sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A gestão do dia

O dia nasceu sombrio, e eu hesito em avaliar o fenómeno. Vestiu-se de luto pelo meu último dia de férias? Decidiu poupar-me aos transtornos físicos – e metafísicos, já agora – da canícula? Sinto no centro do peito uma estranha opressão vinda do futuro, mas entretenho-me com a gestão do dia. Um amigo enviou-me um conto publicado pela mulher, vou lê-lo. Outra pergunta-me se quero ir jantar com eles, o clã familiar. O padre Lodovico quer saber quando vou a Lisboa. Uma transportadora deixa-me à porta uma encomenda com o triciclo que comprei para o meu neto. Anoto que, quando for à capital, não posso esquecer-me de levar os hoverboards das netas. Continuo com a minha investigação sobre quem terá sido o T. Noronha que escreveu Volupia que Salva. Graças ao cruzamento dos catálogos de duas bibliotecas municipais cheguei a uma tese verosímil. Trata-se de D. Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias com o título De capa e Batina sobre a estúrdia coimbrã do seu tempo. O fidalgo cursou letras e, depois, teologia, tendo-se formado em ambas. Para teólogo não estava mal. Consta que, juntamente com um tal Pad-Zé e um Vicente Arnoso, foi um dos grandes animadores, em Coimbra, da boémia estudantil. Também escreveu, entre outras coisas sem relevo, um livro de versos com o título Tempos Perdidos. Talvez um sinal de arrependimento. Acabados os cursos foi para o Oriente, para exercer como professor de inglês e alemão no Liceu Nova Goa. A fidalguia já andava, naqueles tempos, pelas ruas da amargura. Na biografia que descobri – um texto hagiográfico da personagem – não consta a referência ao romance que narra os amores de Octavia e Valeria, mas verifiquei que é publicado pela mesma editora – a J. Rodrigues & Cª, sediada no 186 da Rua do Ouro, em Lisboa – que dá à estampa, como se dizia, as tais memórias de estudante. Posso ainda informar que em 1906, ao voltar das Índias, foi recebido e louvado pelo rei D. Carlos e pela rainha D. Amélia, devido a uma iniciativa sobre a Assistência Escolar aos indígenas (a palavra não é minha). Uma coisa é certa, contínuo a ser um repositório de informações inúteis, mas a verdade é que, com a idade, a fronteira entre o útil e o inútil se diluiu. Vou fechar as persianas que o sol voltou a ameaçar.

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