sábado, 6 de março de 2021

Lentidão neuronal

Em vez de me meter no carro, fui a pé fazer uma visita familiar. Com o balanço decidi andar um pouco pela cidade. Nunca imaginei que existissem tantos laboratórios de análises clínicas, oculistas, clínicas dentárias, clínicas médicas. Também as farmácias que, durante muitas décadas, foram apenas quatro, quase duplicaram, para não falar no surgimento das parafarmácias. Parece que a população tem diminuído, mas a oferta de cuidados de saúde não pára de aumentar. Isto significará que há muito mais gente doente. Eu sei que este raciocínio é capcioso, mas depois de uma caminhada de seis quilómetros, apanhando algum sol, tudo se torna permitido. A luz solar é necessária para a produção de vitamina D, embora pertença a um grupo cujos organismos produzem por si a vitamina em causa. Espero não apanhar uma overdose. Passei a manhã em videoconferência. Quatro horas online não se recomenda a ninguém, ainda mais com uma idade provecta como a minha. O resultado é ter ficado vazio, sem assunto, não por falta e interesse do evento, mas porque, aproximando-se a Primavera, os meus neurónios tornam-se ainda mais lentos a fazer sinapses, chegando mesmo a suspender toda a actividade, como é o caso. Do que não se pode falar, o melhor é ficar em silêncio, como dizia alguém, a quem não faltava astúcia.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Se a noite cai rapidamente

Por vezes, as pessoas entram pela casa da velhice e enlouquecem. Não porque fiquem loucas, mas porque a realidade começa a desfigurar-se, a perder o contorno. Então, os patamares mais recentes caem e as pessoas retrocedem dentro da memória. Vão cada vez mais depressa em direcção à infância. Enquanto correm, a sua vida vai desabando pelo precipício do esquecimento. O que era familiar torna-se estranho. É como se se caminhasse para a morte recuando no tempo, apagando os vestígios da vida, os grandes acontecimentos que as marcaram deixam de existir. Apagam os próprios filhos, a começar pelos mais novos. Isto disse-me há pouco ao telemóvel o padre Lodo. Diz que tem medo de ficar assim, pois foi assim que a sua mãe perdeu a noção do tempo e começou a viagem para o passado. Ele era o mais velho e foi aquele que mais persistiu na memória da mãe, mas chegou um dia em que ela lhe perguntou quem era ele. Não tinha chamado nenhum padre. O que me vale, continuou, é que, se perder a noção do tempo, não tenho filhos para esquecer. Depois, mudando de assunto disse-me estar farto desta pandemia, do temor instalado, de não poder juntar-se com os amigos. Talvez a virtude da paciência me esteja a faltar, acrescentou. A noite já desceu com o seu silêncio envolto na seda fria da escuridão. Medito nas palavras do meu amigo e compreendo-lhe o temor, apesar de não lhe faltar sanidade mental e física. Hoje é sexta-feira, o fim-de-semana ainda não chegou e já parece acabado. Um dos pássaros meus vizinhos cantou. Talvez seja esse o único imperativo que nos ordena a natureza, cantar, mesmo se a noite cai rapidamente.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Um problema de máscaras

Está um dia sonolento. Boceja, resmunga e esfrega os olhos. O que significará aqui a palavra dia? Será o período em que a Terra recebe claridade solar ou aquele durante o qual o nosso planeta – talvez sejamos mais dele, do que ele nosso – dá uma volta completa sobre o seu eixo? Num caso, o dia exclui a noite. Noutro, inclui-a. Nunca se pensa nestas coisas, mas toda a gente, sem pensar nelas, sabe distinguir dia de dia. Se quisermos complicar, ainda podemos notar que dia significa era e também o estado atmosférico. É uma espécie de heteronomia ao contrário. Enquanto Fernando Pessoa se desdobrou em múltiplos nomes, aqui várias realidades tomam o mesmo nome. Isto significa que existem várias estratégias de disfarce. Numa, a mesma coisa toma várias máscaras. Noutra, várias coisas adoptam a mesma máscara. Um caso flagrante de homonímia. Como se pode ver, qualquer conversa vai dar ao problema da pandemia. Sem saber como, já estou a falar de máscaras, como se estivesse na Grécia antiga e discutisse sobre teatro. Tenho de confessar uma coisa. Não é o dia que está sonolento. Sou eu. Atacado pelo sono, não consigo parar de escrever disparates, coisas que não interessam a ninguém. Há tantas coisas interessantes para escrever, e logo a mim haveriam de caber estas. Cada um tem o que merece, oiço dizer. Sempre me pareceu que a meritocracia era uma conspiração contra mim, pobre narrador de narrativas destituídas de senso e sentido. Vou dormir uma sesta.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Mundos cruzados

O mais espantoso deste mundo é ser composto por vários mundos que se cruzam formando um tecido policromático. Tive de ir a uma outra cidade fazer uma tomografia axial computadorizada. Para chegar ao destino utilizei os serviços de GPS do telemóvel. Talvez por se estar na Quaresma ordenaram-me para ir em jejum, um daqueles jejuns que se faziam noutras épocas. Depois de formalidades sanitárias – apontaram-me para a testa um revólver que mede temperaturas e passei as mãos por álcool gel – e burocráticas, depois de alguma espera em que fui lendo, no meu eReader, um romance, lá vou para uma sala cuja porta tem o sinal de perigo de radioactividade. Sem contador Geiger, enfrento a ameaça. Deito-me numa marquesa e obedeço a duas estimáveis raparigas, que, apanhando-me deitado, ligam-me a uns eléctrodos e picam-me os dedos e as veias de um braço. É para introduzir o contraste, dizem. Lá me deixo contrastar. Olho a máquina cilíndrica e penso que vou ser criopreservado, mas é falso. Vão apenas bombardear-me com radiação atómica. Devia ter trazido o contador Geiger, é o que penso enquanto entro e saio do túnel. Está acabado, dizem. Pergunto-me se o acabado sou eu ou o exame. Desligam-me. Pode ir embora, dizem sorridentes, pois imagino-lhes o sorriso sob a máscara. Agradeço. Depois de todo este tempo no mais admirável dos mundos novos, vou para o carro e desembrulho uma sandes trazida de casa, certo que não haveria aonde comer e beber café, como se fizesse um daqueles piqueniques de que falava o Cesário Verde. Pena que não houvesse qualquer burguesa a descer do burrico, que sem posturas tolas colhesse um ramalhete rubro de papoulas. Os tempos cruzam-se, é verdade, mas perde-se sempre qualquer coisa pelo caminho. Neste caso, a aguarela.

terça-feira, 2 de março de 2021

Vai por aqui um arraial

Pela praceta vai um arraial. Não, não se trata de uma festa ao gosto popular por ocasião de alguma romaria, nem um acampamento de tropas inimigas que venha pôr cerco ao castelo. É apenas um grupo de crianças trazidas pelas mães para gastarem as energias físicas e exercitarem a sonoridade da voz em hipérboles estridentes. Bem as percebo, às mães. Terem filhos pequenos todo o dia em casa está muito para além da capacidade de os gerar. Entre o prazer da concepção, se o houve, e as dores do parto, a vida está suspensa. O pior é o crescimento das crias, as metamorfoses do corpo e as mudanças de humor, tudo em territórios exíguos, mesmo que os apartamentos tenham excelente dimensão. Os corpos pequenos precisam de grandes espaços, onde possam crescer e bolsar pelas cordas vogais o espanto pela existência. Ouve-se, agora, a voz cava de um pai. Parece que veio trazer um princípio de ordem. A algaraviada continua, enquanto a tarde se desfaz em neblina e, a coberto das nuvens, se prepara para se deixar cair nos braços da noite. Calma, calma, diz a voz de baixo do pai ordenador. Um rapaz grita que é bola ao ar. Talvez seja. Quando a vida se interrompe também se há-de mandar a bola ao ar, para que ela retome o seu andamento, até que um apito assinale um fora-de-jogo ou o fim da partida.

segunda-feira, 1 de março de 2021

O dever de anotar

É difícil uma pessoa adaptar-se às novas circunstâncias. Julga que vive como há vinte ou trinta anos, mas a realidade é tão crua que não se faz rogada em desmentir a presunção. Ao marcar um exame médico, deram-me uma série de indicações para cumprir no dia anterior. Nem as escrevi, convicto de que me lembraria delas. Agora que o dia se aproxima dei por mim sem saber o que fazer e a ter de ligar para a clínica, com papel e caneta para escrever aquilo que devia ter escrito. As faculdades, pensei, vão se apagando uma a uma. A natureza não é destituída de sabedoria. Olhei pela janela, o telhado branco do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido pelo primeiro sol de Março. Senti uma súbita vontade de ir ver o mar, de me sentar numa esplanada e assistir ao infinito jogo das ondas, à passagem dos barcos, ao voo das gaivotas. A praia que me repele no Verão chama-me no Inverno. Ali posso escutar o murmúrio de tudo o que é, deixar-me prender ao ir e vir das águas para tocar naquilo que se esconde para lá da cortina preta das coisas visíveis. Anoto que a partir de agora tenho o dever de tudo anotar. Talvez estes textos sejam anotações daquilo que tenho o dever de anotar.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Uma peça de má qualidade

Suspeito que seja um acontecimento trivial e não há quem não o tenha experimentado. Sentei-me e fui abalroado – não encontro outro modo de o dizer – por três palavras que emergiram nem sei de onde. Em mim ouvi dizer cães de caça. Se há ocupação humana que me é estranha é a caça. Os seus rituais de perseguição e morte, o companheirismo das suas relações sociais, o prazer dos troféus e os perigos imaginários corridos, nem posso dizer que me são indiferentes, pois desconheço-os por completo. Também cães são animais com os quais não tenho qualquer relação. Não me são antipáticos, mas sempre estiveram fora do meu horizonte de interesses. O mesmo não se passa com os gatos, apesar de não ter nenhum. Por que razão cães de caça decidiu visitar-me? Talvez exista em mim um fundo de onde emanam aliterações e que estas, conforme percorrem o longo caminho que vai do inconsciente até à consciência, comecem a procurar materiais vocabulares para se realizarem, para encarnarem. Esta aliteração terá a certa altura encontrado cães de caça e foi assim que me visitou, para minha surpresa. Em tudo o que disse há uma estranha teoria sobre os recursos estilísticos. Estes não são aprendidos, mas existem no mais fundo do nosso inconsciente, tal como as ideias inatas cartesianas habitam a razão dos homens, e, por vezes, decidem, os recursos estilísticos, manifestar-se, do modo mais inesperado que se possa pensar. A isto chamaram inspiração. Ninguém há-de crer na minha teoria, nem eu, mas talvez não seja pior do que qualquer outra. Cuidado com o relativismo, ladra feroz a cadela da razão. Logo, a gata da imaginação se contorce e, ronronando, mia que o melhor do mundo é a sua relatividade. Eu fico estupefacto com o que se passa em mim, desconfiado de que a minha mente não passa de um teatro onde se desenrola uma peça, de má qualidade, a que assisto como se não tivesse mais nada para fazer. Logo hoje que é domingo e o último dia de Fevereiro.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

A porta da realidade

A manhã de sábado tomada por ocupações profissionais. O que vale, porém, é que agora a realidade se transferiu para uma dimensão fantasmática a que se dá o nome de mundo virtual. Tem algumas vantagens inegáveis. Pessoas que eram desconhecidas continuarão a ser desconhecidas e se, por um acaso, se cruzarem fora da virtualidade permanecerão nesse estado de desconhecimento, que omite os rituais de sociabilidade e dispensa mesmo a troca de palavras. Não se fala com desconhecidos, um imperativo que se aprende desde muito cedo. Não poderia acontecer um daqueles encontros decisivos que muda o destino de uma pessoa? Sejamos práticos, se é para ter um encontro decisivo, a realidade acabará por chamar, sem se saber muito bem como, aqueles a quem quer mudar o destino e pô-los um diante do outro. Ora como a generalidade dos encontros não servem para mudar destinos, o melhor é que se tornem virtuais, pois já o eram antes de a tecnologia lhes ter dado esse nome e essa aparência. A verdade é que a ocupação matinal não me fez lá muito bem, caso contrário não estaria com estes pensamentos sem nexo. Agora, vou sair e ver o meu neto, que não vejo, a não ser virtualmente, há mais de dois meses. Vou entrar pela porta da realidade.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

O golo e a garganta

Fevereiro está por um fio. Já nem três dias lhe sobram, o melhor será rezar-lhe por alma, ainda em vida. Indiferente ao meu interesse mórbido pelo calendário, uma família, uma mãe e três rapazes ainda sem idade escolar, desconfina na praceta entre prédios. Uma bola parece ser a fonte do alvoroço. As vozes elevam-se para se perderem na abstracção em que a vida se tornou. Estou a especular, a mergulhar num território para o qual não tenho qualquer prova. Por vezes, oiço a exuberância da palavra golo. Há um secreto pacto entre as gargantas dos rapazes e esse anglicismo há muito nacionalizado. Quando delas sai, vem esfusiante, prolongando-se no tempo, como se aspirasse à eternidade. Também eu a terei gritado assim e sinto alguma nostalgia de um tempo em que acreditava nos golos e nos penalties. Perdi a fé. Tornei-me ateu. Já nenhum golo é manifestação de um deus, nenhum penalty, promessa ou perigo. Talvez fosse isto que Nietzsche antecipou ao falar da morte de Deus, ou Max Weber, em desencantamento do mundo. Dei uma vista de olhos pelos jornais online. Parece haver um novo jogo. Quem descobrirá a data do desconfinamento? A imprensa sempre fez parte do meu mundo, mas há nela, mesmo na mais séria, uma superficialidade insuperável. Talvez retrate a vida como ela é. Superficial, inócua, frívola, fútil e leviana. O que me vale é que não me faltam adjectivos, cuja exuberância é prova de escrita incapaz. De facto, Fevereiro está mesmo com más cores. Cinzento violáceo. Não lhe dou muito tempo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Habituamo-nos, é tudo

Há quase um ano, na verdade há mais, que estamos metidos neste sarilho da pandemia. Pensava nisto, enquanto contemplava a Sá Carneiro, agora pouco povoada, com cafés e bares fechados e transeuntes vagarosos, arrastando a vida e a idade atrás deles. Os mais velhos desabituaram-se de andar, os mais novos rasgam o ar com exuberância, para mostrar que são novos e que nada lhes resiste. Pergunto-me o que penso sobre a situação e dou por mim a soletrar os versos de uma canção de Jacques Brel. On n'oublie rien de rien / On s'habitue c'est tout. Não esquecemos nada. Habituamo-nos e isso é tudo o que me ocorre. Habituei-me ao ritmo da pandemia, ao confina, desconfina e volta a confinar. Habituei-me às reuniões online, à videoconferência, a usar máscara, aos rituais pandémicos. On s’habitue c’est tout. Foi com Jacques Brel que me tornei um apreciador da música francesa, apesar de ele ser belga. Lembro-me da sua morte em 1978, pouco tempo depois de eu ter comprado o último álbum que editou. Foi um ano que me ficou na memória, pois morreram também os poetas Ruy Belo e Jorge de Sena. Nenhum destes homens era velho. Sena tinha 58 anos. Brel, 49. Ruy Belo, 45. A medicina, se comparada com a de hoje, era muito incipiente. O dia acinzentou-se, as acácias continuam despidas, embora o bosque de cedros, ciprestes e pinheiros esteja exuberante nas várias tonalidades de verde. Ando muito memorioso, digo para mim mesmo, embora seja possível que os pássaros meus vizinhos tenham escutado. Ainda se hão-de rir por me verem a falar sozinho. On n'oublie rien de rien.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Das coisas em que não acreditamos

Nos tempos de faculdade, por vezes ia a um café na Avenida da República que tinha a peculiaridade de só servir café de saco. Não sei se ainda haverá casos desses. O estabelecimento era muito acolhedor e tinha um certo tipo de clientela interessada em coisas do mundo e da cultura. Mais de uma vez vi por lá David Mourão-Ferreira. Lembrei-me disto porque ele faria hoje anos, noventa e quatro. Nasceu no mesmo ano do meu pai. Nunca falei com ele, mas recordo-o da televisão, dos programas que fazia, num mundo em que havia apenas um ou dois canais televisivos, a preto e branco, e em que a palavra canal não se referia a esgoto, como acontece agora, quando se fala de um canal televisivo. Não estou a protestar com a televisão dos dias de hoje, as coisas são o que são e, de certa maneira, se as televisões são assim foi porque as pessoas o quiseram. Voltando ao café da Avenida da República, recordo o prazer de lá estar a ler o jornal, um vespertino, num tempo em que em Lisboa ainda existiam três jornais da tarde, que foram morrendo por falta de leitores. Bebia café, lia o jornal e fumava, como acontecia num tempo em que se fumava em todo o lado. Incluindo nas aulas. Os jornais morreram, o café morreu, David Mourão-Ferreira morreu, o meu pai morreu. Talvez já ninguém beba café de saco. Quando se envelhece a vida é um acumular de destroços e de perda de referências. Isso, porém, era uma coisa que eu não sabia. Ouvia dizer, mas não acreditava.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Em louvor da malva

Ao longe, descortino o que parecem ser três árvores cobertas por um véu cor de malva. Não imagino que árvores serão aquelas que florescem tão cedo e nessa cor incerta. Se se fizer uma pesquisa sobre a cor malva, encontram-se matizes tão diversificados que apetece de imediato mandar o mostruário às malvas. Há um filme de que muito gosto, embora não seja obra marcante da história do cinema, que tem um nome que vem mesmo a propósito para este texto. Um Táxi Cor de Malva (Un Taxi Mauve), de Yves Boisset, onde contracenam um contido Philippe Noiret, uma provocadora Charlotte Rampling, um exuberante Peter Ustinov e um simpático e humano Fred Astaire, o médico Dr. Seamus Scully, que se desloca no seu táxi cor de malva. Por que razão gosto tanto desse filme, nem eu o sei. De vez em quanto, procuro o DVD e fico a vê-lo, a olhar as paisagens da Irlanda do Sul, os dramas existenciais das personagens. Há uns tempo comprei o romance que deu origem ao filme, de Michel Déon, publicado pela Gallimard em 1973 e traduzido, em 1975, para português e editado pela Bertrand. Ainda não o li. Temo que o espírito do filme e o do romance não coincidam. Não conheço o autor, isto é, nunca li nada dele, mas Un Taxi Mauve foi galardoado com o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Será virtuoso, mas não sei se arrisco, apesar de Déon ter sido eleito para essa Academia em 1978. O Sol deu um ar da sua graça, ao longe às árvores cor de malva fulguram, incrustadas numa paisagem verde, que se diferencia em múltiplos matizes, desde aqueles mais abertos a lembrar uma alface alourada até aos verdes carregados, quase lutosos das colinas que encerram o meu horizonte.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Questões tribais

Os dias cresceram a olhos vistos. Há qualquer coisa estranha na expressão a olhos vistos. Os olhos para verem não precisam de ser vistos. É uma locução adverbial, hão-de sossegar-me os gramáticos ou talvez os linguistas, duas tribos que não sei distinguir lá muito bem. Isto fez-me pensar noutro assunto. Está muito na moda verberar a tribalização da vida social que, segundo as mais recentes crónicas do planeta Terra, está a acontecer um pouco por todo o lado, uma tribalização universal. As pessoas devem gostar de pertencer a uma tribo – ou, mesmo, a várias – e com isso encontrarem um lugar no mundo e um chefe que mande nelas, pois não há tribo sem chefe. Eu próprio me tornei chefe de uma tribo. É composta por uma única pessoa, que é ao mesmo tempo súbdito e chefe, isto é, eu. Sou a única pessoa que me obedece. Tudo isto para confessar que também sou um tribalista. Quase que me esquecia do que me trouxe aqui. Os dias estão maiores, a luz demora-se cada vez mais, abandona aquela mania de se deslocar a trezentos mil quilómetros por segundo, e vai mais devagar. Esta é a verdadeira explicação do crescimento dos dias. Quanto maiores são os dias, mais devagar se desloca a luz. A certa altura, chega a parar a meio do caminho, e o dia prolonga-se, prolonga-se. Prolonga-se a olhos vistos, diria um gramático amante de locuções adverbiais. Ou um linguista. Einstein não haveria de concordar com a explicação, mas ele pertencia à tribo dos físicos, o que não era nem será um ponto a seu favor. Por que razão escreves coisas tão parvas, perguntam-me. Está-me na massa do sangue, respondo.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Não tarda, a Primavera

Já falta menos de um mês – e um mês amputado dos dias a que Fevereiro não teve direito – para que chegue a Primavera. O dia de hoje parece anunciá-la. O sol deu um ar da sua graça, embora de forma muito comedida. Ora brilha, para que árvores e vidros resplandeçam, ora se recolhe por detrás das nuvens, para que a luz se derrame difusa, com um tom de melancolia, que não deixa de lhe ficar bem. Na rua ouvem-se vozes de criança e, nos parapeitos das janelas, os pássaros conversam entre si, enquanto tomam um banho solar. Num vídeo acabado de receber, o meu neto dá saltos em cima de uma cama e parece exultante. Julgo que não haverá criança que não goste de pular em cima de uma cama. A minha neta mais velha, contam-me, entrou no clube das mulheres. Apareceram-lhe as regras, com se dizia antigamente, embora a linguagem usada na comunicação tivesse sido mais moderna. O tempo desliza demasiado depressa e ela já não virá para o meu escritório com a irmã brincar aos colégios, às professoras e alunas, às inscrições e faltas às aulas a serem reguladas com severidade com alguma mãe distraída. Com os saltos de um, as regras de outra, a expectativa da que ainda não se regulou, vou sendo empurrado para fora do mundo. O pior é o confinamento. Sem ele, talvez hoje estivessem aqui a almoçar, e o deslizar em direcção à grande e eterna noite fosse mais aprazível, pois haveria de esquecer, ao vê-los e ao ouvi-los, que o tempo é um príncipe inexorável na sua justiça. Um pássaro canta, a escola ao lado recorda um filme distópico, onde tudo foi abandonado. É domingo, e essa é a única coisa que me ocorre de momento.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Falar do tempo

O Inverno resiste aos avanços da Primavera. Finca-se nas patas traseiras e faz força para que o tempo não deslize rapidamente para os dias ensolarados. Chove e um vento frio sopra de Sul, mas não vai a galope. Deixa-se ir em passo vagaroso, nove metros por segundo. Sou informado de que por aqui se está em alerta laranja, não vá o mafarrico tecê-las. Continuo com acentuada inclinação para ser boletim meteorológico. De que hão-de as pessoas falar, quando não têm nada para dizer? Do tempo. Um homem convida uma mulher para sair, mas sofre de uma acentuada falta de assunto. Então, ocorre-lhe falar do estado do tempo. Informa-a das temperaturas máximas e mínimas, se chove ou faz sol, se troveja. Emocionante é o momento em que fala da velocidade do vento e põe a mão sobre a dela. Ela, perplexa e perdida na carta meteorológica, não sabe se há-de ou não tirar a mão. E se estiver um vendaval? E se chove a potes? E ali fica indecisa, tira ou não tira, enquanto ele avança por ciclones e tsunamis, deambula pelas tempestades tropicais. Chega a ser convincente no que diz sobre tempestades de granizo e as grandes nevascas que podem acontecer no próximo século. O tempo é um assunto inesgotável, e, caso fosse cultivado com esmero, muitos divórcios seriam evitados.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Cultivar um jardim

Os dias continuam desagradáveis. Um vento frio sopra de Sul e daqui a pouco há-de chover. Enganei-me. Já está a chover, e chove apenas para confirmar a precisão do prognóstico meteorológico lido num dos sites que se dedica a presumir como o clima se comportará. Nunca deixa de me fascinar a atracção humana pelo futuro, tão forte quanto a que existe pelo passado. Daqui não será completamente estulto concluir que o pior sítio para se viver é o presente. Deverá ser tão doloroso que a mente humana ou se volta em ânsia para o que há-de ser ou se recolhe na melancolia do que foi. Talvez a vida não seja outra coisa senão um conflito com o presente, uma descoincidência contínua com o que ocorre a cada instante. Uma pedra ou um rio coincidem plenamente com o momento, por isso não têm uma consciência infeliz. Talvez estes pensamentos sejam motivados pelo confinamento, o qual torna as pessoas meditabundas e as leva a pensar coisas que um saudável bom-senso manda não pensar. Há pouco contei as orquídeas floridas. Já são seis e as outras prometem abrir-se em esplendor para que possam ser contempladas. Um filósofo alemão de origem coreana escreveu um livro em que reflectiu sobre o tempo que dedicou ao seu jardim. Tenho pena de não ter uma vocação de jardineiro, pois essa seria a mais bela e produtiva das ocupações. Fazer crescer a beleza pelo prazer de a contemplar.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Mundos possíveis

Um dia desabrido, o de do hoje. Suspeito que terá acordado indisposto, lacrimoso, talvez a sofrer de algum desgosto de amor, se ainda os há, ou de um estado depressivo. Outra hipótese é de se estar na Quaresma e o dia entregar-se aos ritos penitenciais, ao exercício do arrependimento e, por isso, chove como se chorasse, tomado por súbitos ataques de mágoa e melancolia, em que uma água gélida se derrama de nuvens cinzentas. Daqui a pouco terei de sair, atravessar a cidade de lés-a-lés. Olho para a rua e pergunto-me se esta Terra é uma excepção num universo sem medida ou se é apenas um dos mundos que por ali existem. Caso seja apenas um dos mundos habitados, será ela o melhor dos mundos possíveis? Muitas são as coisas estranhas que há universo fora, mas talvez as mais estranhas sejam a existência de mundos habitados e de neles haver seres que pensem que há mundo habitados. A chuva persiste na queda, os carros passam devagar, são quatro da tarde, mas podiam ser seis ou mesmo duas. Este confinamento é muito diferente do anterior, é o que me ocorre.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Metafísica de alfurja

Por vezes sou assaltado por pensamentos que ninguém no seu perfeito juízo deveria ter. Por exemplo, há pouco sofri a distracção imposta pelo pensamento de que toda a busca pela origem das coisas, seja das espécies, do universo, ou de qualquer outra existência, será apenas fruto de uma forma de pensar errada. O facto de perguntarmos pela origem não significa que exista uma origem. Este computador não teria origem, aquele carro que passa na avenida não teria origem, eu não teria origem, o universo haveria de passar bem sem origem. Talvez seja tudo um borbulhar eterno sem princípio e sem fim. Depois considerei estes pensamentos e julguei-os inúteis até para uma Quarta-Feira de Cinzas. Fui espreitar o trânsito da avenida, mas fiquei a olhar para o friso das orquídeas. Todas dão sinais de que irão florescer, cada flor terá a sua origem num botão, que terá a sua origem em qualquer outra coisa que os meus conhecimentos botânicos não alcançam. Então sempre existe origem das coisas, dir-se-á. Eu responderei que sim, mas que talvez isso não passe de uma manifestação da preguiça que me invade a mente. Olho de novo para a rua e vejo borbulhas por todo o lado, bolhas que aparecem e desaparecem, sem causa nem destino. Acho que vou passar pelas brasas, talvez esta metafísica de alfurja se remeta à sua origem.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Uma Terça-Feira de Cinzas

Enquanto olho o mundo através de uma janela, vou bebendo café. Se não há qualquer ligação significativa entre beber café e olhar através da janela, é plausível que possa haver uma relação directa entre o dia triste e cinzento, com uma luz baça e fria, e um ânimo pouco animado. Os seres humanos dependem mais do cosmos do que aquilo que eles gostam de reconhecer. Acontece que certos actos ou estados de alma podem ser o resultado de causas exteriores. Um certo tipo de luz, a forma como corre o vento, algum aguaceiro despropositado, uma vaga de calor. Todas estas coisas influem sobre o espírito, assim como sobre os ossos. Esta Terça-Feira de Carnaval mais parece uma Quarta-Feira de Cinzas, oiço dizer. Contudo, os pássaros meus vizinhos parecem animados. Conversam, cantam, voam, talvez pensem que estão já na Primavera. Presumo que não se mascarem no dia de hoje, mas a ornitologia não é o meu forte. Sei, por exemplo, que os anjos se disfarçam de pombos, mas não sei se os pombos se disfarçam de alguma coisa. O mundo está cheio de mistérios e mesmo onde eles não existem, os seres humanos inventam-nos. Umas vezes para continuar uma conversa, outras para sonhar, outras ainda para escreverem qualquer coisa. Não é amor à mentira, nem tão pouco uma inclinação para o mito, mas apenas a necessidade de continuar a usar a linguagem, cujo mistério não é dos menores.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Deixar de ter opinião

Apesar dos esforços e dos afazeres timbrados com o selo do calendário, o tempo persiste a desdiferenciar-se, a perder as qualidades com que longas tradições o investiram. Talvez todas as coisas tendam, apesar dos esforços em contrário, para a igualdade, para se mesclarem no magma da existência, perdendo qualidades. Não sei se pensar nestas coisas me dá sono ou se as penso porque estou com sono. A vida arrasta-se ao sabor das notícias, como se arrastam os carros pela avenida movidos pelas necessidades da existência. Solicitam-me uma opinião, logo a mim que faço os possíveis por evitar esse dano que é ter opiniões. Quando era novo tinha muitas opiniões, à medida que o tempo foi passando fui-me despindo delas. Quando menos se percebe o mundo mais opiniões se tem, quanto mais opiniões se tem menos se percebe o mundo. Depois, sem se saber muito bem a razão, começa-se a perder a vontade em sustentar as presunções pessoais. O silêncio então cresce. Torna-se possível ficar a olhar para o que se passa e daí evitar qualquer ilação. Talvez todas estas ideias sejam condenáveis, mas não me ocorreram outras.