As férias não deixam de ser um tempo de encontros
inusitados. Passeava eu, como um animal perdido, fora do meu habitat
natural, quando oiço uma voz a chamar-me e a perguntar-me se não me lembrava
dela. Claro que lembro, como poderia esquecer, retorqui. Não nos vemos desde
quando, perguntou. Não sei, há mais de trinta e cinco anos, por certo. Perguntei-lhe
o que lhe acontecera. Quando acabámos a faculdade, saí para o estrangeiro e
instalei-me por lá. Um exílio, disse eu. Não propriamente. Tornei-me pintora e
esqueci o que aprendera naqueles anos, disse e riu-se. Confessei que não sabia.
Contou-me o acidente, como lhe chama, disse-me as colecções onde estava
representada, mostrou-me fotos de quadros seus. Como sabes, disse-me, a beleza
e a harmonia pouco interesse têm. Ou talvez não seja assim, disse. A arte, o
artista tem de rasgar o véu ilusório que os olhos apreendem como beleza e
mergulhar no horrível. O horrível é uma camada da realidade muito densa e
funda, diz-me ela enquanto acende um cigarro, mas não posso evitá-la. Não pinto
para decorar salas, pinto à procura da verdade, os olhos brilham-lhe. Não digo
que os meus quadros sejam a verdade, são apenas ensaios em busca da verdade. É
preciso descer mais fundo, atravessar a camada horrível e tentar chegar ao
outro lado. E o que esperas encontrar, perguntei. Não sei, sou apenas pintora,
a filosofia não me interessa. Talvez encontre a beleza, a verdadeira beleza,
mas não sei sequer se existe uma beleza verdadeira e outra falsa, talvez só exista
o que está aquém do horrível. Fiquei a pensar no tempo em que nos demos e
naquilo que o tempo lhe tinha feito, mas não tocámos nessas memórias. Falámos
de famílias, de exposições, comparámos países e oportunidades e combinámos um
novo encontro, que ambos sabemos que nunca irá acontecer. Agosto começa a
escorregar pela folha do calendário. Vejo nuvens no céu e dois cães ladram
quando passo por eles, como se eu fosse o horrível que eles têm de atravessar.
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