quarta-feira, 10 de junho de 2020

A vida assim

São precisas umas coisas do supermercado. Muito bem. Entra-se no carro e vai-se direito ao templo onde o necessário é vendido como se de uma simonia se tratasse. Quando se chega, descobre-se que são muitos os que tiveram a mesma precisão, uma fila enorme de fiéis que tenta manter a distância e aguarda que o acólito lhes dê entrada. O carro nem pára. O melhor é ir a outra paróquia. Constata-se que a nova igreja tem menos fiéis. Onde está a máscara? Põe-se a máscara, entra-se, higieniza-se as mãos e lá se descobrem as coisas de que havia precisão. Não me agradam os vinhos que por aqui há, digo. Sai-se, tira-se a máscara e sorve-se o ar lentamente. Uma esplanada à espera. Quero ver o que há para comer. Onde pus o raio da máscara, pergunto-me. Lá a descubro. Ponho-a, entro, higienizo as mãos e escolho. Saio, sento-me e tiro a máscara. Torno a sorver o ar com lentidão. Uma chamuça, ainda antes do almoço, oiço. Haveria de ser um rissol, um croquete? É o que há. Também quero avô. São duas, então. Temos de tornar a higienizar as mãos, pergunta a mais nova, para logo querer saber se há bolos. Não há. A vida agora é isto, já nem sei onde pôr as mãos, os olhos, a boca, o nariz. Vale-me a chamuça, que me há-de aumentar o colesterol, mesmo se higienizo as mãos. Chegado a casa ligo o computador depois de higienizar as mãos e mudar de roupa. A máquina informa-me que está actualizar, só mais um momento, mas este dilata-se, dilata-se num nunca mais acabar. Pego num livro de poemas e num verso vejo a palavra inconsútil. Franzo o sobrolho. Não seria melhor usar sem costura, interrogo-me. As actualizações continuam. Só um momento, não desligue o computador. Não desligo e agradeço por ele não me tratar por tu, ao menos ele, dou-lhe os momentos todos e até me actualizava a mim se pudesse, só para lhe agradar. Leio desci pela imponente escada da juventude e fico perplexo, o que fará ali o adjectivo? Os pneus das bicicletas estão vazios, retine nos meus ouvidos. Eu sei, já trato disso, respondo. Hoje é quarta-feira, dia 10 de Junho. A pátria celebra-se na voz do presidente. O cardeal poeta assevera que Camões desconfinou Portugal e eu penso na chamuça, nos meses que passaram sem ter ido a Lisboa, que não ponho um pé num restaurante indiano ou goês, que não deixa de ser indiano, mas tem um travo do desconfinamento camoniano. Tenho de procurar a bomba das bicicletas das crianças.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Divagações de terça à tarde

Entardece. Escrevo esta palavra como se ela contivesse um destino, como se o pôr-do-sol, ainda por chegar, anunciasse um crepúsculo final, ao qual se seguiria a noite eterna. Este pathos que enterneceu gerações tomadas pela angústia existencial é uma falsificação. As tardes são seguidas pelas noites e estas pelas auroras que trarão manhãs que declinarão e ao meio-dia hão-de morrer nos braços da tarde, numa monotonia sem fim. Não estava previsto que o narrador se entregasse a estas divagações, que tentasse raptar os leitores do contacto com a vida, para os enrodilhar em assuntos que não movem o mundo e, por isso, não interessam a ninguém. Muitas foram as vezes que escutei isso não interessa ao Menino Jesus, numa tentativa blasfema de limitar os interesses do filho do Homem. Afastemo-nos do território escorregadio da teologia. Uma conversa chega aos meus ouvidos. Vem cheia de realidade. Um drama qualquer, vidas desestruturadas, gente perdida, abandonada pelos deuses. Gente desnorteada, oiço. Há exclamações de espanto, comiseração, enquanto uma sombra se prolonga pela rua, pisada por um transeunte de calções e boné que vai apressado para um encontro secreto, imagino-o pelo andar comprometido, o olhar furtivo a espiar horizontes. Caio em mim e digo-me que ninguém vai para um encontro secreto de calções e boné. Um gato equilibra-se no muro, dá uns passos, procura uma mancha de sol e deita-se. Dedilho o calendário e descubro que há dois feriados seguidos, um cívico e outro religioso. A cada um a sua liturgia. As vozes não se calam, a desgraça é infinita e o vozear limitado. Hoje é terça-feira, dia 9 de Junho. Enrolo-me na tarde, esqueço o infortúnio, ponho de lado as tragédias e sento-me. Hei-de abrir um livro e começar a ler ou pego em mim e obrigo as pernas a porem-se em movimento.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Um grito escalofriante

A sala é desmesurada para o meu tamanho, para a experiência que tinha do mundo. Ao fundo, um friso de professores com ar inóspito, mapas nas paredes. Depois de mostrar sabedoria sobre as produções das províncias ultramarinas, um eufemismo em voga, vou para o quadro negro. Vestido com bata branca, um dos oficiantes inquire-me sobre questões esotéricas, tais como aritmética, geometria. Escrevo na ardósia, resolvo problemas, faço contas, desenho figuras, apago. O cabelo do interrogador era branco, talvez tivesse sido louro, e a face rubicunda, com ar severo que lhe sublinhava a dignidade, apesar do tom rosáceo da pele. Havia espectadores numa bancada improvisada. Não podiam, suponho, aplaudir ou patear, mas guardar reverente silêncio. Estou ali solitário perante um tribunal que me julgará sem piedade. Faltavam-me ainda uns meses para ter dez anos. Isto não foi um pesadelo, mas uma memória antiga que irrompeu em mim depois de almoço. Por vezes sou assaltado por fragmentos do passado, coisas mortas que ressuscitam, sem que eu saiba como. Vêm da terra do esquecimento, abrem caminhos sinuosos e desembocam na grande praça da consciência. Não sei o que fazer deles. Se a minha fosse uma alma de coleccionador juntava-os para os catalogar e depois arrumar numa vitrine e os contemplar de quando em vez. Estou a falar de um tempo muito arcaico, onde a vida ainda era regulada por ritos de passagem, mas do que tenho saudades é de uma certa literatura de aventuras do oeste, livros pequenos, com 64 páginas e seis desenhos, letras minúsculas, organizados em colecções com nomes como 6 Balas, Cow-Boy, Fúria dos Bravos e, supremo encanto, Gatilho. Naqueles dias em que as férias se prolongavam por três meses, as tardes de calor eram enfrentadas com a pistola na mão e o dedo no gatilho. Se havia pandemias, não me informavam, mas os bons ganhavam sempre aos maus e a justiça não era uma quimera. Não me perguntam, mas se perguntassem que livros influenciaram o meu gosto literário, diria de imediato os da colecção 6 Balas ou Fúria dos Bravos. Como é que se pode ler Kafka, Mann ou Dostoiévski, se nunca se leu Um Milionário no Far-West ou A Terra das Caveiras? Sim, é verdade, não tenho assunto. Hoje é segunda-feira, dia 8 de Junho. A temperatura está moderada e o sol cordato. Leio: Recuperando o revólver, despejou a carga sobre o segundo assaltante, quando este tentava apanhar Bill Shaterly desprevenido, no momento em que carregava a arma. O meliante soltou um grito escalofriante – isso mesmo, escalofriante – e, em seguida, caiu de bruços, com o estômago perfurado (Uriah Moltan, Matar ou Morrer). Se o leitor não sabe o que é escalofriante nem tão pouco um escalofrío, recomendo um dicionário de espanhol. Eu também não sabia.

domingo, 7 de junho de 2020

Não dar por nada


Uma vertigem, daquelas que se sentem quando se bebeu um pouco, mas não tanto que não se permaneça no estado de sobriedade. Depois, uma sonolência que não pára de atormentar as pálpebras, incitando-as a cerrarem-se, a cortarem-me as imagens do mundo, como se me tivesse esquecido de pagar a conta na operadora que prodigaliza os serviços de televisão. Olhei pela janela e a paisagem pareceu-me uma pintura de um pintor que muito se cultua por aqui, como se fosse um santo. O pior é que o lugar dos pintores não é o altar. Ele esteve em Paris, que é um lugar certo para pintores do tempo dele, naqueles anos em que tudo efervescia e as artes plásticas sofreram tal revolução que uma era nova começou. Ele não deu por nada. Talvez seja por isso que muito se gosta dele. Cultivamos com esmero quem não dá por nada e persistimos em não dar por nada. Uma luz esbranquiçada dilacera a tarde, abre-lhe sulcos, pequenos veios por onde deslizam os raios solares, sombras se algum objecto se interpõe pelo caminho. Uma das coisas mais inúteis que o homem inventou foi as instruções. Mesmo as mais claras e distintas não servem para nada. Não há quem as escute ou leia. Quem teve a ideia de criar instruções para facilitar a execução das tarefas sobrevalorizou a humanidade. Ninguém quer saber de instruções para coisa alguma. As pessoas preferem a tentativa e erro do que a comodidade de seguir uma instrução. Têm à sua frente a eternidade para fazerem aquilo que, seguindo as indicações coligidas com amor e destreza, se faria num abrir e fechar de olhos. Não sei o que me deu para estar aqui a moralizar. Deveria pegar em mim, pôr a máscara descer no elevador, tirar a máscara e ir ao campo comprar laranjas. Do outro lado da avenida, um jacarandá está exuberante. Deixo os olhos presos nele por alguns instantes, depois movo-os em direcção ao castelo e recolho-os em mim, fechando as pálpebras. Hoje é domingo, dia 7 de Junho. A semana que entra será na utilidade mais curta, mais sensata, pois também as semanas podem ser insensatas. Vou comprar laranjas ao campo ou limões à praça, desde que não necessite de instruções, pois também eu não as escuto ou leio. Eu bem tento encurtar os textos, mas depois esqueço-me.

sábado, 6 de junho de 2020

Um dia estragado

Acordei a desoras. A manhã corria já desenfreada para a tarde quando me levantei. Não gosto de estar na cama para além das nove da manhã, e isso apenas em dias excepcionais, mas uma insónia deu-me oportunidade para ler durante o amanhecer umas duas horas. Depois adormeci e foi o que se viu. Um dia estragado, pensei ao pôr os pés no chão e ir abrir a persiana da porta que dá para a varanda. Valeu-me ao humor a benevolência da balança. Continua cordata, evitando insultar-me ou entregar-se ao culto da hipérbole. Fui às compras numa grande superfície. Como numa festa de Carnaval, estava toda a gente mascarada, mas agora a dança tem uma nova particularidade. Os corpos afastam-se em vez de se aproximarem. Os passos não visam o encontro harmónico mas o afastamento prudente. Também é verdade que ninguém vai a um hipermercado para dançar, mesmo que seja com a rapariga da caixa. Um dia destes escrevo um ensaio sobre o erotismo em tempo de pandemia. Levantar tarde, tarde almoçar. Fico a olhar para estas palavras, com vontade de as apagar, mas resisto. A caixa de email está a sofrer um ataque aéreo. Parecem bombas a cair nela. Terei de lhe dar alguma atenção, montar as antiaéreas e começar a disparar sempre que o inimigo enviar um email. Ontem tive uma revelação. Estive tentado em escrever epifania. Um anúncio mostrou-me o caminho da salvação. Apregoava um dispositivo que se coloca em cima da página do livro e a ilumina, permitindo a leitura sem perturbar o sono de quem, ao lado, ainda há pessoas que dormem com outras ao lado, de quem, dizia, tenha dificuldade em dormir com luz. Apressei-me a comprar, mas segundo me informaram vai demorar tempo a chegar. Vem de longe, tem muito que andar. Só espero que não se transvie no caminho, pois não há coisa pior do que perder aquilo que nos pode salvar. Hoje é sábado, dia 6 de Junho. A temperatura está amena, a luz remeteu-se à sobriedade e o mundo rumoreja em diálogo com uma máquina doméstica que se excede no zelo para que foi criada. Até uma máquina foi criada para alguma coisa, só eu é que ainda não percebi para que fui criado. Não blasfemes, diz-me a consciência. No telemóvel, uma aplicação pergunta-me se eu quero optimizar as fotografias. Respondo-lhe que gostaria de optimizar muitas coisas, mas as fotografias podem ficar como estão. Não blasfemo.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

A realidade está de volta

Depois de almoço, o estilete de cristal do sono perfurou-me as têmporas e a cabeça descaiu, o queixo tombou contra o peito e devo ter ressonado. Se sonhei, não dei por isso. Quando acordei, um fio de baba corria-me da boca, mas há coisas em que convém ser parco na descrição. O computador tinha hibernado e aquilo que eu estava a fazer congelou. Terei agora de recorrer ao micro-ondas para o descongelar, para o retirar da gélida petrificação em que caiu. O mais acertado seria também meter-me no aparelho e descongelar-me, para ver se me ocorre alguma coisa que faça sentido. Tenho uma revista em cima da secretária há mais de duas semanas. Tinha intenção de ler um artigo, mas olho a capa onde a prosa se anuncia, encolho os ombros e passo para outra coisa. Noutra altura, penso. E se essa altura nunca chegar, por certo não perderei grande coisa. A realidade está de volta ao lar dos portugueses. Voltou o futebol, a metafísica da bola na trave, a estética do fora-de-jogo e a ontologia da bola na mão ou mão na bola. Pressinto uma parte da pátria apaziguada, depois de uma longa ressaca. Não deveria tecer comentários jocosos sobre uma indústria tão poderosa e que alimenta tanta gente. Cada um aguarda a morte como quer ou pode e há coisas piores do que a bola, que ao menos é redonda, e nisso está, como bem sabiam os gregos, toda a perfeição. Nos relatos de futebol que eu ouvia na infância, pois também eu tive infância e gostei muito de futebol, os locutores tratavam a bola por esférico. Hoje não sei se continuam influenciados pela geometria ou se a origem das metáforas com que narram o jogo será outra, mais rude, mais de acordo com uma massa que não suporta erudições. Isto são suposições de um velho que, vendo a areia da ampulheta a correr demasiado depressa para seu gosto, é tocado pela equívoca nostalgia dos bons velhos tempos, como se os tempos alguma vez fossem bons. Bom é aquilo que não muda, que não se move, que não corre, e o tempo não pára de mudar, mover-se, correr como uma lebre perseguida por um cão de caça. Esta triste analogia venatória era dispensável, bem o sei, mas foi a que consegui. Hoje é sexta-feira, dia 5 de Junho. O fim-de-semana anunciou-se e sinto calor. Se abrir uma janela, talvez a temperatura desça. Anoto na agenda não dormir após o almoço e nunca mais usar expressões ridículas como o estilete de cristal do sono. Um vómito.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Sem nome

As ruas embrulham-se no ruído de antigamente. Vozes, rumores de automóveis, roncos de motociclos sempre indispostos, gritos de crianças. Os pássaros calaram-se. Estarão em algum estúdio a calibrar a potência do canto para se sobreporem à novo situação. Com ímpeto muito moderado, avanço por dentro de O Jardim dos Finzi-Contini. Tendo lido já mais de cinco sextos do romance há um problema que não deixa de me assaltar. Desconheço o nome do narrador – um narrador autodiegético, daqueles que são protagonistas da história – e não faço a mínima ideia se alguma vez o nome é referido ou não. Compenso-me imaginando que, por uma questão de contenção, se tenha abstido de se nomear. Se for assim, compreendo-o muito bem, pois eu também sou um narrador que não me autonomeio. Não porque seja contido, mas porque sou destituído de nome. É possível que um dia, ao escrever mais um destes textos infelizes, descubra o nome que me hei-de dar. À minha frente tenho correspondência. Orçamentos para obras e uma carta de uma seguradora. Tudo isto é cansativo. As cláusulas do orçamento, a informação de que ao preço indicado acresce IVA, segundo as tabelas em vigor, as letras invisíveis da seguradora, aquilo que ela segura e o que larga de mão. Não tivesse eu almoçado há pouco e o sono não me chamasse, teria aqui uma grande oportunidade para meditar sobre a prisão do mundo da vida nas malhas intrincadas da burocracia. Que belas analogias haveria de fazer com os romances de Kafka ou com alguma das distopias que a imaginação humana criou. A sonolência, porém, impede-me meditações a esta hora. Tenho há dois dias um livro, ainda embrulhado, em quarentena numa varanda. Desconfio que não devo estar bem, mas resisto em libertá-lo do papel que o envolve. Hoje é quinta-feira, dia 4 de Junho. O tempo por aqui está ameno, as horas deslizam sorrateiras, um casal passa na praceta em passo cambado, ele à frente, ela atrás, cansados um do outro, esquecidos da ilusão que os juntou. Um cão uiva e nesse uivo está toda a sabedoria do mundo.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A conquista da glória dos altares

Da gárgula escorre uma água suja, malcheirosa. Abre um sulco na terra, um ribeiro minúsculo, e desliza sem pressa para ir morrer num buraco fétido, coberto de ervas e arbustos secos. Não faço ideia de que sonho faz parte esta descrição, pois raramente me recordo dos sonhos, mas não tenho dúvidas que se extraviou de algum e começou a dançar dentro de mim, até que saiu em forma de texto, antes que a sua pestilência destilasse e se transformasse numa bebida amarga e venenosa. Lá em baixo, há vozes. Um homem, pelo menos um, e uma mulher conversam. A voz dela ouve-se menos, é mais exígua, quase sumida dentro do silêncio. Ele enche a praceta com um som redondo, saltitante, como se fosse uma bola excessivamente cheia. Há risos de conveniência, hesitações. Pela primeira vez em muitas semanas fui ao sítio onde oficio um ritual que me permite enfrentar a terrível necessidade. Ao sair de lá, estive tentado em ir a uma pastelaria. Lembrei-me da velha disputa com a balança e contive-me. Há que cultivar a paz. Ao chegar ao prédio onde vivo tomei a decisão de evitar o elevador e dispus-me a subir os cinco andares que me separam da terra. Ao entrar em casa, pensei que subir aos céus é muito árduo e pessoas haverá com pernas tão fracas que desistem a meio do caminho. Talvez a santidade seja uma questão de musculação dos membros inferiores, um trabalho contínuo de ginásio, onde os candidatos à glória dos altares encontrarão os seus personal trainers. Agora que esses templos do músculo reabriram, não lhes hão-de faltar devotos ansiosos de ganhar vigor para subirem ao céu. Não se pense que sou dado à blasfémia. Não sou. O que acontece é que nem sempre me ocorrem metáforas decentes e então pego no que me vem à cabeça, e aquilo que vem à cabeça das pessoas raramente é coisa que se recomende. A rede de internet está a irritar-me e, como se sabe, a impaciência não ajuda a subir a escada que nos leva ao alto. Hoje é quarta-feira, dia 3 de Junho. Este é um mês cuja função nunca percebi. Serve para quê? Daqui a uns minutos vou videoconferenciar. Respiro fundo e digo-me que isso é como ir ao ginásio para treinar os músculos das pernas para subir aos céus. As persianas tamborilam batidas pelo vento, enquanto as folhas das acácias tremem como se sofressem de uma doença degenerativa. Não sofrem.

terça-feira, 2 de junho de 2020

As frívolas amenidades

Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem. Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software  que uso seja de tão má qualidade que não consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado, cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões, gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2 de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

A força do prefixo des-

O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso, mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem por fundamento o Urmensch, cada um de nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.

domingo, 31 de maio de 2020

Os falsos caminhantes

Hoje já andei seis quilómetros. Quase parecia um caminhante, mas ainda não consigo disfarçar o velho sedentário que habita no meu corpo. As almas podem ser classificadas sob diversos critérios, o que dá origem a um sem número de taxionomias e não menos controvérsias. Isto é do conhecimento geral, não estou a dar nenhuma novidade. Uma das classificações divide-as em dois tipos. Almas sedentárias e almas nómadas. A minha é completamente sedentária e quando me ponho a caminhar pelas ruas vê-se logo que se está perante uma falsificação. Se não o dizem abertamente é por convenção social, mas os verdadeiros caminhantes, ao verem-me, pensam lá vai um a tentar enganar meio mundo, sabe lá ele o que é caminhar. Têm razão, não sei, não faço a mínima ideia. Hoje andei mais de uma hora a falsificar a realidade, a disfarçar-me de andarilho, de alguém que se treina para fazer uma longa peregrinação ou então que há-de acabar na ignomínia de ser um turista que abre a boca por tudo o que é sítio, depois fecha-a e faz umas fotografias, para mais tarde recordar, embora não tenha nada para recordar. Os lugares também têm almas e estas são avaras e avessas a darem-se a conhecer à alma nómada do turista. O melhor é evitar estas meditações, não vão pensar que sou algum sociólogo. Tenho muitos pecados e defeitos, mas não esse. Imagino que vou almoçar tarde. Aproveito para pôr algum trabalho em ordem e assim infringir o descanso dominical. Os pássaros meus vizinhos estão hoje dados à garrulice. Tagarelam sem parar. Tento perceber o motivo da conversa, mas não tenho ido às aulas sobre a linguagem dos pássaros e o essencial da disputa passa-me ao lado. Como é habitual, também isto não é novidade. Hoje é domingo, dia 31 de Maio. O mês está a acabar e não sei o que hei-de dizer dele. O mais sensato é seguir uma instrução proverbial escutada na longínqua infância. O calado vence tudo. Não me recordo de ser loquaz, mas nunca se sabe.

sábado, 30 de maio de 2020

Narrativa sem nexo

Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Ir ao campo

O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira. Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que me falta o segundo romance, Alcateia. Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Liquidem os objectos

Os objectos tornaram-se exercícios difíceis. Portas, maçanetas, chaves, corrimãos, botões do elevador, terminais de multibanco, puxadores, superfícies lisas e rugosas, garrafas de vinho e de azeite, pacotes de arroz ou de massa e todo o resto do mundo dos objectos desde que venham do desconhecido ou do conhecido exterior à caverna que habitamos. Há que ter cuidado, não tocar, desinfectar, colocar ao sol, à sombra, à chuva, dar-lhe o ar do meio-dia ou da meia-noite, pô-los em repouso, em quarentena, oferecer-lhes uma quaresma, para ressuscitarem no seu domingo de páscoa. Haveremos de enlouquecer com esta xenofobia sanitária, nesta nova selva com aparência civilizada, onde os tigres, leões e leopardos foram substituídos por um frasco de compota, uma embalagem de bolachas ou a garrafa de água que se compra na estação de serviço. Confesso que não sei o que me deu hoje para este tipo de peroração, mas ainda há dois meses e meio pegava nos objectos sem pensar e agora é o que é. Tudo se pode dividir entre o puro e o contaminado, como se as coisas tivessem uma natureza moral, dotadas de sexualidade e que devessem entregar-se na noite de núpcias em estado virginal, puras, intocadas, plenas de inocência. Talvez o melhor seja acabar com os objectos. Quando a temperatura sobe por estes lados, não afianço a qualidade do meu estado mental. O termostato que mede a febre da casa começa a aproximar-se de uma zona perigosa. Tremo só de pensar o que poderá esconder. Hoje é quinta-feira, dia 28 de Maio. Terei de fazer duas visitas, uma ao meu neto, a outra à sua bisavó. Devia poder juntá-los, mas ainda não vai ser hoje. Bebo água por uma garrafa-termo, o que me vale é que a tinha comprado no ano passado, naquele tempo em que se dispensava certificação moral às meras coisas.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Trocas neuronais

A primeira palavra que escrevi continha um erro ortográfico, fruto de uma associação que poupo aos leitores. Fiquei a olhar para o teclado e para dentro de mim, perguntando-me que estranhas conexões se passaram na mente para que os dedos, sem quererem saber da ordem que lhes dera, conquistassem autonomia para se submeterem a um outro senhor, cujos impulsos sendo meus me escapam. Sim, a psicanálise também vive disso, embora o caso seja já mais do foro do neurologista. O telhado esbranquiçado, talvez um cinza muito claro, do pavilhão desportivo da escola vizinha reverbera batido pela impiedade dos raios solares. Oiço uma máquina em manobras, talvez numas obras por perto, mas não a avisto. O dia desliza quente e sorrateiro. Na rua estão 34 graus e nem as sombras me convidam para sair de casa, embora o arvoredo da Sá Carneiro esteja exuberante. Por vezes os erros preocupam-me, não pela ortografia, mas por aquilo que eles revelam do estado do meu aparelho neuronal, caso possua um, coisa por provar. Os livros das estantes que me rodeiam têm o condão de me irritar. Não por eles, mas pelas ilusões que me levaram a comprá-los. Talvez exista em mim um pendor masoquista, pois os livros com os quais estou reconciliado estão longe da vista. À minha volta só fantasias e quimeras. Isso, porém, não interessa a ninguém e, além do mais, pode nem corresponder à verdade. Hoje é quarta-feira, dia 27 de Maio. As acácias já esconderam debaixo das folhas os ramos que o Inverno despira. Há árvores que não cultivam o pudor, a primeira das virtudes públicas que qualquer um deve ostentar para não cansar os outros. Os pássaros não se calam, numa cegarrega interminável. Podiam ir cantar para outra rua, mas essa já deve ter os seu tenores.

terça-feira, 26 de maio de 2020

A data em que a vida muda

Nunca sabemos a data em que uma vida muda, foi o que pensei ao consultar o calendário. Nicolau II, da Rússia, foi coroado a 26 de Maio de 1896, não sabia ele que isso lhe iria marcar a fortuna e que o levaria a uma morte infeliz e prematura, porque alguém, talvez sem saber o que fazer dele, se lembrou de a antecipar. Vejo-o a ser coroado, rodeado pela corte, num quadro de Serov e quase sinto vontade de lhe gritar para fugir dali, que renuncie à coroa e vá dar uma volta pelo mundo com a Feodorovna. Calo-me, pois ele não me ouviria. Somos sempre surdos para as palavras do destino, as potestades mais do que os outros mortais. A cidade vai retomando os seus ruídos e rumores, o gorgolejar da vida, o trânsito que se adensa, as gentes que se tomam de calores e, mesmo de máscara cingida, se despem para o Verão antecipado. Chegou-me um vídeo do meu neto. Sobe para uma cadeira, dali trepa para a cadeira de refeição, senta-se no tabuleiro e pega num livro. Abre-o e faz um discurso, como se lesse na mais estranha das línguas. Isto gerou um conflito de interpretações acerca da performance da criança. A avó ficou encantada com a teatralidade da leitura e o avô com a destreza da subida. Homens e mulheres vêem o mundo de lugares diferentes, disse eu, mas não estou certo se, ao escrevê-lo, não estarei a ofender algum imperativo igualitário. Nestes dias, contentamo-nos com poucas coisas. Ontem anotei que tinha de encolher estes textos. Até a mim me cansam. Hoje é terça-feira, dia 26 de Maio. Outro mês que declina e com ele também a Primavera começa a preparar as malas para um novo exílio. Os anjos insistem em disfarçar-se de pássaros. Eu finjo que me iludem, mas sei muito bem que não são pássaros.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Paisagens despovoadas

Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo. Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma, a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira. Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos, anoto.

domingo, 24 de maio de 2020

Aloquetes e cadeados

Leio mais devagar. Pareço arrastar a leitura não por desinteresse mas por um qualquer motivo que desconheço. É possível que os olhos se cansem, é possível que as coisas habituais estejam a perder sentido, é possível qualquer outra razão que desconheço ou que quero desconhecer. É o que acontece com a minha leitura de O Jardim dos Finzi-Contini. Há pouco uma palavra surpreendeu-me. O narrador, para que a bicicleta não fosse roubada, deveria colocar nas rodas um aloquete. Fui ver quem tinha traduzido o livro. O poeta Egito Gonçalves, um homem que nasceu em Matosinhos e morreu no Porto. Percebi de imediato a opção por aquela tradução e não pela sulista e latina cadeado. A primeira vez que ouvi a palavra foi no dia em que me apresentei num quartel da cidade do Porto para cumprir serviço militar. Sempre achei a palavra inusitada, apesar da sua origem inglesa e francesa. O dia encandeceu. O calor espalhou-se pelas ruas e anuncia os dias tórridos que hão-de vir. No final da manhã, desci o viaduto de carro e passei pela velha ponte medieval que permitia chegar ao centro da antiga vila. Em tudo havia um ar dominical, até o sol vestia um fato domingueiro, como antigamente as pessoas o faziam para ir à missa. Depois tornou-se de mau tom, ao domingo, andar vestido de domingo, uma coisa de provincianos retardados e, como todos nós provincianos retardados sabemos, ninguém quer passar por provinciano retardado. Estou a repetir-me demasiado. No friso que lhes cabem as orquídeas estão praticamente todas floridas. Apenas uma ainda retém as flores em botão, como se persistisse em defender um segredo que não quer partilhar com ninguém. Hoje é domingo, dia 24 de Maio. Tivesse eu poderes para tal e fechava todo este tempo numa despensa escura e esconsa e depois trancava a porta com um aloquete, atirando a chave para o oceano. Haveria então de me sentar na borda do poço que havia na entrada da infância e comer nêsperas, caso as houvesse, ou magnórios se estivesse no norte.

sábado, 23 de maio de 2020

Luz e trevas

Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar. Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano, quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa, Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter casado com o primo.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Do tédio e das papoilas


Chegou o fim-de-semana, mas agora tudo parece contaminado. A semana entra pelo seu fim como se este fosse dado à utilidade. Aqui deveria acrescentar e vice-versa, mas talvez não seja verdade que também o fim-de-semana contamina os dias de labor. Num livro de um filósofo americano leio que o tédio é um assunto sério e ele acrescenta pressuroso que a essência do tédio reside em não termos interesse no que se passa. Tudo isto é dito candidamente num ensaio sobre o amor. Uns sofrem de spleen, outros são atacados pela náusea e outros não se interessam pelo que se passa. Não vou pensar sobre este assunto, mas talvez coleccione as palavras para criar uma taxinomia de estados existenciais e poder usá-los sempre que tenha oportunidade. Comecei a falar de contaminação, mas logo me perdi por outros caminhos, como se a realidade se estivesse sempre a bifurcar-se diante de mim, para que eu me perca nela e não encontre o caminho para casa. Voltando ao magno problema da contaminação, também a noite contamina o dia com as suas asas de seda negra e assim a luz vai tornando-se crepuscular, cheia de tremores e hesitações, fazendo crescer as sombras até que tudo se apague e se envolva no pez que uma existência entediada faz cair sobre o mundo. Há pouco vi gente a entrar para o bar do outro lado da rua. Pergunto-me se já se poderá ir beber uma cerveja, embora eu não goste particularmente dessa bebida de bárbaros. Como é habitual, não me ocorre nada para dizer. Hoje é sexta-feira, dia 22 de Maio. Ontem foi feriado, mas esqueci-me de o proclamar. Muitos são os concelhos que fazem da Quinta-Feira de Ascensão o seu feriado. Imagino que vejo papoilas na escola ao lado, mas por certo não se tornarão no supremo encanto da merenda, pois as burguesas já não fazem piqueniques, nem tomam parte em histórias que mesmo sem grandeza dariam ainda uma aguarela.