Desde que amistosos e laudatórios, escritos sobre o passado
têm a fortuna assegurada, dizia-me ontem um amigo que se exilou do mundo num
lugar recôndito deste país. Ninguém gosta de ver as pústulas do que passou nem
olhar para as horas em que as chagas lhe arderam. Celebram o carrossel onde
andaram, mas esquecem as patifarias que aí mesmo foram alvo. O Álvaro de Campos
é que os conhecia de ginjeira, acrescentou, enquanto soprava o fumo de mais uma
cigarrilha. Depois soletrou não sem ironia: Nunca conheci quem tivesse
levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Somos
todos campeões de tudo, acrescentou, mas eu exilei-me derrotado e cansado. Não
tenho paciência para toda esta gente e cultivo um afastamento profiláctico da
humanidade, muito antes de haver pandemia, pois a nossa sociedade já sofria uma
pandemia muito mais generalizada e, na verdade, muito mais grave. A estupidez
estrutural, continuou o meu amigo, está enraizado e vamo-nos todos enterrar num
lodaçal de idiotice, só porque se acha graça a coisas estúpidas. O que vale,
continuou, é que a amanhã é feriado, mas ninguém faz ideia por que razão. Lamentarão
que tenha calhado num fim-de-semana e é tudo. Isto foi ontem, quando o visitei.
Hoje, porém, é sábado e feriado, e nas ruas não deixo de avistar todos os
grandes campeões da vida que nos hão-de precipitar na pior das derrotas,
pensei, mas logo me distraí ao avistar a mulher que, na esplanada, olha o
horizonte. Há nela uma derrota inscrita na solidão, como se ela, tão dotada
para todas as vitórias, tomasse a decisão de se entregar à mais vil das
derrotas e, como recurso para se manter viva, usasse a linha do horizonte para
repousar os seus olhos e o mistério que se esconde dentro deles. Hoje
celebra-se a assunção da Virgem ou, noutras paragens, a sua dormição, mas isso
é um assunto que já não dirá respeito a ninguém.
Sem comentários:
Enviar um comentário