terça-feira, 15 de março de 2022

Exaltação e exaltados

Estes são dias de exaltação. Anda tudo um bocado exaltado, até eu que já não tenho idade para isso, desabafou comigo, a meio da manhã, o padre Lodo. Respondi-lhe que sempre imaginei os Settembrini como cultores de uma exaltação de fundo disfarçada pela pose serena de quem contempla o mundo com ironia. Ele riu-se, depois lamentou os seus amigos ucranianos. Conheci vários, continuou, quando participava em reuniões ecuménicas por essa Europa fora. Não apenas sacerdotes, mas também leigos. Os religiosos de leste são diferentes dos latinos, possuem um vínculo mais sério com aquilo que a religião tem de exigente e sacrificial, enquanto os de cá parecem mais comprometidos com a vida confortável, como se fossem guiados por um ideal burguês. Eu mantive-me em silêncio, enquanto ele continuava a sua comparação. Ao perceber que eu não intervinha, disse-me: já sei o que está a pensar, que eu sou esse protótipo de sacerdote burguês. Não digo que não, mas o que hei-de fazer, um pouco de boa vida ajuda muito a uma vida boa. Quase que estive para lhe perguntar se não tinha pena de não ter filhos e netos, mas calei-me. Depois, despediu-se, informando que tinha entre mãos a correspondência, outrora secreta, entre o seu avô e o incorrigível Leo Naphta. Nem tudo o que corre por aí corresponde à verdade, mas isso passa-se com tudo, concluiu.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Múmias

Sou informado de que há oito mil anos já havia múmias no vale do Sado. Talvez, imagino, o território português seja o lugar de origem da mumificação. Esta conclusão não a retiro da notícia, mas de ver por aí tanta múmia viva. A mumificação geral da nossa sociedade alguma causa haverá de ter. Esta – a de ser uma antiquíssima tradição – parece-me a melhor explicação disponível. Antes de sermos mumificados, já somos autênticas múmias. Eu sei que há por aí muita gente que se acha o contrário de múmia, pessoas sempre em movimento, sempre com o cérebro a fervilhar de ideias, sempre prontas para lançar o caos. O lamentável é que na essência são autênticas múmias, e o que conta não é a aparência, mas a essência. Há múmias paralíticas – para citar uma séria humorística brasileira cujo nome não se mumificou na memória – e há múmias andantes, múmias de triste figura, talvez parentes, por linhagem colateral, daquele cavaleiro manchego que confundia moinhos com gigantes. As segundas-feiras não deveriam ser propícias para a exibição dos meus dotes de sociólogo, mas, à falta de assunto, não consegui evitar. Pior, seria ter dotes de economista. Punha-me aqui a fazer previsões e, como qualquer economista que se preza, não as conseguiria acertar, mesmo depois dos factos ocorridos. Em economia nem depois dos jogos é seguro fazer previsões. Amanhã, pelas doze horas, Março atingirá o meio do caminho. O tempo voa, embora não se lhe conheçam asas, nem hélices.

domingo, 13 de março de 2022

Conspiração contra o domingo

Contrariamente ao hábito, o almoço de domingo foi cedo. Talvez por isso sinta um leve desconforto. Os hábitos – os velhos hábitos – devem ser conservados e apenas, em última instância, se deve admitir uma alteração, o que não foi o caso. O problema reside no aspecto que logo o domingo toma. Comporta-se como um dia útil, o que é uma maldade para a qual não há nome. Os domingos devem ser dias inúteis. Aliás, qualquer dia que se presasse deveria ser inútil. Eu sei que não somos seres destituídos de corpo e que este nunca se cansa de nos lembrar que a carne é fraca e está submetida à tirania da estrita necessidade. Há na nossa natureza de homo sapiens sapiens, isto é, de homens que sabem que sabem, uma armadilha, a mais cruel e desassisada das armadilhas. Foi-nos dado o poder de pensar e a faculdade de imaginar, mas ao mesmo tempo, como meros animais, estamos submetidos a ter de fazer pela vida. Fôssemos saguins ou marmotas e não haveria lugar para este sentimento de desadequação entre a realidade e o que podemos pensar e imaginar. Como já aqui escrevi – e será um leitmotiv destes textos – a realidade sofre de uma deficiência ontológica estrutural. Nunca é como deveria ser. Pelo contrário, há nela um princípio conspiratório que se compraz em desdizer não só os nossos mais legítimos desejos, como desmente constantemente aquilo que pensamos. Hoje é um domingo com aspecto de dia útil, nem sequer vou ter a melancolia do domingo à tarde. O mundo já não é como era.

sábado, 12 de março de 2022

Em tom de elegia

Nem sei bem a razão, mas há pouco tomei consciência de que no ano passado morreram dois poetas importantes. Primeiro, Pedro Tamen, estava Julho a preparar-se para ceder o lugar a Agosto. Depois, Fernando Echevarría, mesmo no dia anterior à comemoração da República. É possível que tenham morrido outros poetas durante esse malfadado ano, mas disso não tenho consciência. Lembro-me bem de um ano em que a morte também decidiu, naquele arbítrio que lhe rege as escolhas, levar dois outros poetas importantes. Foi o de 1978. Quase eu não tinha idade, embora tivesse ocupado largos meses desse ano com o cumprimento dos meus deveres militares. Nesse longínquo ano, a incansável ceifeira levou Jorge de Sena e Ruy Belo. Este tinha quarenta e cinco anos e Sena ainda não chegara aos sessenta. Nesse ano, também morreu Jacques Brel. Nunca esqueci, pois faziam parte do meu mundo, isto é, do conjunto de referências que começara a construir no início da juventude, seja lá isso o que for. Não vale a pena perguntar-me a razão porque enveredei por este escrito fúnebre. Talvez porque o dia tenha estado triste, talvez porque o Andante tranquilo do primeiro Quarteto de cordas de Joly Braga Santos me tenha disposto para a elegia, talvez porque não tenha mais nada para dizer. Um anjo agastado que habita no meu escritório, não se esqueceu, agora mesmo, de me admoestar. Quem não tem nada para dizer, o melhor é calar-se. Obedeço.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Viagens musicais

Estou a ouvir a quarta sinfonia de Joly Braga Santos, dirigida pelo maestro Álvaro Cassuto. O que me terá dado para estar, numa tarde de sexta-feira, a escutar esta música? Apesar de haver muitos, há menos mistérios no mundo do que se pensa. Vinha para casa almoçar e na Antena 2 passava uma entrevista com Álvaro Cassuto, na qual ele falava das suas gravações, tendo o entrevistador salientado a excelente recepção feita pela Gramophone, uma revista especializada e muito cotada no mundo da música. Eis a razão. O maestro explicou por que motivo o alemão Klaus Heymann – o fundador da etiqueta Naxos e também da Marco Polo – apostava em música erudita pouco conhecida, como a portuguesa. A tese de Heymann mostra que ele é um verdadeiro homem de negócios. Os consumidores de música erudita não estão interessados em mais uma sinfonia de Beethoven ou numa peça de Mozart. Terão pelo menos umas cinco gravações de grande qualidade. No entanto, há no mundo um milhão de coleccionadores de música erudita que se interessam por aquela música quase desconhecida ou, então, que foi esquecida. Além de consumirem, coleccionam. Um mercado com um milhão de potenciais consumidores não é mau. Esta é a vantagem da música relativamente à literatura. As fronteiras das linguagens musicais são muito mais dúcteis do que a das línguas nacionais. Na música não há tradução e com mais facilidade se penetra em universos musicais que nos são estranhos. Por vezes, sou acometido por uma necessidade de fazer viagens musicais. A música do Japão, da Pérsia, do mundo árabe ou o canto bizantino são lugares que gosto de visitar. Não é preciso passaporte nem saber a língua. Basta deixar-se invadir por essas sonoridades estranhas. Acho que vou passar uns dias a ouvir a música de Joly Braga Santos.

quinta-feira, 10 de março de 2022

No manicómio

A certa altura, no romance Solaris, Stanislaw Lem escreve: Naturalmente, podemos sempre fugir, nem que seja para o Satelóide, e daí enviar um SOS. Mas vão-nos tratar, obviamente, como loucos. Fecham-nos num hospício na Terra até ao dia em que retirarmos tudo o que dissemos. Excertos como este ajudam-nos a compreender a situação em que estamos. Teremos perdido a memória, mas parece óbvio que já devemos ter vivido noutro lugar e, na altura, não soubemos manter a boca fechada. Dissemos o que não devíamos ou o que alguém não queria ouvir, o que, na prática, é a mesma coisa. Resultado, fomos encerrados na Terra, a qual, como facilmente se pode comprovar, não passa de um manicómio. Mesmo que fôssemos sãos de espírito, o facto de aqui estarmos e disto ser um manicómio tem um efeito na sanidade mental da espécie. Em Roma, somos sempre romanos. Logo, num manicómio só nos resta ser loucos. Ora, há certos movimentos que andam à procura da palavra perdida, para nos podermos retractar. Que palavra será essa? Ninguém sabe. Este texto, por exemplo, é uma evidência do estado de insanidade mental da espécie humana. A princípio atribuí-o a ter estado todo o dia a trabalhar num documento cuja utilidade é nula, embora seja fundamental. Na Terra em geral e nesta em particular, só o inútil é fundamental. Agora que citei o Lem, tomei consciência de que a insanidade textual se deve à tal palavra que foi dita fora da Terra e que nos condenou a vir para aqui, pois, confidenciou-me quem sabe do assunto, o planeta Terra é um dos vários manicómios existentes na nossa galáxia, para onde são enviados aqueles que são tidos por loucos. Garantiram-me, também, que a regra diz que depois de curados da loucura, voltam para o lugar de onde foram exilados, mas não há memória de alguém que tenha sido dado por curado. Apanhei a realidade em flagrante delito, a mentir em acto. Enquanto a minha aplicação meteorológica me informa que não chove, nem há previsão para que isso aconteça hoje, os meus olhos vêem chuva a cair sobre ruas e prédios. A realidade é uma mentirosa ou, então, os meus olhos são enganadores.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Apetites

Não tarda e estará cumprido o primeiro terço de Março. Nestes últimos dias, tem sido fiel à sua natureza de mês invernoso. Chuva, vento, algum frio, manhãs de Inverno, tardes de Verão. Depois de almoço, sentei-me em frente ao computador, deixando Março na rua, apostado em adiantar alguns assuntos que tenho entre mãos. O resultado não foi brilhante. Adormeci. Agora dói-me o pescoço. Fui acordado por uma chamada. Alguém precisava de uma informação e fez-me o favor de interromper o meu sono, acordando-me para a miserável realidade. Passei os olhos pela informação. O mundo continua a ser mundo, um sítio onde o deplorável acontece com demasiada facilidade. Leio que descobriram uma nova variante do vírus que nos preocupava antes da guerra ter renascido na Europa. Resulta do casamento das variantes Delta e Ómicron e foi baptizada como Deltacron. Esta é uma excelente ideia para dar nomes aos filhos. Imaginemos que um João casa com uma Maria. O filho seria Jomar. Caso fosse uma filha, Marjo seria o ideal. Isto enriqueceria a nossa onomástica e dispensava inclusive a criatividade dos nossos irmãos brasileiros. Agora, vou dedicar-me aos assuntos a que me deveria ter dedicado quando adormeci. O que me apetecia mesmo era ir dormir, mas há que dominar os nossos apetites.

terça-feira, 8 de março de 2022

Problemas de orgulho

Hoje o tempo conseguiu estar de acordo com a previsão meteorológica da aplicação que uso no telemóvel. Choveu, como tinha sido predito. Agora, porém, o céu está mesclado de azul e vários tons de cinzento. Não chove e um sol sem convicção derrama-se sobre as ruas da cidade. Na praceta aqui em baixo, um pai e um filho jogam à bola. O pai tenta industriar a criança nas artes do drible e do pontapé. Ela, embevecida perante o seu herói, imita o modelo. É assim que se produz a aprendizagem, por imitação de modelos, o que tem as suas vantagens, mas grandes desvantagens, caso os modelos sejam maus. E não faltam por aí maus modelos, como se pode verificar pelo estado em que se encontra o mundo. Por vezes, muito mais vezes do que seria admissível, entrego-me a ociosidades completamente dispensáveis. Por exemplo, à leitura de certos livros repletos de coisas que não sei classificar. Um deles explica-me que há proposições que não sendo verdadeiras também não são falsas. Nem todas as proposições não verdadeiras são falsas, enfatiza a prosa. Há umas que se limitam a ser não verdadeiras. Depois, adianta um exemplo: ‘O André é mais alto do que…’. Argui o autor que esta proposição não é verdadeira nem falsa, é apenas não verdadeira por ser incompleta. Ora, se é incompleta, não é sequer é uma proposição e logo a questão da verdade e da falsidade não se coloca. Como se pode ver, estou, mais uma vez, sem assunto. Isto é terrível, pois o mundo borbulha de assuntos. Por exemplo, leio que, segundo o Patriarca Ortodoxo da Rússia, Cirilo I, a culpa da guerra na Ucrânia é do orgulho gay. Até que enfim que encontro uma explicação plausível para o acontecimento. Como se pode perceber, isto tem implicações extraordinárias sobre aqueles que parece terem orgulho em invadir um país mais pequeno e menos armado, que sentem prazer em bater nos fracos. Gostava de saber o que anda esta gente a fumar lá para os lados de Moscovo. Ao menos podiam ler livros sobre proposições que não são verdadeiras nem falsas, isso não mata ninguém e, que eu saiba, não é razão de orgulho gay, o que poderia descansar o patriarca.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Percussão

A manhã de trabalho em casa. Coisas urgentes entre mãos, necessidade de silêncio e concentração. O mundo, porém, insiste em mostrar o seu desconserto. Num dos apartamentos contíguos, alguém decidiu testar a capacidade de as paredes percutirem o som dos martelos. Entrega-se com denodo à tarefa. Por vezes, pára, parece faltar-lhe energia, mas logo recupera e continua a testar a capacidade percutora das paredes. Estas respondem com prontidão, o pior são os meus ouvidos. Também é verdade que poderiam ter melhor qualidade e, em casos como este, fazerem orelhas moucas. Isto lembrou-me o antigo adágio ao gosto popular, que por aqui corria: mulher séria tem orelhas moucas. Não é fácil ligar a seriedade à surdez, mas a sabedoria popular não seria propriamente igualitária e estaria longe de se preocupar em justificar aquilo que lhe ia no ânimo. A percussão continua, mas agora em harmonia com uns guinchos vindos da rua, onde um pequeno bando de adolescentes sofre o peso das hormonas, tudo acompanhado pelo ronronar irritante de um camião, cujo motorista se esqueceu de desligar o motor. A minha aplicação meteorológica informa-me que hoje há 94% de possibilidades de chover, embora de momento não exista precipitação. O vento sopra de sudoeste a 4 km/h. Não tem pressa de chegar, tal como o vizinho percutidor não tem pressa de acabar o concerto. Imagino que tenha vocação de baterista.

domingo, 6 de março de 2022

Endomingamento

Por aqui, as promessas de chuva dissolveram-se. Se nem São Pedro se mantém fiel à sua palavra, o que poderemos esperar dos outros homens que nem santos são? Está um domingo rumoroso de Primavera. Dei uma volta pela cidade, as pessoas dividiam-se entre as compras e o endomingamento, embora hoje se endomingue muito menos que outrora, ou, antes, se endomingue de forma diferente, descuidada. Neste tempo sem graça, toda a gente faz gala em vestir-se de forma leve, desportiva, casual (em inglês, claro), como se estivesse enfastiada do dress code que é obrigada durante a semana, embora a maior parte não esteja sujeito a qualquer código de vestuário. Ora, a questão é outra. No tempo em que o domingo era um dia de festa, uma festa solene, cujo centro era a missa, as pessoas vestiam-se de forma cerimoniosa, pois tinham de participar numa cerimónia. Agora, o domingo é apenas um dia de ócio, um retemperar forças para os dias de negócio. Creio que a dessacralização do domingo teve um enorme incremento com a possibilidade de a Eucaristia semanal ser ao sábado. Ofereceu-se uma alternativa, mas as pessoas e optaram pela terceira via. Nem sábado, nem domingo. Nunca. Estas últimas reflexões sobre a missa não me pertencem, mas ao padre Lodovico, que desabafou comigo, ainda há pouco, numa longa conversa telefónica. Veio dar-me a novidade de que esteve em casa retido devido ao vírus. O que vale, informou-me, é que não teve sintomas, a não ser um certo anasalamento da voz. Depois, entrou no assunto da Ucrânia, de como o coração se lhe partia, o medo pelos amigos que por lá tinha. Hoje, porém, evitou a escatologia e não referiu o Anticristo. A COVID retemperou-lhe a veia racionalista, marca essencial da família Settembrini, a que ele, apesar de jesuíta, não deixou de pertencer. A escatologia pertence mais à família dos Naphta, mas esse é outro assunto que não vem ao caso. Como é habitual, ao domingo almoço mais tarde. Enquanto escrevo, vou espreitando a rua e ouvindo um disco de Jazz com o título Copal, do Eurico Costa Trio. Uma descoberta recente e interessante. O pior é mesmo a falta de chuva.

sábado, 5 de março de 2022

Conspiração contra as famílias

Acabei de fazer uma ronda electrónica pelos covidados da família. O curioso é que a origem não é a mesma. Há três focos diferentes de contaminação. Isto faz suspeitar que os números de novas infecções que são adiantados nos últimos dias estão longe da realidade. Deve haver muita gente que não é detectada. Agora, oiço uma voz perguntar avó, posso fazer um intervalo? A vida é dura. As pobres pequenas vieram para cá quatro dias para trabalhar. Nem houve oportunidade para ir dar um passeio. Desde o tempo em que entrei na escola primária, e isso foi há muitas décadas, que acho que tudo isto não passa de uma conspiração contra a felicidade geral das famílias. Introduz uma angústia pior que a do guarda-redes no momento do penalty. Claro que não advogo a ignorância nem o analfabetismo, apenas quero salientar que a espécie poderia ter sido melhor fabricada. Deveria aprender Matemática, Física, Química, Gramática, História ou Filosofia do mesmo modo que aprende a andar ou a falar, mas não, alguém – por certo, um deus distraído – fez com que tudo tivesse de ser adquirido de modo penoso, com esforço, exigindo aquilo que os latinos designavam por conatus. Isso se exceptuarmos alguns felizardos que, não se sabe bem a razão, não foram apanhados pela distracção do deus e acham-se como peixe na águaa quando o assunto é aprender. Ainda não saí de casa, mas já percorri as varandas para observar o mundo. Aquilo que vi não é particularmente exaltante, mas o melhor de tudo é mesmo isso, não haver coisas exaltantes, pois estas, por norma, são acompanhadas de verdadeiras tragédias, como se está a ver. As acácias da praceta estão completamente despidas, os ramos nus fazem lembrar dedos apontados ao céu, numa acusação silenciosa. A minha aplicação meteorológica informa-me que há 79% de probabilidade de chover. Repare-se como estas coisas são feitas. Não se comprometem. Se não chover e forem postas perante o falhanço da previsão, argumentarão que havia 21% de probabilidade de não chover, o que significa que jamais falham uma previsão, a não ser que arrisquem os 100% ou o 0%. Os dias já estão muito maiores. Não tarda, chegará a hora de almoço. Depois, elas, as pobres pequenas, vão-se embora.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Nada

Hoje retomei as caminhadas. É evidente que dizer retomei significa mais a expressão de um desejo do que a expressão de uma verdade. O facto de o ter feito hoje não significa que o continue a fazer nos próximos tempos. Estava um vento norte frio, irritado e irritante. Aproveitei essa deambulação para deixar o pensamento com rédea solta. Assim, ia pensando ora nisto, ora naquilo, ora naqueloutro. Esta é a melhor forma de não pensar nada. Pelo menos para pessoas como eu que não se entregam à meditação, a qual, dizem, tem o condão de nos conduzir ao não pensamento. Não pensamento não é a mesma coisa que pensar em nada. Neste último caso, o pensamento tem por objecto o nada e sobre este há muita coisa para pensar. Consideremos, a título de exemplo, a obra de Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada. Dedica quase oitenta páginas, na tradução portuguesa, ao problema do Nada. Se alguém pensar que sobre o nada nada há a pensar, então equivoca-se. Portanto, parece-me uma conclusão lógica, não pensar e pensar em nada são coisas muito diferentes. Quantas vezes uma pessoa é apanhada a pensar em nada. Estamos muito absortos e alguém pergunta: estás a pensar em quê? Em nada, respondemos. Portanto, pensar em nada é ter aqueles pensamentos que não queremos partilhar com terceiros. Depois de ler o que escrevi até aqui, começo a desconfiar que fazer caminhadas não dá grande saúde mental. As minhas netas puseram-se a ouvir uma música própria de adolescentes. Aposto que se lhes perguntasse: o que estão as meninas a ouvir? Logo me responderiam: nada, avô. Se se pode ouvir nada, então também se pode pensar nada. O meu neto, soube-o agora, está com COVID. Para não se sentir só, também o pai, a mãe, uma tia avó e a bisavó foram apanhados pelo vírus. Este parece resolvido em baptizar todos na sua congregação viral. A noite caiu e a sexta-feira está quase acabada, quase feita em nada.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Volubilidade

Está um verdadeiro dia de Março. Cumpre à risca o ditado popular: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão. Quando, manhã cedo, espreitei para a rua, chovia. Agora, está sol. É um sol deslavado, anémico, com um brilho sem glória. Talvez a culpa seja do vento. Parece irritado. Devem ter acordado Éolo demasiado cedo, agora há que aturá-lo. Venta e bufa pelos quatro cantos. Hoje já fui fazer uma visita. Nunca é fácil visitar quem nos trouxe ao mundo e, ao chegarmos perto, perguntarem-nos quem somos. Quais serão as memórias que desaparecerão em último lugar? As dos filhos? Outras, mais arcaicas? Nestas circunstâncias sinto-me sempre na pele do Romeiro, do Frei Luís de Sousa. Sou ninguém, na verdade. Ainda há dias escrevi que os pinheiros, cedros e ciprestes da escola aqui ao lado estavam petrificados. Hirtos, incapazes de se inclinarem, estátuas vegetais erguidas aos céus.  Agora, porém, o vento fá-los rodopiar. Inclinam-se para um lado e para o outro, como se fossem pêndulos invertidos, enquanto, expulso o sol, a chuva os fustiga, não sem violência. Voltemos à sabedoria popular, já que não tenho outra mais à mão: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de rainha, noite corte que nem foicinha. Não faço a ideia do que isto quer significar, mas se o encontrei no Ciberdúvidas, então há-de querer dizer alguma coisa. A chuva já parou e o sol torna-se a rir, mas apenas um pequeno sorriso escarninho. Tenho de ir lembrar as minhas netas que chegou a hora de fazerem um intervalo no estudo. Embora tenha algumas dúvidas que estejam a estudar, mas há que fingir que assim é. Os pais do meu neto foram apanhados pelo COVID, temo que também ele o tenha sido. Voltou a chover. Que volubilidade.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Destino

Na antiguidade clássica greco-latina, dava-se uma especial atenção ao fado ou destino. Este era percebido como uma espécie de conspiração da ordem cósmica que, nos trazia, aquilo que desde sempre e necessariamente nos estava destinado. Não haverá quem não sinta, em certas circunstâncias, ser vítima desse destino. Ao vermos nas televisões e nas redes sociais aquilo que se passa na Ucrânia facilmente somos tentados a ver naquele acto incompreensível essa mão de um destino metafísico terrível. A ideia de destino nasce de uma impotência que atinge o homem e não de qualquer programação dos deuses ou da mecânica da natureza. Essa impotência – uma impotência radical – é a incapacidade de se desfazer o que foi feito, de voltar atrás e fazer outra coisa. Há uma imutabilidade nos factos. O que aconteceu não pode ser desfeito, embora, muitas vezes, pudesse não ter acontecido. É essa impotência de desfazer o feito que gera em nós uma ideia de fado ou de destino. Se o acontecido é necessariamente imutável, então as causas que lhe deram origem eram necessariamente aquelas. Isto é uma óptima justificação para qualquer tirano. A sua tirania não é responsabilidade própria, mas de um fio tecido por alguma entidade metafísica. Acho que estou a ficar perturbado. Em vez de me estar a preparar para uma daquelas videoconferências que têm a extrema utilidade de não servirem para nada, ponho-me a divagar sobre o destino e a maldade dos déspotas, infringindo inclusive a proibição do autor de tocar em assunto que tenham qualquer aroma político. Dento de mim, porém, há uma voz que sopra, num estranho vernáculo, que um tirano não é propriamente uma entidade política, mas a encarnação do destino para assediar os homens. A praceta aqui em baixo está já envolta na sombra da tarde. No parque infantil, um casal acompanha as aventuras da filha. Os carros passam langorosos na avenida, como se os seus condutores fossem eternos. As minhas netas acabaram de chegar para passar uns dias de férias. A videoconferência vai começar. O mundo está quase salvo.

terça-feira, 1 de março de 2022

Irritações

Constato que a guerra na Ucrânia libertou os portugueses da COVID-19. Depois de dois anos em que qualquer coisa relacionada com a pandemia era esticada até à exaustão, de um momento para o outro, os mortos por COVID-19, que continuam a ser muitos, passaram a nota de rodapé. O sofrimento – dos outros, claro – é sempre excitante, e aquilo que a comunicação social procura é um Viagra para as audiências. Não quero dizer que no meio de tudo isto não exista trabalho jornalístico de grande mérito. Há e muito, mas também uma exploração infernal das emoções que excede em muito o papel da informação. Parece que iniciei Março irritado com o mundo. É uma aparência falsa. O mundo é mundo, isto é, um lugar onde o mal encontra sempre lugar para se manifestar. Também permite algum bem. Mal ou bem mundanos já não têm poder de irritação sobre mim. Coisas mais triviais, porém, podem irritar-me. Por exemplo, ir a dois supermercados e já a caminho de casa ter a súbita revelação que ainda falta uma coisa indispensável, o que obrigará a pisar uma terceira superfície. Isso irrita-me, até porque poderia ter havido uma lista de compras. Esperava com ardor uma terça-feira de Carnaval com chuva, mas o destino quis que fosse cheia de sol. Agora tenho um artigo para escrever, uma súbita encomenda de dois mil e quinhentos caracteres, sem espaços. Sempre me há-de ocorrer alguma coisa sobre os males que afligem o mundo. O que me apetecia, porém, era outra coisa. Ler com tranquilidade um livro que tenho diante de mim, Libertad, Gracia y Destino, de Romano Guardini, mas parece que o destino não me destinou a graça de ter a liberdade de o fazer. De facto, podia começar melhor este mês em que o Inverno se há tornar em Primavera.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Fevereiro triste

Este Fevereiro fina-se sem brilho nem glória. Não nos livrou da peste e trouxe-nos, ao terminar, a malfadada guerra. Há meses em que não se pode confiar, mas isso só sabemos quando eles se põem a caminho. Estamos em pleno Carnaval, mas máscaras só vejo as cirúrgicas ou outras do género. Não é que a pandemia ainda ocupe as preocupações das pessoas. Estão cansadas do vírus e prontificam-se a fazer com ele negociações para um cessar-fogo e, caso seja possível, umas tréguas definitivas. Hoje, como na maior pare dos dias, só me ocorrem trivialidades. Nem as minhas deambulações pela cidade me deram motivo de acções gloriosas, cuja gesta possa vir aqui contar. Resta-me anunciar que no friso das orquídeas, expandido, entretanto, duas já floriram. Uma tem flores amarela, as da outra são fúcsia. Esta última afirmação é muito duvidosa, mas não me ocorre nada melhor, a minha paleta vocabular de cores é lamentavelmente exígua. Olho pela janela do escritório. O pequeno bosque da escola ao lado parece petrificado. Pinheiros, cedros e ciprestes não bolem. Presume que o vento tenha ido soprar para outro lado. Um casal de meia idade atravessa a praceta. Ele vai à frente, ela atrás, cada um mergulhado no seu mundo, no cansaço do outro, na melancolia que é a vida. A expressão meia idade é espantosa. Supõe que exista uma idade inteira e que, ao partir-se esta ao meio, se fica na meia idade. Tenho tentado ler aquele livro de Alberta Pimenta com letras absurdamente pequenas. Gostaria mesmo muito de o conseguir ler, mas não podemos ter na vida tudo o queremos, ou desejamos, ou gostamos, ou. Pior que isso é este Fevereiro sem chuva, encharcado de pandemia e guerra.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Lupa de leitura

Em Lisboa, um amigo insistiu, por motivos que não vêm ao caso, em emprestar-me um livro, esgotado há muito, de Alberto Pimenta, A magia que tira os pecados do mundo. Percorri as páginas e perguntei-lhe se achava que eu ia ler aquilo. De certeza, respondeu. Abri o livro e coloquei-o à frente dos olhos dele. Achas que consigo ver esta letra? Pois é, se tivesse sido editado com letra normal, o tamanho do livro disparava assim como o preço, e ninguém o comprava. Tudo bem, mas não consigo ler uma letra tão pequena. Compras uma lupa de leitura e lês. Eu ri-me e lá trouxe o livro, que jaz sossegado no lado esquerdo da minha secretária. Duvido que compre a lupa de leitura. Logo, a probabilidade de ler o livro é muito menor do que a de não o ler. Muitos livros li com este tamanho de caracteres, mas tratavam-se dos célebres livros das colecções 6 Balas, Cow-Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas pérolas literárias foram uma das minhas iniciações à literatura. Uma pessoa começa a ler as aventuras do Pinóquio, passa pelo 6 Balas, dá um salto à Enid Blyton, embrenha-se no Sherlock Holmes e, não tarda, está a ler Camus, Sófocles, Dostoievski, Thomas Mann, Broch e sei lá mais o quê. Voltando à dimensão da letra. Uma coisa é ter nove, dez ou onze anos, outra é já ter entrado na classe dos sexagenários. Lembrei-me, agora mesmo, que a minha mãe há uns anos insistiu em que eu aceitasse uma das lupas de leitura dela, o que fiz para a não contrariar. Experimentei-a no livro. De facto, os caracteres tornam-se legíveis, mas ao fim de duas páginas hei-de ficar com o braço cansado. Estou convencido de que o próprio autor, com a idade que tem, não consegue ler o seu livro. Por que razão haveria eu de o ler? Parece que estamos no Carnaval. Hoje é domingo gordo. Já era tempo de ele fazer dieta. O Carnaval, assim como o circo, é uma coisa que nunca deixa de me encher de uma certa tristeza, uma pena metafísica pelos pobres foliões. Mais valia que tentassem ler um livro com letra mínima, nem que tivessem de comprar uma lupa de leitura.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Um mau conselheiro

Levantei-me tarde. Estava cansado, pois o dia de ontem teve alguma turbulência, excessiva para o meu actual modo de vida. Pelas 18 horas, lá estive na Cinemateca, a fazer parte do painel de apresentadores do livro do qual sou um dos autores. A coisa foi dramática, não porque tenha havido algum drama, mas porque os textos tinham todos mais de uma dúzia de anos e os autores envelheceram juntamente com os textos. Havia quem tivesse ultrapassado os oitenta anos, quem se aproximasse, quem excedesse os sessenta. Apenas um autor - um jovem autor - deveria aproximar-se dos cinquenta. O espaço, diga-se, é excelente. A apresentação ao ar livre soube bem, apesar de para o fim ter ficado um pouco de frio. Aquilo que eu disse não interessará a ninguém, embora tenha sido óptimo para mim, pois livrei-me de vez daquele assunto que, volta e meia, me assediava. Depois, um jovem casal veio ter comigo. Estudam na mesma faculdade em que estudei e no mesmo curso. Perguntaram-me o que era preciso fazer para ingressarem na carreira de onde anseio sair. Respondi-lhe: não pensem nisso, aproveitem o vosso curso, estudem e divirtam-se, depois terão tempo para pensar nessas coisas. Acho que nunca fui muito bom a dar conselhos.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Irritações escatológicas

O Anticristo tem muitas faces. Surge aos olhos dos incautos sempre como uma novidade, mas nunca deixa de ser o mesmo trampolineiro cruel. Ao escutar isto, respondi: nunca o ouvi falar desse modo, o que se passa consigo, padre Lodo? Não sabe o que se passa? Não ouve notícias? Parece-me que não preciso de mais explicações. Sim, eu sei o que se passa, mas nunca o padre Lodo usou esse tipo de linguagem. Muitas vezes, pensei que era um padre demasiado racional, pouco interessado nessa linguagem vinda dos recantos obscuros da teologia. Ele riu-se e eu imaginei-o a fazer uma careta ao telemóvel. Depois, continuou: não bastava a pandemia, agora uma guerra. E quando se trata de guerra sabemos quando e onde começa, mas nunca sabemos quando acaba nem se nos vem bater à porta ou não. Estou com medo, prosseguiu, não por mim, que tenho idade suficiente para ir prestar contas ao Altíssimo, mas por toda esta gente. Sim, o Cristo só tem uma face, mas o Anticristo tem muitas. Perguntei-lhe se não andava demasiado embrenhado na literatura escatológica. O diabo é que ando, retrucou. Padre, acalme-se, disse-lhe eu. No fim-de-semana, encontramo-nos em Lisboa, juntamos o grupo e vamos jantar. Haveremos de resolver os males do mundo. Neste instante, ouvi a sua voz quase irritada: quantas vezes lhe preciso de explicar que os males do mundo não têm solução. Se assim é, ripostei, o que não tem solução solucionado está. Ele não se riu. Eu também não.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Jogo da cabra-cega

Já há muito que não ouvia o telefone fixo tocar. De tal maneira que demorei alguns segundos a perceber que era ele que estava a dar sinal. Corri para o atender, mas ao levantá-lo da base, ele apagou-se, literalmente. De tanto não ser usado, presumo que decidiu entregar-se a um hara-kiri. Ao menos morro com honra, terá pensado. Fiquei sem saber quem terá ligado, mas o mais provável é que fosse um engano. As pessoas que me ligavam para o fixo já deixaram de ligar seja para onde for. A não ser que alguém tenha tido uma reminiscência e tenha decidido usar o fixo para dar vazão ao que lhe iria, na altura, na memória. Aqui que ninguém nos ouve, dispenso reminiscências. Alguém que tenha memórias, boas ou más, que as guarde para si, que é aquilo que eu faço. A memória tornou-se para este narrador sem narrativa uma questão melindrosa, pois coisas que nela deveria guardar, caso sejam recentes, nem à porta chegam. São esquecidas de imediato. Outras, com muito tempo, parecem manter-se inalteradas, depois há aquelas que jogam à cabra-cega. Imaginemos que estou a falar com alguém e quero dar a referência de um romance de que muito terei gostado. Por exemplo, Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. Pode acontecer que me ocorra o título, mas não o autor. Posso chegar a dar informações tão precisas como o ano da morte de Sena, o facto de ter vivido exilado no Brasil e na Califórnia, mas não me ocorrer o nome. Pode acontecer que não me ocorra o título e começar a contar episódios, entregando-me a um devaneio perifrástico. A isto chamo jogo da cabra-cega. Pode parecer uma analogia forçada, mas é o que sinto que a memória faz comigo. Isto pode ter terríveis implicações quanto ao estatuto de verdade das façanhas que por aqui conto. Neste momento oiço alguém dizer ó (nome da minha neta mais nova) larga os cabelos e pensa. O que ela deve pensar é um assunto de geometria. Será, porém, que isto aconteceu mesmo, que a minha pobre neta estava a segurar os cabelos em vez de pensar? Independente dos estatutos ontológico do acontecimento e epistémico da minha afirmação, o caso não deixa de levantar um problema interessante: por que motivo segurar os cabelos impede os neurónios de se entregarem apaixonadamente a amplexos sinápticos?