As coisas são o que são e há que ser condescendente até, ou principalmente, consigo mesmo. Eu sei que estes dias não têm sido fáceis, tal a azáfama que se intrometeu na minha pacata existência quando Maio começou a declinar. Quando vêm limpar o escritório eu tenho um inevitável tique pequeno-burguês – como disse no começo, as coisas são o que são – de ter a secretária arrumada, o que por certo permitirá manobras de higiene executadas não só com mais precisão mas também com mais facilidade. Dito de outro modo, sou um facilitador. Impulsionado por este sentimento, arrumei dois livros que estava a ler. Procuro-os há mais de 24 horas e não faço a mínima ideia onde os coloquei. Eu sei que sempre posso colocar anúncios e até oferecer recompensas, e agradeço antecipadamente a todos os que me iriam sugerir tal expediente, mas há um pequeno problema. Não só não sei onde coloquei os livros, como não me lembro dos títulos e dos autores. Sei que são dois, que um é um romance e o outro talvez seja um livro de ensaios, mas não faço ideia o que se ensaiava por lá. Lentamente, lá me há-de vir à memória o conteúdo, depois os títulos e os autores. Por fim, hei-de descobri-los no sítio mais óbvio onde os poderia colocar. Tenho de ter uma infinita paciência.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
domingo, 19 de maio de 2019
A lado nenhum
O domingo cheira como uma grande hesitação escondida num
caminho da floresta. Na encruzilhada, nunca se sabe que senda seguir. O
desconchavo destas frases e a sua falta de textura lógica – e aqui também eu,
como o domingo, hesito, sem saber se poderei associar uma textura com a ideia
de lógica – deixam-me infeliz. Nunca é motivo de júbilo a constatação do vazio
que nos habita e, quando, como é o meu caso, se é levado, por um qualquer
impulso soprado pelas forças do mal, a escrever palavras atrás de palavras,
estas sejam destituídas de nexo, coloridas de inutilidade, maculadas de
esquecimento. À minha frente, tenho a nova edição revista da Ilíada, na
tradução de Frederico Lourenço. Abro-a ao acaso e leio: Caminharam ao longo da praia do mar marulhante, / rezando muito ao
Sacudidor da Terra, que a segura, / para que facilmente persuadissem o grande
espírito Eácida. E eu de imediato vejo a delegação, capitaneada pelo divino
Odisseu, a pisar as areias e oiço o bruaá do mar e a oração dos homens, como se
tudo ganhasse vida na abstracção das palavras, mesmo se traidoras, por
estrangeiras, do pensamento que as eleva. Fecho a Ilíada e contento-me com os
caminhos da florestas, caminhos esses, como se sabe, não levem a lado nenhum,
que é também o sítio para onde me dirijo.
sexta-feira, 17 de maio de 2019
Dias aziagos
Que estupor, exclamei de súbito. Referia-me a mim, mas não
se pense que me acho particularmente malcomportado ou falho de senso moral. Não
sou, porém (que prazer as adversativas), bom juiz em causa própria. Estupor não
no sentido do que sou mas no de estado em que me encontro. Em estado de
estupor. Estamos no âmbito da patologia e, logo, da medicina. Sentado e imóvel,
como se tivesse suspendido toda a actividade física e psicológica. Um zombie,
para atalhar razões. Foi assim que cheguei à tarde de sexta-feira e nem a
iminência do fim-de-semana parece oferecer um colírio para me retirar da
suspensão em que me arrasto. Como em tudo o que escrevo há uma inclinação para
a hipérbole e o melhor é franzir o cenho e duvidar do que digo. Acabei de
receber um telefonema a confirmar se eu mantinha a inscrição numa acção de
formação. Respondi que sim, claro. Não há nada como formações para nos
modernizarem. Se fosse uma consulta no dentista talvez aproveitasse a ocasião
para me escapulir, sendo uma oportunidade de ser amodernado não vejo como optar
pela fuga. Depois veio-me ao pensamento o quão bom e glorioso é viver numa
sociedade que trabalha arduamente para transformar um cansado e estuporado
conservador no mais rutilante dos inovadores. São aziagas as sextas-feiras,
diziam os antigos. Eles lá o sabiam.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
O crepúsculo dos ídolos
Passo, não sem fastio e longos bocejos, os olhos pela
imprensa. Há um tal grau de exaltação que parece estarmos em pleno crepúsculo
dos ídolos. Tudo o que acontece é enfadonho e, como sempre, repetitivo. Durante
muito tempo gastaram-se toneladas de incenso em louvor de cada candidato a
bezerro de ouro surgido nem o diabo sabe de onde. Os incensados adoravam o
cheiro e pavoneavam-se diante da turbamulta extasiada. Enquanto os turíbulos rodopiavam
nas mãos de diáconos zelosos, os bezerros mugiam e tratavam da vida, ruminando
a erva que os dourava. Agora, parece que há por aí uma legião de amantes
traídos, todos dispostos à comédia italiana. O que vale é que o decoro nunca foi
uma virtude pátria. O melhor é abandonar esta conversa e falar do tempo. Não há
nada como dissertar sobre o tempo quando, como é o meu caso, não se tem nada
para dizer e se sofre de uma imaginação amputada. A tarde esvai-se triste e
insegura, levada pelas investidas do vento. Espera-me o jantar.
quarta-feira, 15 de maio de 2019
Coisas do destino
Sento-me à secretária e sou confrontado com as imensas
coisas por acabar. Na escola ao fundo da rua, prepara-se o final do ano
lectivo. O grupo musical ensaia músicas dignas dos bailes, matinées e chás
dançantes de há umas décadas. Não deixo de ficar embevecido com a obstinação
das coisas no tempo. Talvez fosse isso que Dali quis pintar em A Persistência da Memória. Os dias estão
quentes, mas anuncia-se uma descida acentuada da temperatura. E eu acredito no
prognóstico. Sinto desde ontem as velhas dores que chegam com a mudança do
tempo. Deveria ter ido para ajudante de meteorologista, penso. Uns adivinham o
destino pela conjugação dos astros e eu adivinharia o tempo pelas metamorfoses
do corpo. Haveria ofícios piores e menos dignos. Maio já cumpriu metade da sua
corveia. Não tarda, faz as malas e vai jornadear para o obscuro buraco de onde
regressa todos anos. A música calou-se, mas os pássaros meus vizinhos, talvez
levados por um estranho mimetismo, trilam em arroubos cujo significado será
melhor não decifrar. Há que preservar os bons costumes.
domingo, 12 de maio de 2019
Restos de colecção
Vejo flutuar nos ares aquele algodão que se desprende do arvoredo e penso que o tempo é propício para alergias. Ao escrever isto afundo-me na consciência da minha inaptidão, no vergonhoso recurso a metáforas e generalidades por incapacidade, devido a uma ignorância contumaz, de designar os objectos deste mundo. A verdade é que o algodão não é algodão e o arvoredo é composto por múltiplas árvores cujo nome nunca consegui conservar na triste memória. O que me vale é que não sou dado a alergias, murmuro, enquanto me recordo dos dias em que, na avenida marginal pejada de algodão, lançávamos fogo a essa penugem esbranquiçada e ficávamos a ver corredores de chamas entre as lajes irregulares que cobriam a terra, que, depois de cintilarem por instantes, morriam exaustas. Nesses tempos, um dos quiosques da avenida tinha um serviço de aluguer de barcos a remos. As pessoas davam curtos passeios pelo rio, aventuravam-se por baixo da ponte e os domingos de então passavam tão calmos como os de hoje. Julgo que não há algodão para incendiar nem barcos no rio. A nódoa do declínio nunca deixa de habitar aquilo que é grandioso.
sábado, 11 de maio de 2019
O declínio da Primavera
A cidade começa a aquecer, mas as ruas ainda não ostentam o vazio dos grandes dias de calor. Por elas vão viandantes solitários, pequenos grupos a quem um destino aguarda, cães há muito esquecidos do lobo que houve neles. Também eu circulo por ali, o carro a ronronar – pois o que há-de fazer, num escrito como este, um carro senão ronronar? –, o coração desvalido pelas ruínas em que a memória se transformou, o pensamento vacilante perante a auréola de fogo que espreita dos céus. Na avenida, sob o olhar circunspecto do castelo, os castanheiros em flor mostram uma exuberância que a cidade não justifica. Paro no semáforo. Como sempre, a Antena 2 perde o sinal, e, como sempre, irrito-me, mas logo me apaziguo reconciliado com a imperfeição da técnica e a finitude dos recursos. Os sábados na província exigem uma grande perícia ao manobrar os elementos. A reminiscência dos tempos da lavoura ainda os segura, puxando-os para o passado, grudando-os à terra. Um pássaro perdido passa rente à minha sombra e eu admiro-lhe o voo rasante. As paredes começam a sangrar em silêncio esquecidas da estridência das grandes chuvas que lhes acalmaram a dor. Tudo se inclina para o Estio, como se não houvesse sobre a Terra um mistério para nos atormentar a alma.
sexta-feira, 10 de maio de 2019
O mês de Maio
Leio que as máximas se preparam para chegar aos 37 graus e estremeço. A culpa – culpa e não causa – é, segundo sou informado, de um anticiclone. Vivemos num país de impunidades globais. Por maior que seja a devastação, nem o anticiclone há-de ser castigado. Num dos livros da escola primária, talvez o da primeira classe, havia uma lição laudatória do mês de Maio. Associava-o aos lírios, se a memória não me falha, e à Virgem Maria. Hoje fico espantado com a inocência que me levava a crer na bondade de tão insidiosa folha do calendário. Nela, o Verão experimenta as garras com que há-de devastar a terra e crestar esperanças e vontades, afia o punhal que me há-de derrotar. As escolas aqui à volta parecem casas assombradas, povoadas apenas por terríveis espectros, habitantes do silêncio e da névoa. Tamborilo o tampo da secretária, mas não oiço o mais leve rufar. Também eu sou um fantasma, uma assombração perdida numa floresta de símbolos, um espírito incongruente que se passeia por aí envolto no lençol da sua inutilidade.
quinta-feira, 9 de maio de 2019
Ortografias
Comprei há dias um romance de 1926, Volupia que salva, de um autor de que nunca ouvira falar, Tomás de
Noronha, que assina modestamente por T. Noronha. O exemplar pertence à segunda
edição, presumo, referida como 2.º milhar. No fim do livro, consta a informação
que este se acabara de imprimir no ominoso dia 28 de Maio de 1926. O mundo está
cheio de coincidências, pensei. Na rua tremula uma chuva fina, delicada, que
parece aspergida para não ferir os mortais que vivem sobre a terra. Folheio o
livro e vejo nele um sabor arcaico, um gesto de resistência ao passar do tempo,
uma fidelidade à tradição. E não sabendo nada dele já me sinto disposto a reverenciá-lo.
Não passo de um preconceituoso. A ortografia é a anterior à republicana simplificação
de 1911. Não é pouco o prazer de observar a elegância do ele geminado em n’aquelles, ou o insidioso agá que se
deixa ficar na sua mudez enquanto emana uma
última exhalação. E o que dizer do
lúbrico ípsilon mancomunado com o parzinho indiscreto tê e agá no fulgor de uma
hypothese? Tudo isto sem esquecer
esse sempre emocionante encontro gráfico entre o passivo pê e o sempre volúvel
agá com que a divina Aphrodite nos
abençoa. O que há-de pensar uma pessoa, se está chover e a imaginação não lhe
dá para mais?
quarta-feira, 8 de maio de 2019
Falta de assunto
Pontes não passam de promessas de vitória sobre armadilhas que a natureza decidiu pôr no caminho dos homens. Com elas, é verdade, enganamo-la
e esquecemos que as nossas vitórias, todas elas, são transitórias. Ocorreu-me
que deveria evitar a tentação da ênfase, mas ninguém é perfeito. Numa qualquer
margem estará a derrota que nos espera. Era nisto que há pouco pensava quando
atravessei uma velha e pequena ponte de madeira que liga a esconsa Rua de Trás
os Muros ao jardim da avenida. Há tanto tempo que não passava ali que a tinha
esquecido. Enquanto pisava a madeira periclitante olhava as águas do rio e
achei-as iguais às que por ali corriam há trinta ou quarenta anos. Talvez
Heraclito estivesse errado. Talvez os meus olhos me enganassem. Chegado a casa,
na caixa do correio, esperava-me um livro que, num impulso de nostalgia,
comprei. Há muitos, muitos anos vi um filme, não sem prazer, com o inusitado
nome Um Táxi Cor de Malva. Descobri
que a Bertrand traduzira o romance que o originara e não hesitei em correr o
risco de me decepcionar. Na província, há poucas coisas para pensar. Ou então nunca
me ocorrem.
terça-feira, 7 de maio de 2019
Concordância
A luz, dócil e temerosa, reclina-se suavemente sobre o asfalto. Pequenos lençóis de água reverberam, enquanto o vento sacode o dorso das persianas, repercute nas frinchas e um tamborilar contínuo toma-me de assalto os ouvidos, prende a atenção e inclina-me para o estranho código Morse que assobia na janela e espera um decifrador, o áugure que saiba ler os segredos da ventania e os prognósticos dos deuses. O dia resvala vagaroso, toldado pela poeira das nuvens. Uma mulher arrasta um saco e entra na lavandaria. O café ao lado está vazio. Um gato caminho furtivo pela praceta. Pára e especado olha para algo que só ele vê. Também eu, se fosse um gato, ficaria a olhar para alguma coisa que só eu visse. Assim, olho para o que toda a gente vê e sigo caminho. Não me foi dado o dom da profecia nem a graça da erudição. Olho as ruas, encolho os ombros e rio-me sem causa nem motivo. És o maluquinho da aldeia, diz-me a consciência infiel. Não deixo de concordar.
segunda-feira, 6 de maio de 2019
As velhas ideias
Envelhecer é tomar como virtude algumas idiossincrasias viciosas, pensei enquanto, de estante em estante, ia vendo os livros numa livraria. De há uns anos para cá aproximo-me dos livros através dos símbolos das editoras. Basta ver um certo símbolo que nem olho para o que está na lombada. Apenas dois símbolos editoriais me obrigam sempre a ler autor e título, os da Relógio d’Água e da Cavalo de Ferro. Hoje, porém, comprei um livro da Quetzal. Breviário Mediterrânico, de Predrag Matvejevitch. Um livro de viagens e logo eu que, ao contrário das pessoas normais, sou pouco amante de viajar. Penso-me como turista e logo me desfalece o ânimo. Já cheguei a desistir de viagens com os bilhetes de avião comprados e perder o dinheiro. Uma outra idiossincrasia viciosa. Para mim, porém, é uma virtude. Sou mais dado à imobilidade, embora alguma literatura de viagens comece a interessar-me. Numa das badanas do livro estão citados uns versos de D. H. Lawrence. Começam assim: Ah, quando um homem escapa ao novelo do arame farpado / das suas próprias ideias… E fico a meditar nestas palavras. Há uma luminosidade difusa que se desprende da cinza nublosa do céu. Se me libertasse das minhas próprias ideias talvez me tornasse um viajante incansável. Logo o coração sussurra que não há nada melhor que as nossas velhas ideias.
domingo, 5 de maio de 2019
Latir ao vento
Aqui perto, um cão não pára de ladrar. Parece irritado com o mundo e expele a animosidade em forma de latidos, um pouco agudos para tanto agastamento, os quais vai modulando conforme as ondas anímicas vão e vêm. Por vezes, parece que se vai calar, mas logo retorna, agitando na voz a bandeira do seu descontentamento. Penso no que tenho para fazer hoje e traço na página branca do caderno da memória o rol das tarefas, compartidas entre deveres e prazeres, se é que os últimos não são também um dever. Uma mulher, macerada pela idade, caminha hesitante, passo pequeno e trémulo, e aproveita as sombras viscosas que as tílias projectam para se defender da inclemência do sol. Perscruto o horizonte e aspiro o ar já morno da manhã. O mundo é o palco de uma grande comédia, medito enquanto deixo os olhos serem invadidos pela luz bruxuleante da paisagem. Também eu faço parte da comédia e desato numa gargalhada, rindo-me de mim próprio e da persistência inquebrantável do cão que, aqui perto, não pára de ladrar. Se ele não se cala, não tarda começo também eu a latir ao vento.
sábado, 4 de maio de 2019
Paixões
Quando me levantei espreitei com demora pela janela. Procurava indícios de paixões desencabrestadas que, ouvi dizer, há por aí. A serra, ao longe, mantinha-se imóvel e secreta. A praceta, ali em baixo, estava vazia. Apenas o vento murmurava na ramagem das árvores e Deus dormia descansado por detrás da nuvem que, perdida na campina azul do céu, era sinal de um outro mundo perdido neste. Afinal o cabresto não foi retirado e as paixões deslizam cansadas pelas ruas, ajoujadas à misericórdia da sensatez. Olhei para os telhados dos prédios e pensei nos tempos em que havia anjos. Que óptimo lugar para eles seria o topo destes prédios. Dali vigiariam as tontices humanas e, em caso de desespero, com um voo súbito salvariam da perdição alguém a quem a desgraça atormentasse a alma. Hoje, porém, é sábado e passou o tempo em que até eu via anjos nas ruas.
sexta-feira, 3 de maio de 2019
Algoritmos
Um rapaz e uma rapariga cingem-se, olham-se, apertam-se, como se os habitasse uma ânsia nunca saciável. Se houvesse um algoritmo para resolver os dramas da carne, talvez a matemática fosse mais apreciada, ou talvez não. São pensamentos destes, sem tino nem nexo, que me ocorrem nas tardes de sexta-feira. Será que o pensamento entra em fim-de-semana e só lhe ocorre o que é insensato? Olho para o arvoredo batido pelo sol e pergunto-me o que seria da carne sem os seus dramas. Lembro-me dos tempos em que, no confessionário, o padre de serviço escarafunchava no pecado da carne. Depois, veio o sacerdócio da libertação do corpo e eu não sei o que aconteceu aos escarafunchadores. Na avenida, um jeep cinzento passa devagar, enquanto o condutor deixa, negligente, o braço fora da janela. Uma mulher entra apressada num carro, fecha a porta não sem precipitação e logo se afasta levada por uma qualquer urgência. Sem respeito pelas urgências da humanidade, a ideia de algoritmo volta a assediar-me. O ideal seria haver um algoritmo para cada problema humano. Assim podíamos dormir descansados pela eternidade fora.
quinta-feira, 2 de maio de 2019
Excessos
Passei agora os olhos por umas largas dezenas de livros que estão em leilão online. Enquanto deixo deslizar o olhar pelas imagens das capas, uma sensação angustiante nasce em mim. Muitos daqueles livros foram cobiçados por leitores informados. Outros foram vãs tentativas de ascender ao Olimpo da escrita. Agora não são mais que mercadoria que alimenta nostalgias e lembra decepções. Maio nunca é um mês fácil. A luz cai de garras afiadas sobre a paisagem, reverbera e sustém os ataques plenos de ardis da noite. A cada dia que passa aumenta o território luminoso. O calendário trará a vingança, penso então. Sob o foco dos meus olhos, um casal passeia de mão dada. Agarram a mão um do outro como se temessem que o amor fugisse. Caminham inocentes não suspeitando que alguém os observa e lhes perscruta o destino no voo das aves ou no ondular suave da folhagem. Volto ao leilão e leio “Que alguém me queira por cinco minutos!”, e não sei como qualificar o pedido formulado sob a forma de imperativo. A humanidade tem sempre uma estranha tendência para o excesso.
quarta-feira, 1 de maio de 2019
Maio
Maio chegou envolto num manto tecido pela Primavera. Olhei para a construção da frase e logo senti uma enorme tristeza. Quem quer saber destas leviandades semânticas? Fui almoçar junto ao Tejo. Via o rio correr sem pressa, as águas azul cinza empurradas por um vento ligeiro que vinha de leste. Tocava-o uma mágoa que quase exigia que se chorasse por aquela dor tão exposta à luz vibrante do início da tarde. Da margem norte, um pato levantou voo e poisou num canavial da outra margem. Depois, voltou para a casa da partida. No voo da ave, descobri mais sabedoria que em muitos dos livros que li. O que será a vida mais que esse ir e voltar, sob o céu azul do primeiro dia de Maio?
domingo, 21 de abril de 2019
Memória
Banhada em serenidade, a manhã corre vagarosa para o meio-dia. A luz do sol faz-me lembrar Páscoas longínquas, com almoços ao ar livre sob uma latada, se o tempo, como hoje, estava quente. Naqueles dias, de tão novo, não sabia que tudo era efémero e que aqueles instantes, apesar da alegre exuberância que os habitava, estavam tocados pelo punhal de vidro da morte. Guardo-os no porão da memória, para os usar uma vez por outra como consolação pelas perdas que os anos me fizeram acumular. Daqui a pouco a casa fervilhará. Filhos e netos acumularão as suas memórias para as usar um dia quando eu já não estiver entre eles. E nisto vejo não uma maldição mas o exercício misericordioso de uma justiça nascida no começo dos tempos.
sábado, 20 de abril de 2019
Afazeres de sábado
O sábado de Aleluia chegou envolto numa túnica primaveril. O tempo cansado dos farrapos invernosos despiu-se, atirou os andrajos para o lixo e exibe-se, agora, perante os olhos dos mortais como se fosse um príncipe à procura do trono. Ah que analogia, murmurei para mim mesmo, enquanto, numa pequena venda de bairro que já foi o meu, escolhia morangos, rodeado de gente em busca irrequieta daquilo que lhe falta para o almoço de amanhã. Vivemos em tempo republicano, acudiu-me ao espírito, e não há lugar, nem que seja para esse cruel e volúvel tirano que é o tempo, para pretensões monárquicas. E enquanto estas ideias destrambelhadas me invadiam a mente, lá ia pegando em molhos de grelos, que também eles fazem falta para o almoço de Páscoa. Quando saí, a meditação climática desvaneceu-se. O sol brilhava, ameaçava já um dia de Junho. Entrei para o carro e vim para casa. A cidade ardia lentamente perdida num sonho, esquecida de si, como se nem a Primavera tivesse já o poder de a revigorar.
sexta-feira, 19 de abril de 2019
Feriado
Passo os olhos pela comunicação social e bocejo. Não, não fui vítima de uma noite mal dormida. Confrange-me, apenas, o desfilar de tantas novidades que já habitam no sótão do meu esquecimento. Hoje é Sexta-Feira Santa, mas ninguém parece compungido. Nasci num mundo onde havia tempo e lugar para o sacrifício e a compunção. Vou morrer num outro mundo onde só há lugar para o prazer e tempo para a diversão. Espreito as muralhas do castelo. Parecem grandes lençóis abandonados a corar ao sol minguado do dia. Na avenida, os transeuntes caminham devagar, sem afazeres que os esperem. Procuram o seu pedaço de prazer, não vá ele esgotar-se devido a alguma greve na distribuição. Hoje é feriado e um feriado serve para isso mesmo. Escrevo tudo isso e rio de mim, do meu inultrapassável anacronismo, na falta de inteligência que me tolhe a compreensão deste mundo que nunca cessa de me espantar. Fraudes, greves, expectativas e desesperos eleitorais, a vida rasteira do dia-a-dia nunca pára, nem mesmo se o filho de Deus morre na angústia de uma tarde de sexta-feira, sem sol nem chuva, sem crisântemos para depor no sepulcro.
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