Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma
coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma
pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos
próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio,
sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta
para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter
sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será
agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim
que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui
tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para
a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me
fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me
sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer
a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos
destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas,
que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do
exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma
construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois
montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à
altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me
à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola
é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O
problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia.
Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar.
Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos
alunos.
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