Cheguei à janela e disse é hoje. É tal o nevoeiro que D.
Sebastião não pode perder a oportunidade para regressar do seu infausto exílio.
Para tornar a hipótese verosímil, não sei bem onde, ouve-se a voz de Tony de
Matos cantar Tempo Volta para Trás.
Todos sabemos que a preocupação do artista não era propriamente o nosso pobre
rei maltratado nas terras da moirama, mas a Severa. Pensei de seguida que se D.
Sebastião chegasse agora ao aeroporto da Portela, logo a seguir viria a Severa
e os problemas que nos afligem ficariam todos resolvidos. Estou proibido pelo
autor destas palavras de ter opiniões políticas. Um narrador, diz-me ele dia
sim dia não, não se mete em política. Isso é coisa de autores. Eu anuo com
servilismo, mas sempre posso dizer que já conheci uns tantos D. Sebastiões, vi-os
chegar e partir e todos continuam à espera que ele chegue. Um domingo de
nevoeiro é sempre propício às minhas meditações sem nexo. Para tornar as coisas
mais densas, contrariamente ao que canta o artista, as horas para mim não são
dias, nem estes são anos. Aos fins-de-semana passa-se o contrário. Os anos para
mim são dias e os dias são horas. O que me atormenta não é que a Severa se tenha
ido, mas a possibilidade que ao virar a esquina dê com ela. Há encontros que
devemos evitar. O nevoeiro não faz intenção de se dissipar. Tenho de me
apressar, antes que D. Sebastião aterre, eu não possa acenar-lhe e gritar viva
o Rei. Ah, esquecia-me, de política não posso falar.
domingo, 26 de janeiro de 2020
sábado, 25 de janeiro de 2020
Exercícios melancólicos
Ser avô não é um dado, mas um exercício difícil e
persistente. Depois de um mês de afastamento, o meu neto esteve comigo.
Olhou-me com olímpica distância. Nos seus catorze meses mal condescendeu em estar
ao meu colo, embora lhe agradassem certas cabriolices que fazem parte do
repertório que qualquer avô tem para lidar com netos renitentes. Preferiu fazer
explorações solitárias. A certa altura descobriu umas pequenas pinhas que eu
nem sequer sabia existirem. Achou que as poderia partilhar comigo. Dava-me uma,
esperava que eu a devolvesse e colocava-a onde estava. Recomeçava de imediato o
jogo. Foi-se embora há pouco e deixou um buraco no meio do sábado. Deveria
remendá-lo, mas uma preguiça ancestral insinua-se em mim e prende-me a coisas
triviais. Depois de uma manhã ocupada, deveria ir à rua e comprar o jornal de
fim-de-semana. Há uns anos tinha uma verdadeira obsessão pela imprensa hebdomadária,
comprava uns quatro semanários. Depois, alguns foram morrendo, outros mudaram
de sexo e mesmo o que resistiu perdeu a aura sagrada que tinha naqueles anos.
Hoje olho com condescendência para a prosa que se produz. Se a leio é por
desfastio, muito longe do entusiasmo com que no final da adolescência ou início
da juventude comecei a comprar os meus jornais. Ó miséria, lembrei-me que
o primeiro jornal que comprei com devoção foi o Motor, naqueles anos em que as corridas de automóvel faziam parte
do imaginário de uma adolescência à procura de rumo, como todas as
adolescências. Agora sou avô e há muito que morreram em mim os ecos da luta
entre Jackie Stewart e Emerson Fittipaldi, entre os Tyrrell e os Lotus.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
Romantismo tardio
Rápida, a noite aproxima-se no veleiro do entardecer. Como asas gigantescas, as velas da tarde enfunadas pelo vento arrastam a luz e murmuram uma litania dolente para a semana que agoniza. Dois corvos levantam voo do pequeno bosque e desaparecem do meu campo de visão. Anjos negros à procura de almas perdidas nos interstícios da serra, esse conjunto de morros cinzentos, curvados sob o peso dos anos. Não é preciso muito para o romantismo voltar e exibir o seu coração descarnado diante dos olhos atónitos do espectador. A primeira vez que entrei na sede da CGD, na João XXI, em Lisboa, para ver uma exposição, pensei que tinha aterrado numa catedral transposta da Idade Média para os nossos dias. Uma visão romântica das novas divindades. Também hoje visitei uma capela do novo deus e não sei bem por que razão achei que estava num confessionário. Na avenida, os carros lançam já os seus holofotes sobre o horizonte. Circulam devagar, presos à escuridão que avança. Também eu tenho de sair. Esperam-me num café ou, talvez seja mais certo, não tenho nada para dizer. É sexta-feira.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Os quatro caracteres
A humidade destes dias abriu caminho por dentro da secura do
clima. Não é uma terra fácil. Exige um carácter compassivo mesmo aos mais
coléricos. Sem a virtude da paciência será difícil enfrentar e suportar os
humores climáticos. Tenho pena, ou não fora um exemplo de melancólico, embora haja
que descontar a tendência para a hipérbole, tenho pena, dizia, que a psicologia
se tenha vindo a esquecer daquela velha divisão dos caracteres em quatro, todos
eles belos como metáforas à deriva num campo em flor. Esta última frase
mereceria ser riscada e não sem violência. O apelo ao pathos através destas estratégias para caçar ingénuos deve ser proscrita.
Fica lá, só para eu não me esquecer que há coisas que nunca se devem escrever.
Voltando aos caracteres, eles faziam uma bela divisão com os seus nomes.
Fleumáticos, melancólicos, sanguíneos e coléricos. O facto de serem quatro
ainda os torna mais dignos de admiração. A perfeição do número par, que se opõe
à imperfeição de qualquer ímpar, contrasta com o caos classificativo com que
hoje em dia designamos as pessoas. Como se pode negar a eficácia de dizer ali
vai uma melancólica? É pena que tenha casado com um colérico. Assim nunca
poderá ter filhos fleumáticos. Tornou-se moda, uma triste moda, ser contra as
classificações. Por tudo e por nada, se grita não me classifiques que eu estou
para lá de todas gavetas com que organizas a realidade. Presunção e água benta,
penso eu, cada um toma a quer. Um ditado ao gosto popular nunca fica mal para
pôr fim a um texto.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Contemplação e pontos Cardio
Com tantos tortos por endireitar e o mundo tão fora dos
eixos, e eu sentado à secretária a pensar coisas que não hão-de salvar ninguém.
Foi o que me ocorreu quando dei comigo a olhar com demora a Adoração do Cordeiro Místico, do
retábulo de Ghent, uma obra dos irmãos van Eyck, agora restaurada. Se pensarem
como motivo da minha contemplação os olhos humanos do Cordeiro ou o jorro do
sangue do seu corpo para o cálice, estão enganados. O que me retém é a ordem
perfeita com que os adoradores são dispostos na adoração, não tanto porque essa
ordem seja uma convenção cristalizada dos poderes sociais, mas antes o
resultado da própria natureza mística da figuração simbólica do Cristo. Meu
Deus, um dia destes ainda me torno um erudito. Não devia dizer estas coisas,
pois contrariam a vulgata social que hoje faz de cartilha maternal pela qual
todos aprendem a ler o que se passa por aí. Recebo uma mensagem. A aplicação
que me controla o exercício diz-me que está tudo OK!, com exclamação para
enfatizar a situação. Depois percebo que é um estratagema reles para motivar-me
a estar ainda dezassete minutos activo e obter mais um ponto Cardio. Desconfio que se obtiver todos
os pontos Cardio em jogo ganho uma
viagem a Ghent, mas talvez o mundo não funcione segundo as minhas conjecturas
e, mal faça uma, ela receba imediata refutação. Uma outra mensagem põe-me
perante um dilema, plausivelmente falso. Será a amizade um sentimento ou uma virtude? Para
piorar as coisas, alguém que desconheço, de um país do leste europeu, pede-me
amizade. Não lhe consigo pronunciar o nome. Ainda bem que não é um pedido de
casamento, pois os meus pontos Cardio
não seriam suficientes para tamanha comoção.
terça-feira, 21 de janeiro de 2020
Pobre Katharina
Passo os olhos pelos jornais e descubro que cinco pinturas
roubadas há quarenta anos na cidade alemã de Gotha tinham sido recuperadas.
Entre elas encontra-se uma de Hans Holbein, o Velho, que o jornal indicava ser Santa
Catarina, um quadro de 1509. Havia naquela mulher uma tal tristeza que duvidei
que se tratasse de alguém tocado pela graça da santidade. É o retrato de Katharina
Schwarz, onde no lugar da beatitude se encontra uma infelicidade resignada com
o mundo e consigo mesmo. Procurei outros retratos de mulheres do mesmo Holbein.
Neles há sempre um elemento desconcertante, como se a beleza tivesse sido
proibida àquelas mulheres e lhes restasse apenas o ar austero para assegurarem
um lugar no mundo. Exceptua-se uma representação de Maria, onde o amor pelo
Menino a resgata dessa rispidez fria e lhe dá uma beleza contida e secreta.
Olho pela janela e descubro que sob a copa das árvores do pequeno bosque
consigo avistar uma rotunda cuja estatuária, tão do agrado popular, me faz
lembrar as soturnas representações do realismo socialista. Sorrio e volto os
olhos para a infeliz Katharina. Apesar da beleza das mãos, a imperfeição do
rosto rapta-a e cerra-a num mundo de onde nenhum príncipe, mesmo de gosto
plebeu, a há-de resgatar. Na rotunda, os carros circulam devagar, talvez em
contemplação, enquanto a minha memória me traz, sem que eu saiba a razão, um
filme alemão visto há uns anos com o estranho nome Adeus, Lenine! Pobre Katharina, pensei.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
Erros meus
Cometem-se erros por ignorância.
Não se sabe como se escreve um vocábulo, mas incitados pela preguiça natural
que faz parte do ser humano escreve-se aquilo que parece ser a palavra e não o
que ela é. Outros erros há que são mais interessantes. Sou atingido por eles
com regularidade. Ainda ontem escrevi usou no lugar de ousou. A quase homofonia
explica aquilo que os dedos, comandados por um cérebro confuso, digitaram.
Colocamos esses erros sob o manto do descuido e com este tapamos não o erro,
mas o que se passa na nossa mente, a ameaça de caos que a atinge. Semelhanças
diversas, com o passar do tempo, fazem com que as fronteiras que distinguiam
certas palavras sejam cruzadas e um caos ortográfico atinja as regiões
policiadas do léxico. Não deverias começar a semana – de trabalho, claro – com
meditações dessas, diz-me a consciência, sempre pronta para moralizar e dar
conselhos a quem não lhos pediu. Levantam suspeitas, continuou, e roubam-te o
ânimo para enfrentares os dragões, os quadrilheiros e as amazonas mórbidas que
te hão-de saltar ao caminho. Tapei os ouvidos interiores e pedi-lhe com
delicadeza que se calasse. Tenho uns emails para ler, decisões para tomar e,
acrescentei não sem acinte, sei tomar conta da vida sem que precise dos teus conselhos de rameira convertida em puritana. Vindo da praceta ao lado,
oiço um barulho. Parece um martelo a percutir pedra. Imagino que estão a cuidar
da calçada, mas retenho a curiosidade. Talvez seja uma ilusão e o melhor é não
a desfazer, antes que tenha de me interrogar por que razão ando a imaginar
coisas.
domingo, 19 de janeiro de 2020
Críticas impertinentes
Não sem um sorriso compassivo leio que Baudelaire e Verlaine seriam dois versejadores muito inábeis na forma e baixos e banais no conteúdo. Depois a diatribe continua por mais um parágrafo, dezassete linhas em que a espada crítica enche os alvos com vários golpes. Ambos sangram com abundância e, nos espectadores, há lágrimas a rolar pelas faces. Na continuação, conclui-se que tão má poesia é vista como genial porque na sociedade onde ambos versejam a arte não é levada a sério. Quem o disse, perguntará o leitor, dado à poesia, condoído do pobre crítico, que deveria saber tanto de literatura como eu de chinês. A vida é feita destas coisas. Comecei o domingo assim, com uma má leitura, dir-me-ão, mas não tarda ponho o livro de lado para ir ver a rua e deixar-me embalar pelas ondas luminosas que se desprendem do Sol. A natureza tem sempre o condão de lavar a alma, quando não é ela que a suja, pois esconde no mais fundo de si um verdadeiro talento para desencadear a concupiscência. Esta palavra recordou-me as quatros virtudes cardeais, mas só me lembro de três. A força, a temperança e a justiça. Dou voltas à memória e, como ela se ri das minhas pretensões, recorro à informação em linha. Ah, exclamei ao ver estampado num texto a sabedoria. É o que me falta para ser virtuoso, pensei, embora nem toda gente esteja de acordo sobre se essa é a única virtude que me falta. O leitor não desespere, porém. O autor impertinente que ousou afrontar Baudelaire e Verlaine também escreveu coisas como Guerra e Paz ou Anna Karenina. Vou almoçar.
sábado, 18 de janeiro de 2020
Heróis e peregrinações
Está um entardecer soturno o deste sábado. Passei a manhã a
trabalhar, depois acabei por ir almoçar ao bar da esquina. Contrariamente ao
que acontece à noite, tinha pouca gente, o que me permitiu ler umas páginas de
um artigo sobre ficção. Quando saí, voltei a aventurar-me pela cidade. A
continuar assim torno-me um verdadeiro peregrino. Isso recorda-me a peregrinatio ad loca infecta, de Jorge
de Sena. É isso o que eu sou, um peregrino em lugar infectado, e, posso-o
assegurar, também estou contaminado ou, o que será mais justo afirmar, sou um
dos contaminadores. Seria interessante contar aqui as peripécias da minha
caminhada, mas ela foi pouco aventurosa. Não tive de enfrentar gigantes, nenhum
bando de maltrapilhos me saiu ao caminho. Foi uma andança compassada e
pequeno-burguesa, de quem digere o almoço e aproveita os raios de sol para se
iluminar um pouco. O autor destes textos bem podia fazer de mim um herói dos
antigos, mas suponho que ele deve ter sido infectado por alguma literatice moderna
e acreditará em anti-heróis. Hoje surpreendi-o numa discussão com alguém
que não conheço sobre a natureza da narrativa, defendendo, contra a opinião do interlocutor,
que uma narrativa não precisa que todos os elementos se acordem e conjuguem,
pelo contrário. Convém que o texto seja atravessado por presenças e
acontecimentos inúteis e que nada contribuam para o desenlace da intriga.
Escondi-me, antes que ele desse por mim. Nessas coisas, não me meto. Faço o que
me mandam, pois este é o papel do narrador e o seu principal dever, que nem
sempre cumpro, é o da obediência. A luz, como um funâmbulo, equilibra-se no
arame esticado entre o dia e a noite. Não tarda e há-de despenhar-se. Talvez
ressuscite na madrugada.
sexta-feira, 17 de janeiro de 2020
Das placas toponímicas
Há muito que não fazia uma caminhada. Depois de um almoço tardio, em vez de me sentar e adormecer em frente do computador decidi pôr-me a andar. Literalmente. Cinquenta minutos por ruas e travessas. Aqui e ali, observava as placas toponímicas, as quais não poucas vezes têm motivo de meditação. Numa inscrevia-se o nome de um farmacêutico do século XIX, cujas virtudes desconheço por completo, outra dizia Rua do Jardim de Infância, embora não consiga perceber a relevância da escolha, imagino que deve ter sido objecto de profunda investigação. A vida na província tem sempre estas animações. O amor ao local é tão transbordante que o mais efémero merece aspirar ao reconhecimento eterno. Não deveria falar destas coisas, pois tudo se torna motivo de ofensa, mesmo a mais simples incompreensão. Aliás, nem deveria ler as placas. O verdadeiro caminhante vai de olhos em frente, concentrado no seu objectivo, sem deixar que as tentações literárias interferiram no mover das pernas. Que lhe interessa que o Largo General Humberto Delgado tenha sido em tempos Rossio de S. Sebastião? Desde que possa avançar passeio fora, o resto não tem relevo. Quando cheguei perto de casa, a luz do dia velava-se, mas as ruas ainda buliçosas estavam invadidas com gente a sonhar fins-de-semana, pais sem ocupação e avós reformados à espera de filhos e netos, que as escolas iam vomitando das suas entranhas. Nas esplanadas não havia anjos nem deuses, apenas pessoas enfastiadas. O langor das pequenas cidades inscreve-se no rosto dos habitantes, como um quebranto que reza alguma terá o poder de espantar.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
Problemas teológicos
O advérbio que não seria advérbio mas conjunção, depois de demorada ecografia, revelou o sexo. Afinal não era conjunção mas advérbio, um rapaz presumido pronto para qualquer conexão. Imagino que a continuar assim terei na classificação das palavras motivo de escrita para os próximos anos. Por causa das coisas, guardei longe de mim a gramática de Lindley Cintra e Celso Cunha, que tanta estima tinha gerado em mim, e coloquei em cima da mesa uma outra dita prática, daquelas de onde todo o gosto aristocrático foi banido em nome do respeito que se deve à ciência. Imagino-me já perdido nela em investigações sem fim sobre a nova nomenclatura. Percorro-a em diagonal e parece-me cheia de palavras bárbaras e expressões oblíquas. Isto digo eu que não pertenço ao clube dos linguistas e não me interesso por este tipo de teologia. Fora o problema da processão do Espírito Santo e outro galo cantaria. Até João Escoto Eriúgena haveria de citar, para dar ares de entendido. Um sopro roncante vindo da rua choca não sem ira contra os vidros. Forma-se então uma melodia em que o bafo acidulado do vento lembra o som de uma fita magnética a que se junta o batimento improvisado das persianas percutidas pela flébil mão da ventania. Ainda me acusam de não saber o significado de flébil e usar palavras a esmo. A música do mundo está onde menos se espera, pensei já esquecido da acusação. Janeiro desliza destemperado em direcção à foz. As suas águas, porém, não engrossarão Fevereiro, pois este, mesmo quando bissexto, debita menos tempo que qualquer outro dos rios que formam o grande lago do ano. Tamanha irregularidade mostra que a fonte de onde se deu a processão do calendário pouco devia à perfeição.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2020
Erros funestos
Ontem confundi uma conjunção com um advérbio. Dei por isso porque uma musa deleitosa, apesar de invisível, mo soprou ao ouvido. Há erros funestos, mesmo que tenha tido como auxiliares a minha desatenção, uma certa preguiça para consultar na memória a cantilena das adversativas e um dicionário famoso que, para me certificar sem esforço da classificação da palavra, consultei e me propôs um erro sem que eu pestanejasse. Não fora isso, e hoje não choveria a cântaros. É evidente que tendo em conta a quantidade de chuva, a causa não reside apenas no meu erro gramatical. Se fosse só ele, hoje o tempo seria de aguaceiros com boas abertas. O conjunto de erros gramaticais praticados ontem deve ter sido enorme, para que o tempo esteja assim. Por muito que esta teoria contrarie a ciência meteorológica, a verdade é que aquilo que acontece tem as causas mais insuspeitas. Nunca se sabe bem que erros sintácticos se cometem nos dias de Verão para que um calor abrasador caia sem piedade sobre nós. O céu que avisto daqui está escuro, mas vejo alguns telhados a reverberar o que indica que uma réstia de sol se infiltrou na densa cortina de nuvens. Daqui a pouco sairei de casa. Espera-me o suplício de Sísifo. Rolarei a pedra até quase ao cimo da montanha, mas algum pecado gramatical cometido na adolescência há-de arrastar-me encosta abaixo. Hei-de levantar-me e recomeçar a empurrar o penedo.
terça-feira, 14 de janeiro de 2020
Poréns
Quando fechei as persianas a noite ainda se apressava ao longe para chegar à hora marcada. O horizonte porém estava negro. Ao escrever isto, paro e fico a olhar demoradamente para a conjunção. Em certos países de língua portuguesa usam porém como nome, sinónimo de defeito ou mácula. Ela tem muitos poréns, imagino eu. Enquanto olho para a chuva penso que também eu possuo muitos poréns. Depois, tomo consciência da aliteração em p e deixo de pensar e de possuir, não vá ofender a estilística, fico só com os poréns. Cultivo-os como se fossem um dom precioso e com isso espero tornar-me virtuoso. Há dias em que não tenho nada para dizer, mas insisto em falar, muito gostava de saber por onde anda o meu amor ao silêncio. A mulher que sob um pequeno chapéu-de-chuva atravessou uma passadeira na avenida poderia dar uma história. Inventava-lhe um desgosto amoroso para explicar a pressa, o coração dorido pelo abandono, mas já ninguém quer saber de gente enjeitada e os abandonos são, num mundo como o nosso, uma oportunidade a reclamar o talento de quem foi trocado. Também as coisas do coração ou do sexo, para nos mantermos no estrito domínio da fisiologia, têm a sua economia e o mercado há-de ter os seus nichos à espera dos ousados que enfrentam com bravura uma ou outra falência. Os carros vomitam raios de luz que a chuva recorta em tiras, transeuntes recolhem-se nos estabelecimentos abertos e toda esta gente sem metafísica há-de chegar a casa. Resta-me comer chocolate com a mesma verdade que uma pequena o comia perdida num poema de certo autor cujo nome não me apetece citar.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2020
Jardins de Epicuro
A melancolia da manhã encheu a cidade com pequenos farrapos
de tristeza, vestígios de um Inverno que, passados os dias de chuva lacrimosa,
se negou a si mesmo, parecendo em ânsias para se tornar numa Primavera
exuberante nos seus rebentamentos. Ao longe, num campo de jogos, adolescentes
entregam-se ao futebol, jogo para que parecem ter uma infinita capacidade de
reinvenção, traçando regras que o momento exige, galgando por cima delas de
seguida, se atrapalham. Oiço o ronco de uma moto, um ronronar monocórdico
perfurado por rápidas acelerações, onde o motor guincha numa estridência de
irritar o mais indiferente dos homens. Dos homens e das mulheres, deveria
escrever, pois também as há envoltas no manto ondulante do epicurismo, com o
qual saem à rua, cultivam o seu jardim, e se abstêm das convulsões que um
excesso de pathos traz à vida. Conheci
algumas que se lavravam assim na vida, cujos casamentos se fizeram felizes por
imperturbados pelo ímpeto da paixão, mas devo abster-me da inconfidência, um
vício que a razão condena sem remissão. Em cima do muro da escola aqui do lado,
um gato pardo caminha devagar, tranquilo, sem exuberâncias de trapezista,
também ele um cultor secreto de Epicuro. Pára, agacha-se e fica especado a
olhar um alvo invisível. Arqueia o corpo e logo desce para o lado de lá,
desaparecendo da minha vista para entrar no jardim que o espera.
domingo, 12 de janeiro de 2020
Semanas de cinco dias
Fosse eu um revolucionário, e bater-me-ia pela semana de cinco dias. Três deles dedicados ao provimento de bens para enfrentar o mar encapelado das necessidades e dois para descansar dessa árdua corveia. Não se pense, porém, que o meu intuito é solapar a economia de mercado. Ela saberia adequar-se, talvez até em demasia, à nova realidade. A minha intenção é mais penetrante. Funda-se na ambição de dar uma maior racionalidade ao calendário. Passaríamos a ter anos com setenta e três semanas, nos quais desapareceria aquela incerteza de saber a que dia da semana corresponde o dia do mês. Estariam sempre casados, num casamento indissolúvel. Nas escolas, ao lado da tabuada ensinar-se-iam as correspondências entre os dias do mês e os da semana e ao fim de uns anos ninguém precisaria de consultar um calendário. Nos anos bissextos, como o actual, o dia superveniente seria declarado o dia órfão, pois não teria nem pai nem mãe, já que não pertenceria a nenhum mês nem a nenhuma semana. Poderia ser também chamado o dia sem-abrigo. Devido à sua superveniência, ocorreria depois do último dia de Dezembro e antes do primeiro de Janeiro. O que se faria nesse dia deixo-o à consideração do leitor. Tudo isto é muito mais razoável do que afinar os dias da semana com as fases da Lua, com o estendal de irracionalidades que isso traz ao mundo. O pior é que não tenho talento para revolucionário e acomodo-me desavergonhado com semanas de sete dias, impotente para enfrentar o obscurantismo desta divisão do calendário, produto da magia negra, a qual como se sabe tira a sua luz das fases lunares, fundamentalmente da lua nova. Alguém me diz, ou eu imagino-o, que também a minha mente é iluminada por essa luz. Não tenho ambição de contrariar seja quem for.
sábado, 11 de janeiro de 2020
Um problema de listagens
Há quem faça listas de coisas a fazer, de livros a ler, autores a conhecer, lugares a visitar. Também eu fiz listas sobre coisas diversas. Nunca tiveram, tanto que me recordo, qualquer préstimo, pois no fim de feitas nunca mais olhava para elas. Isto não foi um acaso, mas tendo em conta a frequência com isso sucedeu, só pode ter sido fruto de uma natureza geneticamente fadada para o descuido e pouco preocupada com a verificação. Há dias em que penso, talvez por algum transtorno momentâneo, que deveria ter ficheiros completos dos livros, música e filmes que fui adquirindo. Disponível no telemóvel, evitaria compras repetidas e a consumação da minha inegável tendência para a iteração. Nunca me ocorreu, todavia, começar a fazer esse tipo de base de dados. Hoje continuo a fazer listas, mas apenas se vou às compras. Faço-as com a esperança de não me esquecer de nada. Senti um pingo no nariz. Passei a mão por ele e era sangue. Levanto-me e antes de me levar confirmo, ao espelho, que era mesmo sangue. Estancado o corrimento, sento-me e anoto numa agenda: não tornar a falar de listas para evitar sangramentos do nariz. Agora vou saber como está a tarde na rua.
sexta-feira, 10 de janeiro de 2020
Ordens são ordens
Ordens são ordens, leio num livro que tenho em cima da secretária. Uma tautologia terá parecido ao autor destas palavras um início auspicioso para qualquer texto. O número de possibilidades é suficientemente grande para alimentar a escrita de textos anos a fio. Amanhã começaria outro dizendo maçãs são maçãs. No dia seguinte escreveria gritos são gritos. Não devias fazer-me utilizar a palavra tautologia, digo para o autor. Ele silencia-se como um cartuxo. Não resisto e continuo a catilinária contra ele. A palavra pode ter uma interpretação linguística e outra lógica, que não se deveria lançar a confusão na mente dos leitores. Ele olha-me com desprezo, enquanto eu acrescento usar tautologias não passa de um uso vicioso da linguagem. Cala-te, disse-me. O teu papel é o de narrador, portanto narra alguma coisa que mereça ser contado. Pensei que muitos são os eventos neste mundo, mas raramente encontro um que mereça ser narrado. O que gostaria de narrar seria não eventos. Por exemplo, falar daquele filho que não tive porque o espermatozóide se atrasou no encontro com o óvulo que estava à espera dele. Há desencontros assim que nos roubam a possibilidade de contar histórias interessantes. As sextas-feiras não ajudam a manter a razão num estado aceitável de sobriedade. O sol declina com rapidez e, de súbito, abrem-se os portões para as catacumbas da noite. Nestas soam as sete trombetas e as muralhas de Jericó do fim-de-semana desabam. Não tarda vem a segunda-feira, pois ninguém, apesar de assim ter sido ordenado, cuidou de fazer correr os filmes de sábado e domingo em câmara lenta. Alguém que não percebeu que ordens são ordens.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
Neblinas matinais
Durante a semana levanto-me todos os dias à mesma hora. O dia hoje mal tinha rompido. Ao abrir as persianas os meus olhos chocaram com a densa neblina que fazia o pequeno bosque da escola ao fundo parecer irreal, uma cortina incerta e escura sobreposta a outra cinzenta, misteriosa, feita de uma seda fina. O hospital e o colégio, onde gastei alguns, não muitos, anos da minha vida, tinham desaparecido, como se um taumaturgo os tivesse apagado, para gáudio de uma multidão embasbacada com a proeza. Percebi que na rua estaria frio e a minha memória genética rejubilou. Alguns dos meus genes devem ter vindo aos trambolhões dessa Europa fria, atravessada por nevoeiros densos e invernos rigorosos, pela qual o meu corpo suspira quando o Estio desalvora por estas terras, de onde os anjos fugiram há muito. Como todas as memórias, também esta há-de ser falsa, e os meus genes terão vindo de algumas tribos do sul. Um pombo decidiu vir arrulhar para o parapeito de uma das janelas. O som irrita-me, bato nos vidros e ele voa para outras paragens. Olho com atenção as árvores. Parecem um exército de gigantes marchando lentamente na planície. Às costas trazem mochilas e nas mãos metralhadoras que hão-de ser silenciosas. Sem barulho dispararão sobre o inimigo. Este resistirá com bravura mas, como acontece com todos os dias, acabará por se entregar, alçando uma bandeira branca para anunciar a noite. As botas cardadas ecoam nos meus ouvidos. Desligo-lhes o som e penso em tudo o que não me apetece mas tenho de fazer.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2020
Benchmarking
Vi muita coisa, disse para mim. Depois lembrei-me que a
frase podia ser um plágio descarado e decidi esquecer-me dela. Se a deixei ficar
onde estava foi porque não tinha outra para começar. Convém termos um armazém de frases para iniciarmos os textos, caso contrário ficamos com eles
encravados na ponta dos dedos, à espera da frase inicial para saírem teclas fora
e manifestarem-se como uma epifania na brancura imaculada do monitor. Só escrevo
no portátil, note-se. Nada de coisas manuscritas. Sou uma pessoa moderna e
sou-o há tanto tempo que a modernidade envelheceu em mim. Acabei de receber um convite
para gostar de uma página do facebook.
Vou ignorá-lo. Evite-se a poligamia ou, pelo menos, disfarce-se. Há quem
esteja disposto a gostar de qualquer página que lhe apareça. São os militantes do
gosto. Em certas alturas agarro a razão e prendo-a ali junto
ao cérebro. Tenho sempre a esperança de escrever coisas sensatas. O que
acontece, porém, é que nunca tive grande habilidade para fazer nós e a razão
escapa-se-me quando menos espero. Hoje foi por causa de uma palavra que
encontrei num documento que a realidade me mandou ler. A palavra era benchmarking. Mal a pobre razão deparou
com o vocábulo eriçou-se, retesou-se, quebrou a frágil amarra que a prendia à
massa cinzenta que ainda hei-de ter e fiquei neste estado. Sei uma quantidade
de histórias terríveis, mas também isto é plágio e o melhor é não contá-las. O sol matinal reverbera e uma luz quente entra pela janela. Lá fora está frio e isto é tudo o que sei do mundo. As minhas histórias não pertencem a este mundo
terça-feira, 7 de janeiro de 2020
Maldita realidade
O contacto com a realidade torna-me estúpido. Quero dizer mais estúpido do que estava programado nos meus genes e estes já continham uma dotação generosa de estupidez. A realidade é uma coisa tecida de fantasias, ilusões, jogos perversos, ideias gratuitas, pensamentos fúteis, acções vãs e o mais que não tenha pés nem cabeça. Quando tudo isto é misturado forma-se uma solução aquosa que faz lembrar um oceano revolto, continuamente alimentado por um turbilhão de coisas insensatas. Como num sonho caio lá dentro e farto-me de esbracejar para não ir ao fundo. Sou salvo pelo despertador. Encho os pulmões de ar, digo maldita realidade e tento recompor-me. O que quererá dizer esta alegoria, perguntará o leitor. A partir de certa idade começa-se a divagar e perde-se a capacidade de falar claro. Conheço casos mais radicais que o meu. Gente que começou a diminuir o número de palavras que usa. Os melhores chegaram ao silêncio. Não perguntam, não respondem, não dizem. Só abrem a boca para comer, beber e bocejar. Foram directos ao assunto e, em vez de divagarem através de alusões inócuas e destituídas de sentido, calaram-se. Eu ainda preciso de emitir sons, embora quem os ouve há-de julgar que rifei a razão numa quermesse de festa de aldeia. Talvez não esteja completamente fora da verdade.
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