O sol brilha estrangulado por um cordão de nuvens, deixando
cair fiapos de calor sobre o lençol encardido do mundo, depois o cordão
adensa-se, o sol sem ar para respirar esconde-se e um vento suave toca a ramagem
dos arbustos. Nos vasos, aspidistras, buganvílias e costelas-de-adão reclamam
água, enquanto se ouve o troar gorgolejante e contínuo dos corta-relvas. Nas
ruas, transeuntes descuidados passam vagarosos e os poucos carros seguem em
velocidade moderada, como se toda a azáfama tivesse sido suspensa pela sombra
que Agosto projecta no calendário. Podia ficar horas e horas a descrever o mundo, mas depois recordei-me que, durante a noite, acordei e, insone, retomei a
leitura de um romance de Thomas Bernhard. Há nele uma enorme capacidade para
descrever o mundo humano, um mundo perturbante que se esconde na Estíria, gente
de uma humanidade rude, violenta, imoral. O leitor do sul da Europa, habituado
ao destrato que o Norte tem por hábito fazer dele, descobre-se, não sem espanto,
como superiormente civilizado. Não é impunemente que se é herdeiro dos romanos –
pensa-se, então – e que se vive em terras onde as vides crescem para
transbordar em vinhos quentes, complexos, vinhos que mobilizam exércitos de metáforas
e sinestesias para serem descritos, ou, melhor, para que deles nos possamos
aproximar através da linguagem, depois da visão, do odor e do sabor se terem
confrontados com sensações para as quais a língua ainda não encontrou o som
exacto. Houve uma altura que Bernhard proibiu a publicação dos seus livros na
Áustria natal, tão insuportáveis lhe pareciam os austríacos. Os pinheiros que
avisto daqui, pinheiros mansos, abobadados, mostram as folhas novas num tom
verde tocado ao de leve pelo amarelo, enquanto na ramagem mais velha o verde das
agulhas é inundado pela cinza, que as escurece, como se prenunciasse o luto
pela sua futura transformação em caruma, hoje em dia inútil. No livro de
Bernhard, o príncipe de Sarau enche páginas e páginas com a descrição da
primeira entrevista que faz aos candidatos para um cargo relevante na sua
imensa propriedade, um homem sem capacidade para o trabalho, um homem enfermiço
e que nada sabe dos assuntos que teria de tratar. A escrita é de tal maneira
envolvente que me prolongou a insónia por mais tempo que devia. Eolo recolheu,
com o seu sopro, o cordão de nuvens e o sol brilha sobre o arvoredo. Um pássaro
poisa no ramo de um cedro e deixa-se baloiçar, e tudo é tomado pelo silêncio,
como se o mundo tivesse emudecido, ou talvez seja eu que esteja a ficar surdo.
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