É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou
esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade
que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que
pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril.
Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me
a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo
o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental,
personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos,
famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e
sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele
não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da
sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim
como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos.
Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas
Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século
XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido
no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga
claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação
da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo
do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que
começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e
se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do
homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como
naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os
outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas
talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas
não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na
jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão
morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda
haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo
de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi
isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador,
com os seus amigos mais próximos.
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