O meu idílio com a balança não apenas se mantém, como se
intensifica. Hoje, primeiro dia pós-férias, confidenciou-me que eu tinha menos
dois quilos do que antes de as começar. Olhei-a embevecido, jurei-lhe amor
eterno, que teria sempre muito cuidado quando a pisasse. Enquanto me desfazia
nesta conversa pateta, como o são todas as conversas de amor, pensava com alívio
que iria evitar o olhar reprovador do médico, o qual, como todos os médicos,
fazem da saúde do paciente um exercício de virtude moral, à qual, muitos deles,
se julgam no dever de se furtar. Hoje a empresa de jardinagem que tem por
hábito, aos sábados de manhã, vir cortar a relva nas pracetas circundantes
esqueceu-se da sua cruzada contra a preguiça e a eventual lascívia matinal dos
moradores. Foi, porém, substituída por um cão da vizinhança que, talvez
espantado por não ouvir os corta-relvas, decidiu ladrar até me acordar. A isto
se resume a vida de um provinciano, pensei. Pendências com médicos, férias
acabadas, preocupações com barulhos vindos do exterior. O que me está a valer é
o romance do Tomás de Noronha, passado na capital, que ainda era do Império, em
ambientes sublimes, onde há condessas e marquesas. Fiquei rendido quando, ao
referir-se à técnica de selecção social de uma certa marquesa, escreveu: Quem
lhe orientava o protocolo era a sua filha, uma trintona nevrotica,
destrambelhada, que sabia como ninguém disfarçar o estonteante desejo de se
franquear sob a apparencia artificial de ser dificil. Basta o estonteante
desejo de se franquear para que a leitura não seja pura perda. Se o tempo
fosse feminino, pensei então e sem ligação com o que pensara antes, seria uma
górgona, que avançaria com o seu olhar petrificante e a cabeça envolta em serpentes.
Sendo masculino, dá-se aparências menos teatrais, e em vez de nos transformar
em pedra, desfaz-nos e às nossas vis pretensões em pó. A manhã vai alta,
calo-me, para que o alarme de um carro possa ecoar no fundo do meu ser.
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