quinta-feira, 18 de junho de 2020

A blasfémia do Rei Afonso X

Ao levantar-me fui espreitar a rua para ver a máscara com que o dia se apresenta. Como se fora vítima de um sortilégio, fiquei a olhar a luz, as sombras e as folhas batidas pelo vento. Transportado para o mundo arcaico da infância, reconheci aquela tonalidade da luz da manhã, o ramalhar das árvores e o alongamento disforme das sombras, lembrando fantasmas e monstros. O fascínio não nasceu da evocação do passado nem da saudade desses tempos, mas da constância que se esconde por debaixo do turbilhão do mundo. Eram a mesma luz, o mesmo vento, as mesmas sombras. Também Parménides e Platão ficaram fascinados pela permanência e pela imobilidade, esses quase milagres num mundo que parece ser uma máquina de produzir metamorfoses e inconstâncias. A meditação logo se interrompeu. O canto de um pássaro, o grito de uma criança, o barulho rugoso de uma máquina e o mundo desassisado de Heraclito retomou o seu lugar. De imediato, as coisas começaram a transformar-se, o telemóvel a disparar avisos e as corveias quotidianas a chamarem-me. Mandei-as calar, mas recusaram-se e não tive outro remédio senão começar a fazer pela vida. Agora escrevo e observo o mundo a partir da minha secretária e não sei o que fazer com ele. Talvez não fosse ociosa a discussão sobre se este é ou não o melhor dos mundos possíveis. Se a resposta for sim, nem quero imaginar como seriam todos os outros. Seja como for, muito eu gosto de usar bordões e frases feitas, o melhor é não me aventurar em blasfémias como aquela que perdeu o sábio rei Afonso X de Castela. Se eu houvesse podido aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Nunca se sabe se os pombos que por aqui volteiam nos ares são ou não anjos e sendo, não sabemos se eles são dos caídos ou dos fiéis. Todo o cuidado é pouco e mesmo para lidar com pombos ou anjos é recomendável que se use máscara. Muitas coisas haveria para discorrer, mas o melhor é não maçar o leitor. Hoje é quinta-feira, dia 18 de Junho. Uma sirene anuncia a chegada das treze horas. Suponho que é tempo de pensar em almoçar, em vez de estar a carregar nas teclas para escrever um punhado de tolices. Não me conformo porém com o desprezo de Sancho, filho e sucessor de Afonso, pela última vontade do pai, a quem traíra. Pedira este que o coração fosse enterrado no Monte Calvário, talvez para se fazer perdoar da blasfémia, mas o filho deixou-o a apodrecer em Sevilha e, como se sabe, as coisas em Sevilha apodrecem muito depressa.

2 comentários:

  1. Protesto...pois adoro Sevilha!
    ~CC~

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    1. Também, mas o calor andaluz apodrece os corações mortos muito rapidamente. Quanto aos vivos, isso será outro assunto.

      HV

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