sexta-feira, 21 de agosto de 2020

De volta ao habitat natural

Retornei ao meu habitat natural. A cidade parece estar exactamente como a deixei. O calor, de momento, não será tão avassalador, os carros deslizam na Sá Carneiro como antes da pandemia e, nos passeios, os transeuntes, com ou sem máscara, procuram as sombras que as copas das árvores projectam no chão. Há em tudo isto uma reminiscência mourisca, pensei, uma espécie de pertença climática àquele mundo que se inicia no norte de África. O computador informa-me que o adobe acrobat reader foi actualizado com êxito, eu fico agradecido pela melhoria do programa, mas não consigo evitar um ataque surdo de inveja. Também eu poderia ser actualizado com êxito, mas não. Cada actualização que sofro é para pior e quanto mais êxito elas têm pior fico. O hardware está caduco, um modelo descontinuado há muito, sopra-me alguém que vive dentro de mim e que tem por hábito dar opiniões que ninguém lhe pediu. Hoje não fui à esplanada perto do mar ler o jornal, a mulher que em silêncio olhava o horizonte desapareceu para sempre, resta-me pôr a vida nos carris onde estava antes de ter saído daqui. Leio que se está perante uma aceleração do tempo histórico. Talvez esteja já em excesso de velocidade e seria justo que a História fosse multada, por não respeitar as regras de trânsito. As cevadilhas da escola ao lado continuam a florir, as acácias da praceta estão pujantes, vestidas de verde escuro, e o parque infantil permanece interdito às crianças. Tudo isto enquanto a história acelera e o meu hardware obsoleto é incapaz de receber um programa que o actualize e rejuvenesça. Hoje ainda não avistei nenhum dos anjos que moram nos telhados da rua onde entardeço.

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