquei a olhar a
luz, as sombras e as folhas batidas pelo vento. Transportado para o mundo
arcaico da infância, reconheci aquela tonalidade da luz da manhã, o ramalhar
das árvores e o alongamento disforme das sombras, lembrando fantasmas e
monstros. O fascínio não nasceu da evocação do passado nem da saudade desses
tempos, mas da constância que se esconde por debaixo do turbilhão do mundo.
Eram a mesma luz, o mesmo vento, as mesmas sombras. Também Parménides e Platão
ficaram fascinados pela permanência e pela imobilidade, esses quase milagres
num mundo que parece ser uma máquina de produzir metamorfoses e inconstâncias.
A meditação logo se interrompeu. O canto de um pássaro, o grito de uma criança,
o barulho rugoso de uma máquina e o mundo desassisado de Heraclito retomou o
seu lugar. De imediato, as coisas começaram a transformar-se, o telemóvel a
disparar avisos e as corveias quotidianas a chamarem-me. Mandei-as calar, mas
recusaram-se e não tive outro remédio senão começar a fazer pela vida. Agora
escrevo e observo o mundo a partir da minha secretária e não sei o que fazer
com ele. Talvez não fosse ociosa a discussão sobre se este é ou não o melhor
dos mundos possíveis. Se a resposta for sim, nem quero imaginar como seriam
todos os outros. Seja como for, muito eu gosto de usar bordões e frases feitas,
o melhor é não me aventurar em blasfémias como aquela que perdeu o sábio rei Afonso
X de Castela. Se eu houvesse podido
aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Nunca se sabe se os
pombos que por aqui volteiam nos ares são ou não anjos e sendo, não sabemos se
eles são dos caídos ou dos fiéis. Todo o cuidado é pouco e mesmo para lidar com
pombos ou anjos é recomendável que se use máscara. Muitas coisas haveria para
discorrer, mas o melhor é não maçar o leitor. Hoje é quinta-feira, dia 18 de
Junho. Uma sirene anuncia a chegada das treze horas. Suponho que é tempo de
pensar em almoçar, em vez de estar a carregar nas teclas para escrever um
punhado de tolices. Não me conformo porém com o desprezo de Sancho, filho e sucessor
de Afonso, pela última vontade do pai, a quem traíra. Pedira este que o coração
fosse enterrado no Monte Calvário, talvez para se fazer perdoar da blasfémia,
mas o filho deixou-o a apodrecer em Sevilha e, como se sabe, as coisas em
Sevilha apodrecem muito depressa.
Protesto...pois adoro Sevilha!
ResponderEliminar~CC~
Também, mas o calor andaluz apodrece os corações mortos muito rapidamente. Quanto aos vivos, isso será outro assunto.
EliminarHV