Olho pela janela e digo estamos no Inverno. Depois observo a
palavra e gosto de a ver com maiúscula. Uma estação do ano não merece o
despropósito com que agora é tratada, tornando-lhe o início rasteiro, sem
perceberem que cada uma delas é um acontecimento único na sua repetição e que devem
ser consideradas como pessoas ou deuses, com as suas idiossincrasias, humores,
o ritmo secreto que as faz oscilar, o vigor ao entrarem em cena e o cansaço ao
despedirem-se da vida. A chuva persiste, constante na sua frieza, enquanto os
cedros do pequeno bosque ao fundo se erguem rígidos para o céu, indiferentes à
água que sobre eles cai. Na avenida, alguns transeuntes seguram guarda-chuvas,
mas correm a abrigar-se. Os carros passam, criam pequenos tsunamis que se levantam violentos e logo morrem, sem que nenhuma
devastação aconteça. É sexta-feira, embora o corpo não acredite que o
fim-de-semana se aproxima. Remexo-me na cadeira e medito no que ainda hoje
terei de fazer. Ao longe, o edifício do hospital lembra-me uma ruína, o sinal
de um mundo acabado que persiste difuso na memória dos vivos. Não pára de
chover e talvez fosse apenas isto o que queria dizer.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2019
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
O último combate
O Outono despede-se invernoso, irado pela aproximação do dia em que o carrasco fará deslizar pelo seu pescoço o gélido fio da guilhotina. Visto da janela o espectáculo da resistência outonal faz recordar um velho guerreiro que trava o seu último combate. Há sabedoria no modo como maneja a lança da chuva e a espada do vento, há nobreza na face envelhecida que enfrenta a condenação. Indiferentes ou temerosas da refrega, as pessoas fecham-se em casa e, embrulhadas nas suas lareiras, sonham com dias primaveris, enquanto os gatos ronronam ao calor. Um ou outro louco caminha na rua sem guarda-chuva, encharcado, como se fosse um penitente que se lava na água caída dos céus. As iluminações de Natal derramam tristeza pela cidade e trazem à memória, como contraponto, os dias em que tudo era mais frugal e eu mais ingénuo. O vento percute a persiana e lá dentro uma velha canção de Natal deixa cair as notas sobre os presépios. A Virgem demora-se na espera e S. José, longe da carpintaria, parece inquieto e deslocado. O silêncio tomou conta dos seus corações como a água se apoderou da terra.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
Sub specie aeternitatis
No facebook
alguém, para sustentar uma certa posição sobre determinado assunto, coloca um link para uma entrevista dada ao
Expresso por um especialista da matéria, a qual não vem ao caso. Como um cão
segue uma pista, também eu sigo a ligação e ponho-me a ler, até que que começo
a achar uma certa estranheza no conteúdo. Procuro a data e descubro que é de
2008. Não é a primeira nem a segunda vez que isto me acontece, mas hoje foi uma
revelação. O tempo foi abolido. A eternidade desceu dos céus, digitalizou-se e
passeia-se na terra. Não posso esconder que isso me perturbou um pouco. Cada um
tem um estilo e o meu passa por cultivar um certo anacronismo. Se tudo agora é
eterno, até o meu anacronismo se torna em sincronismo, que palavra
desagradável esta, apesar do seu pedigree
ser autêntico. Lá se vai o estilo perdido no magma da indiferenciação, foi a
reacção que se desenhou na minha cabeça. Há pouco entrei num café, sentei-me e
olhei à volta. Apenas duas mesas estavam ocupadas, cada uma por um homem a ler
o jornal, ambos mais velhos que eu. Estavam empenhados na leitura, voltavam as
páginas com uma certa ânsia. Suspeitei, não sem razão, que eles pudessem estar
a ler jornais de 2008 ou mesmo de antes. Seja o que for o que estivessem a ler
deve agora entender-se sub specie
aeternitatis, que é uma forma pretensiosa de um anacrónico sem-abrigo dizer
do ponto de vista da eternidade.
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
Da ordem das coisas
Ao fechar a janela pensei que não tarda e os dias começam a crescer. Senti uma leve nostalgia do tempo em que não me ocorria se os dias eram grandes ou pequenos. Havia nisso uma aceitação do mundo tal como ele é e nessa aceitação residia toda a possibilidade de estar vivo. Depois, começa-se a sentir incómodo pelas temperaturas, mais tarde pelo excesso ou pela falta de luz, a seguir protesta-se, ainda que em segredo, contra o calendário, para se acabar numa recusa sem tino da ordem do mundo. Claro que quando se envelhece a ordem do mundo deixa de ser promissora. Nunca deixo de sorrir quando oiço aquelas pessoas, os cavaleiros do progresso e irmãos gémeos dos do Apocalipse, que proclamam a bondade que o futuro há-de trazer. A única coisa que o futuro traz é a morte e quanto aos que cá ficam terão como presente o seu quinhão de bem e o seu lote de mal, talvez distribuídos ao acaso, talvez fruto dos méritos, talvez vindos na barcaça da injustiça. Não esperava estar tão meditabundo. É o que faz fechar janelas quando o dia se perde no covil da noite. Daqui a uma semana é noite de Natal. A luz triunfará sobre as trevas exteriores até que tudo se inverta, enquanto a mecânica da universo não se cansar.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2019
Uma bela aparência
Tenho nas mãos quatro livros e todos eles, com as suas capaz magníficas, são objectos que não apenas pedem para serem comprados como exigem que se lhes toque como quem toca a pele do objecto do seu desejo. Esta frase, com o seu aroma psicanalítico, deveria ser censurada. Haverá uma relação entre o objecto livro e o que nele está escrito? Também no mundo dos vinhos há garrafas e rótulos que pedem para serem comprados. Nesta relação entre o conteúdo e a forma como ele é apresentado não há apenas um truque para enganar o comprador incauto. É plausível que quem se preocupa a fazer excelentes vinhos cuide da sua apresentação. Também as editoras que escolhem certos autores terão um cuidado acrescido na forma como apresentam as suas obras. Uma certa consciência ingénua vocifera dentro de mim. Ainda não sabes que deves distinguir a aparência da realidade? Olho para ela com desdém e pergunto-lhe se não sabe que já não tenho idade para me preocupar com a realidade, que não há coisa melhor no mundo que uma bela aparência? E se o vinho não prestar ou se o livro for ilegível? Paciência, não podemos querer tudo.
domingo, 15 de dezembro de 2019
Não cair em tentação
Acordei a meio da noite e para combater a insónia abri o
romance Os Enamoramentos, de Marías. Agora que passei a fronteira do primeiro
terço da obra começo a vislumbrar por que razão Maria Dolz, a narradora, me envinagra
levemente o ânimo. Não sei o que me reserva o que falta do texto, mas aquela
não é uma mulher plausível. Desconfio que seja um travesti. Que não seja mal
entendido. Um travesti mental. Os homens deveriam ter cuidado em colocarem-se dentro
da pele das mulheres e inventarem discursos que imaginam serem o delas. Se
forem perspicazes, o melhor que conseguem perceber é se estão ou não diante de
um pensamento feminino, mas sem a pretensão de ultrapassar uma visão muito
genérica e exterior da gestalt desse pensamento, cuja composição interior, pela
complexidade, lhes escapa. Talvez seja eu que tenha uma perspicácia diminuta e
não interprete como devia a atracção que a narradora sente pela boca de Díaz-Varela,
o homem a quem as mulheres sem dificuldade se dobram, mas cujos lábios possuem
um recorte feminino que tanto a fascina. É natural que eu não seja levado a
sério. Com tantas coisas a fazer neste mundo, com tantos tortos a endireitar,
com tanta gente a libertar, e eu de candeias às avessas com o perfil
psicológico e a verbosidade de uma mulher que só existe no papel. O dia está
tristonho, um pombo poisou agora no parapeito da janela e, mais uma vez, tomo
consciência que não nasci para salvar a humanidade. Num caderno apontei: nunca
ter a tentação de escrever do ponto de vista de uma mulher. Não apenas por
falta de talento, mas por
impossibilidade ontológica e assim acabo com um ar pretensamente filosófico. O
pombo cansou-se do poiso e foi contemplar o mundo para outro miradouro.
sábado, 14 de dezembro de 2019
Não me faltam temas
Por fim uma boa notícia. Depois de semanas a desafiar a
minha paciência, a balança cedeu uns hectogramas. Sublinhei alto o sucedido e
disse que a meditação transcendental e a recitação do mantra estavam a dar
efeito ou, alternativa mais científica, que o facto de ter mudado a pilha à
balança refreou o seu ímpeto para me vexar. Ouvi um gélido é verdade, esta
semana foi mais agitada e não jantámos um único dia fora de casa. O meu olhar
ficou parado no vazio. Este senso comum irrita-me. Ainda pensei retorquir sobre
a falta de elevação espiritual do comentário ou a pouca crença na ciência que
nele havia, mas calei-me, antes que a conversa derivasse sobre a necessidade de
fazer exercício para disfarçar a barriga. Este tema também me está a irritar e
parece que não tenho outro. Ora isso não é verdade. Temas não me faltam. Aliás
tenho mesmo uma lista de assuntos a tratar. O que acontece é que muitas vezes
não sei onde tenho a lista e outras esqueço-me dela. Na lista, para que não se
pense que estou a mentir, está como assunto o agastamento que a narradora de Os
Enamoramentos, de Javier Marías, me
está a causar. Estou farto da opinião da senhora, se é que ela pode entrar na
classe das senhoras. Este tema, o da classe das senhoras, é delicado e as
minhas opiniões poderiam ofender alguém. Uma sirene anuncia um paciente
a caminho do hospital. Eis uma matéria que não consta na minha
lista e, por isso, sobre ela não falo. Logo vem o meu neto. Espero que ele
queira falar comigo.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2019
Um problema de consciência
Olhei para a rua e pensei que devia enfrentar este tempo
incerto e fazer uma caminhada. A necessidade de andar tornou-se um pensamento
recorrente nos últimos meses e chego a temer que se transforme numa obsessão.
Quando tomo consciência de que estou a pensar nisso, encolho os ombros,
sento-me à secretária e espero que outra coisa venha ocupar-me o espírito. Se o
malfadado pensamento persiste, sou mais drástico, encho o peito de ar e fecho a
janela. A minha consciência diz-me que não devia escrever coisas como estas,
pois o fitness, que o estrangeirismo
me seja perdoado, não deve ser objecto de ironias de mau gosto, ainda por cima vindas
de alguém que anda sempre em conflito com a balança e a leitura que esta se
atreve a fazer da realidade. Vale-me olhar com condescendência, se não com
desprezo, para a minha consciência. Toda a gente estima muito a consciência que
tem, não havendo no mundo melhor que a sua. Por mim, vendia a minha ou, se
ninguém a comprasse, deitava-a num daqueles depósitos que recolhem materiais
usados para reciclar. Não para que ela possa ser reutilizada, mas para não
poluir mais este pobre planeta, que geme e arfa sob as poluções nocturnas de
consciências inquinadas, que não param de distribuir sentenças e bons conselhos
por tudo o que é sítio. Uma réstia de sol ilumina as paredes da escola ao fundo
da rua. Convida-me a sair de casa e ir caminhar cidade fora. A continuar com
pensamentos destes ainda tenho de marcar consulta no psiquiatra. Talvez todas
as sextas-feiras sejam dias de paixão.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019
Rebelião
Ataranta-me a proliferação de senhas que os diversos sites com que interajo me obrigam a coleccionar. Não fora perigoso e criaria um herbário onde colocaria cada uma das senhas e a respectiva catalogação. Assim tenho de recorrer ao registo mnésico para poder entrar e sair de portas e portões onde a vida me faz entrar. Poderia ser como aqueles loucos benignos que possuem uma memória prodigiosa e que sabem de cor a lista telefónica de uma zona ou os resultados, jogo a jogo, do campeonato nacional de futebol desde que ele começou até aos dias de hoje. A loucura ainda não é a casa onde habito, mas nada me diz que não venha ser, por muito que me custe. Já a memória vai fenecendo dia após dia, num trabalho de rasura que começa pelas coisas mais recentes e, como uma onda, se vai propagando pelo passado. Enlouquecido e desmemoriado está o aquecimento desta casa. Para o tratar puseram-lhe um termóstato novo. Parecia ter serenado, trabalhava segundo a programação feita, não se esquecia dos parâmetros. Teve porém uma recidiva e trabalha furioso. Tenho de lhe pôr um colete-de-forças e mandá-lo internar, antes que morra de calor. Aborreço-me quando as coisas decidem ter autonomia e agem por conta própria, quando exibem uma contumácia de propósitos que contrariam as ordens que lhes prescrevo. Conheço pessoas que se pudessem ordenavam o mundo segundo os seus critérios e só assim ele, na sua opinião, seria perfeito e não o caos que é. Não me incluo nesse universo de ordenadores do mundo, mas também era evitável que meras maquinetas se rebelassem contra a minha vontade.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Do Inverno que se aproxima
Já faltam poucos dias para que o Inverno triunfe sobre o Outono e alcance o primeiro lugar no grande campeonato das estações do ano. Esta estratégia retórica baseada numa analogia pouco vigorosa não deixa de fazer pensar que a natureza tem uma certa inclinação para a repetição e para a igualdade. A vitória de hoje é a derrota de amanhã e vice-versa. Pena é que o mundo dos homens não seja assim. Não por uma questão de justiça, mas pela perfeição que há em tudo o que é cíclico. Os gregos antigos – alguns, para não fazer uma generalização precipitada – tinham grande veneração por tudo o que tivesse a ver com círculos e esferas. Em Portugal, também se manifesta esse tipo de amor como se pode ver pela sábia proliferação de rotundas. Todas estas derivações quase me faziam esquecer o assunto. O Inverno e o seu triunfo iminente. Imagino-o com mantos de neve, frios glaciais e lareiras acesas. A imaginação é muito mais poderosa que a realidade. Aqui neva tão raramente que é preciso que os deuses estejam muito distraídos. É um Inverno insípido e triste que me dá vontade de fincar os pés no Outono e impedir o calendário de perder as folhas. A realidade nunca tem a mesma medida que os nossos desejos.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
Da interpretação dos sonhos
Um acaso levou-me a um texto escrito em português mas com um
vocábulo alemão por título. Traumdeutung,
interpretação dos sonhos. Invejo as pessoas que têm sonhos para interpretar.
Muito raramente me recordo de um e quando isso acontece, vejo-o apagar-se e
voltar para o esconso lugar de onde veio, privando-me da arte da interpretação.
Quem não tem sonhos para deles fazer hermenêutica é uma espécie de ocioso
psicológico ou, no pior dos casos, um indigente da psicologia, que nem um sonho
tem para contar. A noite chegou e aquilo que estive a fazer não me deu o melhor
dos humores. Talvez aqueles que não têm sonhos para submeter à busca da sua
significação devessem tentar interpretar a variação de humor que sofrem. O
gargalo da noite partiu-se e os demónios saíram da garrafa, saltitam pelas ruas
sempre prontos a tentar as almas que vão por aí transidas de frio. Como todos
sabem, o material das almas é muito sensível à temperatura. Muito calor, elas
evaporam-se. Muito frio, e elas encolhem tanto que o seu proprietário parece um
desalmado. Se eu tivesse um sonho para interpretar escusava de estar a falar daquilo
de que não se pode falar. O melhor é seguir o conselho do senhor Wittgenstein e
calar-me.
domingo, 8 de dezembro de 2019
Fim das actualizações
Há uma semana que os presépios tomaram conta da sala. A um
canto, está o presépio tradicional embora sem musgo e depois, distribuídos
pelos móveis, múltiplos pequenos presépios que com os anos se foram acumulando.
Já ninguém se lembra como a coisa começou e, verdade seja dita, não foi assim
há tanto tempo. A cada um as suas idiossincrasias. Hoje ainda não saí de casa.
A névoa cobre a terra, oculta o hospital que haveria de se ver da minha
secretária, abre-se num horizonte de cinza contra o qual se recorta o pequeno
bosque da escola ao fundo da rua. O Outono corre para o Inverno, deixando na
memória estes dias que pedem recolhimento. Inopinadamente, enquanto escrevo
isto, a Microsoft informa-me que o meu Office vai deixar de ser actualizado. Recomenda-me
que adquira uma versão mais consentânea com os dias de hoje. Também eu há muito
deixei de ser actualizado e, por mais voltas que dê, não consigo comprar uma
versão mais moderna de mim. Sempre posso usar um daqueles programas gratuitos
alternativos aos da Microsoft, mas no meu caso nem gratuita há uma versão
alternativa. Não porque eu seja uma singularidade, mas porque não há qualquer
vantagem em haver outra versão de mim. A natureza é sábia e usa a frugalidade
para evitar a multiplicação do erro. Tenho muito que fazer. A corveia que me
permite enfrentar a dura necessidade não me dá descanso. Oiço uma música
chamada Ships Along the Harbor. Vejo
o cais, os barcos atracados, o ondulado das águas, sinto o sopro do vento
marítimo e os meus pés a caminhar na humidade do porto. Tudo isto sentado com
uma pilha de papéis na frente para ler. O Natal aproxima-se e ainda não cuidei
da secção dos presentes.
sábado, 7 de dezembro de 2019
O deslizar do sábado
O sábado deslizou-me da mão num ápice. Esteve luminoso, mas já se embrulhou num cobertor de cinza e não tarda veste o roupão negro da noite. Se eu fosse o autor destas frases, haveria de pintar a cara de negro. Recordo-me com melancolia do tempo em que as horas subiam e desciam a encosta do dia com um passo tão vagaroso que parecia haver uma suspensão do tempo. Era uma antevisão da eternidade, mas nessa altura a eternidade não me interessava para nada e aquilo que mais queria era que o tempo passasse até àquela hora em que algum prazer, modesto que fosse, esperasse por mim. Pelo acumular de pretéritos imperfeitos do conjuntivo só posso suspeitar que mesmo para um prazer modesto o desejo era grande. Não devia entregar-me a hermenêuticas gramaticais que raramente levam a bom porto. Hoje comprei um bolo-rei, o primeiro da época. Confesso que me tornei desleal ao rei e, por norma, presto vassalagem à rainha, desde que esta saiu do tabuleiro de xadrez para se transformar em bolo de Natal e Ano Novo até aos Reis, mas hoje as rainhas não estavam disponíveis. Muito gente abomina a fruta cristalizada. Eu sei que é uma grande xaropada, mas condescendo com ela e não sinto que, ao comê-la, os parentes sejam arrastados pela lama. Também não devia usar expressões ao gosto popular. Ainda por cima é o segundo não devia que uso. Talvez devesse – mais um pretérito imperfeito do conjuntivo – psicanalisar-me para descobrir o trauma que me leva a repetir o desconsolado não devia.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2019
Passar para a página seguinte
Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019
Do amor aos adjectivos
A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
O esplendor de um dia de Inverno
Não há dias mais gloriosos que os frios banhados pelo sol.
Olho para a frase e lembro-me de um poema de Eugénio de Andrade que começa
assim Obedecem-me agora muito menos, / as palavras. Penso na sorte que ele teve
por ter havido um tempo em que elas lhe acataram as ordens. A mim sempre
recusaram submissão, talvez por falta de talento para usar nelas a rédea ou
o chicote. Ocorreu-me agora um dito de Nietzsche sobre a necessidade de levar o
chicote, mas recuso-me a partilhá-lo não vá ofender a sensibilidade da época.
Também é possível que a máxima do filósofo alemão não quisesse dizer nada, nem
aquilo que nela está dito nem aquilo que nela se subentende. Seria apenas o
esplendor de um dia de Inverno em que a neve cintila sob a luz impiedosa do
sol, um exercício de pirotecnia para semear o céu com fogos-fátuos e a terra
com invólucros destroçados pelo rebentar da pólvora. Passa-me pela cabeça que
não se deve confiar em filósofos, principalmente se são alemães, mas também
devo abjurar este pensamento, tão pouco ao gosto dos dias que correm. Como eu
quereria dizer se frequentas as palavras, não esqueças o chicote. Não o digo,
pois não foi a vocação de domador aquela que os deuses depositaram nas volutas
do meu código genético.
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
Cair em tentação
Não sei como nem porquê, a toranja tornou-se aqui em casa um
bem de primeira necessidade. Há pessoas para tudo e até para uma coisa dessas.
Tendo-se acabado as que havia, fui ao hipermercado aqui ao lado em busca do
santo graal, não propriamente o cálice sagrado onde José de Arimateia recolheu
o sangue de Cristo, mas dos frutos amargos que dão um excelente sumo para
começar o dia. Ainda dentro da superfície comercial, não resisti a passar pela
zona dos vinhos. Trazia o cálice e o sangue. O pior foi ao sair. Um cheiro a
farturas atropelou-me. De saco de compras na mão, como um sonâmbulo, lá me
encaminhei para a roulotte. No
caminho, murmurava não me deixes cair em tentação, não me deixes cair em
tentação, olha a balança. Ninguém me ouviu, ninguém quis saber da balança, nem
do colesterol, nem da saúde, nem me quis aliviar da tentação. Eu também não.
Uma fartura. É assim que o mundo se perde. Vem a serpente, tenta uma pessoa, o
cãozinho pavloviano que há em nós saliva e o mal está consumado. Talvez o sumo
de toranja compense. Há que não perder a fé.
Há que desconfiar
Todos os dias alteio mais um pouco o muro que me rodeia.
Fecho-me lentamente ao mundo, cubro com cimento as fendas na muralha,
certifico-me da qualidade do isolamento sonoro. Ainda não é perfeito, mas a
perfeição não é coisa que se consiga de um dia para o outro. Ponho-me a
imaginar que o que sou é apenas o resultado de um programa genético. Uma bela
desculpa para a minha falência, embora tenha o inconveniente de rasurar algum
pequeno mérito que possa, aqui ou ali, ter tido. A última coisa que quero neste
momento é uma meditação sobre o livre-arbítrio. Estava a falar do software que me faz ser o que sou e este
parece que me conduz a um inexorável isolamento. Nos dias em que estou de humor
benigno digo que deveria ter entrado para um convento, daqueles mais rigorosos,
para a trapa ou para a cartuxa. Riem-se do dislate e ninguém acredita. Eu
também não, mas lentamente vou construindo a minha cartuxa, limpando-a do incómodo
que a presença do mundo traz e entregando-me a um silêncio cada vez mais
espesso. Falta-me o talento para a oração e há no mundo algumas coisas que
ainda fazem cintilar os meus olhos, mas até isso pode ser um exagero. Há que
desconfiar de tudo, principalmente de mim mesmo.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2019
Da possibilidade da perfeição
Vinha aqui dissertar sobre a imperfeição e a identidade entre o ontem e o amanhã, mas a quem podem interessar coisas como essas? Há pessoas, cruzo-me com elas todos os dias, que aderem de tal modo à realidade que chegam a parecer reais. Há muito que desisti da minha realidade e até da minha aparência. Como se vê é muito fácil dizer coisas sem sentido. Difícil é encontrar alguma com sentido para dizer. Fará sentido afirmar que lá em baixo um bando de adolescentes se alarga na efusão dos sentimentos contaminado pela efervescência das hormonas? Sobre a espécie humana, as árvores apresentam uma vantagem desmedida. São silenciosas e nos dias de sol projectam uma sombra benfazeja. Li um romance em que a personagem central se transformava numa árvore. Parece bizarro, mas nessa transformação há mais sabedoria do que nas vãs pretensões que alimentam a mente dos homens. Enraizar-se na terra, estender-se para o céu e fazer um voto de silêncio para a vida. Talvez a perfeição não seja impossível.
domingo, 1 de dezembro de 2019
Dia da defenestração
Faz hoje anos que os Braganças substituíram os Filipes no
trono de Portugal. Por muito que goste de Espanha, e gosto muito, dá-me sempre
uma boa disposição particular o facto de não ser espanhol. Depois há aquele
pormenor insidioso da defenestração do Miguel de Vasconcelos. A política tem
destas coisas, uma certa tendência para o exagero e para actos irreversíveis. Ia
contar que a execução do colaborador dos espanhóis – supremo símbolo do traidor
em Portugal – tinha sido o primeiro assassinato político de que tinha
consciência. Seria uma mentira e embora seja obrigado a mentir muitas vezes
nestes textos não o faço de propósito. O primeiro foi o de John Kennedy e ainda
recordo o meu pai a comentar o assunto com a minha mãe. O caso do Vasconcelos,
narrado numa aula da escola primária por um professor ou professora patriota,
ficou preso à imaginação pela palavra e pelo modus operandi. Não era todos os dias que se ouvia uma palavra como
defenestrar, ainda por cima aplicada a alguém que não só não merecia ir para o
céu como todo o castigo aplicado era pouco. Não se pense que falar do céu é
coisa despropositada. Lembro-me muito bem, na sequência das aulas de história
recebidas naqueles tempos em que a razão não tinha sido contaminada pelo vírus
da crítica, de ter pensado como era bom pertencer a um povo cujos governantes e
personagens históricas eram não apenas grandes heróis como pessoas
particularmente santas. Deviam estar todas na glória de Deus. Talvez o feriado
de 1 de Dezembro sirva para assinalar o caso do único português que pela sua
aleivosia foi atirado pela janela e só parou de cair quando Satanás o apanhou e
o levou para o reino dos infernos. Ainda hoje dou comigo a pensar que as nossas
elites se já não são heróicas, os tempos não estão propícios para a coragem, continuam
firmes no caminho da santidade. Pelo menos, não tem havido defenestrações.
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