sábado, 4 de julho de 2020

Faltar à verdade

Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram, também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder. Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo. Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar, fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Caminhadas e caminhantes

Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo. Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes, uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários, rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto, falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa, uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido dos anjos meus vizinhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Desaguisados e protozoários

Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida. Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime. Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos. No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade, que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Bocejo

Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche, pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria, o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Nada de sedições

Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz. Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo, aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal, ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando, para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo, a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Evitar a mentira

Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito. Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos, há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí, quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini, que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus, talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta. Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para narrar.

domingo, 28 de junho de 2020

Nem uma epopeia para narrar

Cheguei a meio da tarde sem nada para narrar. Sou um narrador digno de compaixão. Se tivesse competência, mesmo a um domingo encontraria uma gesta para descrever, uma situação épica para partilhar, uma tragédia para contar. Bem me esforcei. Saí de casa, caminhei, fui a um café, depois fui trocar um candeeiro que tinha comprado, mas que não funcionava. Este episódio não seria destituído de mérito, pois acabei por não o trocar, já que funcionava na perfeição, só que, motivado por não ter os óculos ou pela estupidez natural que me saiu em sorte, não li a inscrição ON/OFF. O vendedor e eu rimo-nos, ele com vontade de me chamar idiota, eu com vontade de corroborar o pensamento dele, mas o comércio é uma coisa civilizada. Ele não perderá nada em evitar dizer o que pensa e eu lá hei-de voltar para comprar outro candeeiro, só para mostrar que, apesar de idiota, sou um aprendiz esforçado e que à segunda tentativa consigo pô-lo a acender e a apagar, mesmo sem óculos, mesmo que lá esteja escrito ON/OFF. Isto, porém, não dá uma epopeia, nem uma tragédia e para comédia o enredo é curto. Também é verdade que cheguei muito tarde ao mundo. Tudo o que era digno de ser narrado já o foi. Resta sentar-me na varanda, acender um cigarro, apesar de não fumar, deixar o fumo enovelar-se e subir aos céus como se fosse incenso, enquanto pássaros e anjos voam de um telhado para o outro. Na praceta passa alguém que conheço bem, mas fico grato por estar onde estou e de não ser visto. Hoje é domingo, dia 28 de Junho. Celebram-se 182 anos que Vitória foi coroada rainha de Inglaterra, ela que se chamava Alexandrina Vitória. Há 106 o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro do império Austo-Húngaro, foi assassinado, o que contribuiu para o início de uma ampla carnificina a que, posteriormente, se deu o nome de primeira guerra mundial. Ainda no dia de hoje se celebram os 101 anos da assinatura do Tratado de Versalhes, que pôs fim à carnificina e lançou os alicerces de onde emergiu a segunda. Não me tornei um divulgador de efemérides, mas estas informações servem para mostrar que se não escrevo uma epopeia, o problema não estará no assunto, mas no talento do autor, que se recusa a pôr-me a escrever sobre tão elevados temas.

sábado, 27 de junho de 2020

Complemento oblíquo

Acordei cedo e acabei por ir caminhar pelas ruas. Fiz seis quilómetros para ir de casa e chegar a casa. Sou dado a coisas inúteis como deslocar-me para chegar ao mesmo sítio. Fora eu bafejado pela lotaria genética e evitaria humilhações destas. Quem se desloca quer ir de um sítio para o outro. Como nunca soube a onde queria chegar acabo sempre, por mais que me esforce a andar, por ir dar ao sítio preciso em que me encontrava. Nisto sinto-me próximo dos pilotos e fórmula 1. Andam ali às voltas no circuito, a velocidades estonteantes, a vida em risco, para chegarem à meta de onde partiram. Eu sou como eles, mas não uso carro e ando devagar, pois se é para chegar ao mesmo sítio, ao menos que demore mais tempo possível. O jornal que costumo ler substituiu o ranking do coronavírus pelo ranking das escolas. Em ambos se faz notar o desejo de uma vacina que trate as viroses que por aí proliferam. Estou ensonado. Por desfastio abro uma gramática de língua portuguesa e deparo com a belíssima denominação complemento oblíquo. De todos os complementos, o que mais amo é este. O que são, ao pé do oblíquo, os complementos directos, indirectos e agente da passiva? Nada. Só o oblíquo me faz pensar na chuva oblíqua e leva a minha mente, como se entrasse em transe místico, a recitar arrebatada Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios / Que largam do cais arrastando nas águas por sombra / Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... E aqui está o problema que é o meu. Se em vez de andar a pé viajasse num navio, num veleiro, num grande transatlântico, haveria de sair de um porto e ir dar a outro e tudo faria sentido, mas a água não é o meu elemento e assim sou coagido a viajar por terra para chegar ao lugar onde estava. Dias como os de hoje parecem-me funestos para a sanidade mental. A semana foi terrível e, na verdade, fartei-me de trabalhar para fazer aquilo que tinha feito. O que me salva os dias é o complemento oblíquo, mas perde-me o olhar oblíquo que me deitam por não ter vergonha de escrever inanidades e publicá-las. São o retrato da minha vida, a minha verdade, o que mais posso fazer? Hoje é sábado, dia 27 de Junho. Os dias estão a encolher e ninguém protesta. Oiço um galo a anunciar a aproximação da derradeira etapa do dia. É inverosímil, mas mesmo numa cidade se podem ouvir galos. A gramática mostra-me uma frase monstruosa e começo a temer se não encontrarei nela um exemplo extraído destes textos. Tenho de ir comprar um candeeiro para ligar à ficha USB do computador e uma extensão para me ligar à realidade.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O que se avista de uma varanda

Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves, aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão. Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande. Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra, mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu, foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu, os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia? É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais, para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

O zimbório zumbe

Depois de almoço, quase frugal e quase abstémio, fui assaltado por uma palavra. Entrou-me na consciência e não me tem largado. A quem devo apresentar queixa por esta violação da liberdade de pensamento? Não faço ideia por que razão zimbório canta dentro de mim. Não avisto nenhum e não me deu um súbito interesse pela arquitectura, por cúpulas e dispositivos afins. Há na palavra uma sonoridade exuberante e talvez seja isso que me tem prendido a ela. Não deveria escrever tudo o que me passa pela cabeça, não contribui nem para a minha sanidade mental nem para a reputação, ambas já muito desgastadas. Observo ao longe uma rapariga absorta, não há como o eufemismo para suavizar a marcha do tempo. Conheci-a numa outra encarnação ou talvez apenas imagino que a tenha conhecido. Abre os olhos, mas a realidade escapa-lhe, como a beleza se lhe escapou, como os sonhos se finaram na blusa de seda em que nenhum olhar, excepto o meu, pousa. Um cão pára junto a uma árvore e, alçando a perna, marca o território, num assomo de proprietário. O zimbório, porém, não deixa de zumbir em mim. Descubro que uma nova tradução de A Montanha Mágica foi colocada no mercado. Li o romance de Mann na tradução de Herberto Caro, para os Livros do Brasil. Depois, comprei a da D. Quixote e ofereci a que lera. Perante o encómio da nova tradução, já decidi que a vou comprar, depois alinho-as lado a lado na estante. Quando me der a vontade de reler a obra, pego nelas e vou pesá-las. Lerei a mais leve. O critério é mau? Eventualmente, mas mais vale ter um critério mau do que nenhum. Ou será ao contrário? Hoje é quinta-feira, dia 25 de Junho. As palavras associam-se dentro de mim. O zimbório zumbe na cúpula ou na cópula, ou apenas na consciência vazia que para evitar o naufrágio se entrega às leviandades que a assaltam. O dever chama-me.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O pior é a Kryptonite

Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade, ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer hashtag, o que acrescentaria modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos. Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo, cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum lado ou de fugir dela.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Um narrador sem assunto

A barafunda veio para ficar, foi o que ouvi quando, hoje de manhã, caminhei pelas ruas. Não foi um grande passeio, mas um pequeno giro de desentorpecimento mental. Chegado a casa fui informado de que a orquídea branca está completamente desaustinada. Uma qualquer euforia tomou-lhe a vida e ela continua a desfazer-se em flores. Está nisto há bem mais de um ano e não tem aspecto de querer parar. As folhas, todavia, estão a trocar o verde pelo amarelo. A vida corre-me num torvelinho, os neurónios estão em turbilhão e o tempo está cada vez mais quente. Dedilho as tarefas que tenho pela frente e não me parece que os próximos dias sejam promissores. A tarde avança com os seus pelotões sombrios. Marcham em cadência militar, batem as botas cardadas no chão, olham impantes sem nada ver. Nas janelas, os mortais observam-nos com temor, não vão eles apontar-lhes o lança-chamas e deitar fogo à casa, à vida, a sabe-se lá o quê. O que achas disto tudo, perguntaram-me no outro dia. Encolhi os ombros e disse que não achava nada. Já são poucas as coisas sobre as quais tenho opinião e a minha esperança é a de deixar de ter opinião seja sobre o que for. Na passadeira, afogueada e vestida de Verão, uma mulher jovem deixa que os olhos repousem sobre ela, fingindo que não sabe, mas a passadeira é curta e no passeio a luz e as sombras mesclam-se num tecido que turva os olhares. Hoje é terça-feira, dia 23 de Junho. Há 192 anos Miguel de Bragança foi aclamado rei de Portugal. Eis uma informação que não serve para nada, a não ser para dar um matiz histórico ao fim desta narrativa de um narrador sem assunto nem personagens.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

A loucura normal

É o senhor? Sim, sou eu. Está em casa? Estou, estou. É que eu tenho uma encomenda para lhe entregar. O andar é… Não posso subir por causa desta coisa, tem o senhor de descer… Está bem, se é por causa dessa coisa, eu desço. Espere, vou ver se cabe na caixa do correio. É uma ideia. Olhe, cabe mesmo. Óptimo, muito obrigado. Está então a encomenda lá em baixo, ainda por cima vinda da China para me deixar ler noite dentro, e eu aqui em cima. Bem tenho de me despir e vestir para ir à rua. Não posso esquecer de levar máscara para viajar no elevador. Abro a porta, chamo com a ponta da chave o elevador. Ele vem e eu digo ao diabo, abro-o com as mãos e desço. Também escancaro a porta da entrada com as mãos. Vou ao correio, resgato a encomenda e correspondência avulsa e, sem nunca tirar a máscara, entro no elevador, saio, reentro em casa já descalço, fecho a porta, desinfecto as mãos e tiro a máscara, depois de pousar em lugar seguro o que tirei da caixa do correio, dispo-me, penduro a roupa de ir à rua, visto-me, desinfecto as mãos, abro a encomenda, deito o plástico envolvente para reciclagem, em lugar seguro. Abro a caixa, deito-a no sítio para reciclagem e penso que o dispositivo, que já deve andar em viagem há umas três semanas, ainda por cima protegido por plástico hermeticamente fechado, não precisa de ser desinfectado, mas desinfecto-o, não vá o diabo tecê-las e ele é muito dado a tecelagens. Ainda por cima uma coisa vinda da China, sabe-se lá por onde andou. Depois, desinfecto-me a mim. A seguir deveria marcar consulta num psi qualquer. Não o faço, mas lembro-me do título de um filme de Marco Ferreri, baseada num livro de Charles Bukowsi, Contos da Loucura Normal, a Ornella Muti ia muito bem no filme, mas já não me lembro de nada. Isto é um filme, anoto, feito de contos de gente enlouquecida, e a loucura está a tornar-se normal, embora a Ornella Muti já não tenha 25 anos, nem eu. Sim, estamos todos a enlouquecer, tanto os que se cuidam, como os que se descuidam e os que acham que umas festas dionisíacas vêm mesmo a calhar, pois Apolo anda distraído, também de máscara e venda nos olhos. Hoje é segunda-feira, dia 22 de Junho. A temperatura está a subir e a vida tornou-se uma trapalhada sem fim. Se não tivesse a tarde ocupada iria rever o filme do Ferreri. Sendo assim, enlouqueço mesmo sem filme.

domingo, 21 de junho de 2020

Começa o conflito


Hoje é o primeiro dia de Verão e a temperatura já ousa passar os 30 graus, prometendo escalar o conflito nos próximos dias. Tenho de imaginar estratégias de autodefesa, mas ando demasiado ocupado e não tenho tempo para frequentar o von Clausewitz e o Sun-Tzu. Comecei a trabalhar ainda antes das nove da manhã e tenho uma tarde e noite dedicadas ao culto das necessidades. Ontem fiz uma caminhada à noite. A cidade e o movimento eram iguais aos de outros tempos. Uma pessoa caminha furtiva entre sombras, deixa-se guiar pelo hábito e vai olhando para o que acontece. Uma vez por outra, lá passa um viandante ou então alguém que ainda não tem vergonha de correr em público. Um grupo de jovens em quase pós-adolescência faz umas acrobacias de bicicleta, fendendo a noite com o seu gargalhar cheio de incertezas. Depois, as trevas tomaram conta do mundo. Hoje ainda não espreitei a avenida, desconfio que as pessoas se preparam para os almoços em família, caso a tenham. De resto, o vento eriça as folhas das árvores, fá-las tremer e ondular, enquanto as sombras se escondem debaixo das copas e a luz dá uma coloração de antimónio ao verde cinza das oliveiras. A minha mente parece um depósito vazio, mas não vale a pena enchê-la, de tão esburacada que está. Hoje é domingo, dia 21 de Junho. Leio nos jornais que a polícia tem agora uma nova função, a de dispersar as pessoas que se juntam às centenas talvez com a esperança de se infectarem e de lançar o país no caos. Não há nada como medo, pensei. Estás pouco iluminista hoje, disse-me o daimon que vive em mim. Pois estou, talvez nunca tivesse acreditado muito no progresso da razão e da moralidade humana. Calo-me, antes que me torne um reaccionário adepto do absolutismo e o texto comece a tornar-se desmesurado.

sábado, 20 de junho de 2020

Divagações por territórios inóspitos

Avanço com pouca diligência por um lugarejo perdido no Tennessee. Nesses anos, os que ligaram uma guerra mundial a outra, a lei seca criou uma coorte de bootleggers, perseguida com afinco pelas autoridades, o que prova que é a lei que faz o criminoso. Falo do primeiro romance de Cormac McCarthy, O Guarda do Pomar. Aquele é um universo estranho para um europeu e essa não será a menor das virtudes da literatura, colocar-nos em mundos excêntricos, fazer a imaginação raptar-nos da nossa instalação sedentária e obrigar-nos a territórios inóspitos e vidas extravagantes. Também um leitor americano poderia pensar o mesmo se confrontado com uma narrativa passada nas terras em que os homens teimam, não se sabe bem porquê, a pegar touros bravos de caras, touro e homem a olharem-se nos olhos, a espreitarem-se, a estudar como se hão-de encaixar e acabar com aquela incerteza, para que haja aplausos e a banda filarmónica se desfaça em música. Eu sei que o universo das touradas é um território minado, pronto a explodir numa paróquia desejosa de pegar fogo por tudo e por nada. Não sou dado a verónicas e a chicuelinas, nem uso palavras como faena ou tenho especial predilecção pelo paso-doble, mas grandeza, mesmo se inútil, haverá no homem que enfrenta sem nada nas mãos um animal daqueles, ainda que cansado e sangrado, grandeza, mesmo que tinta de loucura, haverá no matador que joga a sua vida contra a de um miura. De resto, a tauromaquia não me interessa para nada, mas isso não a distingue de milhares de outras coisas que também não me interessam. Há pouco, ao espreitar, a Sá Carneiro, o movimento dos carros parecia a de um sábado pré-pandémico. As pessoas na rua conversam, enquanto o Sol sobe no céu e as sombras vão minguando na Terra. Uma mosca pousou na parte exterior do vidro da janela, mas logo partiu. O fim-de-semana desdobra-se diante de mim, tem ainda as mãos limpas, sem sombras nos dedos ou sangue nas unhas. A inocência todavia é coisa que se perde com facilidade e, com o passar das horas, a exaltante candura inicial dará lugar à cínica condescendência de quem vive com o que tem de ser, antes de chegar a melancolia elegíaca com que os ombros se encolhem perante o que está a chegar, descobrindo no fim-de-semana as mãos pretas de sujidade e as unhas tintas de sangue. Talvez tenha acordado com a velha disposição para a hipérbole. Hoje é sábado, dia 20 de Junho. O solstício de Verão está marcado para as 22h e 44m e os dias começarão a declinar. O Tennessee naqueles dias escolhidos por McCarthy para o seu primeiro romance era um lugar difícil, mas também, chegados os calores, o abrigo da Serra de Aire, com o seu sistema de grutas e acontecimentos inusitados, não é fácil.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Diferenças ontológicas

Devias paragrafar estes textos, mudas de assunto a torto e a direito e vai tudo de seguida, as pessoas cansam-se. Uma das coisas que há para aprender na vida é que não se deve dar atenção ao que diz aquele daimon, como se translitera o raio da palavra?, que vive dentro de nós para expelir, a torto e a direito, opiniões que não lhe pedimos. Sim, não foi apenas Sócrates que teve um daimon, eu também tenho um e conheço pessoas que têm vários. Esta será aliás a melhor explicação para a heteronímia de Fernando Pessoa, embora me abstenha de dar opinião sobre tal assunto. Respondi-lhe, ao daimon, que sou dado a monoblocos, portanto fazer parágrafos nestes textos está fora das minhas cogitações. Ainda bem que não te dá para escreveres romances, atirou ele, pois teríamos oitocentas páginas com um único parágrafo. Olhei-o de soslaio, ameaçador, e ele desapareceu para as caves da minha consciência. Quando não temos nada para dizer sobre o mundo, como é o meu caso, inventamos coisas sem nexo, só para preencher o espaço em branco. Ontem o meu neto esteve aqui e confirmei que existe uma diferença ontológica entre rapazes e raparigas. Quando as minhas netas tinham a idade dele, mesmo a mais azougada, e azougue e autoridade não lhe faltavam, se sentadas comigo à secretária, ficavam a ver em sossego A Galinha Pintadinha no computador, negociando apenas o episódio que se seguiria. Ele, ao fim de uns minutos de ambientação, achou que o programa não seria ver a Masha e o Urso mas trepar para cima da secretária e mexer nos monitores, nos teclados, no rato e no mais que houvesse à disposição do dedo em riste. À minha frente tenho uns livros, na verdade são apenas dois, de um filósofo norte-americano sobre a construção da realidade social. Talvez ele me explique por que razão um aglomerado de electrões e protões fica quieto a ver a galinha pintadinha e o pintinho (é assim mesmo) amarelinho e outro julgue que a sua função é cabriolar em cima de secretárias. Hoje é sexta-feira, dia 19 de Junho. A semana desliza para o momento em que entregará a alma ao criador. Num poema de Eugénio de Andrade leio Toda a manhã procurei uma sílaba, mas noutro de Luís Quintais depara-mo com uma resposta extravagante Cruéis miragens, / pânico de moribundos. Evito a discussão e fecho ambos os livros. Consta que a epidemia continua e os infectados se multiplicam. Acho que vou almoçar. Eis uma coisa que me devolve a humanidade.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A blasfémia do Rei Afonso X

Ao levantar-me fui espreitar a rua para ver a máscara com que o dia se apresenta. Como se fora vítima de um sortilégio, fiquei a olhar a luz, as sombras e as folhas batidas pelo vento. Transportado para o mundo arcaico da infância, reconheci aquela tonalidade da luz da manhã, o ramalhar das árvores e o alongamento disforme das sombras, lembrando fantasmas e monstros. O fascínio não nasceu da evocação do passado nem da saudade desses tempos, mas da constância que se esconde por debaixo do turbilhão do mundo. Eram a mesma luz, o mesmo vento, as mesmas sombras. Também Parménides e Platão ficaram fascinados pela permanência e pela imobilidade, esses quase milagres num mundo que parece ser uma máquina de produzir metamorfoses e inconstâncias. A meditação logo se interrompeu. O canto de um pássaro, o grito de uma criança, o barulho rugoso de uma máquina e o mundo desassisado de Heraclito retomou o seu lugar. De imediato, as coisas começaram a transformar-se, o telemóvel a disparar avisos e as corveias quotidianas a chamarem-me. Mandei-as calar, mas recusaram-se e não tive outro remédio senão começar a fazer pela vida. Agora escrevo e observo o mundo a partir da minha secretária e não sei o que fazer com ele. Talvez não fosse ociosa a discussão sobre se este é ou não o melhor dos mundos possíveis. Se a resposta for sim, nem quero imaginar como seriam todos os outros. Seja como for, muito eu gosto de usar bordões e frases feitas, o melhor é não me aventurar em blasfémias como aquela que perdeu o sábio rei Afonso X de Castela. Se eu houvesse podido aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Nunca se sabe se os pombos que por aqui volteiam nos ares são ou não anjos e sendo, não sabemos se eles são dos caídos ou dos fiéis. Todo o cuidado é pouco e mesmo para lidar com pombos ou anjos é recomendável que se use máscara. Muitas coisas haveria para discorrer, mas o melhor é não maçar o leitor. Hoje é quinta-feira, dia 18 de Junho. Uma sirene anuncia a chegada das treze horas. Suponho que é tempo de pensar em almoçar, em vez de estar a carregar nas teclas para escrever um punhado de tolices. Não me conformo porém com o desprezo de Sancho, filho e sucessor de Afonso, pela última vontade do pai, a quem traíra. Pedira este que o coração fosse enterrado no Monte Calvário, talvez para se fazer perdoar da blasfémia, mas o filho deixou-o a apodrecer em Sevilha e, como se sabe, as coisas em Sevilha apodrecem muito depressa.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Preservativos faciais na meia-estação

Fui obrigado a retroceder. Já me tinha estivalado, já olhava com desconforto para o termostato, pensando que ele só serve para dar ordens de aquecimento e não de arrefecimento, quando a impância, e esta é a segunda palavra acabada de inventar, do Verão antecipado foi quebrada, a soberba da estação que se aproxima calcada na praça pública e eu tive me vestir à meia-estação, seja lá onde for que há uma estação que é apenas meia. O mundo está cheio de designações cujo sentido é obscuro, o que é uma vantagem para certos filósofos que à falta de melhor corrigem a linguagem. Isso talvez não seja pior que corrigir o mundo, como pretendem outros. Eu também gostaria muito de possuir um ânimo corrector, do género que habita a alma não dos filósofos mas dos correctores ortográficos. Quando algo em mim fosse sublinhado a vermelho, clicava no botão direito do rato e mandava substituir. Se não houvesse substituição disponível, mandava adicionar à minha natureza. Seria um defeito mas pela sua singularidade talvez se transformasse em virtude. Não está a ser um mês fácil, este Junho. Na esplanada do café aqui ao lado, estão as mesas dispostas com intervalos de segurança, à espera que pessoas com máscaras se sentem nelas, para depois tirar esse novo preservativo facial. Ninguém aparece, mas ao escrever preservativo facial tive uma epifania e percebi a natureza erótica de tudo o que se passa. Não entrarei em detalhes, mas a junção de face, boca e o que mais se deve mascarar por uma questão de segurança não terá deixado de dar ideias estranhas ao deus Cupido, isto para nos mantermos no nível da alta cultura clássica. Descobri ontem que há uma nova tradução da Eneida, de Virgílio, ao que consta muito boa. Vou encomendá-la, mesmo que alguém tenha dito em voz alevantada Cessem do sábio Grego e do Troiano / as navegações grandes que fizeram. Hoje é quarta-feira, diz 17 de Junho. Leio no jornal que a China parece estar a reconfinar e que as faculdades de medicina portugueses recusam abrir mais vagas para candidatos a senhores doutores. Fora eu um sábio como aqueles que existiam no Antigo Testamento, ou mesmo na Grécia antes desta se ter entregado nos braços dos filósofos, e diria nada de novo sob o Sol, mas não digo, pois propus-me, quando acordei, a evitar lugares comuns.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Deu-lhes um tranglimango

Pobres orquídeas, deu-lhes o trangolomango. Não, o que lhes deu foi mesmo o tanglomanglo. Para não faltar à verdade aquilo que muitas vezes ouvi foi coitado, deu-lhe um tranglimango e foi-se desta para melhor. Aliás, é a forma sonora mais agradável, mas nenhum dicionarista, nem o Houaiss, se dignou vir aqui, a este nobre rincão, para registar o uso da corruptela. Seja como for, alguém deitou um feitiço às orquídeas e elas perderam a cabeça. Começam a despir-se, em sessões de strip-tease, como se o friso onde habitam fosse um cabaret. Já as intimei a comportarem-se, mas elas olham-me com olímpico desprezo e deixam cair, com ademanes desapropriados, mais uma flor. Isto levanta um problema filosófico dos mais difíceis, o da relação entre o mal moral e o mal natural. Muito se discutiu sobre a ligação entre os desmandos da natureza, terramotos, furacões, epidemias e outros, com a maldade humana, a imoralidade com que os homens conduzem as suas vidas. Chegou a supor-se que a maldade da natureza era um castigo da maldade dos homens, mas ao olhar o desaforo das orquídeas percebe-se que o problema é mais complexo e que a própria natureza possui uma propensão para a imoralidade que convém castigar, embora não se saiba quem aplicará tal punição. Ao olhar para o que está escrito perguntei-me se o acentuado arrefecimento nocturno terá alguma influência no meu estado mental, na decomposição de que o texto é um sintoma a não desprezar. Ando há dias para me lembrar do nome de uns arbustos de jardim que dão umas flores assalmonadas e viscosas, é o que me parece, e que polvilham a escola aqui ao lado. Não consigo. Presumo, ao olhar para a minha agenda, que o dia não vai ser fácil. Na secretária estão umas moedas que, esquecidas num bolso, foram à máquina de lavar. Das sete, apenas três são portuguesas. Um euro alemão e outro espanhol, vinte cêntimos franceses e dez cêntimos holandeses. Talvez a União Europeia seja isto, a possibilidade de andar com moedas vindas sabe Deus de onde e de as lavarmos na máquina, para as purificarmos e evitarmos que se transformem em orquídeas dadas ao strip-tease. Hoje é terça-feira, dia 16 de Junho. O sol desce vagaroso sobre os telhados do casario, tomado por uma anemia que nos protege dos seus furores. Na rua, há gente a conversar e no telhado do prédio em frente dois pombos imitam anjos prontos para se precipitarem na balbúrdia humana. Como sempre, nada de novo sob o Sol.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Aproximação ao solstício

Hoje é um dia de difícil gestão, como o vão ser os próximos. Ainda por cima a herança genética recusou-me a inclinação para gestor, de tal maneira foi veemente a recusa que nem inveja sinto por quem é CEO – consta que significa chief executive officer e é uma das novas fontes de poluição da linguagem – quanto mais por quem não passa de simples gestor de produto. Não tenho alma de pastor nem de pai dos povos. Eu sei que todas estas metáforas vêm de lugares diferentes, mas no fundo assemelham-se, apenas as cores originais as distinguem, mas cor é coisa que facilmente se muda. Ainda não pus um pé na rua. O dia está melancólico, talvez pela aproximação do solstício. A Primavera exausta caminha em direcção ao Verão e, não tarda, os dias começarão a declinar, dando lugar a noites cada vez maiores, mais negras, mais opacas. Ontem, quando cheguei, havia uma grande confusão no friso das orquídeas. Flores tombadas, folhas cobertas de uma viscosidade doentia, um ar de abandono. Uma, completamente despida, parece que não resistirá. Oiço vozes na rua, vozes como antigamente se ouviam. Não percebo o que dizem, mas pela toada trata-se de conversa pacífica, algumas asserções sobre a vida, uma experiência que se narra para edificação de quem escuta, talvez um desfiar de velhas máximas entrecortadas por comentários. Apesar do vírus não se entregar, as coisas do mundo vão voltando com os seus dramas e as suas comédias, sendo uns o reverso das outras. Deveria dormir uma sesta para compensar as horas em que durante a noite o sono me abandonou. Hoje é segunda-feira, dia 15 de Junho. À meia-noite, o mês terá completado metade da sua existência, mas não encontro préstimo para esta informação, como não o encontro para quase todas as outras. As pálpebras, pesadas, podem-me que as deixe fecharem-se, mas eu pergunto-lhes se me julgam espanhol. Elas recuam no pedido e atarantadas deixam-se ficar entreabertas, para que os olhos vejam o que está diante deles, mesmo que eu não perceba o que é.