Há pouco tive de passar por um dos supermercados de origem alemã que existem por aqui. Fiquei espantado com a quantidade de pessoas que falavam uma língua que não sei se era russo ou ucraniano. É possível que uns falassem uma e outros, a outra, mas aos meus ouvidos a musicalidade era a mesma. Imaginei que combinassem encontrar-se num sítio daqueles para sentirem estar perto do lugar onde nasceram, criando por instantes uma ilusão que lhes suavizasse a nostalgia das terras do norte. Talvez fosse apenas um mero acaso, irrepetível, fruto do dia triste e chuvoso que desabou sobre a cidade. Os domingos são sempre tristes nas pequenas cidades de província. E ao dizer isto também eu fui tocado pela nostalgia do tempo em que esta cidade era uma vila. Essa designação era justa e nela havia uma nobreza reforçada pela história. Se eu vivesse agora nas terras frias da Ucrânia e da Rússia, também iria a um supermercado para ver se alguém falava a minha língua, para poder recordar-me do pequeno rio que, sob o olhar apaziguado das torres do castelo, atravessa a avenida, numa caminhada solta até se afogar no Tejo. A noite bate-me à janela e eu recebo-a como se recebesse a dádiva de um deus.
domingo, 10 de novembro de 2019
sábado, 9 de novembro de 2019
Quantos-queres
Armada com o origami
preso aos polegares e indicadores, a minha neta mais velha, apanhando-me
distraído, perguntou-me quantos quer? Sete, respondi-lhe inconsciente das
consequências, e ela lá manipulou o dispositivo de papel para trás e para
frente de modo a que o número cabalístico se cumprisse. Que cor quer? Verde, repliquei
incauto. Ela desdobra a maquineta e diz: feio, o avô é feio. É grave,
pergunto-lhe. Não, mas o avô é lindo. Esta minha neta tem uma propensão indisfarçável
para a correcção social. Eu agradeço-lhe, mais vale uma bela mentira do que
sentir o estilete da verdade a sair-lhe da boca. Está uma tarde lacrimosa, batida
pelo vento, propícia a um stabat mater.
Levá-las a andar de bicicleta ou de hoverboard na rua está fora de causa, mas
elas não se importam. Quem paga são as folhas A4, vítimas de uma súbita
inclinação para o desenho. Daqui a pouco chega o outro neto, mas esse ainda não
quer papel para dar vazão à veia artística, ocupado que está em consolidar os
passos para poder explorar a casa e semear o chão com livros e CD. O sábado
escorre em direcção à noite, para desaguar num domingo de inverno, imagino.
sexta-feira, 8 de novembro de 2019
O terceiro-excluído
Pensava que o terceiro estava excluído, mas não é verdade. Afinal o velho princípio do terceiro-excluído é contingente. A revelação aconteceu inopinadamente, como todas as verdadeiras revelações, ao abrir a conta da água e, por curiosidade mórbida, ter olhado para as parcelas que a compõem. Contas de água, constas de saneamento e contas de terceiros. Quando menos se espera descobrimos que o que pagamos são formas de solidariedade muito activas e capazes de sacrificar os velhos princípios lógicos em nome duma luta contra a exclusão. Alguém menos caridoso dir-me-á que já devia ter há muito lido a factura para ver o que dela consta. É verdade, mas nem tenho propensão para esse tipo de literatura nem sou excessivamente cioso das coisas que o mundo me impinge. Sofro-as sem grande protesto ou particular curiosidade. Um caso perdido. O que vale é que hoje é sexta-feira, a noite caiu e eu espero que o silêncio se propague pelo mundo que me envolve. Depois hei-de sentar-me e, sabendo que não passo do terceiro que é excluído, bendirei quem tal exclusão ditou.
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
Desengano
Por vezes, vejo num jornal ou numa revista a fotografia de
uma mulher e penso que poderia apaixonar-me por ela até que o coração se
desengonçasse e o peito rasgado oferecesse ao mundo o espectáculo do amor, pois
o mundo nunca o viu, a esse castelo derrubado pelo tempo, a essas ruínas onde
crescem ervas daninhas, as entranhas reviradas e o sangue seco e malcheiroso de
tudo o que é sentimento. Quando acordo, a fotografia lá está, espera o meu
olhar sem a súplica do meu amor. Olho-a e na legenda descubro que a beleza
daquela mulher feneceu há muito e o seu corpo foi devolvido à poeira de onde
veio. Depois procuro outro retrato da mesma mulher e ao descobri-lo vejo o amor
a desvanecer-se ali mesmo, na falta de coerência com que os fotógrafos manejam
a câmara, semeando ilusões e desenganos, apenas porque o tempo passou e lhes
falta o talento para apagar os vestígios do crime. É assim que o amor está
pendente do acaso e da pérfida desatenção do retratista. Não faço ideia por que
razão o autor me faz dizer estas coisas, pois o nosso contrato tinha uma
cláusula, escorada num direito a rescisão, que o impedia de me dar uma vida
privada ou fazer-me falar de coisas para as quais o meu ser não foi criado.
Desinscrição
Em cima da secretária está uma ficha de inscrição. Por certo
irei inscrever-me em qualquer coisa, pois assim determina o fado. As pessoas
gostam muito de pertencer e não haverá caminho mais fácil para ser parte do que
inscreverem-se. Inscritas, logo serão chamadas e o desejo diz-lhes que hão-de
ser escolhidas. Olho para a rua e vejo um sol tímido com vergonha de refulgir nas
paredes, avisto as folhas agitadas pelo vento nas árvores que por aqui há. Em
tudo o que observo há uma tristeza, uma hesitação, como se a realidade não
soubesse que caminho tomar na encruzilhada que um deus colocou diante dela. Não
tarda terei de abandonar o lugar onde estou para ir para outro onde me esperam.
No caminho não há encruzilhadas, apenas rotundas e cruzamentos. A encruzilhada
encontrei-a há muito e escolhi o caminho errado, mas nunca sabemos se, mesmo
numa encruzilhada, há um caminho certo. O melhor é preencher a ficha e
inscrever-me antes que seja tarde, embora eu pratique a despertença e de tudo me
desinscreva. Parece que hoje não chove. Uma pena, as barragens precisam de água
como eu de me calar.
quarta-feira, 6 de novembro de 2019
Errata
Sentei-me para fazer alguma coisa que me alivie do facto de
estar vivo. É preciso não levar este tipo de declarações a sério. Quando se
escreve um texto, e quando ele é em si mesmo irrisório, temos de começar de
alguma maneira. O pathos do começo pode ser uma coisa deplorável, mas se
eliminássemos do mundo tudo o que é deplorável, ficaríamos com quê? Comigo não.
Sentei-me, dizia, mas esquecera-me que hoje é quarta-feira, o dia em que o grupo
de baile da escola vizinha aproveita para a sua sessão de reviver o passado em
Brideshead. Cada um tem o Brideshead que pode. Essa é a justiça do mundo e não
há outra, foi o que me ocorreu. Estou perturbado. Andei dois dias para me
lembrar de uma palavra para título de um singelo documento e, por mais que
porfiasse, a memória nunca me deu o que lhe implorava. É uma senhora caprichosa
e recusa-se a conceder os seus favores ao primeiro idiota que apareça a
cortejá-la. Quando já não necessitava da palavra, ela caiu-me do céu. Errata.
Era por esta a palavra que suspirava há dois dias. Que faço agora com ela? O
melhor é fazer uma errata, escrever onde se vê (a minha fotografia) deve-se ver
(uma outra fotografia corrigida e melhorada), e depois distribuí-la por aí. O
grupo de baile silenciou-se, já tem que chegue da sua Brideshead, ou talvez
não. O problema dos seres humanos é que eles só aparecem no lado a substituir
da errata. Se não os outros, pelo menos eu.
terça-feira, 5 de novembro de 2019
A verdade pela mentira
Acabei de comprar um presente para uma das minhas netas. Já lhe tinha dito várias vezes que não lho daria e ela sempre fingiu acreditar. O avô finge, a neta finge e é nessa ficção que se aprende a lidar com a realidade. Talvez um dia estes jogos em que se diz a verdade através da mentira sejam proibidos e um avô terá de dizer brutalmente a um neto que já lhe comprou o que ele deseja, impedindo o divertimento que ensina a ver para lá das aparências, a lidar com a frustração e, acima de tudo, a ser civilizado ao aprender que o prazer está na incerteza e no diferimento do gozo. Enquanto pensava nisto ia olhando pela janela e via a luz diminuir lentamente como se estivesse ainda na sua mão evitar a chegada da noite, adiá-la para que ela venha festiva e seja o mais desejado dos convidados. Também a natureza ama a verdade dita sob a forma da mentira e, por isso, ela é tão enigmática para aqueles que escondem a estultícia na proclamação que são muito directos e manejam a verdade como se fosse um punhal a cravar nas costas distraídas do próximo. Quando vir a minha neta e ela me falar do presente, dir-lhe-ei “nem pensar” e ela há-de pensar que tudo se encaminha para o seu destino, enquanto diz com ar resignado “está bem”.
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Incongruência
As persianas tamborilam nas calhas por onde correm, tocadas
pelo trote do vento, inquietas e temerosas de alguma tempestade que venha
tirá-las do sossego bonançoso em que vivem. Uma réstia de sol perfura o negro
das nuvens para desabar na humidade das paredes e reverberar, enchendo de luz o
campo de jogos e de esperança os jogadores que se batem com o ardor da sua
inocência culposa. O que escrevo é de tal modo exaltante que adormeci depois de
escrever a última frase, para acordar agora com uma dor no pescoço. Nem a mim o
meu verbo anima. Apesar das bolas continuarem a saltitar, a luz de há pouco
recolheu-se para que as paredes perdessem a reverberação que lhes dava alma e
embaciadas permanecessem na quietude que é a delas. Com um tema destes não
admira que adormeça de novo antes de dar por terminado este texto. Pessoas há
que têm muito para contar, as suas vidas são aventurosas e elas heroínas que
hão-de permanecer na memória dos vindouros, mas eu quanto mais vivo menos
tenho para dizer, apesar do palavrório que me ataca aqui ou ali. O mundo é
feito destas incongruências e se não é o mundo, sou eu. A palavra incongruência
brilhou dentro de mim e, por instantes, entrevejo a verdade do que sou. Tocaram
à campainha. Levanto-me e vou espreitar. Não era ninguém ou talvez fosse eu.
domingo, 3 de novembro de 2019
Um rio brando e sem água
A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que
provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o
corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e
eu pensei que o pathos que nela se
manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou
com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou
outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os
pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade.
Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem
alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a
fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse
nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem
sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio
brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para
contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da
alma. É domingo.
sábado, 2 de novembro de 2019
Memórias no Dia de Finados
Nos últimos anos não há Dia de Fiéis Defuntos que não me
recorde de um poema que se cantava na adolescência para fingir que se era
rebelde. Não me lembro do texto completo, mas apenas de alguns versos que ficaram
na memória como um refrão: Era dia de finados, / E os mortos muitos animados /
Lá andavam a dançar. / Tudo estava forrado a preto, / No centro havia um coreto
/ Feito dos ossos da testa. E o cântico continuava neste tom até que nos cansássemos
e, desconfio, nos reconciliássemos com a nossa natureza mortal. Estas
recordações não são um desrespeito aos que se foram, mas uma mensagem que
recebo de mim mesmo para que não me esqueça que mais do que rir da minha morte
devo rir-me de mim e das coisas que me atravancam a memória. Hoje já fui às
compras e, devido às inutilidades que me povoam o cérebro, esqueci-me de
algumas coisas que tinha de comprar. Valia mais ter feito uma lista do que andar
por aí a alvitrar sobre o que se passa num coreto forrado a preto.
sexta-feira, 1 de novembro de 2019
Os Santos e os mortos
É com desconsolo que olho para as broas dos Santos. Em tempos eram para mim motivo de perdição eterna. O pecado da gula atirava-me sem freio sobre elas, arrastando-me para o mar das múltiplas espécies que por aqui se cultivam. Depois a vesícula começou a queixar-se e a satisfação do desejo foi sendo diminuída até proporções frugais. Liberto do órgão malfazejo, não me livrei da frugalidade. Os Santos deixaram de ser o que eram. Hoje passei duas vezes perto do cemitério e não faltavam pessoas com pequenos ramos de flores na mão, nem sempre crisântemos, para homenagear os seus mortos. Também eu tenho os meus mortos, mas não vou ao cemitério, nem lhes compro flores. Trago-os nos meus genes e nos meus pensamentos. Com alguns, converso. Falo por eles e falo por mim. Eu sei o que eles me diriam e eles, estou certo, sabem o que lhes estou a dizer. Talvez devesse também ir amanhã ao cemitério, não por eles, mas para que as tradições não morram por falta de comparência. Sei que não vou, até porque espero o meu neto. Um dia, se me for possível, falar-lhe-ei dos meus mortos, que hão-de também ser os dele.
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
Fine tuning
Apesar de tudo, os dias passam rapidamente. Amanhã já é dia
de Todos-os-Santos e daqui ao Natal o tempo correrá à desfilada e eu, como um
cavalo enlouquecido, há quem me ache um burro demente, correrei com ele ou
arrastado por ele num turbilhão de coisas insensatas. De o pensar, estou já
cansado. Correr não é a minha especialidade e cheguei àquela época em que
preferia avançar para trás, mas não muito, já que não teria paciência para mim
se tornasse ao que fui. Seria penoso. Escureceu há muito. Para surpresa minha,
ao final da tarde uns adolescentes quiseram falar comigo sobre os argumentos do
fine tuning e do mal, com derivações
sobre o determinismo da conduta humana. Poderia pensar que as coisas não
estão tão críticas quanto se anuncia. Provavelmente, não estarão. Recebo uma mensagem no telemóvel. É um convite
para uma masterclass de Tequila &
Mezcal e começo a pensar que o argumento do fine
tuning não será assim tão disparatado. Salva-me amanhã ser dia santo de
guarda, um dia onde a santidade se multiplica, como se o regulador destes festejos,
cansado, tivesse cedido à paixão da hipérbole. Vou roubar uma broa à cozinha.
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Retorno do mesmo
Na escola aqui ao lado, o seu grupo de baile persiste em
ensaiar canções que fizeram furor há mais de vinte, trinta ou quarenta anos.
Esta obstinação pelo passado não deixa de ser comovente e faz-me lembrar as
pessoas que, quando era adolescente, tinham a idade que eu agora tenho. Também
elas estavam presas a músicas incompreensíveis, sons que pareciam vir de um
planeta distante, e nas quais tinham um prazer que era para mim um enigma. A
ideia do eterno retorno do mesmo acabou de me tentar. Resisto à tentação,
enquanto, vindo de fora, oiço menina que estás à janela com o teu cabelo à lua.
Hoje já não há meninas à janela e os cabelos à lua, também andam ao sol e à
maresia do crepúsculo. Dói-me a garganta, recorro a um spray. Logo tenho uma
cerimónia à minha espera, embora eu não a esperasse, nem a ela nem a qualquer
outra coisa. O carro avariou-se de manhã e tenho de ir ver se já o posso ir
buscar. Uma chuva fina diante da janela faz-me lembrar o fumo que se evola dos carros
dos assadores de castanhas, mas é só água a descer dos céus. Uma bênção, oiço
dizer.
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Desvios e mistérios
Hoje li um poema que começa assim Já o gargalo das pedras
adormece e fiquei mais tempo do que devia sem saber o que fazer com aquele
verso. O poeta, dir-me-ão, pratica o desvio porque esse será o seu ofício. O
meu, se é que se pode chamar ofício, fica-se pelo perscrutar da noite, olhá-la
no fundo dos olhos para que surpresa revele os seus segredos. Ela porém sorri e
olha-me com benevolência e segue o seu caminho, respeitando as estritas regras
da gramática que governam o dia e a noite, a passagem das semanas, o devir
compassado das estações. O mistério da noite é como o das palavras.
Compramo-las presas a um significado, mas se as olharmos longamente, começam a
emancipar-se e tornam-se mariposas descuidadas que o vento, à falta de peso,
arrasta para onde quer. Hoje escrevi centenas ou milhares de palavras, todas
elas pesadas de sentido, todas elas inúteis como uma bóia de salvação nas
areias do deserto.
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Serei maniqueísta?
Um comentário insinua que estou a
caminho do ultra-romantismo. Talvez esteja mais perto do solipsismo mas a
carapuça do ultra-romantismo também não me há-de ficar mal. A culpa,
assevero-o, não é minha, mas do autor destes textos que teima em fabricar-me
deste modo. Eu bem me inclino para os factos e acontecimentos, mas ele, com uma
rigidez inesperada, tende a cerrar-me dentro de mim mesmo, fazendo-me crer que
a realidade é uma coisa pesada e pouco benévola. Desconfio que pretende fazer
de mim um discípulo de Manes e ele mesmo será um cátaro, mas os seus desígnios
e pensamentos são-me insondáveis. Se ele quer que eu seja um solipsista ou um
romântico ou um maniqueísta, o que posso fazer contra a prepotência da sua
vontade? Um dia fosco o de hoje. Olho pela janela e vejo sombras a caminhar na
avenida e os ciprestes que abundam por estes lugares. Um silêncio nega a
realidade, que logo acorda na figura de uma mensagem a informar-me que alguém
partilhou documentos comigo. Um dia ainda acredito que sou maniqueísta e que
toda a realidade é fruto de um demiurgo pouco frequentável. Que me salvem da
heresia, é aquilo que peço, mesmo que essa seja a vontade daquele que me cria.
domingo, 27 de outubro de 2019
Distâncias
Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada
com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar
a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam
ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde
cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela.
Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho
neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto,
cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais
baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu,
como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de
escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor
desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é
pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia
de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito
mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai
da ode à elegia.
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Da circularidade semanal
Está a chegar o fim-de-semana e já o vejo a escoar-se,
perdido nem se sabe como. As semanas são círculos viciosos, em que se parte de
uma sexta-feira para chegar a outra, sem que um sentido para tudo isto se
desenhe. Quando oiço falar no território encantado da infância, apesar da
expressão me provocar uma certa náusea, lembro-me sempre daqueles anos
longínquos em que não havia semanas, com os seus dias fastos e nefastos. Lá em
baixo, no parque infantil, um bando de crianças grita. Parecem felizes e, por
certo, ainda não descobriram que existem semanas, com a sua corveia e a ilusão
de algumas horas de liberdade, para que o jugo férreo pareça mais leve. Eu sei
que a civilização tem um preço, as comodidades outro e que nada cai do céu.
Isso, porém, não nos deve impedir de increpar a ordem das coisas ou de maldizer
aquele descuido de Eva e Adão que nos atirou para a deplorável situação de à
sexta-feira já sentir o odor mascavado da segunda. O sol ainda brilha, mais
intenso que nos últimos dias e o arvoredo perfila-se imóvel com os seus dedos
de azougue voltados para o céu. Bem podia ter evitado o pathos da última frase, mas fui obrigado a dizê-la.
quinta-feira, 24 de outubro de 2019
Penúria de realidade
Dentro de mim há uma enorme sombra. Faço dela a casa de onde raras vezes saio. Vejo o mundo por uma janela e aquilo que nele se passa cada vez me interessa menos. Demorei muitos anos a ligar a comédia humana ao que Aristóteles disse da comédia clássica, mas isso são contas de outro rosário, pelo qual já ninguém ora. O dia passou e é o que tenho a dizer dele. Não se trata de escassez de imaginação, mas penúria de realidade. Vivo cercado de pessoas cheias de realidade. Habituei-me à condição de ilhota nebulosa perdida num oceano vigoroso, a transparecer certezas e particular inclinação para a exuberância da felicidade. Mares destes, sempre navegados, cansam-me. A noite chegou, uma ambulância cavalga pela estrada em direcção ao hospital e tanta realidade é insuficiente para me sequestrar à ruminação que crepúsculo abriu em mim. Já é tarde, digo e volto os olhos para o lugar onde a escuridão nasce.
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
Mudar de vida
Cheguei a casa quando o crepúsculo já se anunciava no
descolorido do sol. Sentei-me e os meus olhos embateram numa tradução inglesa
de um livro de um pensador alemão contemporâneo. Os alemães são particularmente
competentes para encontrar títulos dramáticos que soam ora como uma sombra
arremessada pelo infinito, ora como um imperativo a que se deve obedecer,
embora não se saiba porquê. Este pretende resumir a religião através do
imperativo You must change your life.
Peguei no livro, folheei-o lentamente e pensei que mais que mudar a minha vida,
o acertado era ter mudado de vida há muito. Há equívocos que se tornam numa
condenação perpétua. Os pássaros meus vizinhos sublinharam o meu pensamento com
um trilo equívoco e eu sorri agradecido. As vozes lá em baixo calaram-se de
súbito, como se um anjo tivesse poisado e a sua beleza fosse sentida como a
presença do terrível, tal como nos ensina certa ode. Destemido, o vento empurra
os ramos do arvoredo, desenhando murmúrios coloridos na praça vazia. Mudar a sua
vida, que penosa injunção para aquele que se prendeu na teia dos seus hábitos.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Sobre as oliveiras
Na escola aqui ao lado há umas quantas oliveiras. Vejo-as envoltas em folhas verde cinza, indiferentes ao vento, esquecidas dos anos. Lembraram-me do tempo em que por aqui ainda era fácil, ao caminhar sem destino, ser invadido pelo cheiro que se desprendia dos lagares. Estes foram morrendo uns atrás dos outros, como pessoas velhas e sem família a que já ninguém conhece. Levaram com eles os aromas quentes que anunciavam o azeite novo, abriam o caminho que ia dos santos ao natal, e deixaram órfãs as oliveiras que escaparam à voragem sem medida dos homens. Conheci oliveiras que tinham, supunha-se, mais de mil anos. Imagino-as indiferentes ao espectáculo da história, ao cortejo de esperanças e desgraças que tocaram esta terra. É possível que já tenham sido arrancadas, levadas pelo despeito daqueles que não têm mais que uma vida breve, risível, impotente para enfrentar o tempo e enganá-lo numa faena de arte consumada. Talvez o touro que os homens lidam nas arenas não seja outra coisa senão o tempo, mas hoje tornou-se perigoso falar de touros e de lides, pois todos têm medo do tempo, dos cornos que ele alça para nos varar, pobres peões de brega.
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