quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Uma questão de grau

Estou num sítio onde, por vezes, exerço certas funções e oiço dizer é preciso ser objectivo ao analisar a situação. Fico a pensar nesse imperativo de objectividade expresso como se fora uma necessidade. Uma necessidade imperativa. Talvez todas as necessidades sejam imperativas. Sob a frase proferida encontra-se uma crença dissimulada. Essa crença sustenta uma oposição radical entre uma perspectiva subjectiva, visão privada de um sujeito, e uma perspectiva objectiva, visão do mundo tal como ele é. Por exemplo, oiço, neste momento, o irritante ranger dos baloiços do parque aqui em baixo. Será que aquilo que oiço, e que me irrita, é uma audição daquele acontecimento tal como ele é ou não passa de uma audição puramente subjectiva, como se eu estivesse a ouvir coisas, coisas que talvez nem existam. Um filósofo como Thomas Nagel deixa perceber que nem a objectividade nem a subjectividade são pólos opostos e incomunicáveis do modo como entendemos o mundo, por exemplo, como oiço o ranger dos baloiços. Objectividade e subjectividade estão num continuum e são uma questão de grau. A minha audição do ruído dos baloiços pode ser mais ou menos objectiva. Representar as coisas que se passam no mundo e as que se passam em nós, que também estamos no mundo, é deslocarmo-nos numa linha, talvez numa estrada que liga duas povoações relativamente distante. A situação que se deveria analisar objectivamente, nunca o poderá ser, pois ninguém tem qualquer possibilidade de se transformar nessa situação objecto, deixando de lado a subjectividade onde nasceu. A minha vontade ao ouvir a injunção era intrometer-me e explicar que analisar uma situação é fazer uma viagem, com avanços e recuos, entre a minha consciência e o mundo, no caso, a tal situação. De imediato, porém, ouvi em mim o eco de um ensinamento arcaico, não te metas onde não és chamado. Não me meti e falhei assim a produção de uma aventura que me enriqueceria a gesta e haveria de contribuir para a minha glória.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Despedir-se do esquecimento

Cheguei a casa já a noite tinha caído. Uma série de assuntos reteve-me. Entre eles, a compra de um livro na mais antiga livraria da terra. Há muito que não entrava lá. O tempo não melhorou o sítio, como se todas as coisas tivessem uma época. Comprei lá muitos livros. Depois, deixou de estar nos meus caminhos, como de muitos outros. Também os livros foram mudando à procura de leitores, de outros leitores, que talvez não existam ou não sejam leitores. O livro que por lá comprei não vem ao caso, mas faz parte da história local. Não foi um amor à paróquia que me impeliu à compra, mas uma certa curiosidade, não particularmente excessiva. Se fosse excessiva, tinha-o adquirido em 2021, quando foi publicado. Este deambular pela cidade, coisa que ocorre excepcionalmente, impediu-me de ir caminhar ao fim da tarde. Tive de adiar para depois de jantar ou talvez para amanhã. Não me sai da cabeça a livraria. Estantes, antigamente repletas de livros, estavam agora ocupadas por bugigangas, coisas para as quais não olhei mais do que uns segundos, apenas para me certificar do que estava a ver. Este tipo de morte é mais doloroso do que o súbito anúncio de um fecho. É uma agonia que se prolonga. Diante de mim está um poema de Herberto Helder. Começa assim: Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento. Para quem sai, / ainda louco de sono, do meio / de silêncio. Uma noite / ingénua para quem canta. Despedir-se do esquecimento foi o que me terá acontecido ao entrar naquela livraria. Imagino que rememorar e despedir-se do esquecimento não sejam, em absoluto, a mesma coisa. Contudo, o sono nunca me enlouquece.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Fevereiro estival

Está um dia esplêndido, oiço. Confirmo. Parece já uma Primavera adiantada. Fenómenos destes em Fevereiro não são inusitados. Lembro-me de há muitos anos, num Fevereiro em que era estudante universitário, ter rumado a Sesimbra. O motivo apagou-se. Dessa viagem, talvez com falta às aulas, mas não estou certo, recordo apenas que decidi ir ao mar. Tomei banho. O dia estava a pedir. Os efeitos secundários, porém, vieram depois. Nada de extraordinário, apenas dores nas pernas que se prolongaram durante algum tempo. A água estava fria, muito fria. Nesse tempo, eu era outro, gostava de ir à praia e de tomar longos banhos de mar. Depois, perdi qualquer interesse pelas idas à praia e por banhos de mar. Não rejeito sentar-me numa esplanada e olhar para o mar, como se olhasse para um mundo primordial. Desviei-me. Um dia de Fevereiro estival não é um acontecimento excepcional, tão pouco se poderá acusar as alterações que o clima vais sofrendo às mãos do homem. Contudo, um mês de Fevereiro quase todo ele a anunciar a Primavera é excessivo e talvez seja sinal de que alguma coisa vai mal. Vou caminhar, com a insensata esperança de me reconciliar com a balança, mas terei de esperar uma hora menos quente. Isto, penso, é um problema.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Inverosímeis e absurdos

Parece que se está numa Primavera já avançada, pronta a despenhar-se no abismo do Verão. Fui caminhar na serra, aquela que assombra este concelho, para desenfastiar e por causa de umas altercações com a balança, uma impertinente, que em vez de ficar grata por lhe ter comprado uma pilha e a ter ressuscitado, olhou-me de lado e devolveu-me um peso dos antigos. A manhã estava esplêndida e a serra não lhe ficava atrás. Nos caminhos que fiz havia ainda grandes poças de água. Algumas, verdadeiros lagos, que tinham de ser contornados por margens estreitas, nas quais mal cabia um pé. Não foi uma aventura, pois naqueles lagos não havia nem vikings nem piratas holandeses a que tivesse de combater. Foi apenas caminhar por aqueles caminhos que não levam a lado nenhuma, mas que me levaram para longe do carro e a ele me trouxeram, depois de uma dose razoável de vitamina D – consta que apanhar sol fomenta a vitamina D no organismo – e quase cinquenta pontos cardio. Isso não me impediu de, mais tarde, ler coisas como a seguinte: A arte do possível em grande escala gravita à volta do grande esforço que consiste em apresentar o inverosímil como inevitável. O autor da frase é Peter Sloterdijk e o contexto não vem aqui ao caso. Ao ler a frase fui assaltado por memórias de outras leituras e cheguei a uma frase apócrifa de Tertuliano, que por ser apócrifa não terá sido por ele escrita, credo quia absurdum, isto é, creio porque é absurdo. O inverosímil de Sloterdijk e o absurdo atribuído a Tertuliano têm poderes para gerar crenças e crenças tão fortes que parecem inevitáveis. Não é de admirar, nestes tempos, que existam exércitos de crentes das coisas mais inverosímeis e absurdas, exércitos esses que não descansarão enquanto não impuserem pela força, pois amam a decisão da violência, as suas crenças a todos os outros, não havendo lugar para ateus nem se quer para agnósticos. Ateus e agnósticos relativos aquelas crenças, entenda-se.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Cacografia

Há poucas coisas em que este narrador esteja de acordo com o autor que o criou e lhe faz escrever o que escreve, para perdição sua, por certo. Uma delas, talvez aquela onde há mais fervorosa concordância, é um desprezo visceral pelo acordo ortográfico parido em 1990. Hoje, no Público, José Pacheco Pereira torna a pôr em relevo o desprezível que é o linguajar nascido com essa infeliz entente. Num cartaz partidário, daqueles que enxameiam as campanhas eleitorais e cuja finalidade ainda ninguém conseguiu perceber, está escrito, em letras garrafais para se notar melhor, MAIS AÇÃO. Ora, e muito bem, pergunta o autor do artigo o que está ali a fazer a São, pois é já assim que muita gente lê ação. Também não faltam pessoas que lêem recessão quando está grafado receção. Sem querer, nem sempre o querer é poder, meter-me em política, esta história do acordo ortográfico – mais valia escrever o acordo cacográfico – é típica da política portuguesa. Esta tem, independentemente dos protagonistas, dois objectivos centrais. Acabar com tudo o que funciona bem e prolongar indefinidamente qualquer disparate. Como se vê, o autor tem algumas razões para proibir este narrador de se meter em política. Mal tem uma oportunidade, cai logo em generalizações precipitadas e entrega-se à hipérbole, como se uma hipérbole fosse a descrição exacta do mundo. Todo a gente sabe, depois de ler em Descartes o papel hiperbólico da dúvida metódica, que a hipérbole não é um tropo para levar a sério. Se somos tentados em extasiarmo-nos perante uma metáfora, uma metonímia, até mesmo diante de uma anáfora, só nos pode dar vontade de rir, ou chorar, se surge diante dos olhos uma hipérbole, e o acordo cacográfico de 90 não passa de uma hipérbole da insensatez ou, para ser mais preciso, da estupidez com que se tomam muitas decisões.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Mitos e crises

O conjunto musical da escola aqui ao lado continua a abrilhantar o cair das tardes de sexta-feira. Fá-lo como se estivesse a animar um baile de província dos anos setenta. Será que tocam movidos pela nostalgia de um tempo que se devorou ou tocam para que sintam essa nostalgia que a memória não consegue engendrar ao expressar-se sobre o que passou. A questão não é diferente daquele que parece animar antropólogos sobre se o mito deu origem ao rito ou foi o contrário. Há uma tese, disputada como todas as teses, que me agrada, pelo menos hoje. O rito é anterior ao mito. O rito é um conjunto de práticas que procuram uma certa eficácia sobre o mundo. Tem uma natureza prática e performativa. O mito nasceu quando as regras rituais se tornaram incompreensíveis e foi necessário encontrar explicações que enquadrasse os ritos. Se eu falasse com esses músicos que se tornam uns vizinhos exuberantes nas tardes de sexta-feira, por certo que encontraria neles uma mitologia, mas esta nasceu das suas práticas rituais ao longo destes anos. O seu ritual produziu a nostalgia dos tempos em que eram novos, alguns são da minha idade, que se transformou num mito relativamente privado. Perante mim, jaz um pequeno livro com três conferências do filósofo Leo Strauss. Uma delas, data de 1962, tem por título A Crise do Nosso Tempo. Contemplo-o e sinto uma absurda satisfação. Penso neste sentimento e encontro-lhe uma explicação. Viver em crise parece ser a realidade quotidiana não do nosso tempo, mas de qualquer tempo. Ora, se todos os tempos são tempos de crise, isso significa que não existe crise alguma e eu não vivo num tempo de crise. Refastelo-me nesta evidência e contemplo a noite que desaba sobre a cidade. Ouvem-se vozes na rua, mas tudo desfila em direcção ao silêncio.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O bocejo

Olho para a rua e fico indeciso. Não sei se fui eu ou o dia que bocejou. O acontecimento foi recente, mas a recência não é garantia de retenção pela memória. Haverá quem tenha certezas e afirme que o dia não bocejou. Os dias nunca foram vistos a bocejar. Isto, porém, não passa de uma falácia, uma das mais simplórias. O facto de algo não ser observado não significa que não aconteça. Fazemos demasiadas vezes uma transição injustificada entre o conhecimento e a realidade, ou, em filosofês, entre a epistemologia e a ontologia. Os dias também têm boca, de tal modo que o actual devorou o anterior, mas já se enfastiou e acabou por abri-la para expressar o sono que lhe ia na alma. Também têm alma os dias e não vale a pena clamar contra este narrador acusando-o de os, aos dias, estar a antropomorfizar. Assim como nos olhos se expressa a alma humana, também no céu se expressa a alma do dia. Olhamo-lo e, de imediato, percebemos a alegria ou a tristeza, o desejo ou a apatia, o amor ou o ódio. Ora, se vemos isso no céu, então os dias têm alma. Resta discutir a vexata quaestio se essa alma é mortal ou imortal. Se for mortal, é possível que se dissipe à meia-noite. Por isso, essa hora será perigosa, pois é nela que o dia perde a sua alma. Isto, todavia, é especulativo. O perigo da meia-noite pode vir de outro lado, pois a alma dos dias será imortal. Uma das possibilidades é existir no outro mundo, um coleccionador de almas dos dias da Terra. Ele guarda-as e ao guardá-las elas mantêm-se vivas, pois tudo o que recebe guarda permanece na existência. Acho que me desviei do ponto central. Quem, eu ou o dia, bocejou? Não me lembro de ter bocejado, mas isso também não prova que o não tenha feito. Inclino-me para que não tenha sido eu, mas que, estando sozinho, escutei um bocejo, lá isso escutei.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A grande substituição

Talvez exista progresso no mundo. Por aqui, há muito tempo, existia uma taberna famosa, frequentada pela classe média local, que se concentrava numa área apertada da vila, com os seus negócios, consultórios e outros interesses. Hoje, há, para o mesmo tipo de pessoas, mas num outro lado mais aberto da agora cidade, um bar de tapas, onde o vinho é seleccionado, a ementa está de acordo com os tempos modernos e o tipo de estabelecimento. Havia múltiplas padarias, que foram fechando devoradas pela boca informe das grandes superfícies. Abriu, porém, há uns tempos já, uma padaria muito diferente das antigas, que se preocupa com a qualidade e a diferenciação. Já falei dela por aqui. Havia uma casa, um ícone do comércio local, propriedade de dois irmãos, que fazia chaves e consertava chapéus de chuva. Fechou, pois os irmãos envelheceram e acabaram por morrer. Agora há uma casa, também de dois jovens irmãos, que não conserta chapéus de chuva, mas faz chaves, programa comandos, trata de fechos centrais de automóveis ou de portões de garagem que se movem devido à electrónica. Eis a grande substituição. As novas gerações tomam o lugar das mais velhas, cujos filhos nunca estiveram interessados nos negócios dos pais. A vida tende a reproduzir-se e por isso a persistir. Será isso o progresso, uma grande substituição.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Uma bonomia condescendente

Só agora, já passam das seis da tarde, é que me lembrei que é Dia de Carnaval. Na rua, não avistei qualquer movimento carnavalesco. Antigamente, sempre apareciam uns mascarados espontâneos que espraiavam a sua tristeza pelas ruas. Agora, cada um transporta a tristeza como pode, poupando os outros às suas figuras. Um avanço civilizacional, penso. É plausível pensar que o Carnaval seja uma reminiscência de festividades dionisíacas. Contudo, ao perder o carácter sagrado, o Carnaval alienou a sua natureza mais funda e tornou-se num divertissement profano e superficial, um exercício de comércio turístico. Por aqui, o dia tinha cara de Quarta-feira de Cinzas. Talvez esta tenha sido antecipada. Troquei a folia pelo trabalho, o que poderá ser visto como uma forma de penitência quaresmal, mas talvez a verdade seja outra, a minha incapacidade para ser um verdadeiro folião. Há pessoas que têm um dom, diria mesmo uma vocação para foliar, outras há, pobre delas, a quem o fado não concedeu essa inclinação e não sentem qualquer impulso para a exibição de uma alegria espaventosa. Talvez prefiram alegrias mais secretas, ocultas do público. Desprezam a gargalhada, preferem um sorriso. Impedem-se o escárnio e o maldizer e cultivam a ironia. Para estas, não há Carnaval, pois, há, muito descobriram que a vida quotidiana é um Carnaval, que olham de longe não sem condescendente bonomia.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A natureza recalcitrante

David M. Estlund abre o capítulo seis do seu livro Utopophobia – on the limits (if any) of Political Philosophy com uma citação de outro filósofo, Thomas Nagel, retira do de Equality and Parciality. A citação diz Assim um inicialmente atractivo ideal moral é bloqueado pela recalcitrante natureza humana. Este ideal moral tinha uma expressão política. Deixemo-la, todavia, de lado. O problema não é daquele ideal moral em particular. Existe sempre um conflito entre qualquer ideal moral e a natureza recalcitrante dos seres humanos. Aliás, só existem ideais morais porque a nossa natureza é aquilo que é, recalcitra sempre que vê os seus desejos limitados. Por vezes, ela é tão ardilosa que tenta mostrar como ideal moral o que é imoral. Nietzsche, na sua diatribe contra a moral platónico-cristã tentou convencer os leitores, e alguns terá conseguido persuadir, de que ela era a expressão da imoralidade, de uma moral de escravos para enlear nas suas artimanhas os senhores. Aqui o ardil estará do lado de Nietzsche, que talvez imaginasse pertencer a uma casta superior e que não estaria submetido aos imperativos morais do homem comum. Que tenha enlouquecido parece ser um argumento poderoso contra o seu pensamento, mas talvez este seja um pensamento de um escravo incapaz de perceber o super-homem e uma moral que está para lá do bem e do mal.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Coroas de canela e amêndoa

Acabei de comer duas fatias da coroa de canela e amêndoa. Podia – e deveria – ser frugal, mas a tentação foi forte e achei que o melhor seria consumar a tentação em vez de a evitar. O resultado parece convincente. Agora, não me apetece mais nenhuma fatia.  A padaria que um casal novo decidiu abrir nesta terra onde levo a minha obscura existência de narrador em busca de narrativa é um centro de tentações. Tanto pelo pão como pela pastelaria. Vê-se que tudo é pensado, que nada resulta de um hábito instalado, que, numa coisa tão prosaica como fazer pão, há uma grande vontade de inovação, sem que se encha a boca com palavras como inovação, empreendedorismo e outros mantras com que os portugueses disfarçam a sua falta de criatividade e a sua incapacidade para empreender seja o que for. O resultado é um discreto, mas efectivo, fomento da gula, com a desfaçatez de tornar um trivial pão de trigo num objecto propiciador de pecados mortais. Não estou a afirmar que tudo aquilo resulta de um pacto com o tinhoso, mas imagino que seja uma feliz exploração de alguma abertura que tenha havido no reino dos céus. Coloquei o problema, ainda há pouco, ao padre Lodo, na nossa conversa dominical. A resposta que me deu foi que quando fosse a Lisboa não me esquecesse de lhe levar um pão de trigo, outro de centeio e duas coroas de canela e amêndoa. Não compreendo, disse-lhe. É um excesso para uma pessoa e não me parece que seja suficiente para aqueles que partilham a residência da Companhia. Não se preocupe, respondeu, conheço bem as pessoas, as frugais, as moderadas e as que pouco se freiam. A encomenda está adequada à natureza dos residentes. Bem, respondi, não tenho nada que ver com o assunto, mas não queria ser o causador, ainda que involuntário, da perdição de ninguém. O pão, respondeu o meu amigo, é o Corpo de Cristo, e esse não perde ninguém. E as coroas de canela, perguntei. Não me parece que sejam coroas de espinhos, acrescentei. Do outro lado, apenas se ouviu um riso, e a conversa mudou para assuntos políticos, dos quais não me é permitido aqui falar.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Poupem-me as evidências

Seremos, de facto, um povo com QI baixo. Nos momentos em que vejo televisão, e são poucos, concentro-me num certo canal desportivo europeu. Não é que dê atenção aos desportos que por lá se exibem. Presumo que sejam aqueles que os canais comercias não querem. Dou alguma atenção ao snooker e ao ciclismo. Aos outros deixo-os ficar por ali, sem que lhes dê a mínima atenção. Infelizmente, os dois desportos que gosto mais de ver, o râguebi e o hóquei no gelo, foram comprados pelos canais comerciais. Ora, havia uma coisa que me agradava bastante no canal em causa. A qualidade da publicidade. Anúncios internacionais, muito poucos, e muito bem feitos, inteligentes e esteticamente apurados. Descobri agora que a política de publicidade da estação terá mudado e são passados anúncios portugueses. Também são, felizmente, poucos. Cada vez que vejo um sinto-me insultado. Parece que a publicidade dirigida aos portugueses é feita a pensar em mentecaptos que precisam de se babar com um engraçadismo soez. São anúncios dirigidos ao grande público, mas é preciso descer tão baixo na escala estética e moral? Se os publicitários assim organizam as campanhas publicitárias, então é porque quanto mais idiota for a publicidade mais consegue ela vender. Desconfio que a minha atenção, já reduzida ao mínimo, ao canal desportivo vai desaparecer por completo. Se nós portugueses temos assim um QI tão baixo, prefiro que me poupem às evidências.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Palavras e imagens

Estes dias têm sido mais ocupados do que deviam. Por vezes, a necessidade acumula as suas forças num determinado ponto do meu caminho e, quando menos espero, caio na emboscada e não tenho outro remédio senão submeter-me a ela. Isto não é verdade, mas fica sempre bem uma diatribe, ainda que pequena, contra a terrível necessidade. Submetido a ela, não tenho tido tempo para dar atenção à Electra que me chegou há dias. Há uma entrevista com uma escritora, professora e crítica norte-americana, Svetlana Alpers. Para título da entrevista foi escolhida uma frase da entrevistada Suspeito das palavras e das imagens. Como só mais logo irei ler a entrevista, não sei as razões da sua suspeita. Será que ela não suspeita dos sons não linguísticos? E os sabores e odores serão confiáveis ou também eles são suspeitos? As impressões tácteis, em que categoria cabem? Talvez ela responda, talvez não. Desconfio mais das imagens do que das palavras. As imagens possuem uma intenção secreta, a de nos seduzir ou de nos repugnar. Elas jogam com a sua aparência para nos cativar, no sentido estrito de ficarmos cativos da aparência. As palavras para o fazer têm de formar coligações, estabelecer pactos, fazer acordos, celebrar convenções. Portanto, ao contrário da imagem, em que cada uma se basta a si para nos raptar da terra do bom senso, as palavras necessitam de um trabalho aturado, o que nos dá algum tempo para erguer o escudo contra o feitiço. Agora, volto para a terra do bem senso para dar atenção à necessidade que por mim chama.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Um acto de civilização

Tenho uma relação difícil com os carros. Em primeiro lugar, conduzir aborrece-me, embora o faça sem problemas, mesmo em grandes viagens. É uma seca. Há gente da minha geração que ainda fala na adrenalina de conduzir. Talvez porque tome há muito beta-bloqueantes para descer a adrenalina e com ela a tensão arterial, conduzir não entra no grupo das coisas capazes de me fazer subir a adrenalina que tenho de baixar continuamente. Outra coisa difícil na minha relação com os carros é cuidar deles. Faço os mínimos. Hoje, olhei para um pneu e vi-o em baixo e achei melhor passar por uma casa que trata de pneus. Resultado, mudaram-me os quatro e ainda me recomendaram ir a Fátima agradecer por nenhum deles ter rebentado. Não fiquei particularmente preocupado com o meu descuido, porque só utilizo aquele carro para as voltas por aqui, onde raramente chego aos 50 km/h. O resultado da aventura é que o carro parece outro, mais leve e maleável. Se vivesse numa grande cidade, acho que dispensaria o carro de vez. Transportes públicos, um táxi ou um uber, e para viajar alugaria um carro. Tinha enormes vantagens. Acabavam problemas de estacionamento, não precisava de seguro, nem de oficina, nem de combustível, nem de pneus. E não precisava de lhe dar atenção. Não ter carro parece-me, neste momento, um acto de civilização. Isso, porém, não pode acontecer numa pequena cidade de província, uma cidade que se fosse elevada a vila teria uma enorme promoção. Aqui não há lugar para ideias civilizadas.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Em busca de uma iluminação

Não fora este ano ser bissexto e, no fim do dia, teríamos completado o primeiro quarto do mês. Assim teremos de esperar seis horas para comemorar a efeméride. Nos anos não bissextos, o mês de Fevereiro é o mais perfeito dos meses. Contém precisamente quatro semanas. Os outros meses alargam-se para lá do limite razoável. Uns dois dias, outros três. Nem sempre Fevereiro se contém, mas isso só acontece de quatro em quatro anos. O desejo de expansão vai crescendo, crescendo, até que se transforma num dia a mais. Esta minha explicação de Fevereiro, nos anos bissextos, conter mais um dia parece-me muito mais interessante – e por isso mais verdadeira – do que a explicação rotineira baseada na necessidade de manter o calendário anual coerente com a translação da Terra. Em vez da coerência o desejo, e onde entra o desejo tudo se torna mais palpitante. E as pessoas gostam daquilo que as faz palpitar. Tenho estado a ver um documentário sobre o escritor de ficção científica Isaac Azimov. A personagem parece-me interessante, mas nunca fui um leitor desse tipo de literatura. A razão talvez resida na minha falta de imaginação, no facto de não conseguir transportar-me para mundos fora da Terra ou mesmo dentro da Terra que, cada vez que tentei ler e ainda li algumas obras, sempre me pareceram terrenos, demasiado terrenos, embora enxertados de umas estranhezas que teriam a função de mostrar que se estava num outro mundo. Talvez esteja a ser injusto, mas o gosto não é uma questão moral e, por isso, não gostar de ficção científica não justo nem injusto. Vou meditar nas minhas razões para não gostar de ficção científica ou nos mistérios do calendário. Talvez tenha uma iluminação.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Mitologias

Pensei que se tinha perdido no caminho entre Inglaterra e esta casa onde me recolho, mas era um pensamento precipitado. Chegou hoje, para minha surpresa, pois o site continua a dar informações contraditórias, o livro da filósofa Mary Midgley, com o título The Myths We Live By. Quase no início, ela escreve Mitos não são mentiras, nem histórias isoladas. São padrões imaginativos, redes de símbolos poderosos que sugerem caminhos particulares de interpretação do mundo. Isto reconduziu-me ao Iluminismo, aos séculos XVII e XVIII, e à tentativa desesperada dos homens se emanciparem dos mitos. A isso chamou-se o triunfo da razão. Esse triunfo, porém, nunca deixou de ser uma fantasia, pois o triunfo da razão é ele próprio um mito que enquadra a interpretação do mundo. Imagino, não poucas vezes, que a razão não é mais do que uma imaginação coagulada, despida da sua fluidez, onde os mitos secaram, como secam as frutas expostas ao sol. Perdem a humidade. Eu, por exemplo, expando-me numa mitologia pessoal onde surjo como um narrador sem narrativa, um herói sem aventuras, um pensador sem pensamento. Perante estas autodescrições, pergunto-me se elas serão, enquanto figuras de retórica, oxímoros ou paradoxos. Imagino que no interior de cada mito exista um núcleo contraditório e é a partir desse núcleo tenso que emergem as redes simbólicas. Contudo, isto não é pensamento que se tenha a esta hora em que a tarde declina e com ela a luz e a minha vontade de escrever.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Atenções

Um dia útil, o primeiro da semana, em que chego ao fim da tarde com uma desmedida sensação de inutilidade, apesar de ter estado ocupado o dia inteiro. Talvez seja por causa disso, pensei. A grande aventura foi passar pelo hipermercado. Das coisas que comprei, uma delas deixou-me desolado. Nozes. Sou um consumidor regular deste fruto seco. Fui abastecer-me, mas parece que tinham seleccionado para venda apenas uma versão mini, tão baixo é o calibre. Não havia outras, acabei por comprá-las. Só falta saber – mais logo, saberei – se além de mínimas também são secas. Comprei outras coisas, como kiwis, tomate cereja e rúcula. É possível que devesse comprar outras, mas terei esquecido quais, talvez por falta de atenção. Na Electra, do Inverno 2023/24, leio A chave para o estrondoso sucesso das redes sociais reside na abertura do negócio aos clientes finais. Os rendimentos são contabilizados em moeda de amigos, seguidores, gostos e tudo o resto. O texto é de Georg Franck e faz parte de um artigo com o título As várias faces da economia da atenção. Este sucesso é o sucesso do vácuo. Pois o que, na verdade está em jogo, não é a atenção, a aprendizagem de estar plenamente presente perante aquilo que se apresenta, mas o chamar a atenção, o desenvolvimento de um narcisismo que se aproxima do solipsismo à medida que crescem as amizades, os seguidores e se somam os likes. Agora, a noite anuncia-se e vou entregar a minha atenção à contemplação do crepúsculo.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Uma escultura

De onde me encontro posso ver uma escultura em bronze, datada de 1956/57, de Lagoa Henriques, uma figura feminina com bicicleta. Está num conhecido complexo habitacional de Lisboa, importante na história da arquitectura moderna portuguesa. A figura feminina, penso ao contemplá-la na sua nudez, obedece a um padrão de beleza que, entretanto, caiu em desuso. Isto mostra, entretive-me a pensar, que o desejo tem uma forte dimensão social. Aquilo que é desejável eroticamente obedece aos padrões impostos pela moda, o que significa que a pulsão natural é envolvida por uma capa de carácter cultural. Ora, é esta capa que permite não apenas a diferenciação do que é desejável ao longo do tempo, como uma diferenciação social entre os que desejam segundo os modelos mais sofisticados e os que desejam segundo modelos mais simples e arcaicos. Esta diferenciação trazida pelas dinâmicas culturais não se instala sobre uma igualdade natural, pois igualdade na natureza parece ser um bem escasso, como se pode constatar pelo facto de todos os seres humanos terem impressões digitais diferentes, mas substitui essas diferenças dadas por diferenças criadas socialmente, as quais podem acentuar as hierarquias naturais, mas podem também subvertê-las. Olhando para a escultura de Lagoa Henriques, volta a questão da natureza de um valor como a beleza. A diferenciação no tempo – e também no espaço geográfico – do que se considera belo é um argumento a favor do relativismo cultural. Contudo, talvez seja possível compatibilizar a ideia de que a beleza é um valor objectivo e universal com este relativismo cultural. Para os domingos, dias sagrados de descanso, a melhorar solução de compatibilidade teria uma tonalidade platónica. Existe a priori uma ideia de beleza, a da verdadeira beleza, uma ideia objectiva e universal. As ideias relativas provenientes da cultura são interpretações limitadas e variáveis dessa ideia, a qual é apenas entrevista como uma sombra. Amanhã, poderia encontrar outra explicação, mas por hoje esta basta. Tenho de ir almoçar com as netas.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Uma derrota

Sem uma aventura para adicionar à gesta gloriosa em que transformei o meu quotidiano, resta-me narrar uma desventura. Dirigi-me a uma farmácia, longe de casa, para comprar um certo medicamento. Receita electrónica no bolso, isto é, no telemóvel, passada em meados de Dezembro. Das seis unidades receitadas, tinha adquirido apenas duas. Restavam-me quatro. Quando mostro a prescrição, recebo a informação de que todas as unidades tinham sido dispensadas, não me restava nenhuma. Fiquei perplexo, quero dizer, fiquei com cara de parvo, sem saber o que dizer, perante alguém que nunca me vira. Só comprei duas embalagens, aliás, nem vendem mais, disse, como se apresentasse um argumento decisivo para que me vendessem o medicamento. A funcionária – talvez fosse a dona da farmácia, sabe-se lá com quem se fala numa farmácia desconhecida – para me consolar, disse não se preocupe, pois eu também não tenho essa versão do medicamento. Respirei fundo. Estar ali o medicamento e não o poder levar era muito pior do que não haver medicamento. Chegado a casa, fui investigar a aplicação e lá percebi que na farmácia que frequento devem ter cometido um erro. Venderam-me duas embalagens e consideraram que me tinham dispensado as seis. O meu problema com esta desventura não é a falta do medicamento, mas não saber em que página da minha epopeia ela cabe. Um herói que se preze não tem apenas vitórias. As derrotas, desde que não contumazes, testam a sua resiliência, a sua capacidade de ultrapassar os momentos amargos. Um momento amaríssimo é aquele em que se utiliza a palavra resiliência e eu acabei de o fazer.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Da euforia à apatia

O mundo anda inflamado, ouvi. Como a conversa não era comigo, assenti, mas apenas mentalmente, sem deixar transparecer concordância ou, tão pouco, ter escutado a afirmação. Depois, o pensamento, o meu, apresentou a si mesmo a natureza da inflamação, o calor deste Inverno. Parece ainda não ter sido descoberto um anti-inflamatório eficaz para estas perturbações, pensei. Sexta-feira, o dia desliza insensato para o seu fim e eu acompanho-o, sou arrastado pela voracidade que se apoderou do calendário. Há pouco subi e desci uma certa artéria da capital. Fi-lo propositadamente devagar, tentando enganar o tempo e esperando que ele diminuísse a sua marcha. Manteve-se impávido, ignorando-me, ignorando a minha estratégia, fazendo finca-pé na fidelidade que tem às dimensões das suas divisões, recusando-se a que um segundo dure mais que um segundo. Esta recusa, arrasta todas as outras. Como se vê, a fidelidade nem sempre é uma virtude. Por falar em fidelidade, disse o padre Lodo, com quem almocei e contara a minha artimanha, li que o mundo está a renunciar ao sexo, que se passou da euforia da libertação sexual à apatia da libertação do sexo. No meu país, a Itália, prosseguiu vivaz, os estudos mostram que um milhão e seiscentos mil jovens, entre os 18 e 35 anos, nunca tiveram qualquer relação sexual e que um terço dos jovens até aos 25 anos apenas teve sexo virtual. Há 220 mil casais estáveis, nas mesmas idades, que são sexualmente abstinentes. Isto é um problema, exclamou. Olhei-o divertido. Parece que a revolução sexual dos anos sessenta foi muito mais eficiente em gerar o desprezo pelo sexo do que a prédica de dois mil anos da Igreja, respondi. Olhou-me compadecido da minha inclinação para a heresia. A Igreja, disse, nunca desprezou o sexo, apenas quis fazer dele uma coisa rara e, por isso, valiosa, ripostou. Tão valiosa que deve estar encerrada na esfera das coisas sagradas, concluiu. Sim, sim, disse eu, mas também admitia excepções para os membros do clero. Esses estavam livres da sacralidade do sexo e abstinência era coisa para os outros. Franziu o sobrolho, pegou na garrafa de vinho e ao ler o rótulo, exclamou que o sexo não é tudo na vida e que até na região de Lisboa se encontram óptimos vinhos. Coisa com que concordei sem vontade de proferir nova heresia.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Subir para baixo

Começou Fevereiro. Quando, ao levantar-me, constatei o facto, surgiu-me uma inquietante dúvida no espírito. Se Janeiro tem o seu nome em honra do deus Janus, o deus bifronte, e Março honra Marte, o deus da guerra, a que deus, caso seja algum, honrará Fevereiro, esse mês amputado de dias. Pensei que talvez fosse uma divindade que tivesse sofrido alguma excisão. Por exemplo, poderia ser um deus a que tivessem excisado um dente, um dedo. Investiguei e descobri que Fevereiro vem do latim Februarius, nome inspirado em Fébruo, o deus da morte na mitologia etrusca ou na sabina, não se tem a certeza. Eis uma descoberta tétrica, mas logo se percebe a razão. Fevereiro, isto é, Februarius, era o 12.º mês, e último, do calendário lunissolar romano extinto em 46 a.C. O ano morria em Fevereiro, por isso é absolutamente racional a escolha do deus da morte como inspirador da denominação do mês. Resta, todavia, uma discussão a fazer em torno de Fevereiro. Passar de último mês do ano para segundo, conforme os calendários juliano e gregoriano, foi promoção ou despromoção? Apesar de a transição de 12.º para 2.º não lhe ter retirado o estatuto de mês amputado de dias, há uma notória despromoção funcional. Agora, Fevereiro liga Janeiro a Março, dois meros meses. Antes, porém, ligava um ano ao outro. Era um mês terminal que anunciava um novo ano, uma nova vida, um novo mundo. Eis um exemplo que todos devemos ter em atenção. Quantas vezes subir numa hierarquia não passa de uma despromoção? Muitos são aqueles que sobem para baixo.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Liberalismo climático

Janeiro despede-se em clima primaveril. Trata-se de uma vitória assinalável do liberalismo climático. Depois de tanta insistência por parte dos defensores do clima livre, S. Pedro decidiu acabar com a regulação meteorológica, a qual já sofria de algumas deficiências. Entregue a si mesmo, o clima aposta em trazer a Primavera ou mesmo o Verão em pleno Inverno, ou prolongar Verões até ao começo do Inverno. Dizem os liberais climáticos que o clima desregulado atende melhor aos desejos do mercado, e aquilo que o mercado gosta é de calor, tempo estival, dias propícios para ir para a praia. Eis uma explicação que ultrapassa em rigor analítico as que são dadas pela ciência sobre as alterações climáticas de origem antropogénica. De facto, e aqui os cientistas geofísicos têm razão, o clima está a mudar devido ao homem, não, porém, à sua acção produtora de dióxido de carbono, mas ao seu desejo – um desejo insensato, sublinho – de praia, de torrar ao sol, de mergulhar nas águas do oceano, de se enfarinhar na areia. Por isso, este Janeiro do qual nos despedimos, foi o que foi. Uma resposta do clima à procura no mercado.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Um dia glorioso

Alguém, um desocupado, por certo, está a perfurar uma parede. Ao mesmo tempo perfura-me o sossego, a paciência e a atenção. Todas as máquinas deveriam ter um processo de absorção das ondas sonoras que, ao trabalhar, produzem em abundância. Acumulavam as ondas sonoras e transformavam-nas, posteriormente, em água, o que ajudaria a combater, não com pouca eficácia, a seca. Como se vê, bem tento contribuir para melhorar o mundo, mas ninguém parece interessado nas magníficas ideias que me ocorrem. Só nesta jornada a verrumar paredes, se poderia produzir uma meia dúzia de metros cúbicos de água. Levantei-me relativamente tarde, pois, ao acordar, tive uma súbita iluminação. O melhor é pegar no telemóvel e ir validar as facturas na aplicação. Não tarda é tempo de IRS. Falta menos de um mês para acabar o prazo e, antes que me esqueça, resolvo já o assunto, enfrentando o dragão do fisco com a lança acerada da prontidão. É verdade que segui aquele conselho lido num dos livros da escola primária. Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Não guardei. Tinha mais de quatrocentas facturas para classificar e validar, coisa que fiz no conforto da cama. Esta foi a minha aventura do dia, uma peça fundamental na gesta que me conduzirá à glória e espalhará a minha fama num horizonte tão amplo quanto aquele que o meu irmão de aventuras, o fidalgo D. Quixote, alcançou na sua vida heróica. O dia está ganho, uma ideia genial capaz de salvar o planeta e um combate com o dragão fiscal são aventuras mais que suficientes para um dia só. Contudo, há dias assim, tenho ainda de enfrentar a víbora da burocracia. Chegaram-me uns papéis para ler e dar o meu assentimento. Se utilizei uma lança para derrotar o dragão do fisco, terei agora de usar uma espada para cortar a cabeça da víbora da burocracia. Um dia glorioso.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Viandâncias

Hoje comecei o dia demasiado cedo. Ainda por cima a noite foi mal dormida, com tempo para pensar em adormecer e tempo em que, o pensamento derrotado, me entreguei à leitura, não sem antes ir tomar um comprimido para acalmar uma certa dor que teimava pairar num dos joelhos. Há dores que durante o dia não damos por elas, tão pequenas e insignificantes são. As mesmas, na sua insignificância, durante a noite, tornam-se um adversário poderoso de quem quer dormir. Não há maneira de chegar a um tratado de paz, que permita compatibilizar a vocação da dor para doer e o desejo do paciente em conviver com bonomia com essa inclinação que habita qualquer dor. Entregue à leitura, sob o efeito químico do colírio seleccionado, dei conta de a dor se ir afastando, não com pressa, mas com um passo aceitável. Quando ela se retirou por completo, pus a leitura de lado e adormeci. Sono de pouca dura, pois o alarme logo tocou e tive de me levantar. Um compromisso aguardava-me e eu não gosto de fazer esperar os compromissos. Cheguei a tempo, isto é, ainda antes da hora marcada. Depois do compromisso, fui caminhar para me esquecer do que tinha estado a tratar. Estava a meio da manhã e o sol tentava romper as nuvens, o que conseguiu a certa altura. Na viandância, não encontrei ninguém conhecido, mas agora inventei uma palavra. Os dicionários não registam viandância, mas o que fará um viandante se não a viandância? Se um peregrino faz peregrinações, um viandante só pode fazer viandâncias. Faço imensas viandâncias sem sair do mesmo lugar. Ponho-me a viandar, mas nunca saio de onde estou. Acontece também que, muitas vezes, farto-me de viandar para chegar ao sítio onde estava, aquilo que no jogo do monopólio se chama ir para a casa da partida. Bem, não sei se era nesse, se era no jogo da glória, ou noutro qualquer.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Cinza de domingo

Domingo de cinza. Uma luz difusa atravessa o muro de nuvens e abre-se, esbranquiçada e plangente, sobre a cidade. Um tempo em que ressoa no fundo do coração um Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius. Tudo isto para dizer que apesar de se estar longe da Quaresma, o domingo parece uma sexta-feira de Paixão. De manhã, fui caminhar, com esperança de me poder reconciliar, daqui a uns tempos, com a balança. Neste momento, entre mim e ela não há conflito real, pois ela recusa a devolver-me o peso. Preciso de mudar-lhe a pilha, mas, acto falhado, tenho-me esquecido de a comprar. Olho para a pilha e vejo um disco achatado. O pior é que há inúmeras versões destes discos achatados e só uma delas se adapta à minha inimiga de estimação. Não faço ideia qual é e ainda não me dei ao trabalho de remover a gasta para a levar ao sítio onde se vende aquele tipo de coisas. Enquanto caminhava, ia meditando na diferença dos hábitos de hoje e os de há cinquenta anos. Naqueles dias, os domingos eram coisa séria. Hoje, porém, são leves e desportivos. Antigamente, as pessoas iam à missa preocupadas com a alma. Hoje, caminham, correm, fazem desporto, preocupadas com o corpo. Se alguém argumentar que as dores de alma são piores que as do corpo, ninguém acreditará. Rendemo-nos ao império do visível. Os corpos vêem-se, as almas não. Olho pela janela e parece que o tempo se suspendeu. A realidade imobilizou-se e imóvel persiste diante dos meus olhos. Nem o vento abana a ramagem das árvores, nem pessoas passam na praceta, nem carros rasgam a avenida. Procuro os corvos que costumam voar, ao longe, saltando entre árvores, mas também eles se imobilizaram. Toda a cidade entrou no domingo e parece não querer sair dele. Oiço, agora, um carro, mas não o vendo sou forçado a admitir que talvez não seja um carro, mas apenas uma turbulência sonora que imita o barulho de um carro para me iludir.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Vulgaridades

O meu desejo é de dormir uma boa sesta. Falta-me, porém, uma desculpa aceitável. Por exemplo, ter dormido mal durante a noite. Esta noite, talvez para contrariar a priori o meu desejo deste momento, dormi bem, sem interregnos para adiantar leituras. O drama humano, talvez a tragédia, é a necessidade de encontrar desculpas – chamamos-lhes, muitas vezes, justificações – para fazer certas coisas. Sem desculpas, há acções que não têm qualquer direito à realização, mas uma boa desculpa torna-as legítimas. No que escrevi, há um equívoco. Não se trata de um drama, muito menos de uma tragédia. Serve-lhe bem um título de Balzac, a comédia humana. A comédia retrata as acções – e também as paixões – dos homens vulgares, enquanto a tragédia mima as acções dos homens nobres. A mim apenas cabe a comédia. A comédia não é aquilo que faz rir, embora os dicionários se tenham convertido a essa acepção, mas o que permite ver a vulgaridade que há nos seres vulgares. A minha vulgaridade está, neste momento, toda ela na propensão para dormir, para deixar cair o queixo sobre o peito e ressonar, enquanto um fio de baba se escapa da boca. A descrição é nojenta, mas não se pode esperar da vulgaridade de uma pessoa vulgar outra coisa. O nojo habita naquilo que é comum. Ora, não sendo da estirpe de um Édipo, filho de Laio, nem de Agamémnon, filho de Atreu, só me cabe a vulgaridade das coisas que acontecem aos mortais desprovidos de laços sanguíneos com os deuses. Tenho a vantagem de não matar o pai e casar com a mãe ou, espero, de não ser assinado pela mulher e o amante desta, destinos que os deuses concederam como uma graça ao filho de Laio e ao filho de Atreu. Os deuses são caprichosos. Talvez por isso foram substituídos por um Deus único que, ao olhar para a justiça, não faz acepção de pessoa e não distingue aqueles que merecem uma tragédia e aqueles cuja vida não passa de uma comédia. Agora, vou dormir a sesta.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Sem porquê

Anoiteceu. Os dias estão a crescer há mais de um mês, mas ainda são pequenos. A natureza progride lentamente, oiço-me pensar. Depois, rio-me. Não, a natureza não progride. Nela não há progresso nem retrocesso. Há apenas o acontecer, mas esse acontecer não significa nada a não ser o próprio acto de acontecer. Progresso e retrocesso só podem existir onde existe um sentido. É este que permite a existência de objectivos e finalidades, os quais são os marcos miliários, pelos quais se medem avanços e recuos. Ora, naquilo que apenas acontece não há avanços nem recuos. Pensar nisso, pensar que a generalidade das coisas apenas acontece, conduz a uma vertigem da nossa consciência, a qual se recusa a conceber que tudo pode ser destituído de sentido, incluindo ela e aquele em que ela vive. Um certo filósofo alemão do século passado, cuja fama não foi comprometida pelas ínvias opções que fez a certa altura da vida, alicerçou a sua glória na tese de que toda a história da filosofia é a história do esquecimento do ser, do esquecimento da pergunta pelo ser. Podemos pensar que esse ser esquecido não é outra coisa senão o puro acontecer sem qualquer significado senão acontecer. Será destituído de sentido fazer perguntas sobre aquilo que não tem sentido. Este texto é prova de que estou a entrar nos dias de ócio. Só a perspectiva da ociosidade me poderia levar a escrever coisa tão ociosa, tão destituída de sentido. Tivesse este narrador talento e teria escrito a apenas uma frase, aquela que Angelus Silesius, para sua eterna glória, escreveu, a rosa é sem porquê.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Trolls

Janeiro, o mês que já esteve envolvido em chuvas e frios, abriu-se numa Primavera temporã, fechando-se ao negro das nuvens pesadas e ao fustigar dos chicotes do vento. Este desarranjo entre o clima e o calendário daria se não uma epopeia, pelo menos uma ode. Um autor preocupado com a deficiente gestão das estações acabaria por compor uma tragédia, onde um Édipo se haveria de cegar ou uma Antígona se entregaria à morte. Descubro que Frederico Lourenço, na sua tradução da poesia completa de Horácio, decidiu dar títulos aos poemas que os não tinham. Não comento a opção, mas não deixo de sorrir lendo [Trolando um arrivista]. Eis um título da nossa época, adequado a um tempo em que não faltam trolls. Bem Horácio pode escrever: Passeia lá, empertigado pelo teu dinheiro: / a riqueza não altera a linhagem. O empertigado arrivista fará o seu caminho e por muito que seja trolado pelas palavras, não deixará de ser ele a trolar quem passe diante de si. Por mim, aceito-me como um autêntico troll vindo do folclore escandinavo, um troll feio, desagradável e burro. Cada um distingue-se como pode e o meu caminho da distinção é esse. Contra factos não há argumentos, embora a maior parte das pessoas acredite que contra argumentos não existem factos que lhes resistam. Em suma, Janeiro está a ser trolado não sei se por um arrivista, se por um santo cansado da gestão do clima. Que se reforme, se for esse o caso.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A espera

Como a imaginação escasseia, retorno à citação. Andrea Köhler, uma correspondente, estabelecida em Nova Iorque, do diário suíço Neue Zürcher Zeitung, tem um ensaio denominado O Tempo que Passa – Um ensaio sobe a Espera. Não o conhecia, mas vi o livro na mão de uma pessoa amiga e dei uma vista de olhos pelo conteúdo. Descobri, no início do capítulo «Desiste!», página 40 da tradução portuguesa, o seguinte: Fazer esperar é um privilégio dos poderosos. No piso da administração, onde nos deixam entregues à espera, há quem supervisione o nosso tempo e o consuma voraz e irreflectidamente. Quem nos faz esperar celebra o poder que detém sobre o nosso tempo de vida, e a dúvida sobre se não é justamente essa a razão para sermos deixados à espera é o que confere a esse poder o seu aspecto mais ameaçador. O meu conflito contumaz com as esperas nos consultórios tem aqui a sua raiz. O bem mais precioso que recebemos ao sermos concebidos é o tempo. Que outro disponha do nosso tempo a seu bel-prazer é não apenas uma humilhação, mas um ataque violento contra a nossa autonomia. Todos temos de gastar o tempo dos outros, mas há diversas formas para o fazermos. Esse gasto pode resultar de um acordo justo entre as partes. Pode também proceder de um exercício de poder daquele que se encontra numa posição superior e que, por isso, dispõe do tempo do outro. As relações entre chefes e subordinados, entre empregadores e empregados, entre médicos e pacientes, são todas elas propícias a um exercício de poder irracional fundado na disposição arbitrária do tempo do outro. Esse poder sobre o tempo dos outros pode acontecer em qualquer circunstância, mesmo as mais inesperadas. Há muito tempo, vivi durante um ano numa cidade do Alentejo. Um dia, precisava de uns parafusos, dirigi-me a uma loja de ferragens. O tempo ali passava muito devagar. A certa altura, o empregado percebendo em mim alguma impaciência, disse-me para não ter pressa, pois ele só saía dali às sete horas. Seriam pouco mais de três. Havia naquela graçola uma vingança. Ele tinha de perder o seu tempo a trabalhar para outrem e vingava-se naqueles que necessitavam do seu atendimento. Sempre que tenho um compromisso esforço-me para chegar a tempo, para não fazer o outro esperar, pois a espera não é o princípio de esperança, mas o sinal de uma distorção na relação entre seres dotados de razão, que devem respeito uns aos outros.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Lidar com o tempo

Ontem recebi uma chamada. Era só para recordar que amanhã tem uma marcação para vir pôr o Holter, ouvi. Ah sim, obrigado, respondi. Está marcado para as onzes horas, mas pedimos que venha um quarto de hora mais cedo. Disse que sim, que estaria um quarto de hora mais cedo. Tinha a vaga ideia de ter este exame para fazer, mas já nem me recordava quando. E lá fui hoje, de modo a chegar um quarto de hora mais cedo, imaginando que me despacharia rapidamente. Não foi inocência minha. Apenas burrice, pois, como diz uma amiga, inocência depois dos quarenta é apenas burrice. Saí de lá uma hora depois, sem o aparelho colocado. Tinha um compromisso inadiável e não podia esperar mais. Não, não foi no serviço público. Parece que a incompatibilidade entre cumprir horários e exercer a profissão de médico se alargou para os outros serviços de saúde. Desde que os técnicos de saúde se apresentam e são apresentados como doutores, imagino, que tenham também herdado, para além do título, a prerrogativa de não cumprir horários. Em tempos um antigo professor meu da faculdade deu aulas em Medicina sobre ética e saúde. Nessa altura, achei que fazia sentido, mas estava muito longe dos quarenta e a inocência era-me permitida. Hoje continua a fazer sentido que professores de Filosofia tenham lugar para ensinar nos cursos de formação de médicos. Não sobre ética, mas, de preferência, sobre metafísica, onde se trata do problema do tempo. Uma meditação sobre o tempo e a sua irreversibilidade. Desfazer a confusão de que parecem sofrer os praticantes de profissões médicas entre tempo e eternidade. Umas boas aulas de metafísica poderiam, inclusive, ajudar a saber ler um horário e perceber, com a ajuda da ética, o seu carácter imperativo. Tudo isto seria um contributo inestimável que a Filosofia poderia dar aos pobres mortais que, querendo adiar o desfecho que a sua natureza impõe, recorrem aos serviços de saúde. Aquele tempo que gastam em salas de espera seria aproveitado em coisas mais interessantes, mesmo que fizessem mal à saúde. Estamos em época de eleições, sobre as quais não falarei. A política está-me vedada, mas faço uma confissão. Irei ler os programas de todos os partidos e coligações concorrentes, no capítulo da saúde, para ver se algum deles se propõe enfrentar o pior de todos os problemas que afectam a saúde em Portugal, a dificuldade de as profissões ligadas à saúde lidarem com o tempo.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Uma ferida

Na praceta aqui em baixo, adolescentes jogam à bola enquanto esperam o começo das aulas no centro de línguas. Nestes jogos onde nada se joga há uma plenitude que em nenhum outro lado se encontra. Os jogadores não têm outro objectivo que não seja jogar. Coincidem com o seu próprio acto e são inteiros na finta que fazem ou no pontapé que dão. Estão a despedir-se de uma inocência de que não possuem qualquer consciência e é nesse não saber que reside a sua inteireza e a sua inocência. Estes jogos espontâneos são um adeus ao paraíso de que estão, paulatinamente, a ser expulsos. De súbito, fez-se silêncio. Terão entrado para uma aula. Um dia destes já não jogarão, pois deixaram de coincidir consigo mesmos. Essa cisão crescerá como uma ferida. Descobrirão que é uma doença crónica. Haverá aqueles que procurarão a cura e perder-se-ão de si. Outros haverá que aprenderão a viver com a doença, permanecendo dentro do seu próprio horizonte. Caso cheguem a velhos, pensarão sobre isto, sobre o modo como conviveram com a doença crónica e a tornaram num instrumento da sua própria saúde. Nessa altura, sentirão, primeiro, uma leve nostalgia pela inocência em que o seu corpo coincidia consigo mesmo quando um pé encontrava uma bola e a garganta gritava golo. Depois, sentirão o alívio de nunca terem querido curar a ferida aberta pela cisão que os constitui.

domingo, 21 de janeiro de 2024

Progresso e regressão

A certa altura, uma altura recente, da história da humanidade iniciou-se um culto fervoroso pelo progresso, pela evolução do homem. Uma autêntica religião, embora cindida em diversas igrejas, com a sua liturgia, os seus rituais e os seus sacramentos. O século XX foi, porém, uma época propícia para o cultivo da dúvida. O agnosticismo e o ateísmo em relação à evolução da humanidade cresceram, reduzindo o número de fiéis e ainda mais o de praticantes. Da crença na evolução, ficou apenas a certeza do progresso da técnica e um medo terrível de que a moralidade humana estivesse longe de ser capaz de acompanhar o ritmo do desenvolvimento técnico. Este culto público do progresso e da evolução da humanidade sempre foi acompanhado de um outro culto, com raízes muito antigas, mas de natureza quase secreta. Há quem acredite que os seres humanos não estão em evolução, mas em involução. Desde há muito que vivemos numa fase de regressão da nossa humanidade. Em tempos, todos os seres humanos teriam sido mais sábios e sensatos, a vida entre eles era justa e aprazível. Depois, entraram num processo de decadência que se vem acelerando ao longo do tempo. Poder-se-á mesmo afirmar que, para esses cultores da regressão, o progresso técnico é inversamente proporcional à qualidade da humanidade. Quanto melhor a humanidade, menos necessidade da técnica ela tem. Quanto maior recurso à técnica, pior é a humanidade. Estas duas perspectivas têm o condão de sublinhar a necessidade que temos de contar histórias e, ainda mais, de contar histórias que permitam contar todas as outras. Estas duas histórias contadas aqui são histórias enquadradoras, são elas que permitem que contemos todas as outras, sejam elas quais forem. A dificuldade, a minha dificuldade, é que não sei em que campo hei-de enquadrar a história deste domingo. Será a história de mais um passo na evolução da humanidade ou, pelo contrário, será a prova da sua regressão. Ora, não será uma coisa nem outra, pois neste domingo não tenho nada para narrar e este é o ponto de equilíbrio, um ponto neutro, entre a crença no progresso e a fé na involução. A utilidade dos dias úteis, por certo, dar-me-á mais imaginação para encontrar assunto.

sábado, 20 de janeiro de 2024

Interesses

Retornei a O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Li-o há muito e vi algumas vezes o filme que Visconti fez a partir dessa obra. Estou naquele momento em que Angelica, a bela filha de Dom Calogero, chega ao jantar dado, no regresso a Donnafugata, pelo príncipe de Salina. É extraordinária a forma como Lampedusa mostra a mudança de poder, a queda lenta e inexorável da velha aristocracia e a subida de uma nova casta, ainda rude, mas que fará do interesse próprio a espada com que, sem contemplações, triunfará. Os privilégios da velha aristocracia fundavam-se num ethos do serviço, o qual dissimulava ou sublimava o interesse próprio. Os que triunfaram com Garibaldi puseram de lado esse ethos do serviço e legitimaram o interesse próprio como única razão para agir neste mundo. Poder-se-á pensar que o triunfo dos novos senhores teve o condão de tornar manifesto aquilo que era oculto. É verdade, mas também é verdade que condenou à irrelevância a ideia de servir os outros ou mesmo a necessidade de sublimar, no sentido de tornar sublime, aquilo que era apenas um impulso egoísta. Olhando para essa mudança de poder social que se iniciou no século XVII, em Inglaterra com a Gloriosa Revolução, passou pelas Revoluções Americana e Francesa e se prolongou até à primeira guerra mundial, constata-se que os novos poderes, ao perseguirem os seus interesses próprios, muitas vezes com uma rudeza extrema, acabaram por proporcionar um mundo mais benevolente para a maioria das pessoas. É aquilo a que Hegel chamou de astúcia da razão. Do ponto de vista de uma contabilidade utilitarista, a mudança de poder foi moralmente boa, ao proporcionar a felicidade de um maior número. Contudo, o espírito sente, perante o ethos triunfante uma certa repulsa, pois a conduta dos indivíduos é movida por aquilo que uma longa tradição, que junta o legado grego e, principalmente, o cristão, sempre considerou adverso à virtude moral, o agir segundo o interesse próprio. Cristo, o modelo do homem na cultura ocidental, morreu na cruz movido pelo interesse dos homens e não pelo seu interesse pessoal.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Contra a colaboração

Estou em maré de citações. Citar outrem é aliviar-se do encargo de pensar por si. É uma espécie de coexistência espúria, como o são todas as coexistências. Ouvi-o a Bernardo Soares e li-o no seu livro do desassossego, quando passei os olhos pelo trecho Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir. Descobri, em tempos, que vivemos num mundo de colaboradores e que colaborar é uma virtude primeira das relações sociais. Essa descoberta deixou-me sempre desconfortável. Eu não sou um colaborador, falta-me a alma de colaboracionista. A minha revolta contra o verbo colaborar era estética. A colaboração é uma coisa feia. O Bernardo Soares, porém, veio ajudar-me a compreender o fenómeno. Há na colaboração uma morbidez metafísica. Uma decomposição metafísica não cheira menos mal do que uma decomposição física. Pelo contrário. Imagine-se o mau cheiro que deita a putrefacção de uma alma. Começa com um cheiro a enxofre e a partir daí a gama dos odores é cada vez mais repelente. Em vez de desperdiçar a nossa personalidade em orgias de coexistência, a expressão é do Soares, entreguemo-nos à ascese da existência, digo-o eu para evitar que o acto de citar cubra todo este texto. Chegou a sexta-feira, o que me poupa a algumas orgias da coexistência. Entro nela como se entrasse para um eremitério.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Trazer à linguagem

Albert Manguel, o conhecido autor de Uma História da Leitura, na Nota Prévia ao romance de ficção científica Solaris, de Stanisław Lem, afirma Na nossa arrogância só vemos o que queremos ver, vendando os olhos para o resto. A ciência elabora argumentos de ficção científica para nos consolar ou entreter, mas, na realidade, limita-se a dar respostas a expectativas tradicionais. Há nas palavras de Manguel uma insurreição contra o hábito. Nem a ciência escapa à submissão à tradição. Para completar a diatribe revolucionária, acrescenta Ficam por dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Ester ardor contra o instalado esbarra, como qualquer projecto revolucionário, com aquilo que se propõe. Dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Há dois equívocos neste programa. O inacreditável ocupa um lugar não despiciendo nos actos de fala e de escrita. Muitas são as coisas inacreditáveis que são ditas e escritas. Por vezes, são-no de tal modo que, apesar de absolutamente inacreditáveis, elas são acreditadas e multidões há que juram serem verdadeiras. Se há uma coisa que está no poder da linguagem humana é dizer o inacreditável. O segundo equívoco nasce do programa utópico de dizer o impensável e o inimaginável. A linguagem tem um vínculo com o pensado e o imaginado. Aquilo que não pode ser pensado ou, tão pouco, imaginado não pode ser dito e isto não se deve à submissão dos homens ao hábito ou a uma tenebrosa tradição, mas à natureza do impensável e do inimaginável. Contudo, a linguagem tem tido um enorme poder para trazer à expressão aquilo que ainda não tinha sido pensado ou imaginado, mas que, em última análise, não era ontologicamente impensável e inimaginável. Se a linguagem fosse sempre dependente de um hábito ou de uma tradição, o mais plausível seria que ainda não existisse uma verdadeira linguagem humana, mas apenas um sistema rudimentar de vocalizações que se repetiriam infinitamente, um sistema pré-babélico partilhado por todos os animais humanos. A confusão das línguas resultante da aventura de Babel não é outra coisa senão o símbolo de uma humanidade que procura trazer à linguagem aquilo que ainda não foi pensado ou sequer imaginado, mas que não é, por natureza, impensável ou inimaginável.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Desolação

A meio da manhã fui a uma grande superfície. Quando ia para sair, chovia desalmadamente. Sem guarda-chuva que me protegesse corpo e alma, guardei-me da chuva indo até ao sítio, também grande, onde existe um posto dos CTT, um centro de cópias, melhor de fotocópias, venda de material de escritório e escolar, assim como de brinquedos e também de livros, em quantidade apreciável, diga-se. O desolador, porém, é constatar aquilo que anima o comércio livreiro. A quantidade de lixo publicado em forma de livro é extraordinária. Imagino que essas publicações substituíram as antigas fotonovelas Corin Tellado e outros títulos do género. A minha desolação não deriva desses livros serem publicados em abundância, mas de continuar a haver procura. Havendo procura, logo haverá quem esteja disposto a produzir a oferta que responderá ao desejo. A desolação nasce da constatação de que um aumento exponencial da frequência escolar não alterou o gosto, nem produziu gerações mais interessadas naquilo a que se pode chamar, talvez com presunção, alta cultura. Ao contrário do ensino, a excepção não se democratiza, e procurar o excepcional parece não fazer parte daquilo que se ensina. Olhava para as estantes e por cada romance digno desse nome havia mais de cem que não passavam de um renovamento das antigas fotonovelas, agora sem fotografias. Talvez o progresso esteja aí, na transição da curta legenda pespegada numa fotografia para centenas de páginas de texto sem imagens. O problema que ruminei ao ver aquele papel cheio de palavras foi o de saber quantas gerações serão necessárias para que a quantidade se transforme em qualidade. Talvez essa ideia não passe de uma ilusão dialéctica. Seja como for, cada um lê o quer ou pode, pois é isso o que pressupõe uma certa interpretação da liberdade. Esta ruminação melancólica demorou o suficiente para deixar de chover e poder fazer-me ao caminho, já que a farmácia me esperava, embora ela não o soubesse. Uma visita de surpresa.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Justa medida

Talvez não devesse ter comido tanto chocolate. Em termos absolutos, foi até bastante pouco. Apenas três quadrados de um chocolate de origem austríaca. Na realidade ninguém pode comer quadrados seja do que for, mas nunca ouvi, e aqui a tradição é fundamental, dizer que se comeu uns paralelepípedos de chocolate. Ora, estes três quadrados estavam longe de ser generosos, mas mesmo assim ultrapassei a medida que, nesta altura da existência, me cabe quanto ao consumo de chocolate. Isto levanta um problema filosófico que não interessará ninguém e muito menos a qualquer filósofo. A justa medida não passa de um conceito relativo. O que será a justa medida para uns, não o será para outros. Pior, a justa medida para mim foi variando com o tempo. Há muito tempo três quadrados de chocolate era prova de frugalidade. Hoje, é um excesso. Comparemos a justa medida, enquanto critério de acção, com o metro padrão, enquanto critério de medida. Este é objectivo e, a não ser por acidente mecânico, não varia. A justa medida é de uma inconstância assombrosa. Desconfio que seja por causa dessa volubilidade que andamos todos perdidos no mundo. Nunca sabemos qual é a justa medida de cada instante e caímos ora no excesso, ora na falta. Os antigos gregos faziam dela o centro da virtude moral, mas estou longe de pensar que eles fossem virtuosos. O mais sensato seria definir o conceito de justa medida com a precisão com que se definiu o metro padrão, mas logo haveria uma gritaria sem fim, protestando que somos todos diferentes, cada um tem a sua medida e só a sua é justa para si. Este culto exacerbado do subjectivismo cansa-me. Uma pessoa tenta ajudar a humanidade a encontrar um rumo, mas logo percebe que o melhor é estar calado. Talvez a minha justa medida fosse calar-me, mas imagino que não seja suficientemente virtuoso para o voto de silêncio.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Obras apócrifas

Salvo por uma chamada de telemóvel. Sentei-me para escrever este texto. Sem saber o que dizer, acabei por adormecer. A meditação deve ter sido tão profunda que mergulhei no reino dos sonhos, embora não tivesse sonhado. Um amigo, a precisar de uma indicação na manipulação de um certo software, ligou-me e eu retornei ao estado de vigília para lhe dar a indicação e enfrentar o texto que espera a minha decisão para se manifestar. Isto significa que o texto que estou a escrever existe a priori e que eu não sou o seu criador, mas aquele que, sem saber como, o revela, trazendo-o do mundo invisível para o visível. Esta transição entre mundos, como todos sabemos, é problemática e, por norma, representa uma queda. É o que acontece com estes textos. No mundo invisível, eles, suspeito-o, são brilhantes, mas quando opero a transição entre mundos, eles degradam-se e acabam naquilo que se vê. É verdade que nunca recebi qualquer reclamação do outro mundo por diminuir a qualidade da obra. Quando penso nisso, e penso-o muitas vezes, nunca consigo chegar a um acordo sobre as razões desse silêncio. Será que quem vive nesse mundo onde se produzem textos brilhantes é benevolente e compreende a imperfeição do mediador? Será que é condescendente e aceita a degradação textual com um encolher de ombros, como se não se pudesse fazer nada? Será que não quer saber do assunto para nada, já que o que se passa neste mundo não lhe diz respeito? Fico sempre indeciso perante a pluralidade de hipóteses. Acabo por não investigar qualquer delas e aceitar a ignorância. Quem ler o que acabei de escrever julgará que é uma artimanha para colmatar a ausência de assunto. Puro engano. Imaginemos qualquer obra literária, desde as mais importantes até às que não têm qualquer importância. Os seus autores são todos eles desconhecidos. O que nós conhecemos são mediadores. Ulisses ou O Processo existiam a priori nesse mundo invisível. Estavam prontos há séculos, apenas esperavam que chegassem os mediadores certos. E eles acabaram por chegar, como sabemos, pois podemos comprar esses romances. Um corolário de tudo isto é que já estão escritas as grandes obras que se manifestarão daqui a um, dois ou cem séculos. Esperam a hora em que o mediador certo venha à existência e esteja pronto para as descobrir e tomar-se como seu autor. Um segundo corolário é mais dramático. Não há obra literária, genial ou medíocre, que não seja apócrifa. O mesmo se passa com estes textos.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Preocupação

Todas as épocas têm as suas crenças dominantes. Por norma, existem diversas crenças. Contudo, há umas que têm maior peso na opinião pública. Crenças dominantes não significa que sejam verdadeiras, mas que geram uma aceitação mais generalizada e tecem uma espécie de consenso que nos permite viver uns com os outros. A certa altura, esse sistema de crenças começa a ser desafiado e um outro arvora-se em orientador da vida comum. O grande problema é que em caso algum a verdade dessas crenças seja a razão para que se tornem dominantes. Por norma, são os preconceitos que tecem a dominação opinativa. Há épocas em que o conjunto de preconceitos dominantes é moralmente mais aceitável. Isso não significa que de seguida não sejam os preconceitos mais imorais e contrários tanto à razão natural como à revelação divina que se tornem dominantes. Estamos a viver uma época dessas, concluiu o padre Lodovico Settembrini. Esta longa meditação foi a resposta a uma questão inocente. Perguntei-lhe como achara a sua Itália, nesta estadia de duas semanas. Não me falou do que encontrou, apenas se entregou a uma reflexão abstracta e que se pode aplicar a qualquer lado. Fiz-lho notar, ao que respondeu que era verdade. Aquilo que tinha dito também se pode aplicar a outros lados, incluindo a este país a que já pertence. Não vale a pena, acrescentou, ficar amargurado, nem desiludido com a espécie humana. Contudo, este ano de 2024 cheira mal, muito mal, apesar de só ter duas semanas. Não me parece que exista fluido ambientador que lhe disfarce o cheiro. Ter-se-á convertido ao cepticismo, perguntei. O padre Lodo riu-se e disse que não era uma questão de conversão. Um católico que se preze é um céptico em relação à espécie humana. Aquela história do homem pecador não é apenas uma artimanha para arranjar gente que vá aos confessionários. É um exercício de cepticismo sobre o homem. A esperança, disse, não reside no homem, mas em Deus, na sua graça. E onde abunda o pecado, superabunda a graça, respondi-lhe. Ele riu-se e não se conteve. Agora cita Paulo de Tarso? Os conversos nunca deixam de ser personagens fascinantes, repliquei. Do ponto de vista estético, esclareci. Disse-me que tinha de se ir preparar para ir dizer Missa. Nem sequer sugeriu um almoço em Lisboa, o que me deixou preocupado.

sábado, 13 de janeiro de 2024

Classificações

Espera-me um encontro com os netos. Olho pela janela, percebo que está a chover e penso que tenho de conduzir. Paro o pensamento e vejo-me preocupado por ter associado o estado do tempo com o facto de ter de conduzir. No outro dia, alguém me disse que eu entrava na categoria de idoso. Reagi com ironia, mas a verdade desta minha associação prova que não há ironia que resista ao facto classificativo. Ao diabo as taxinomias. Olho a rua e dois adolescentes – ainda uma classificação – passam sem chapéu de chuva. Vão como se não chovesse. Os campos de jogos da escola aqui ao lado apresentam pequenos lagos. Ondulam ligeiramente, se o vento sopra. Está um sábado desagradável. Na frase anterior, coloquei um a a mais em “Está” e um a a menos em “sábado”. Esatá um sábdo… escrevi. Podia ser o ponto de partida para inventar uma língua, mas falta-me a energia criativa e cedo, cobardemente, ao hábito, corrigindo as palavras que poderiam ser a porta de entrada no árduo caminho da glória. Oiço um secador a trabalhar. Eis um som que pertence à categoria de sons com poder para me irritar. Poderia agora começar uma classificação dos sons, mas tenho de resistir ao impulso taxinómico. Continua a chover.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Tirar do nada

Fui para aquele sítio onde oficio uma liturgia que não toca o coração da assembleia, a qual se entrega ao ritual como quem se entrega a um hábito tão enraizado que já nem dá conta de que é um hábito. O pior é que antes de ir troquei de casaco. Trocar de casaco não é um acontecimento que traga mal ao mundo, tão pouco ao trocador. O caso é simples de perceber. Deixei os óculos no casaco despido. Quando quis ler alguma coisa, um salmo ou uma epístola, as letras tinham encolhido de tal modo que as linhas me pareciam rectas puras, sem que qualquer relevo me anunciasse ali a existência de letras. Valeu-me que os salmos e as epístolas a que recorro não pertencem ao domínio da religião, o que me permite inventar salmos e epístolas sem cair na heresia. Aliás, não recorro muito a leituras, coisa que nem os crentes suportam, quanto mais os agnósticos e ateus que frequento. O mais interessante de tudo isto reside no facto de ser mentira. Contar uma coisa que nunca se passou é mais aliciante do que contar coisas que se passaram. Contar uma coisa que se passou tem o odor da confidência, o que repugna qualquer ouvinte. A gesta que aqui narro, a minha epopeia, é composta por grandes aventuras que nunca existiram. Não se pense, todavia, que essa gesta é nada. Não é. Fazer de não acontecimentos alguma coisa é um acto mais que humano. É tirar um mundo do nada e é isso que faz de mim um narrador digno não de dó, mas de crédito. Só narro mentiras.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Espelhos

Alguém diz quando me olho ao espelho não é o meu rosto que vejo, mas o de alguém que se está a olhar ao espelho. E continua, quando vejo a minha fotografia não é a mim que vejo, mas uma face congelada. Em resumo, eu não sou a minha aparência, tão pouco a série das minhas aparências, como pode acontecer num filme ou nesse mesmo espelho. Tão habituados estamos a espelhos, fotografias e filmes que não temos consciência de que sem esses artifícios não teríamos acesso ao nosso rosto. Sem eles, a minha face será sempre a face para um outro e não para mim. É plausível pensar que olhar o seu próprio rosto seja uma infracção à nossa condição, a qual se paga pela perda de si na confusão entre a aparência que se vê e a realidade que se é. Isto recordou-me um texto de Jacques Lacan, lido há décadas, sobre o estado do espelho como formador da função do Eu. A criança, dizia o psicanalista francês, numa idade em que ainda é ultrapassada em inteligência instrumental pela cria do chimpanzé tem já a capacidade de se reconhecer ao espelho. Lacan apontava para uma idade entre seis e dezoito meses. Ora, fundindo os dois discursos, descobrimos que nos perdemos quando nos reconhecemos, o que não deixa de ser bizarro. No momento em que descubro que sou um eu, fecho a porta para saber quem sou, pois esse eu não passa de uma aparência. O eu é sempre a aparência de um outro que se esconde. Ora, nunca deveríamos ter descoberto os espelhos. Não porque eles se possam quebrar, mas porque são monstruosos ao devolver-nos uma imagem que confundimos connosco. Esta natureza monstruosa dos espelhos é referida por Jorge Luís Borges no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Quase no início, escreve: Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho. Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número de homens. Compreende-se agora a razão por que o heresiarca de Uqbar era uma heresiarca. A sua heresia estava em não ter percebido o que há de abominável nos espelhos. Eles são-no não porque multipliquem os homens, mas porque os perdem ao devolver-lhes uma aparência que lhes esconderá para sempre a sua realidade. O rosto de cada um só aos outros compete observar. É no desconhecimento da sua face que começa a verdadeira sabedoria. Malditos espelhos que me roubaram a sabedoria.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Vanguarda

Movido por um comentário escutado há dias na Antena 2, tenho dedicado parte do dia à escuta do segundo quarteto de cordas de Joly Braga Santos. Vou na terceira audição. Leio que foi escrito em Milão, no ano de 1957, onde o compositor terá contactado a vanguarda musical. Ainda apanhei o comboio da vanguarda, apesar de ele ter partido de uma estação bem anterior à do meu nascimento. A certa altura, tudo era vanguarda. Na música, na poesia, na pintura, na política, na arquitectura, sabe-se lá mais onde. Aquilo que eu apanhei foi apenas a sombra dessa vanguarda. Pensamos, quando se pensa na vanguarda, na radicalidade dos pressupostos e dos projectos, na ideia de romper o tecido do tempo, para instaurar a novidade, apressar a vinda do futuro. Deus, os anjos e a própria morte, caso cada uma destas entidades exista, franziam todos o sobrolho e não cessavam de se perguntar o que se estaria a passar. Quem é que quer estar na linha da frente, quando chovem as balas? Quem é que deseja apressar o futuro, se no futuro todas estaremos mortos? A própria morte, grande beneficiária do desejo de estar na vanguarda, estava desconcertada com tanto desejo de a frequentar. A excitação vanguardista, como todas as excitações foi passando, e a vanguarda tornou-se velha, caindo na retaguarda, tentando resguardar-se da ceifeira implacável que tinha tentado seduzir. O quarteto de Joly Braga Santos ainda não se inscreve na tradição vanguardista, saliente-se. De tudo isto, subsiste, para mim, um enigma. Se os que marcham à frente estão na vanguarda e os que marcham atrás estão na retaguarda, os que marcham no meio, estão na mesoguarda?

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Construtores e destruidores

Há muito tempo havia um programa de televisão dedicado à animação, da responsabilidade de Vasco Granja. As obras viriam um pouco de todo o mundo, mas tenho a sensação de haver um peso significativo de filmes provenientes dos países de leste, daqueles que estavam para lá da Cortina de Ferro, uma equívoca metáfora, diga-se. O ferro tem a tendência irreprimível para se tornar em ferrugem e duvido que uma cortina ferrugenta fosse, efectivamente, uma cortina. Deixemos estas considerações sobre as metamorfoses dos materiais de lado. Por norma, não consumia o que passava naquelas sessões. Já não teria idade. Há um filme, uma animação curta, dos poucos que terei visto nesses programas, que nunca esqueci. Era um mundo habitado por duas espécies de seres. Uns eram construtores, passavam a vida a construir coisas. Os outros eram destruidores e ocupavam-se a destruir aquilo que os construtores construíam. Estes ficavam infelizes, talvez irados com a malevolência irritante daqueles que reduziam a pó o seu trabalho. A certa altura, porém, os destruidores tiveram uma epifania e converteram-se ao bem. Decidiram nunca mais destruir o trabalho dos outros. A princípio, os construtores ficaram felizes pela conversão. Com o passar do tempo as construções acumularam-se e o trabalho dos construtores tornou-se excessivo. A vida de construção perdeu sentido. Restava aos construtores rogarem aos destruidores que voltassem à acção. Qual a moral da história, perguntar-se-á. Como vivemos numa época onde o relativismo é o credo do dia, a única resposta sensata será dizer que cada um tire da história a moral que lhe aprouver. E se não lhe aprouver tirar alguma lição de tão metafórica história, então não tire. Como se vê, este narrador é muito liberal.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Bens que vêm do mal

Comece-se com uma máxima ao gosto popular. Há males que vêm por bem. Uma proposição que poderia entrar no debate filosófico-teológico sobre a existência de Deus. Os negadores da existência de Deus oferecem como prova central da sua posição a existência do mal. Se Deus é omnipotente, omnisciente e maximamente bom, então não pode haver mal. Contudo há mal no mundo. Daí se conclui que Deus não existe. Contudo, os afirmadores da existência de Deus, retrucam que a existência do mal é compatível com a existência de Deus. O mal que existe proporciona um bem ainda maior. A partir daqui a discussão centra-se em saber se existem ou não males gratuitos, isto é, males que não proporcionam qualquer bem. Os ateus afirmam a existência de males gratuitos. Os teístas negam-nos. A sabedoria dos portugueses está condensada na fórmula há males quem vêm por bem. Não se comprometem. Estão bem com Deus e o diabo. Os teístas lêem males como sendo todos os males, uma leitura possível, e afirmam a máxima prova a existência de Deus. Os ateus rejubilam e dizem claro que há males que vêm por bem, mas os outros males, aqueles que não vêm por bem? Esses provam que Deus não existe. Confesso, todavia, que quando escrevi a máxima não visava a questão da existência de Deus, foi uma coisa que me ocorreu e que desviou o rumo do pensamento. O mal a que eu me referia era a insónia desta noite. O bem, a leitura de 50 páginas, um quarto do romance, da obra de Joseph Roth, Direita e Esquerda. Não se pense que é um romance político. Até aqui praticamente nada de política. Talvez apareça, mas nessa altura calo-me. O romance é de uma ironia notável. Não daquela que leva à gargalhada, mas a que fomenta um sorriso leve, que oculta um grande prazer. Deveria estar mal-humorado com a insónia. Acordar às quatro e meia da manhã é um mal, mas não um mal absoluto ou sequer gratuito. O próprio humor se foi transformando e quando voltei a adormecer, a boa disposição – o bem – reinava no fundo da minha alma. E só esta palavra dava para iniciar uma outra discussão filosófico-teológica, mas vou continuar a ler o romance do Roth, para que de um bem não venha um mal.

domingo, 7 de janeiro de 2024

A única moralidade

Desde a madrugada de 27 de Dezembro que a Gripe A, primeiro, e as suas sequelas, depois, me fazem viver assombrado pelo espectro da incomodidade. O corpo sente-se inapto e o espírito, colaboracionista e fraco, submete-se aos delíquios de uma entidade física incapaz de mobilizar energia suficiente. A situação não é dramática, apenas incómoda, mas existe uma incompatibilidade entre a cultura reinante e a incomodidade. Tudo se organiza para que a vida seja cada vez mais confortável, mas a natureza nem sempre está pelos ajustes e envia os seus batalhões para semear o caos e reduzir a pó as nossas expectativas. Em tudo isto poderia existir uma lição moral, que nos alertaria para o mal que se esconde por detrás do néon da vida fácil e aconchegada. Sejamos espartanos, diz-nos essa moralidade. A vida deve ser rude, para que o corpo não ceda perante os inimigos, visíveis ou invisíveis. A verdade, todavia, é que nós descendemos de Atenas e não de Esparta. A vida não é milícia contínua. Não queremos saber de moralidades assentes na rudeza marcial. O que desejamos é um bom analgésico que tire as dores, um anti-inflamatório, caso alguma coisa se inflame, ou um médico que nos receite um antibiótico eficiente, se for necessário. A nossa vida moral depende do receituário, e essa é a única moralidade que existe em tudo isto.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Dia de Reis

Aqui nunca há filmes que se possam ver, ouvi. É verdade, respondi, mas está cá um bom filme. Ouvi a crítica na Antena 2. Vamos ver, acrescentei. Ora, o filme desapareceu de imediato de cartaz das salas de cinema desta pobre cidade, que se fosse elevada a vila seria uma grande promoção. Saiu com uma rapidez estonteante. Quando se foi por ele, já tinha partido. Também não admira, é um filme sobre Enzo Ferrari. A velocidade era o seu negócio e um filme sobre ele não é para gente retardatária ou serôdia. Comentei que seria mais interessante um filme sobre os Reis Magos. Chegaram com quase duas semanas de atraso, o que seria ideal para pessoas como nós, elucidei. Se Enzo Ferrari tivesse sido Rei Mago teria chegado três dias antes do nascimento e ainda teria contratado uma parteira e trocado o burro e a vaca por ar condicionado. Agora, vir de camelo não lembra a ninguém, mesmo que se venha carregado de ouro, incenso e mirra. Não fui ao cinema e tive pena, embora, confesso aqui, nunca fui, naqueles tempos em que as corridas de automóveis me incendiavam os ânimos, um adepto da Ferrari. Na Fórmula 1, era um fã de Jackie Stewart, o escocês voador, que correu, primeiro, pela Matra e, depois, pela Tyrrell. Nos Protótipos, preferia os Porsche aos Ferrari. Coisa de adolescente, não as preferências, mas os interesse automobilísticos. O Dia de Reis, por aqui, não regista qualquer ocorrência. Não se vêem camelos, nem reis, nem magos. Também é verdade que isto não é Belém, mas podia ser o caso de haver uma representação, um auto dos Reis Magos. A falta de iniciativa, todavia, tolhe o desenvolvimento cultural da população local. Entardece e a tarde desliza para o crepúsculo, uma palavra cheia de tonalidade românticas. Só faltam as ruínas, embora existam, mas não se vêem daqui.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Vita beata

Cheguei tarde a casa. Um dia ocupado. Sentado à secretária, vejo as notícias sobre o que se passa no mundo. Este é um lugar onde se passam muitas coisas, mas as notícias versam apenas sobre aquela parte que os seus autores imaginam ser mais fervilhante. Os noticiadores amam a ebulição, pois tudo que não esteja no estado de fervura não será digno de se notar. A ideia destes agentes do alvoroço, caso tenham alguma, será lançar água a ferver por tudo o que é sítio. Imagino que terão uma atracção infantil pelo vapor de água. Como se poderá lidar com toda esta excitação que, a todo o instante, é semeada? As soluções possíveis são antigas. Adere-se ao epicurismo e cultiva-se a ataraxia. Tranquilidade de ânimo, moderando os prazeres, para que a animosidade não tome conta do espírito e o precipite na ebulição das inquietudes e das preocupações. Outra solução é tornar-se um estóico e aspirar à apatheia para que em nós se dissolvam as paixões, essas patologias que nos arrastam para o rígido reino da dependência. O ideal seria deixar de lado as inquietações e apagar as paixões. Se todos se tornassem um misto de estóicos e epicuristas acabariam as notícias, a comunicação social deixaria de ter o que comunicar e a vida decorreria sem que acontecesse nada digno de nota. Será nesta ausência de coisas notáveis que residirá a felicidade, a verdadeira beatitude. Imagino-me na prática de uma vita beata. O pior é que nunca deixo de ir ver as notícias, talvez porque a inquietação ainda faz parte do lote que me coube, agora que as paixões entraram na fase de cinza. O que não faz de mim um virtuoso. As sextas-feiras, depois das festividades, recobraram o seu pleno sentido, como uma promessa nunca cumprida de abrirem o caminho para o jardim do Éden. Também não era suposto, pois há que beber o cálice até ao fim. Uma fatia de bolo rei, na sua versão feminina, vai saber-me bem.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Ponto de exclamação

Chove! Não sinto a chuva, nem a vejo. Ouço-a. É da audição que me deriva a certeza manifestada no ponto de exclamação. Este pobre sinal de pontuação tem má-fama. Coitado daquele que o usa em abundância. O melhor, murmura-se, é nem o usar. Cai mal andar por aí a enfatizar o discurso, a sublinhar admirações. Ninguém tem já autorização para se admirar seja do que for. Um pensamento débil exige a eliminação das exclamativas. Onde não há convicções, não há exclamações. Isto, todavia, é apenas uma parte da história. Digamos que ela se passa no mundo relativamente civilizado. Fora dele pululam pontos de exclamações. Nas redes sociais, por exemplo, o que mais se vê são pontos de exclamação. Não sublinham verdades nem admirações, tão pouco o espanto. Os pontos de exclamação, nesse território insalubre, vêm directamente da bílis, do fel. A quantidade de fel que se vem produzindo nos últimos tempos tem batido recordes. O excesso de produto leva a que ele apareça no mercado em forma de ponto de exclamação, até porque os habitantes dessas terras obscuras não conhecem o ponto de interrogação, e esse é o problema. Aquele que usa a interrogação está preparado para a exclamação, para a surpresa, para a admiração com aquilo que se manifesta perante os olhos interrogadores ou os ouvidos atentos. Como o cair da chuva nesta noite negra e fria.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Desconcerto ou desconserto

O ano já vai no seu terceiro dia e parece que nada mudou neste pequeno mundo a que por convenção chamamos Terra. Esta imutabilidade é, porém, apenas aparente, uma forma insidiosa de enganar o incauto que por ela se deixa encantar. Tente-se recuperar aquilo que se era às vinte e três horas do dia 31 de Dezembro passado, e ver-se-á que, afinal, esse ser já não existe. A cada instante deixamos de ser, mas iludidos pela memória não descobrimos nisso qualquer desconcerto. Prefiro desconcerto a desconserto. O primeiro tem um maior número de portais semânticos. O desconserto fica preso à ideia de desarranjo, enquanto o desconcerto se derrama por imensas possibilidades para além desse mesmo desarranjo. Desconcerto é desordem, dissonância, discórdia, entre outras significações que não vêm ao caso. O tempo desconcerta-nos, pois traz com ele a desordem que mina a nossa ordenação, oferece-nos a dissonância que nos obriga a partir em busca da consonância, impõe-nos a discórdia que fere os corações que sonham com a concórdia. A memória é, deste modo, uma tecedeira que tece um manto que esconde o desconcerto em que cada um vive. A própria Terra vive de desconcerto em desconcerto. A tudo falta a harmonia concertante. De resto, ninguém quer saber, pois a sabedoria é mercadoria perigosa para materiais tão frágeis. Eu também não quero saber. Basta-me a dor lombar ou, talvez de modo mais erudito, a lombalgia. Decidiu atacar-me nos últimos dias do ano e ainda não se retirou. Olho para ela e não sei se ela faz parte do meu desconserto ou do meu desconcerto. Terá por causa um desarranjo ou trata-se de uma dissonância no corpo ou uma discórdia entre partes do mesmo corpo que deixaram de cooperar e eliminaram das suas relações a consonância? À falta de melhor, vou meditar na causa da coisa.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Sentido

Está um dia frio. Ontem havia sol, o astro dardejava os seus humores sobre a Terra, sem que esta, talvez por ser o primeiro dia do ano, se defendesse. Hoje não é assim. O planeta armou uma muralha de nuvens cinzentas e os raios que a atravessam apresentam-se sem força nem brilho. Retorno à realidade, embora com pouca vontade. Aliás, protelo o mais que posso esse retorno, mas ele é inexorável. Se chovesse, haveria menos frio. Não chove e os terrenos vão secando. Janeiro nem sempre é um mês fácil. Os outros também não. As nuvens, reparo ao olhar os céus, viajam apressadas, impelidas por um vento ansioso. Na praceta, não há ninguém. Tudo se cobre de uma melancolia sem nome, de uma tristeza tocada pelas cores sombrias nascidas no fundo negro dos corações. Procuro o sentido para todas estas coisas, mas não lhe encontro sentido algum. Sentido e coisas serão incompatíveis e repelir-se-ão mutuamente. Dizer coisas é equivalente a dizer coisas sem sentido. Dizer sentido é negar as coisas. Como numa auto estrada, existe uma via apenas para as coisas e outra via só para o sentido. Se o mundo for o somatório das coisas, então o mundo é destituído de sentido. Se o sentido repousa apenas em si mesmo, então é sentido de coisa nenhuma. Deveria escrever como um dia escreveu António Ferro: Entretanto, este constante turismo ao meu espírito, através dos rails das minhas frases, há-de fazer-lhe bem… Que Mademoiselle Y me perdoe esta última impertinência… Só não o escrevo, porque me falta o espírito, as minhas frases não possuem rails, e não conheço nenhuma Mademoiselle Y, infelizmente. Se a conhecesse, jurar-lhe-ia que nunca teria ela de me perdoar qualquer impertinência. Seria para ela sempre pertinente, para que ela me agradecesse com desvelo a minha pertinência. Talvez pudéssemos passear pelos jardins despidos do Inverno e esperar que os nossos corpos se tocassem para enfrentarem a rispidez do frio, a falta de empenho do Sol em fazer chegar até aqui o radioso das suas mensagens. Depois, teria de decidir se ela, a Mademoiselle Y, tinha sentido ou seria apenas uma coisa. Aqui, porém, estou a entrar um campo minado e o mais sensato é evitar deflagrações.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Entardece

Um bando de crianças aterrou no parque infantil. Trazem o Ano Novo pendurado ao pescoço. Correm, gritam, chamam pelos pais ou são, por estes, chamadas. O sol está como a minha vontade, anémico. Um medicamento age sobre a rigidez do meu corpo e torna-me fraca a vontade. Ainda não saí de casa, o que me permite dizer que não vejo as ruas há um ano. Uma pilhéria fácil. Aliás, sou um narrador vergado ao peso das coisas fáceis, nado no mar da trivialidade. Penso no estado do mundo, mas, após longa ruminação, concluo que o mundo não tem qualquer estado, não é sujeito de seja o que for, tão pouco é substância em que possamos espetar uns pregos para pendurar o casaco da existência. Na televisão, alguém falava de uma secular tradição começada há vinte anos. Talvez, isto é uma conjectura, não exista tradição que não seja secular e aquelas que nasceram hoje, ao serem denominadas tradição, tornam-se de imediato seculares, o que anima bastante as pessoas. Estas adoram tradições e séculos. Logo, amam com desvario as tradições seculares. Um historiador, Hal Foster, diz numa entrevista que existe actualmente um problema entre os jovens intelectuais, que é o de terem as respostas quase antes de se formularem questões. Pensei sobre o assunto e fiquei aliviado. Não sendo nem jovem nem intelectual, não sou um jovem intelectual. Por isso, não tenho respostas e vivo rodeado de problemas. A uns trato como rosas; a outros, como cardos. Lido com cuidado com ambos, para evitar picadelas. O problema do tal medicamente é que ele não apenas me descontrai a rigidez de certos músculos e torna a vontade fraca, como me põe uma névoa dentro da cabeça, o que dificulta o contacto entre os neurónios e a transmissão da actividade nervosa, ficando, a actividade nervosa, engarrafada no interior de cada neurónio. Uma criança grita, parece ser mais uma birra, de que ela é contumaz. Entardece. É sempre tarde para qualquer coisa.