quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Desolação

A meio da manhã fui a uma grande superfície. Quando ia para sair, chovia desalmadamente. Sem guarda-chuva que me protegesse corpo e alma, guardei-me da chuva indo até ao sítio, também grande, onde existe um posto dos CTT, um centro de cópias, melhor de fotocópias, venda de material de escritório e escolar, assim como de brinquedos e também de livros, em quantidade apreciável, diga-se. O desolador, porém, é constatar aquilo que anima o comércio livreiro. A quantidade de lixo publicado em forma de livro é extraordinária. Imagino que essas publicações substituíram as antigas fotonovelas Corin Tellado e outros títulos do género. A minha desolação não deriva desses livros serem publicados em abundância, mas de continuar a haver procura. Havendo procura, logo haverá quem esteja disposto a produzir a oferta que responderá ao desejo. A desolação nasce da constatação de que um aumento exponencial da frequência escolar não alterou o gosto, nem produziu gerações mais interessadas naquilo a que se pode chamar, talvez com presunção, alta cultura. Ao contrário do ensino, a excepção não se democratiza, e procurar o excepcional parece não fazer parte daquilo que se ensina. Olhava para as estantes e por cada romance digno desse nome havia mais de cem que não passavam de um renovamento das antigas fotonovelas, agora sem fotografias. Talvez o progresso esteja aí, na transição da curta legenda pespegada numa fotografia para centenas de páginas de texto sem imagens. O problema que ruminei ao ver aquele papel cheio de palavras foi o de saber quantas gerações serão necessárias para que a quantidade se transforme em qualidade. Talvez essa ideia não passe de uma ilusão dialéctica. Seja como for, cada um lê o quer ou pode, pois é isso o que pressupõe uma certa interpretação da liberdade. Esta ruminação melancólica demorou o suficiente para deixar de chover e poder fazer-me ao caminho, já que a farmácia me esperava, embora ela não o soubesse. Uma visita de surpresa.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Justa medida

Talvez não devesse ter comido tanto chocolate. Em termos absolutos, foi até bastante pouco. Apenas três quadrados de um chocolate de origem austríaca. Na realidade ninguém pode comer quadrados seja do que for, mas nunca ouvi, e aqui a tradição é fundamental, dizer que se comeu uns paralelepípedos de chocolate. Ora, estes três quadrados estavam longe de ser generosos, mas mesmo assim ultrapassei a medida que, nesta altura da existência, me cabe quanto ao consumo de chocolate. Isto levanta um problema filosófico que não interessará ninguém e muito menos a qualquer filósofo. A justa medida não passa de um conceito relativo. O que será a justa medida para uns, não o será para outros. Pior, a justa medida para mim foi variando com o tempo. Há muito tempo três quadrados de chocolate era prova de frugalidade. Hoje, é um excesso. Comparemos a justa medida, enquanto critério de acção, com o metro padrão, enquanto critério de medida. Este é objectivo e, a não ser por acidente mecânico, não varia. A justa medida é de uma inconstância assombrosa. Desconfio que seja por causa dessa volubilidade que andamos todos perdidos no mundo. Nunca sabemos qual é a justa medida de cada instante e caímos ora no excesso, ora na falta. Os antigos gregos faziam dela o centro da virtude moral, mas estou longe de pensar que eles fossem virtuosos. O mais sensato seria definir o conceito de justa medida com a precisão com que se definiu o metro padrão, mas logo haveria uma gritaria sem fim, protestando que somos todos diferentes, cada um tem a sua medida e só a sua é justa para si. Este culto exacerbado do subjectivismo cansa-me. Uma pessoa tenta ajudar a humanidade a encontrar um rumo, mas logo percebe que o melhor é estar calado. Talvez a minha justa medida fosse calar-me, mas imagino que não seja suficientemente virtuoso para o voto de silêncio.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Obras apócrifas

Salvo por uma chamada de telemóvel. Sentei-me para escrever este texto. Sem saber o que dizer, acabei por adormecer. A meditação deve ter sido tão profunda que mergulhei no reino dos sonhos, embora não tivesse sonhado. Um amigo, a precisar de uma indicação na manipulação de um certo software, ligou-me e eu retornei ao estado de vigília para lhe dar a indicação e enfrentar o texto que espera a minha decisão para se manifestar. Isto significa que o texto que estou a escrever existe a priori e que eu não sou o seu criador, mas aquele que, sem saber como, o revela, trazendo-o do mundo invisível para o visível. Esta transição entre mundos, como todos sabemos, é problemática e, por norma, representa uma queda. É o que acontece com estes textos. No mundo invisível, eles, suspeito-o, são brilhantes, mas quando opero a transição entre mundos, eles degradam-se e acabam naquilo que se vê. É verdade que nunca recebi qualquer reclamação do outro mundo por diminuir a qualidade da obra. Quando penso nisso, e penso-o muitas vezes, nunca consigo chegar a um acordo sobre as razões desse silêncio. Será que quem vive nesse mundo onde se produzem textos brilhantes é benevolente e compreende a imperfeição do mediador? Será que é condescendente e aceita a degradação textual com um encolher de ombros, como se não se pudesse fazer nada? Será que não quer saber do assunto para nada, já que o que se passa neste mundo não lhe diz respeito? Fico sempre indeciso perante a pluralidade de hipóteses. Acabo por não investigar qualquer delas e aceitar a ignorância. Quem ler o que acabei de escrever julgará que é uma artimanha para colmatar a ausência de assunto. Puro engano. Imaginemos qualquer obra literária, desde as mais importantes até às que não têm qualquer importância. Os seus autores são todos eles desconhecidos. O que nós conhecemos são mediadores. Ulisses ou O Processo existiam a priori nesse mundo invisível. Estavam prontos há séculos, apenas esperavam que chegassem os mediadores certos. E eles acabaram por chegar, como sabemos, pois podemos comprar esses romances. Um corolário de tudo isto é que já estão escritas as grandes obras que se manifestarão daqui a um, dois ou cem séculos. Esperam a hora em que o mediador certo venha à existência e esteja pronto para as descobrir e tomar-se como seu autor. Um segundo corolário é mais dramático. Não há obra literária, genial ou medíocre, que não seja apócrifa. O mesmo se passa com estes textos.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Preocupação

Todas as épocas têm as suas crenças dominantes. Por norma, existem diversas crenças. Contudo, há umas que têm maior peso na opinião pública. Crenças dominantes não significa que sejam verdadeiras, mas que geram uma aceitação mais generalizada e tecem uma espécie de consenso que nos permite viver uns com os outros. A certa altura, esse sistema de crenças começa a ser desafiado e um outro arvora-se em orientador da vida comum. O grande problema é que em caso algum a verdade dessas crenças seja a razão para que se tornem dominantes. Por norma, são os preconceitos que tecem a dominação opinativa. Há épocas em que o conjunto de preconceitos dominantes é moralmente mais aceitável. Isso não significa que de seguida não sejam os preconceitos mais imorais e contrários tanto à razão natural como à revelação divina que se tornem dominantes. Estamos a viver uma época dessas, concluiu o padre Lodovico Settembrini. Esta longa meditação foi a resposta a uma questão inocente. Perguntei-lhe como achara a sua Itália, nesta estadia de duas semanas. Não me falou do que encontrou, apenas se entregou a uma reflexão abstracta e que se pode aplicar a qualquer lado. Fiz-lho notar, ao que respondeu que era verdade. Aquilo que tinha dito também se pode aplicar a outros lados, incluindo a este país a que já pertence. Não vale a pena, acrescentou, ficar amargurado, nem desiludido com a espécie humana. Contudo, este ano de 2024 cheira mal, muito mal, apesar de só ter duas semanas. Não me parece que exista fluido ambientador que lhe disfarce o cheiro. Ter-se-á convertido ao cepticismo, perguntei. O padre Lodo riu-se e disse que não era uma questão de conversão. Um católico que se preze é um céptico em relação à espécie humana. Aquela história do homem pecador não é apenas uma artimanha para arranjar gente que vá aos confessionários. É um exercício de cepticismo sobre o homem. A esperança, disse, não reside no homem, mas em Deus, na sua graça. E onde abunda o pecado, superabunda a graça, respondi-lhe. Ele riu-se e não se conteve. Agora cita Paulo de Tarso? Os conversos nunca deixam de ser personagens fascinantes, repliquei. Do ponto de vista estético, esclareci. Disse-me que tinha de se ir preparar para ir dizer Missa. Nem sequer sugeriu um almoço em Lisboa, o que me deixou preocupado.

sábado, 13 de janeiro de 2024

Classificações

Espera-me um encontro com os netos. Olho pela janela, percebo que está a chover e penso que tenho de conduzir. Paro o pensamento e vejo-me preocupado por ter associado o estado do tempo com o facto de ter de conduzir. No outro dia, alguém me disse que eu entrava na categoria de idoso. Reagi com ironia, mas a verdade desta minha associação prova que não há ironia que resista ao facto classificativo. Ao diabo as taxinomias. Olho a rua e dois adolescentes – ainda uma classificação – passam sem chapéu de chuva. Vão como se não chovesse. Os campos de jogos da escola aqui ao lado apresentam pequenos lagos. Ondulam ligeiramente, se o vento sopra. Está um sábado desagradável. Na frase anterior, coloquei um a a mais em “Está” e um a a menos em “sábado”. Esatá um sábdo… escrevi. Podia ser o ponto de partida para inventar uma língua, mas falta-me a energia criativa e cedo, cobardemente, ao hábito, corrigindo as palavras que poderiam ser a porta de entrada no árduo caminho da glória. Oiço um secador a trabalhar. Eis um som que pertence à categoria de sons com poder para me irritar. Poderia agora começar uma classificação dos sons, mas tenho de resistir ao impulso taxinómico. Continua a chover.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Tirar do nada

Fui para aquele sítio onde oficio uma liturgia que não toca o coração da assembleia, a qual se entrega ao ritual como quem se entrega a um hábito tão enraizado que já nem dá conta de que é um hábito. O pior é que antes de ir troquei de casaco. Trocar de casaco não é um acontecimento que traga mal ao mundo, tão pouco ao trocador. O caso é simples de perceber. Deixei os óculos no casaco despido. Quando quis ler alguma coisa, um salmo ou uma epístola, as letras tinham encolhido de tal modo que as linhas me pareciam rectas puras, sem que qualquer relevo me anunciasse ali a existência de letras. Valeu-me que os salmos e as epístolas a que recorro não pertencem ao domínio da religião, o que me permite inventar salmos e epístolas sem cair na heresia. Aliás, não recorro muito a leituras, coisa que nem os crentes suportam, quanto mais os agnósticos e ateus que frequento. O mais interessante de tudo isto reside no facto de ser mentira. Contar uma coisa que nunca se passou é mais aliciante do que contar coisas que se passaram. Contar uma coisa que se passou tem o odor da confidência, o que repugna qualquer ouvinte. A gesta que aqui narro, a minha epopeia, é composta por grandes aventuras que nunca existiram. Não se pense, todavia, que essa gesta é nada. Não é. Fazer de não acontecimentos alguma coisa é um acto mais que humano. É tirar um mundo do nada e é isso que faz de mim um narrador digno não de dó, mas de crédito. Só narro mentiras.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Espelhos

Alguém diz quando me olho ao espelho não é o meu rosto que vejo, mas o de alguém que se está a olhar ao espelho. E continua, quando vejo a minha fotografia não é a mim que vejo, mas uma face congelada. Em resumo, eu não sou a minha aparência, tão pouco a série das minhas aparências, como pode acontecer num filme ou nesse mesmo espelho. Tão habituados estamos a espelhos, fotografias e filmes que não temos consciência de que sem esses artifícios não teríamos acesso ao nosso rosto. Sem eles, a minha face será sempre a face para um outro e não para mim. É plausível pensar que olhar o seu próprio rosto seja uma infracção à nossa condição, a qual se paga pela perda de si na confusão entre a aparência que se vê e a realidade que se é. Isto recordou-me um texto de Jacques Lacan, lido há décadas, sobre o estado do espelho como formador da função do Eu. A criança, dizia o psicanalista francês, numa idade em que ainda é ultrapassada em inteligência instrumental pela cria do chimpanzé tem já a capacidade de se reconhecer ao espelho. Lacan apontava para uma idade entre seis e dezoito meses. Ora, fundindo os dois discursos, descobrimos que nos perdemos quando nos reconhecemos, o que não deixa de ser bizarro. No momento em que descubro que sou um eu, fecho a porta para saber quem sou, pois esse eu não passa de uma aparência. O eu é sempre a aparência de um outro que se esconde. Ora, nunca deveríamos ter descoberto os espelhos. Não porque eles se possam quebrar, mas porque são monstruosos ao devolver-nos uma imagem que confundimos connosco. Esta natureza monstruosa dos espelhos é referida por Jorge Luís Borges no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Quase no início, escreve: Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho. Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número de homens. Compreende-se agora a razão por que o heresiarca de Uqbar era uma heresiarca. A sua heresia estava em não ter percebido o que há de abominável nos espelhos. Eles são-no não porque multipliquem os homens, mas porque os perdem ao devolver-lhes uma aparência que lhes esconderá para sempre a sua realidade. O rosto de cada um só aos outros compete observar. É no desconhecimento da sua face que começa a verdadeira sabedoria. Malditos espelhos que me roubaram a sabedoria.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Vanguarda

Movido por um comentário escutado há dias na Antena 2, tenho dedicado parte do dia à escuta do segundo quarteto de cordas de Joly Braga Santos. Vou na terceira audição. Leio que foi escrito em Milão, no ano de 1957, onde o compositor terá contactado a vanguarda musical. Ainda apanhei o comboio da vanguarda, apesar de ele ter partido de uma estação bem anterior à do meu nascimento. A certa altura, tudo era vanguarda. Na música, na poesia, na pintura, na política, na arquitectura, sabe-se lá mais onde. Aquilo que eu apanhei foi apenas a sombra dessa vanguarda. Pensamos, quando se pensa na vanguarda, na radicalidade dos pressupostos e dos projectos, na ideia de romper o tecido do tempo, para instaurar a novidade, apressar a vinda do futuro. Deus, os anjos e a própria morte, caso cada uma destas entidades exista, franziam todos o sobrolho e não cessavam de se perguntar o que se estaria a passar. Quem é que quer estar na linha da frente, quando chovem as balas? Quem é que deseja apressar o futuro, se no futuro todas estaremos mortos? A própria morte, grande beneficiária do desejo de estar na vanguarda, estava desconcertada com tanto desejo de a frequentar. A excitação vanguardista, como todas as excitações foi passando, e a vanguarda tornou-se velha, caindo na retaguarda, tentando resguardar-se da ceifeira implacável que tinha tentado seduzir. O quarteto de Joly Braga Santos ainda não se inscreve na tradição vanguardista, saliente-se. De tudo isto, subsiste, para mim, um enigma. Se os que marcham à frente estão na vanguarda e os que marcham atrás estão na retaguarda, os que marcham no meio, estão na mesoguarda?

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Construtores e destruidores

Há muito tempo havia um programa de televisão dedicado à animação, da responsabilidade de Vasco Granja. As obras viriam um pouco de todo o mundo, mas tenho a sensação de haver um peso significativo de filmes provenientes dos países de leste, daqueles que estavam para lá da Cortina de Ferro, uma equívoca metáfora, diga-se. O ferro tem a tendência irreprimível para se tornar em ferrugem e duvido que uma cortina ferrugenta fosse, efectivamente, uma cortina. Deixemos estas considerações sobre as metamorfoses dos materiais de lado. Por norma, não consumia o que passava naquelas sessões. Já não teria idade. Há um filme, uma animação curta, dos poucos que terei visto nesses programas, que nunca esqueci. Era um mundo habitado por duas espécies de seres. Uns eram construtores, passavam a vida a construir coisas. Os outros eram destruidores e ocupavam-se a destruir aquilo que os construtores construíam. Estes ficavam infelizes, talvez irados com a malevolência irritante daqueles que reduziam a pó o seu trabalho. A certa altura, porém, os destruidores tiveram uma epifania e converteram-se ao bem. Decidiram nunca mais destruir o trabalho dos outros. A princípio, os construtores ficaram felizes pela conversão. Com o passar do tempo as construções acumularam-se e o trabalho dos construtores tornou-se excessivo. A vida de construção perdeu sentido. Restava aos construtores rogarem aos destruidores que voltassem à acção. Qual a moral da história, perguntar-se-á. Como vivemos numa época onde o relativismo é o credo do dia, a única resposta sensata será dizer que cada um tire da história a moral que lhe aprouver. E se não lhe aprouver tirar alguma lição de tão metafórica história, então não tire. Como se vê, este narrador é muito liberal.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Bens que vêm do mal

Comece-se com uma máxima ao gosto popular. Há males que vêm por bem. Uma proposição que poderia entrar no debate filosófico-teológico sobre a existência de Deus. Os negadores da existência de Deus oferecem como prova central da sua posição a existência do mal. Se Deus é omnipotente, omnisciente e maximamente bom, então não pode haver mal. Contudo há mal no mundo. Daí se conclui que Deus não existe. Contudo, os afirmadores da existência de Deus, retrucam que a existência do mal é compatível com a existência de Deus. O mal que existe proporciona um bem ainda maior. A partir daqui a discussão centra-se em saber se existem ou não males gratuitos, isto é, males que não proporcionam qualquer bem. Os ateus afirmam a existência de males gratuitos. Os teístas negam-nos. A sabedoria dos portugueses está condensada na fórmula há males quem vêm por bem. Não se comprometem. Estão bem com Deus e o diabo. Os teístas lêem males como sendo todos os males, uma leitura possível, e afirmam a máxima prova a existência de Deus. Os ateus rejubilam e dizem claro que há males que vêm por bem, mas os outros males, aqueles que não vêm por bem? Esses provam que Deus não existe. Confesso, todavia, que quando escrevi a máxima não visava a questão da existência de Deus, foi uma coisa que me ocorreu e que desviou o rumo do pensamento. O mal a que eu me referia era a insónia desta noite. O bem, a leitura de 50 páginas, um quarto do romance, da obra de Joseph Roth, Direita e Esquerda. Não se pense que é um romance político. Até aqui praticamente nada de política. Talvez apareça, mas nessa altura calo-me. O romance é de uma ironia notável. Não daquela que leva à gargalhada, mas a que fomenta um sorriso leve, que oculta um grande prazer. Deveria estar mal-humorado com a insónia. Acordar às quatro e meia da manhã é um mal, mas não um mal absoluto ou sequer gratuito. O próprio humor se foi transformando e quando voltei a adormecer, a boa disposição – o bem – reinava no fundo da minha alma. E só esta palavra dava para iniciar uma outra discussão filosófico-teológica, mas vou continuar a ler o romance do Roth, para que de um bem não venha um mal.

domingo, 7 de janeiro de 2024

A única moralidade

Desde a madrugada de 27 de Dezembro que a Gripe A, primeiro, e as suas sequelas, depois, me fazem viver assombrado pelo espectro da incomodidade. O corpo sente-se inapto e o espírito, colaboracionista e fraco, submete-se aos delíquios de uma entidade física incapaz de mobilizar energia suficiente. A situação não é dramática, apenas incómoda, mas existe uma incompatibilidade entre a cultura reinante e a incomodidade. Tudo se organiza para que a vida seja cada vez mais confortável, mas a natureza nem sempre está pelos ajustes e envia os seus batalhões para semear o caos e reduzir a pó as nossas expectativas. Em tudo isto poderia existir uma lição moral, que nos alertaria para o mal que se esconde por detrás do néon da vida fácil e aconchegada. Sejamos espartanos, diz-nos essa moralidade. A vida deve ser rude, para que o corpo não ceda perante os inimigos, visíveis ou invisíveis. A verdade, todavia, é que nós descendemos de Atenas e não de Esparta. A vida não é milícia contínua. Não queremos saber de moralidades assentes na rudeza marcial. O que desejamos é um bom analgésico que tire as dores, um anti-inflamatório, caso alguma coisa se inflame, ou um médico que nos receite um antibiótico eficiente, se for necessário. A nossa vida moral depende do receituário, e essa é a única moralidade que existe em tudo isto.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Dia de Reis

Aqui nunca há filmes que se possam ver, ouvi. É verdade, respondi, mas está cá um bom filme. Ouvi a crítica na Antena 2. Vamos ver, acrescentei. Ora, o filme desapareceu de imediato de cartaz das salas de cinema desta pobre cidade, que se fosse elevada a vila seria uma grande promoção. Saiu com uma rapidez estonteante. Quando se foi por ele, já tinha partido. Também não admira, é um filme sobre Enzo Ferrari. A velocidade era o seu negócio e um filme sobre ele não é para gente retardatária ou serôdia. Comentei que seria mais interessante um filme sobre os Reis Magos. Chegaram com quase duas semanas de atraso, o que seria ideal para pessoas como nós, elucidei. Se Enzo Ferrari tivesse sido Rei Mago teria chegado três dias antes do nascimento e ainda teria contratado uma parteira e trocado o burro e a vaca por ar condicionado. Agora, vir de camelo não lembra a ninguém, mesmo que se venha carregado de ouro, incenso e mirra. Não fui ao cinema e tive pena, embora, confesso aqui, nunca fui, naqueles tempos em que as corridas de automóveis me incendiavam os ânimos, um adepto da Ferrari. Na Fórmula 1, era um fã de Jackie Stewart, o escocês voador, que correu, primeiro, pela Matra e, depois, pela Tyrrell. Nos Protótipos, preferia os Porsche aos Ferrari. Coisa de adolescente, não as preferências, mas os interesse automobilísticos. O Dia de Reis, por aqui, não regista qualquer ocorrência. Não se vêem camelos, nem reis, nem magos. Também é verdade que isto não é Belém, mas podia ser o caso de haver uma representação, um auto dos Reis Magos. A falta de iniciativa, todavia, tolhe o desenvolvimento cultural da população local. Entardece e a tarde desliza para o crepúsculo, uma palavra cheia de tonalidade românticas. Só faltam as ruínas, embora existam, mas não se vêem daqui.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Vita beata

Cheguei tarde a casa. Um dia ocupado. Sentado à secretária, vejo as notícias sobre o que se passa no mundo. Este é um lugar onde se passam muitas coisas, mas as notícias versam apenas sobre aquela parte que os seus autores imaginam ser mais fervilhante. Os noticiadores amam a ebulição, pois tudo que não esteja no estado de fervura não será digno de se notar. A ideia destes agentes do alvoroço, caso tenham alguma, será lançar água a ferver por tudo o que é sítio. Imagino que terão uma atracção infantil pelo vapor de água. Como se poderá lidar com toda esta excitação que, a todo o instante, é semeada? As soluções possíveis são antigas. Adere-se ao epicurismo e cultiva-se a ataraxia. Tranquilidade de ânimo, moderando os prazeres, para que a animosidade não tome conta do espírito e o precipite na ebulição das inquietudes e das preocupações. Outra solução é tornar-se um estóico e aspirar à apatheia para que em nós se dissolvam as paixões, essas patologias que nos arrastam para o rígido reino da dependência. O ideal seria deixar de lado as inquietações e apagar as paixões. Se todos se tornassem um misto de estóicos e epicuristas acabariam as notícias, a comunicação social deixaria de ter o que comunicar e a vida decorreria sem que acontecesse nada digno de nota. Será nesta ausência de coisas notáveis que residirá a felicidade, a verdadeira beatitude. Imagino-me na prática de uma vita beata. O pior é que nunca deixo de ir ver as notícias, talvez porque a inquietação ainda faz parte do lote que me coube, agora que as paixões entraram na fase de cinza. O que não faz de mim um virtuoso. As sextas-feiras, depois das festividades, recobraram o seu pleno sentido, como uma promessa nunca cumprida de abrirem o caminho para o jardim do Éden. Também não era suposto, pois há que beber o cálice até ao fim. Uma fatia de bolo rei, na sua versão feminina, vai saber-me bem.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Ponto de exclamação

Chove! Não sinto a chuva, nem a vejo. Ouço-a. É da audição que me deriva a certeza manifestada no ponto de exclamação. Este pobre sinal de pontuação tem má-fama. Coitado daquele que o usa em abundância. O melhor, murmura-se, é nem o usar. Cai mal andar por aí a enfatizar o discurso, a sublinhar admirações. Ninguém tem já autorização para se admirar seja do que for. Um pensamento débil exige a eliminação das exclamativas. Onde não há convicções, não há exclamações. Isto, todavia, é apenas uma parte da história. Digamos que ela se passa no mundo relativamente civilizado. Fora dele pululam pontos de exclamações. Nas redes sociais, por exemplo, o que mais se vê são pontos de exclamação. Não sublinham verdades nem admirações, tão pouco o espanto. Os pontos de exclamação, nesse território insalubre, vêm directamente da bílis, do fel. A quantidade de fel que se vem produzindo nos últimos tempos tem batido recordes. O excesso de produto leva a que ele apareça no mercado em forma de ponto de exclamação, até porque os habitantes dessas terras obscuras não conhecem o ponto de interrogação, e esse é o problema. Aquele que usa a interrogação está preparado para a exclamação, para a surpresa, para a admiração com aquilo que se manifesta perante os olhos interrogadores ou os ouvidos atentos. Como o cair da chuva nesta noite negra e fria.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Desconcerto ou desconserto

O ano já vai no seu terceiro dia e parece que nada mudou neste pequeno mundo a que por convenção chamamos Terra. Esta imutabilidade é, porém, apenas aparente, uma forma insidiosa de enganar o incauto que por ela se deixa encantar. Tente-se recuperar aquilo que se era às vinte e três horas do dia 31 de Dezembro passado, e ver-se-á que, afinal, esse ser já não existe. A cada instante deixamos de ser, mas iludidos pela memória não descobrimos nisso qualquer desconcerto. Prefiro desconcerto a desconserto. O primeiro tem um maior número de portais semânticos. O desconserto fica preso à ideia de desarranjo, enquanto o desconcerto se derrama por imensas possibilidades para além desse mesmo desarranjo. Desconcerto é desordem, dissonância, discórdia, entre outras significações que não vêm ao caso. O tempo desconcerta-nos, pois traz com ele a desordem que mina a nossa ordenação, oferece-nos a dissonância que nos obriga a partir em busca da consonância, impõe-nos a discórdia que fere os corações que sonham com a concórdia. A memória é, deste modo, uma tecedeira que tece um manto que esconde o desconcerto em que cada um vive. A própria Terra vive de desconcerto em desconcerto. A tudo falta a harmonia concertante. De resto, ninguém quer saber, pois a sabedoria é mercadoria perigosa para materiais tão frágeis. Eu também não quero saber. Basta-me a dor lombar ou, talvez de modo mais erudito, a lombalgia. Decidiu atacar-me nos últimos dias do ano e ainda não se retirou. Olho para ela e não sei se ela faz parte do meu desconserto ou do meu desconcerto. Terá por causa um desarranjo ou trata-se de uma dissonância no corpo ou uma discórdia entre partes do mesmo corpo que deixaram de cooperar e eliminaram das suas relações a consonância? À falta de melhor, vou meditar na causa da coisa.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Sentido

Está um dia frio. Ontem havia sol, o astro dardejava os seus humores sobre a Terra, sem que esta, talvez por ser o primeiro dia do ano, se defendesse. Hoje não é assim. O planeta armou uma muralha de nuvens cinzentas e os raios que a atravessam apresentam-se sem força nem brilho. Retorno à realidade, embora com pouca vontade. Aliás, protelo o mais que posso esse retorno, mas ele é inexorável. Se chovesse, haveria menos frio. Não chove e os terrenos vão secando. Janeiro nem sempre é um mês fácil. Os outros também não. As nuvens, reparo ao olhar os céus, viajam apressadas, impelidas por um vento ansioso. Na praceta, não há ninguém. Tudo se cobre de uma melancolia sem nome, de uma tristeza tocada pelas cores sombrias nascidas no fundo negro dos corações. Procuro o sentido para todas estas coisas, mas não lhe encontro sentido algum. Sentido e coisas serão incompatíveis e repelir-se-ão mutuamente. Dizer coisas é equivalente a dizer coisas sem sentido. Dizer sentido é negar as coisas. Como numa auto estrada, existe uma via apenas para as coisas e outra via só para o sentido. Se o mundo for o somatório das coisas, então o mundo é destituído de sentido. Se o sentido repousa apenas em si mesmo, então é sentido de coisa nenhuma. Deveria escrever como um dia escreveu António Ferro: Entretanto, este constante turismo ao meu espírito, através dos rails das minhas frases, há-de fazer-lhe bem… Que Mademoiselle Y me perdoe esta última impertinência… Só não o escrevo, porque me falta o espírito, as minhas frases não possuem rails, e não conheço nenhuma Mademoiselle Y, infelizmente. Se a conhecesse, jurar-lhe-ia que nunca teria ela de me perdoar qualquer impertinência. Seria para ela sempre pertinente, para que ela me agradecesse com desvelo a minha pertinência. Talvez pudéssemos passear pelos jardins despidos do Inverno e esperar que os nossos corpos se tocassem para enfrentarem a rispidez do frio, a falta de empenho do Sol em fazer chegar até aqui o radioso das suas mensagens. Depois, teria de decidir se ela, a Mademoiselle Y, tinha sentido ou seria apenas uma coisa. Aqui, porém, estou a entrar um campo minado e o mais sensato é evitar deflagrações.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Entardece

Um bando de crianças aterrou no parque infantil. Trazem o Ano Novo pendurado ao pescoço. Correm, gritam, chamam pelos pais ou são, por estes, chamadas. O sol está como a minha vontade, anémico. Um medicamento age sobre a rigidez do meu corpo e torna-me fraca a vontade. Ainda não saí de casa, o que me permite dizer que não vejo as ruas há um ano. Uma pilhéria fácil. Aliás, sou um narrador vergado ao peso das coisas fáceis, nado no mar da trivialidade. Penso no estado do mundo, mas, após longa ruminação, concluo que o mundo não tem qualquer estado, não é sujeito de seja o que for, tão pouco é substância em que possamos espetar uns pregos para pendurar o casaco da existência. Na televisão, alguém falava de uma secular tradição começada há vinte anos. Talvez, isto é uma conjectura, não exista tradição que não seja secular e aquelas que nasceram hoje, ao serem denominadas tradição, tornam-se de imediato seculares, o que anima bastante as pessoas. Estas adoram tradições e séculos. Logo, amam com desvario as tradições seculares. Um historiador, Hal Foster, diz numa entrevista que existe actualmente um problema entre os jovens intelectuais, que é o de terem as respostas quase antes de se formularem questões. Pensei sobre o assunto e fiquei aliviado. Não sendo nem jovem nem intelectual, não sou um jovem intelectual. Por isso, não tenho respostas e vivo rodeado de problemas. A uns trato como rosas; a outros, como cardos. Lido com cuidado com ambos, para evitar picadelas. O problema do tal medicamente é que ele não apenas me descontrai a rigidez de certos músculos e torna a vontade fraca, como me põe uma névoa dentro da cabeça, o que dificulta o contacto entre os neurónios e a transmissão da actividade nervosa, ficando, a actividade nervosa, engarrafada no interior de cada neurónio. Uma criança grita, parece ser mais uma birra, de que ela é contumaz. Entardece. É sempre tarde para qualquer coisa.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Alma de contabilista

O melhor é não dizer nada. Foi esta a resposta que em mim ressoou quando, por distracção ou dependência de um velho hábito de fazer balanços, perguntei, no silêncio da consciência, o que se pode dizer deste ano, o que agora acaba. Não dizer nada, estar calado. Isto não significa esquecer. Indica antes uma via contemplativa. Olhar para o ano que agora se prepara para as exéquias e não deixar que o discurso interponha entre nós e o ano um véu, que, por mais transparente que seja, sempre há-de ocultar o essencial. Isto ocorreu enquanto caminhava pelas ruas da cidade, mergulhado no cinzento do dia, absorto em pensamentos, indiferente ao destino das coisas e pessoas pelas quais passava. Ouvia duas composições de Morton Feldman, Why Patterns? e Crippled Symmetry, de 1978 e de 1983, respectivamente. A música encerrava-me dentro de mim sem criar obstáculos, pelo contrário, ao movimento do corpo. Depois de almoço, sento-me e retomo o texto. O sol ainda não deu um ar da sua graça e volto ao pensamento acerca dos balanços que quero evitar, mas ainda assim ocorre-me a existência de livros de Deve e Haver. O que poria em cada uma das colunas? Não faço ideia. Continuo com Morton Feldman e, sem particular curiosidade, espero que o ano acabe e outro comece, embora não existam fins e começos de anos, pelo simples motivo que não existem anos, nem meses, nem semanas, nem dias. Também é possível que não existam começos e fins, a não ser aqueles que os homens convencionam, para que a vida lhes pareça regulável e uma ordem enquadre as desordenações do coração ou do fígado. Um amigo faz hoje anos. Tenho de lhe telefonar. Talvez deva aguardar mais um pouco e observar a evolução das nuvens nos céus que se avistam da cadeira do meu escritório. Vou ligar o aquecimento. Depois, farei outra coisa qualquer, menos balanços. Falta-me alma de contabilista e isso pode não ser coisa boa.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Presunção

Uma noite com muito tempo sem conseguir dormir. Acabou por ser verdadeiramente rentável. Pareço um contabilista a falar. Permitiu-me acabar de ler Não Sou Stiller, de Max Frisch, um grande romance, e começar Os Homens Não São Máquinas, do mesmo autor. Há muitas coisas que devia ter lido e sei que não li. O caso da obra de Max Frisch é pior. Até há pouco tempo eu nem sequer sabia que tinha o dever de a ler, pois ignorava-a por completo. Foi, já nem sei onde, uma referência a ele e a Hans Fallada que me alertou para a sua existência. Mal dormido, mas satisfeito, levantei-me cedo. Ida à farmácia e, depois, à estação da Rodoviária para que as netas tomassem o Expresso para Lisboa. De seguida, uma passagem por um supermercado – por aqui, há mais supermercados do que pessoas – para umas compras necessárias. A certa altura, ao olhar os clientes, fui atingido pela memória de um filme de Ettore Scola, cujo título em italiano é Brutti, sporchi e cattivi. Recuso-me à tradução portuguesa para diminuir o peso da culpa por ter feito tal associação. As pessoas que ali estavam não vivem num bairro de lata dos arredores de Roma. Provavelmente, tomam banho com regularidade suficiente, usam perfumes e têm bons carros, mas há nas suas expressões uma tal rudeza que não consegui evitar a analogia. Ainda não terão entrado na fase do policiamento dos gestos, do exercício da contenção, da sublimação da animalidade. Em muitos daqueles olhares existe o brilho vivaz da manha, mas ainda não a cintilação da inteligência e a ponderação da sabedoria. Vivem a fase que prepara essa grande metamorfose em que uma linhagem de gente rude dá lugar à beleza dos corpos e, talvez, mais adiante, à dos espíritos. Penso, ao olhar o entardecer, que o melhor seria evitar passar, a um sábado pela manhã, num sítio daqueles, onde o instinto do rebanho e a pulsão da massa conduzem as pessoas, a mim incluído.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Autenticidade

No Público de hoje há uma entrevista ao poeta Manuel de Freitas. A certa altura ele diz É possível que o Quim Barreiros seja tão autêntico como o Morton Feldman. A autenticidade é fundamental, em suma, mas tudo depende do modo como se declara esteticamente. A autenticidade é fundamental para quê, pergunto-me de imediato. O vocábulo autenticidade encerra em si referências a três dimensões semânticas. Uma primeira está ligada ao direito, aquilo que está conforme à lei e, ainda, aquilo, uma obra, que pertence ao autor a quem é atribuída. Uma segunda dimensão é de natureza epistémica e diz respeito ao problema da verdade. Na terceira dimensão, fala a voz da moral, a autenticidade como sinceridade. A autenticidade é, então, uma categoria filosófica ligada ao direito, ao conhecimento e à moral, mas será ela uma categoria artística? Para Lev Tolstoi, a sinceridade é fundamental na obra de arte, mas ele já tinha dobrado a sua concepção estética à moral. Imagina-se muitas vezes que certas obras de arte trazem consigo os elementos que permitirão reconhecer uma certa autenticidade a que chamaríamos artística. Se nos perguntamos o que será essa autenticidade, apenas nos deparamos com categorias de autenticidade que acabam por se acomodar ou no direito, ou na epistemologia ou na moral. É plausível pensar que a arte está para além – ou para aquém – da querela entre a autenticidade e a inautenticidade e, sendo assim, a autenticidade nada terá que ver com a arte. Podemos mesmo dar um passo em frente e dizer que toda a obra de arte é-o na medida em que se emancipa da sua autenticidade. Na raiz da palavra autenticidade está autêntico. Este deriva do latino authenticus. Por seu turno, o vocábulo latino traduz o grego antigo αὐθεντικός (authentikós, original, genuíno, principal), que, por sua vez deriva αὐθέντης (authéntēs, o que age por sua própria autoridade, o que realiza, governante). Todas estas acepções têm a sua origem αὐτός (autóssi-mesmo). O que é surpreendente na obra de arte é que ela se liberta do seu autor. A Guernica, de Picasso, ou Os Maias, de Eça de Queirós, estão para além do si-mesmo que é apresentado como seu autor, são mundos que, após terem sido criados, são abandonados aos que deles se aproximam. A criação desses mundos é uma fabricação, o exercício de uma indústria onde impera o artifício. O que marca a obra de arte é sua artificialidade, a sua pura ficcionalidade, tudo categorias em conflito com a autenticidade.