terça-feira, 29 de junho de 2021

Juramentos e maçadas

Ocorreu-me esta manhã que o problema estaria no célebre juramento de Hipócrates. Talvez os médicos, seja qual for a sua especialidade, tenham jurado nunca chegar a tempo às consultas. Parece-me uma explicação sensata. A consulta é marcada para as dez horas da manhã, mas, devido ao juramento, o médico só chega ao consultório pelas dez e meia ou onze horas. Isso irritava-me, pois não compreendia o motivo. Hoje, porém, ao perceber a verdadeira razão dos atrasos, não me irritei, pois creio que todos devem cumprir aquilo com que se comprometem. E se chegar atrasado faz parte do juramento de Hipócrates, então é bom que nenhum médico chegue à hora marcada. De resto, a consulta não tem que contar, apenas uma rotina. O mais desagradável era o vento que corria pelas ruas. Sob um sol quente, dançava um vento frio. Este tinha a vantagem de amenizar a temperatura, mas tornava desagradável uma pessoa andar vestida de Verão. Ontem, ao fim da tarde, disse já se notam os dias mais pequenos. Que exagero, ouvi em resposta. Talvez ainda não se note, mas as noites continuam a crescer. Ora, se as noites crescem, os dias diminuem. O país, ao que consta, encontrou outro motivo de entretenimento, depois do futebol ter dado em águas de bacalhau, seja o que for o que isto signifique. Uma história policial. Precisamos sempre de qualquer coisa para evitar olhar para a realidade, a qual, diga-se, é uma grande chatice. Talvez devesse dizer a realidade é uma grande maçada.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Moderações metafísicas

Acabei de ter, segundo a escala de Álvaro de Campos, um momento metafísico. Dizia ele – bem, não era o Álvaro de Campos que o dizia, pois nem sequer tinha dado entrada no clube dos nascidos, mas o Fernando Pessoa que o escrevia – Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Acabei de comer uns quadrados de chocolate, portanto penetrei nesse campo obscuro da metafísica. Dito isto, quero registar a minha discordância com o Álvaro de Campos ou com o Fernando Pessoa, ou com os dois. Para mim, nozes também são metafísica. Assim como batatas fritas, aquelas dos pacotes. É verdade que estas metafísicas não são idênticas. As nozes são uma espécie de metafísica da natureza, o chocolate, apesar das suas gradações, é claramente uma metafísica do espírito. Já as batatas fritas de pacote fazem parte da metafísica, embora eu não saiba de quê. Talvez sejam uma metafísica ao gosto popular. Todas estas metafísicas exercem sobre mim uma atracção, que não é fatal porque tenho uma certa tendência para a moderação, coisa fora de moda há muito. Fica sempre bem uma pessoa ser radical e eu fui-o há décadas, mas aquilo não calhava bem com o meu espírito e moderei-me. Nada em excesso, mesmo o chocolate, mesmo as nozes, mesmo as batatas fritas. Portanto, na metafísica sou um moderado. Uma tristeza.

domingo, 27 de junho de 2021

Tipologias romanescas

Talvez porque tenha tido, durante a noite, um período de insónia, que aproveitei para avançar na leitura de um romance, de manhã dei comigo a fazer uma espécie de taxinomia dos romancistas. Há os que escrevem para agradar ao público, quanto maior for este, melhor para eles. Há os que escrevem para agradar à crítica, hoje quase toda ela universitária. Estes dois tipos de escritores, apesar de terem em comum a inclinação para agradar e o gosto da glória, são diferentes. Os primeiros cultivam narrativas com enredo, com pouca atenção à inovação formal. Os segundos cultivam a inovação na forma que há-de fazer ressoar os encómios da crítica, embora desprezem, não poucos, o enredo, o contar uma história. Existirão outros, porém, que não querem saber da opinião nem do público nem da crítica. Estão comprometidos com o enigma da acção e da paixão e com a verdade que se esconde no agir e no sofrer dos homens. Não escrevem para agradar nem para desagradar, mas para descobrir. A sua poética é uma poética da descoberta, uma heurística. Depois, estes pensamentos desvaneceram-se, fui caminhar perto do mar e apanhei uma chuvada, ligeira. Aí os meus pensamentos eram muito mais prosaicos. Como chegar depressa a casa? Ou então mais imprecativos, onde está o raio do sol? Depois, a chuva foi-se levada pela nortada, o sol chegou e assentou arraiais, mas o pensamento não voltou a interessar-se pelo tipo de escritores. Na verdade, todo aquele pensamento era absurdo, mas isso é o pão nosso de cada dia, pensar coisas absurdas. O domingo cresce e o almoço será tardio, esta é a minha realidade.

sábado, 26 de junho de 2021

Sábados difíceis

Hoje comecei o dia com uma caminhada de seis quilómetros. Não havia sol nem vento e, por onde passei, poucos eram os que por lá andavam. Os sábados convidam as pessoas a manhãs recatadas, foi o que pensei. Depois, o dia expandiu-se, passou a fronteira do meio-dia e deixou-se cair na armadilha da tarde. As notícias, porém, não distinguem os dias úteis e os inúteis, o vírus também não, embora tenha um talento especial para a metamorfose e um gosto acentuado pela alteridade. Deveria evitar, dizem-me, projectar na fonte do nosso pesar características humanas, mas se tudo o que nos acontece e nos envolve é sentido e compreendido por faculdades humanas, não há outro remédio que não seja contaminar tudo isso, vírus incluídos, com as nossas projecções. Basta olhar para uma paisagem para que ela se humanize. Isto não significa que se torne melhor ou pior, mas que toma as características de quem para ela olha. Se isto não é verdade, poderia ou deveria sê-lo. Há sábados em que é muito difícil encontrar motivos para escrever. Cumpro ordens, apenas, e isso é tudo o que eu, pobre narrador, posso dizer em minha defesa. Talvez devesse ter sido mais frugal ao almoço, talvez.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Prelúdio e fuga

Para as três da tarde estão anunciados 37 graus. A partir de agora o calor vai entranhar-se nas paredes e a pequena cidade transforma-se numa antecâmara do inferno. Os pássaros meus vizinhos, todavia, parecem estar no paraíso. Cantam e voam como se estivesse em plena Primavera. Na rua, os vultos esgueirem-se entre sombras. Quem tem de suportar o sol dá passos vagarosos, como se não tivesse força para andar. Um prelúdio ao fim-de-semana que anuncia uma fuga. O problema das fugas é que acabam com os fugitivos a voltar ao lugar onde estavam. A verdade, é preciso reconhecê-lo, é que a maioria das pessoas fica extasiada com o Verão. Choram-no durante todo o ano e mal chega entregam-se-lhe com não escondido prazer. Talvez seja por isso é que ele se dilata pelo Outono dentro. Abro ao acaso um livro de Louise Glück e deparo-me com um poema com o título Pleno Verão, que começa assim: Como posso ajudar-vos, se cada um de vós / quer uma coisa diferente – sol e penumbra, / húmida sombra, calor seco. Então, penso que ser Deus é um trabalho árduo perante a diversidade dos desejos que Lhe são dirigidos como se fossem preces, acontecendo mesmo que muitos pedem uma coisa e o seu contrário. Esquecem que Deus pode tudo, mas no catálogo da sua omnipotência não consta poder o impossível. Chegou a hora de almoço.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Nostalgias

Há certos objectos com que estabelecemos uma relação funda, talvez porque nos tenham proporcionado um prazer, que já não conseguimos identificar ou explicar, mas que continua a viver nos subterrâneos da nossa consciência, ou talvez tenham despertado uma nostalgia incompreensível. Desses objectos fazem parte dois filmes. Não que esses filmes sejam realizações estéticas extraordinárias ou porque contem histórias avassaladoras. Tratam-se de Um Táxi Cor de Malva (1977), de Yves Boisset, e A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel. Aquilo que me prende a esses filmes é a sua atmosfera, uma certa ambiência despojada. O primeiro passa-se na Irlanda; o segundo, na Dinamarca. Não faço ideia por que razão me lembrei desses filmes agora. Talvez eles tenham vindo em meu socorro, dando-me motivo de escrita. Talvez exista em mim algum gene que pertence a esses mundos, de terras frias, e que tenha, em desespero perante o calor que cai por aqui, acordado uma nostalgia de alguma coisa que nunca vivi. Essas nostalgias, porém, são as mais duradouras e consistentes, as mais próximas da verdade. Um dia destes vou rever, mais uma vez, esses filmes, já que não posso voltar a lugares a que nunca pertenci, onde nunca vivi, onde nunca estive.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A noite imparável

Um dia ocupado com a nova modalidade de existência, reuniões por videoconferência. Umas por um motivo, outras por outro, a alma corrompe-se nestes ambientes que, apesar das aparências, pouco têm de etéreos. Todos se tornam em presenças fantasmáticas, imagens de imagens, como se se tivesse perdido o corpo e com ele a solidez. Depois, veio o futebol. Antes dos jogos, as selecções cantam os respectivos hinos. Primeiro, a Marselhesa. Depois, a Portuguesa. Há qualquer coisa de incongruente em tudo isto. Esses hinos pertencem ao mundo sólido, feito de aço e canhões. O português descende do francês, o que é justo, pois também Afonso Henriques descendia de franceses. A noite caiu há muito. Do céu, não vejo as estrelas, apenas a escuridão onde o dia se sepultou. As lâmpadas da iluminação pública derramam sobre as ruas a sua tristeza, enquanto os faróis dos automóveis varrem o ar com a luz inquieta de quem tem pressa. O vento açoita as acácias e estas gemem no gemido mecânico das roldanas dos baloiços do parque infantil. Afinal, ainda existem crianças. Não vivemos, por enquanto, numa dessas distopias que anunciam o inferno na Terra. Um cão de pequeno porte solta uns ladridos, imaginando-se, por certo, lobo feroz. As crianças, como as cigarras, não se calam. A noite corre imparável, mas não sabe para onde.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Viagens e deambulações

As traduções portuguesas – recentes – da poetisa Louise Glück, prémio Nobel de 2020, são excelentes. Não me refiro às traduções propriamente ditas. Sê-lo-ão, por certo. Estava a falar dos livros enquanto objectos estéticos. Os quatro que tenho – falta-me um – são belíssimos, com capas muito depuradas e contidas. Possuía apenas Uma Vida de Aldeia, mas hoje dei uma volta por uma grande superfície que se dedica a ser papelaria, livraria, centro de cópia, tabacaria e posto dos CTT e encontrei lá A Íris Selvagem, Averno e Noite Virtuosa e Fiel. Em falta está Vita Nova. Não se pode dizer que a autora não possua talento para encontrar títulos. Não é uma tarefa fácil e muitos livros chocam de imediato contra essa parede que é o título. Ao lado da grande superfície está uma lavandaria. Também fui lá, não para mandar lavar camisas, mas para levantar uma encomenda. É o que se chama na moderna linguagem do comércio e distribuição um ponto pickup. Trouxe de lá uns sapatos, mas já tenho trazido livros. É muito mais raro ir buscar roupa lavada. Vivemos num mundo de contaminação. Não me refiro ao vírus, mas a esta disseminação de funções que os antigos e especializados estabelecimentos lançaram mão para sobreviver. No primeiro poema de Averno aprende-se que não existir será uma consolação para a alma, a dos mortos. Este poema deveria ser lido acompanhado pelo primeiro texto de Viagens, de Olga Tokarczuk, também prémio Nobel, texto com o título Existo. Nele, uma criança descobre dolorosamente que existe. Uma página, apenas. O poema da Glück, curiosamente, também se refere a viagens, mais precisamente a Migrações Nocturnas. Olho para o título e fico grato à editora e à tradutora por não terem desfigurado o velho Nocturno num insípido Noturno, o qual parece a adição acidental de no + turno, talvez o turno da noite. O texto vai longo e ainda não consegui dizer seja o que for, o melhor é parar.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

De solstício em solstício

Hoje é o maior dia do ano. A partir de amanhã o ciclo inverte-se e a noite começa a crescer até que se torne maior que o dia. Este aparente eterno retorno do mesmo não podia ter deixado de fascinar os nossos antepassados. Uma luz laminada paira sobre o casario, fende as paredes, cai cortante pelo chão. Há pouco, porém, nuvens espessas tapavam o sol e parecia que Novembro tinha chegado. Também as notícias não são animadoras. Cada vez que se ergue a ilusão de uma esperança de nos vermos livres do vírus, a realidade revolta-se e entretém-se a desfazer as nossas mais queridas fantasias. Há pouco, alguém consertando uma máscara, disse: nunca mais nos livramos disto. Anuí. A vacina não elimina nem o contágio nem a transmissão. Atenua as consequências, o que é já uma grande vitória, mas essa vitória não representa a derrota do inimigo. Máscara, distância, higienização contínua das mãos, tudo isso parece ter vindo para ficar, para instaurar uma nova forma de habitar o mundo. As pessoas andam ansiosas para que tudo volte a onde se encontrava há pouco mais de um ano. Desconfio que haveremos de saltar de solstício em solstício, que os dias crescerão e minguarão, mas o passado é já uma terra distante a que nunca voltaremos.

domingo, 20 de junho de 2021

Um olhar turvo

Dois terços de Junho estão consumados. Tudo passa muito depressa, oiço dizer. É verdade, tudo passa muito depressa, ou muito devagar, como se as coisas fossem impedidas de passar num passo certo. A que velocidade deveria passar o tempo para que não fosse tomado ora pela mania da pressa, ora pelo vício da preguiça? Tenho de limpar os óculos. Uma mancha turva intromete-se entre os meus olhos e a realidade. Temo, porém, que os óculos não precisem de limpeza e o que esteja turvo seja o meu olhar. Os domingos na província prestam-se a este tipo de meditações, pois a província é um lugar onde o tempo parece exausto e em que a realidade vibrante das grandes metrópoles chega apenas com uma cor baça. Os serviços municipais esqueceram-se de olear as roldanas dos baloiços. Enquanto as crianças vão e vêm, um concerto de ferros a ranger entra-me pelos ouvidos. O céu nublou-se. Há pouco, um amigo ligou-me e disse que andava a ler um autor que foi cultuado pela nossa geração. Está surpreendido, pois o tempo não lhe tirou a vibração e o olhar acutilante. Senti um súbito impulso de voltar a essas leituras dos vinte anos. Talvez seja apenas a nostalgia desses dias onde tudo parecia possível e, na verdade, não o era. Não tarda o dia acaba-se e Junho também.

sábado, 19 de junho de 2021

Ordens de cavalaria

Lá em baixo, no parque infantil, crianças e pais parecem indiferentes à derrocada dos pobres cavaleiros de Cristo às mãos dos da Ordem Teutónica. Estive a ver um pouco do futebol, mas não consegui ir além da primeira parte. Não por causa do resultado favorável aos bárbaros, mas devido aos comentários que os locutores de serviço entendem distribuir sobre incautos espectadores como eu. Suspeito que haverá, no futebol, muita coisa execrável, mas o discurso à volta dele deve estar no topo das coisas a execrar. Recolhi-me ao escritório e, enquanto a bola vai e vem, entra e sai, vou pondo umas coisas em ordem. Não sou amigo do caos, embora não cultue em excesso a ordem. Talvez seja um aristotélico e pense que em tudo a virtude esteja no meio. Neste caso, uma ordem desordenada, para usar um oximoro e fugir ao pendor lógico do filósofo de Estagira. De vez em quando espreito um site onde vai dando o resultado da batalha e descubro que as probabilidades dos de cá ganharem eram completamente ínfimas. Um site de apostas pagaria quarenta euros, em caso de vitória de Portugal, por cada euro apostado. No caso de vitória alemã, apenas um euro e um cêntimo. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não sabe nada sobre cavaleiros de Cristo e Teutónicos, nem da metafísica da bola na barra ou da ética que impregna a extraordinária regra do offside. Seja como for, percam os portugueses por poucos ou muitos, há uma coisa inultrapassável. Eles, na Teutónia, o mais que podem fazer é cerveja. Nós por cá, cultivamos a vinha e dele extraímos o vinho. E nisso há toda uma diferença entre civilização e barbárie. Antes de ser acusado de alguma coisa indigna, volto para as arrumações. É esse o meu lugar.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Cruzamentos

Sem que se perceba a razão cruzam-se no horizonte das pessoas coisas que têm entre si uma conexão, mas que não foram procuradas por esse motivo. Há pouco, estive a ver o filme Vergonha, de Ingmar Bergman. O tema é a guerra. Tinha também começado a ler Kaputt, de Curzio Malaparte, com o mesmo tema, embora a experiência do italiano seja muito mais real. Talvez existam no espírito correntes subterrâneas que, apesar de desconhecidas, se manifestam nestas aparentes coincidências, mas que não serão mais que o resultado visível de um diálogo invisível que atravessa o fundo obscuro que há em todos nós, como existem em certos rios terríveis correntes sob a calma tranquila de lençóis de água benevolentes. Agora, o anoitecer é prolongado, como se o tempo se dilatasse e houvesse um medo real das trevas. Começou o fim-de-semana, o tempo parece não estar propício para grandes deslocações. Lisboa está sitiada aos fins-de-semana. Muitas são as formas que a guerra toma. Umas visíveis, outras invisíveis.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Perigos

Chove com intensidade. Adolescentes à espera de entrar no Instituto de Línguas abrigam-se sob uma varanda. Um deles, porém, decide pôr-se debaixo de água. Coloca-se no meio da praceta e abre os braços, como se estivesse crucificado. As raparigas não reagem à performance, e ele fica ali desolado, abandonado à sua cruz imaginária, a água a cair-lhe em cima, até que se farta. De imediato, a chuva decide suspender o aguaceiro. Penso muitas vezes que a espécie teria um notável upgrade caso conseguisse suprimir os anos de adolescência. Muitos dissabores se poupariam aos pais e os próprios adolescentes não perderiam nada com a supressão. Acordar do período de latência hormonal e de jogos infantis e encontrar-se em plena idade da razão, ainda com sonhos e ilusões, mas sem o pesadelo de um corpo à procura de si mesmo. Na espécie humana nada é fácil. Estão exuberantes as cevadilhas da escola ao lado e as que orlam a margem de um ribeiro que atravessa a zona. Ninguém, ao olhá-las, diz que o perigo que escondem. A beleza nunca deixa de ser uma coisa perigosa, mais perigosa que a adolescência.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Confissões e promoções

Também eu me confesso e faço exame de consciência. Não se pense, porém, que sou um confessado do padre Lodo. Amigos, amigos, confissões à parte. Nem sequer frequento os confessionários. Trata-se antes de uma prática das organizações modernas, sejam empresas privadas, sejam instituições públicas. Aí foi-se instituindo que todos, no exercício das suas funções, teriam de se entregar a um momento de confissão e de agudo exame de consciência. Para disfarçar o pendor religioso da manobra, deram-lhe o pomposo nome de auto-avaliação. Esta confissão, porém, é perversa. Presumo que aqueles que se ajoelham diante de um sacerdote seja para confessar, contritos, os seus pecados, as pequenas e grandes malfeitorias que andam por aí a fazer. O objectivo será obter o perdão, tranquilizar a consciência e ter esperança na recompensa na outra vida, caso haja uma. As confissões profanas são momentos não de humilhação perante o mal feito, mas de exaltação das virtudes e de esquecimento dos vícios. O que está em jogo é a subida na hierarquia, tornar-se chefe do chefe, do chefe. Enfim, chegar ao topo, o que não deixa de ser ainda uma evocação do céu. Sempre achei estes exercícios indecorosos, pois quem, em seu perfeito juízo, vai dizer mal dos seus desempenhos. Na confissão tradicional, o confessado escarafuncha no mal para se libertar dele. Na confissão moderna, há que esconder o mal do confessor, varrê-lo para debaixo do tapete e esperar que ele lá fique a germinar. Não é a absolvição que se pretende, é a promoção.

domingo, 13 de junho de 2021

O massacre dos teclados

Hoje devia registar aqui que o meu dia foi anódino e sem nada que merecesse nota. Não o faço porque também o são assim todos os outros dias e não deixo de incomodar o teclado com as irrelevâncias que me ocorrem. Os teclados são das peças dos computadoras as mais maltratadas. Ainda pior que os ratos. Estão constantemente a ser martelados, como se tivessem de sofrer uma contínua flagelação motivada sabe-se lá porquê. Hoje é dia de Santo António. Será que ainda se realizam os casamentos do santo? A Santa Casa da Misericórdia podia patrocinar o evento e realizava um jogo de sorte. Organizava umas apostas sobre quantos dias resistiria cada um dos felizes matrimónios. Quando se desse um divórcio, repartia o dinheiro das apostas por si própria, pelos vencedores e pelos venturosos divorciados. Ficava toda a gente a ganhar e as rupturas seriam menos dolorosas, caso ainda o sejam. Não devia estar por aqui a blasfemar contra a instituição casamento, embora ela já tenha tido melhores dias. Também eu já os tive, é verdade, como se pode vir pela densidade do meu escrito deste pobre domingo de Junho. Para que estive eu a massacrar o teclado?

sábado, 12 de junho de 2021

Uma conversa telefónica

Ainda tive esperança que os portugueses fossem um pouco mais prudentes e não se entregassem, como o estão a fazer, nas mãos da pandemia. Foi assim que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa comigo, quando me ligou depois de dizer missa. Respondi-lhe que, como italiano, não poderia falar muito de nós. Ele riu-se, depois acrescentou que, ao fim de tantos anos, se sente pouco italiano e mais português. Depois, hesitou, e rematou, bem a diferença é pouca ou nenhuma. Estou já duplamente vacinado, mas tenho medo, continuou. Não porque tema a morte, mas porque ainda me dá muito prazer estar vivo. Talvez isto não seja digno de um sacerdote, mas antes de ter entrado para a Companhia, eu era um homem. Não deixei de o ser. Depois, disse-me que tinha visto as minhas netas. Estavam com o pai. Que grandes que estão. Anuí. Evitou recordar-me o desgosto de não ter baptizado nenhum dos meus netos, coisa que sempre lhe deu um grande desconsolo. Informou-me, então, que iria passar uns dias à casa de férias dos Jesuítas, no Baleal. Agendámos um encontro e um jantar numa certa Brasserie que ambos estimamos. O pior, acrescentou, é se eles têm de fechar às dez e meia. Talvez não, respondi, sem grande fé. Uma desolação, disse, mas também a desolação faz parte da vida. Por certo, continuou, toda a desolação só acontece porque um bem maior haverá de nascer dela. Eu pensei que ele continuava às voltas com os argumentos sobre a existência de Deus, mas evitei comentar.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Uma desolação

Não faço ideia quem é Carlo Levi, embora uma rápida consulta me possa esclarecer. Há tempos comprei, num alfarrabista, um livro dele por causa do título, Cristo parou em Eboli. Havia, claro, uma ressonância em mim, a recordação de existir um filme, dirigido por Francesco Rossi, com esse nome e que nunca vi. Presumo que o assunto do livro não exerça, na pessoa em que me tornei, grande atracção. São memórias de um deportado político, durante a confiscação de Itália pelo fascismo. Li há pouco as primeiras duas páginas e talvez o livro mereça o tempo da sua leitura. Hoje o dia esteve quente. O que não é, para mim, um bom prenúncio. Aqui o calor jorra de todo o lado. Do sol inclemente, das paredes das casas, das faldas da serra. Tudo conspira para que o ar quente não possa sair, como se estivesse encurralado. A partir de agora e até Outubro, as coisas só piorarão. As pessoas aproveitam para oferecer as carnes aos olhos descuidados dos transeuntes. Talvez por isso evito grandes deslocações dentro da cidade. Bem, não estou a falar verdade. Ontem fui jantar à praça principal do povoado. Quem conhece a animação de uma cidade espanhola, grande ou pequena, só pode ficar desolado. A desolação, porém, faz parte da vida, como me disse ainda há dias o padre Lodo, mas não é hoje que conto a conversa havida.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Feriado e vírus

Parece que hoje é feriado, um feriado com um nome extenso, como se resultasse da fusão de vários e, como aconteceu com as freguesias, mantivesse a denominação de todos eles. Contrasta em capacidade de síntese com o feriado religioso de Todos-os-Santos. O pior é que aquela história do vírus é um incêndio que se reacende sempre que parece estar quase extinto. Há muitos anos, havia um anúncio que proclamava que um certo carro, cujo nome omito, veio para ficar e ficou mesmo. Assim está o vírus. A continuar deste modo, com o tratamento simpático que os portugueses lhe oferecem, não tarda e está tudo confinado outra vez. O principal canal de contaminação, li em tempos, é as narinas. Ora, muitos portugueses gostam imenso de usar máscara, desde que as narinas possam ficar descobertas, não vá o inimigo não ter maneira de se intrometer nos pulmões. Nem sei o que me deu, para estar a escrever sobre este assunto mórbido em vez de celebrar Portugal, Camões e as Comunidades. Vou continuar a fazer aquilo que deixei a meio. Ainda não fui à rua, mas talvez não tenha oportunidade. Já agora, o vírus não reconhece feriados, fins-de-semana nem dias santos. É absolutamente democrático.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Da polimatia e outras sagas

A saga das impressoras talvez chegue em breve ao fim. Descobri uma loja que vende tinteiros e que parece perceber de impressoras. Não a loja, mas quem lá trabalha. Conversei com eles e disseram-me para levar lá as maquinetas. A laser é impossível, com o que tem trabalhado, que tenha problema grave, juraram. A de jacto de tinta, logo se verá. O caricato é que a loja está mesmo à mão de semear. Vejo-a da cadeira do meu escritório. Saio de casa e não são cem metros. Não me a tivessem indicado e eu não iria lá. Para continuar num registo ao gosto popular, direi que santos de casa não fazem milagres. Neste caso, são santos ao pé da porta. São estas banalidades que dão sentido à vida. Um bom banho no mar das trivialidades e desaparecem as melancolias, o spleen, o absurdo da existência, a náusea e até a angústia, seja para o jantar ou para qualquer outra refeição do dia. Descobri um senhor chamado William Whewell. Viveu no século XIX e era uma daquelas pessoas que, para minha inveja, parecia saber de tudo. Leio que foi cientista, padre anglicano, filósofo, teólogo e historiador da ciência. Um autêntico polímata. Bem, eu dispensava ser aquilo que ele foi, até padre anglicano. Seja como for, ele, enquanto padre, não devia ter uma paróquia que lhe exigisse tempo. O que me interessou foi a obra The Plurality of Worlds. Achei um título magnífico. Na verdade, a obra, que facilmente se encontra na internet, não me pareceu particularmente estimulante, mas o título é como a embalagem. Quantas vezes compramos uma coisa inútil apenas porque tem uma embalagem que nos agrada? O que tem a ver a saga das impressoras com um padre anglicano. Que eu saiba, nada, mas negar que existe uma relação entre ambas as coisas, apenas porque ela é desconhecida, é cair numa falácia. E cair numa falácia é tão mau quanto cair num poço.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma pendência

Num pequeno excerto de um texto de Enst Jünger, leio que tudo o que nos cerca está impregnado, mais do que da racionalidade luminosa, de um cerrado mistério. Ele escreveu isto em 1916, em plena guerra mundial, nas instalações do Batalhão a que pertencia. Talvez a iminência da morte torne as pessoas mais sensíveis ao mistério, talvez existam pessoas mais sensíveis que outras. O texto reflecte uma pendência a que poderíamos chamar uma nova querela entre antigos e modernos. A racionalidade luminosa seria o facho erguido pelos modernos. O cerrado mistério, a sombra dos antigos. É possível, porém, que as coisas sejam bem mais simples. Quem conseguiria viver, envolvido em mistério, toda uma vida? Este dá profundidade à existência, mas as pessoas, como as crianças perante a escuridão, ficariam inseguras e temerosas. O que os pais fazem é ligar o interruptor, para que a luz dissipe o medo. A racionalidade dos modernos é essa luz. Não desfaz o mistério, mas oferece tranquilidade e segurança, ocultando-o na própria luz. A escola e as árvores que a envolvem oferecem-se ao meu olhar tranquilo, batidas pela inclemência da luz de Junho. Se ali há algum mistério, a luz não o deixa ver.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

As horas

O dia deslizou rapidamente. As horas, quando mais precisamos que dilatem, mais elas têm uma inclinação para minguar. Esta separação entre as horas cronológicas e as psicológicas será sentida por toda a gente. Há uma duração uniforme, pautada pela convenção que inventou a divisão do dia em horas, destas em minutos e destes em segundos. Tudo isto parece, se se olha com exactidão, de uma regularidade imutável. Todavia, o mesmo não se passa no nosso pobre espírito. A regularidade torna-se em irregularidade, conforme as paixões que nos atormentam. Por vezes, uma hora não é mais que alguns segundos. Outras, contudo, parece dilatar-se, com se fosse tomada por um desejo hiperbólico. Hoje precisava de horas pouco dadas a grandes velocidades. Elas decidiram o contrário. Nem nas nossas horas temos mão. 

domingo, 6 de junho de 2021

Enviesar os olhos

Talvez seja uma ilusão de óptica, mas os loendros da escola aqui ao lado já floriram. Arbustos verdejantes deixam-se trespassar por pequenas mancha cor-de-rosa. Sob o sol, brilham e, tocados pelo zéfiro, dançam ondulantes perante o meu olhar. A vida vegetal não é menos enigmática que a animal. É menos dada a fogos-de-artifício, a grandes explosões de ira, aos jogos onde a vida e a morte se entregam a núpcias que parecem eternas. Se mata, é por descuido da natureza ou da vítima. O domingo corre para a hora de almoço. Vai chegar quase aos 30 graus, para anunciar a praga do Verão. Irei, como é habitual aos domingos, almoçar tarde. Uma conversa havida sobre arte chegou ao grau de perplexidade que é habitual neste tipo de conversas. A dificuldade de oferecer uma definição consensual do fenómeno. A conversa acaba sempre por resvalar para um certo tipo de cepticismo, cujo pano de fundo é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte. Talvez Johann Scheffler, para desgosto de filósofos que fazem profissão da arte do argumento, possa ajudar. Uma ajuda inadvertida, como todas as boas ajudas. Viveu no século XVII e ficou conhecido por Angelus Silesius. Um pequeno poema diz-nos a rosa é sem porquê; floresce porque floresce / não cuida de si mesma; não pergunta se alguém a vê. Talvez a arte seja essa rosa sem razão e a procura de razões daquilo que a não tem seja uma doença. Uma doença, perguntará o eventual leitor. Uma doença ocular, direi, talvez não seja cegueira profunda, mas uma forma de enviesar os olhos. Imagino que os que procuram definir arte ou rosas ou seja o que for sejam vesgos. Isto, porém, são imaginações e fantasias de um domingo em que se almoça tarde.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Pesadelos e catarses

Nos últimos dias voltei a um lugar de que muito gosto. Revi dois filmes de Ingmar Bergman. Primeiro, Persona. Depois, Sonata de Outono. Talvez logo reveja um outro. Há autores que nunca me cansam. Talvez toquem qualquer coisa de essencial e, por isso, obrigam o espectador a comprometer-se com a sua obra. Conheço muita gente que detesta o cinema do realizador sueco, que o acho soporífero. Eu encolho os ombros e penso que mais vale adormecer com um filme do Bergman de que com um comprimido. Será menos tóxico. A tarde de sexta-feira corre desvairada, como se uma ânsia a precipitasse para o rápido fim-de-semana. Recebo mensagens no telemóvel, abro-as, sorrio, para depois voltar os olhos para o horizonte. Toldam-no algumas nuvens, mas passarão. O vento de Norte empurrá-las-á para longe, para que a noite se cubra de estrelas, e os sonhadores tenham motivo para os seus sonhos. Também os dois filmes de Bergman tratam de sonhos, mas pouco benévolos. A vida dos seres humanos pode ser um enorme pesadelo. O cinema de Bergman tem um ponto de contacto com a tragédia grega. Funciona como catarse. É, para os espectadores, um exercício de purificação.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Transubstanciação

Hoje deu-me para andar a cismar sobre coisas que não aproveitam a ninguém. Pensamos que muitos dos nossos gestos têm um significado determinado pelas próprias circunstâncias onde eles ocorrem, sem que uma outra ordem intervenha para lhes dar sentido. Isto veio a propósito de gestos como os de Marcel Duchamp, que enviou um exemplar de um urinol fabricado em massa para uma exposição de arte ou que transformou em obra de arte uma trivial pá de limpar neve, dando-lhe o irónico nome de Antecipação de um Braço Partido, ou de Andy Wahrol que mostrou as Brillo Boxes, vulgares caixas de esfregões de palha de aço, como obras de arte. Estes gestos são matéria que facilmente pode conduzir a meditações sobre a dessacralização da arte. No entanto, essa seria uma visão errónea daquilo que está em causa. Eles inscrevem-se numa cultura que tem como um dos seus fundamentos a transubstanciação do pão e vinho no corpo e sangue de Cristo. O que estes artistas fazem é transubstanciar objectos do quotidiano em objectos de uma outra ordem, em obras de arte. Os seus gestos não devem ser interpretados apenas – ou principalmente – como provocações ou questionamento sobre o que é a arte, mas como rituais de consagração que transformam o trivial no extraordinário. Com isto fazem uma revelação sobre o que é um artista e o que é a arte. O artista é um sacerdote e a arte é o exercício desse sacerdócio, que opera a transubstanciação, esse gesto ritual de consagração que transforma os materiais vulgares em materiais nobres. Esta fútil meditação talvez tenha nascido por hoje ser feriado, ainda por cima feriado religioso, o dia do Corpo de Deus.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Santa trivialidade

A meio da manhã tive uma aberta e fui à farmácia. Apresento a receita, a farmacêutica investiga na base de dados. Não temos agora, só logo à tarde, diz. Só vendemos até hoje um medicamento desses, acrescentou. Acredito, respondi. Foi a mim. Encomendei duas embalagens, pois aquilo tem um preço desagradável e talvez se possa estragar armazenado na gaveta dedicada a sucursal da farmácia. Dá para dois meses. De tudo isto concluí que pouca gente tem o problema que eu tenho ou segue a mesma terapia. Com o passar dos anos acumulam-se os medicamentos necessários para sobreviver. Rio-me, sempre que tenho de retirar os comprimidos das embalagens. Não apenas pela quantidade, mas porque o acto é mais um exemplo da lei de Murphy, adágio sobre o qual ainda ontem tive uma conversa. O provérbio diz o seguinte: Qualquer coisa que possa correr mal, correrá mal, no pior momento possível. Há vários exemplos da lei. O pão cai sempre com a manteiga para baixo. A fila do lado anda sempre mais depressa. A informação mais importante de qualquer mapa está sempre na dobra ou na margem. Tudo isto é informação recolhida na Wikipédia. Eu acrescento um exemplo medicamentoso: quando se querer retirar um comprimido de uma caixa, abre-se sempre esta pelo lado errado. O lado errado é aquele onde se encontra a dobra da bula, que não permite aceder ao colírio salvador. Com tanta coisa importante, as minhas preocupações centram-se no que é trivial. Talvez, oiço dizer, nada mais exista a não ser a trivialidade. Uma ideia que me repousa e reconcilia comigo.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Começar com um refugiado

Sem se dar por ele, Junho instalou-se. O dia esteve carregado, como se ameaçasse tempestade. O corpo, envolvido pela tensão eléctrica, exigia-a. O tempo, porém, recusou-se a um espectáculo de luz e de bombos celestes. Manteve sempre uma tonalidade crepuscular e na rua a temperatura não subiu muito. Descubro que a pintura representou pela primeira a Via Láctea em 1609. Coube o feito a Adam Elsheimer, numa representação da fuga para o Egipto. Curiosamente, só em 1610, no Siderius Nuncius, é que a ciência moderna, então a dar os primeiros passos, confirma, pelo trabalho de observação de Galileu, aquilo que o pintor mostrara, a nossa galáxia como uma acumulação de incontáveis estrelas. Especula-se que o pintor também teria algum interesse pela ciência e que talvez tenha dado uma espreitadela num desses primeiros telescópios. O quadro encontra-se na Alte Pinakothek, de Munique, onde a Via Láctea se continua a mostrar tal como a viu Elsheimer e a Sagrada Família, sobre um burro, permanece em fuga para o Egipto. A religião cristã começa com um refugiado. Talvez isso devesse dizer alguma coisa Europa fora, não se tivesse tornado esta mais pagã que cristã. Por aqui, nada indica que se possa contemplar a Via Láctea, esta noite.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Prolegómenos

O crepúsculo é cada vez mais tarde, pensei ao olhar para a luz ainda viva. Mais logo virá a noite com o seu império feito de trevas, a vida adormecerá lentamente, até que a aurora faça soar as trombetas, para que homens e animais retomem a azáfama que a despótica realidade lhes impõe. Leio, num poema de um poeta polaco, que um alemão na esplanada de um café tinha sobre os joelhos um pequeno livro. O título era Mística para Principiantes, e o poeta foi descobrindo, nessa língua incompreensível que é o polaco, que tudo o que sucedia não seria outa coisa que uma introdução ou uns prolegómenos a essa mística, seja ela o que for e qual for. O tradutor cometeu um deslize e traduziu prolegomena por prolegómeno, mas a palavra não existe em português a não ser no plural. Consultei o habitual dicionário da Porto Editora e o indispensável Houaiss. Aliás, prolegomena é uma palavra latina que se encontra no plural. Noutra encarnação, quando me dedicava a coisas para as quais não tinha qualquer competência, li um livro com o épico título Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência. Hoje em dia, consumada a minha falta de préstimo para prolegómenos, introduções e prefácios, escrevo uns pequenos textos insípidos e que, se utilizados com cuidado, permitem bocejar, e como se sabe todos os bocejos são autênticos prolegómenos ao sono.

domingo, 30 de maio de 2021

Tresleituras

Um velho domingo de Maio. As temperaturas chegaram aos 33 graus, para que alguém distraído não se esqueça que isto não é o paraíso. Contrariamente aos meus hábitos, tive de ir fazer as compras semanais no dia de hoje. A cidade estava luminosa, mas de uma luz ameaçadora, vítrea. O calor ainda se está a entranhar nas paredes das casas e prédios, mas não tarda começará a ressumar deles, caindo sobre as ruas como lava expelida por um vulcão. Consulto as previsões para a semana que vem. Não são de molde a tranquilizar-me. Preciso de retomar as caminhadas, mas agora só pela noite, onde a temperatura se torna mais amigável. Há pouco passei os olhos por um título de uma entrevista. Li Eu fui uma privilegiada pelos pais que tive. Passado um bocado, tornei a passar os olhos pelo mesmo título e descobri que lá estava outra coisa, Eu fui uma privilegiada pelos filhos que tive. O que leva a mente – pelo menos, a minha – a cometer erros destes? Talvez a minha leitura se deva ao preconceito. Qualquer privilégio é herdado e não recebido de quem vem depois. As mentes humanas são máquinas frágeis e dessa fragilidade faz parte a tresleitura, a qual tem uma dimensão muito mais ampla que a leitura, quero dizer a leitura correcta. Ando falho de imaginação, essa é a verdade.

sábado, 29 de maio de 2021

A vontade pervertida dos objectos

Nunca deixa de me impressionar o número de coisas que encontro apenas quando não preciso delas. Assim que as quero requisitar para algum serviço urgente, elas decidem ocultar-se nos sítios mais inverosímeis e recônditos. Tendo passado a necessidade de uso, por ter desistido de o levar a efeito ou por ter resolvido o assunto de outro modo, elas reaparecem todas lampeiras e, como se fossem cãezinhos amestrados, não param de abanar o rabo. Isto não se deve a uma arrumação caótica do meu mundo, mas à vontade pervertida dos objectos criados pelo homem. Têm vida própria, pelo menos quando preciso de alguns deles. Um pouco mais acima escrevi a palavra lampeiras. Não sei se não passa de um regionalismo ou se o seu uso se estende a todo o território nacional. Antigamente, ouvia-a muito, mas agora ou caiu em desuso ou estou a ficar surdo. Julgo que virá de lampo. Por aqui classificam-se como lampos os figos temporãos. Fazem as delícias dos amantes do fruto, clube no qual não me incluo. O meu neto passou quase oito horas comigo. É a primeira vez desde que a pandemia começou. Tentámos recuperar algum tempo perdido. Eu tive a minha dose de A Masha e o Urso e também da Galinha Pintadinha. Esta é uma velha conhecida. Um sábado já inclinado para o Verão, embora um vento moderado de Noroeste baixe a temperatura e torne desagradável andar na rua. Não tarda e o dia está passado.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Requiem para uma máquina

Um velho computador, mas que ainda prestava um ou outro serviço relevante, decidiu entregar a alma ao criador. Não será bem isso. Ele ainda tem sinais vitais. Foi, naqueles tempos em que todos os outros sopravam desalmadamente, um aparelho silencioso. Uma ventoinha discreta fazia a minha felicidade. Depois, foi substituído, mas ali estava para fazer isto ou aquilo. Hoje precisava dele. Liguei-o. Não apenas começou por se recusar a enviar imagem para o monitor, como quando o fez foi para assinalar erro. Depois, nem isso. Limita-se a soprar com violência, como se se preparasse para levantar voo. Vai deixar a tela, como os brasileiros chamam aos monitores, viúva. Uma tristeza. A minha relação com os seres humanos deve andar tensa, para não falar deles e dedicar um requiem a uma máquina decrépita. As coisas são o que são. Não há nada como uma tautologia para rematar uma conversa ou acabar um texto, mesmo à sexta-feira. Assim seja.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Injustiças vegetais

Ao olhar o entardecer deste dia de Maio recordei-me de dois versos de Eliot: What is the late November doing / With the disturbance of de Spring.  Lembrei-me não porque estejamos em Novembro, mas porque este dia de um Maio tardio está com ademanes de Outono. Com algum calor, mas céu nublado e uma atmosfera tensa, como se a terra estivesse a pedir uma tempestade libertadora das más energias que se acumularam. Há pouco, voltei a contemplar os dois jacarandás que moram num quadrado relvado do outro lado da avenida. Um está cada vez mais exuberante, coberto com flores roxas a abrirem-se para o espanto de quem as pode olhar de cima. O outro, coitado, é o jacarandá pobre, sem meios para comprar roupa vistosa, um maltrapilho com as suas esparsas folhas verdes e uma ou outra flor. Nem no mundo vegetal a justiça distributiva funciona. Aparentemente, ambos tiveram as mesmas oportunidades, mas um aproveitou-as e cobre-se de glória, o outro vai acabar mal. Não devia estar com estas considerações, pois são impróprias de um mero narrador proibido, pelo autor, de falar sobre este tipo de assuntos. Procuro com os olhos os loendros da escola vizinha, mas ainda não floriram. Não consigo distingui-los da vegetação envolvente. O crepúsculo prepara-se para cobrir a cidade com um véu de hesitações. Há dias em que não tenho nada para dizer. São quase todos. Um pássaro passou diante da minha janela. Há quem diga que era um estorninho, respondo que não. Um anjo disfarçado.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Contra-conformista

Voltaram as antigas quartas-feiras. A pandemia ainda não foi dada como extinta, mas o conjunto musical da escola vizinha retornou em força. Tanto quanto sei, o conjunto é formado por professores, ou pelo menos por um, o vocalista, um rapaz do meu tempo, colega de colégio. Parece-me que estão a alargar horizontes musicais. Para além daqueles velhos slows dos bailes de há décadas, música para constituir família, foram adicionadas ao repertório umas composições mais hard-rock. Seja como for, não o posso jurar, pois sou um absoluto leigo nesse tipo de música. Consegui constituir família sem recurso a slows e de hard-rock só conheço os cafés, não por os frequentar, entrei uma vez no de Lisboa, mas por ouvir dizer. Confesso que tentei várias vezes gostar dessa música que animou a alma da minha geração, mas tive de reconhecer que sou um desalmado. Há pouco fiz uma intervenção num fórum online restrito sobre uma determinada temática que, embora venha para salvar a pátria da sua contumaz miséria, não vou aqui divulgar. Se sou para a música dos meus tempos um desalmado, continuo com a mesma alma que tinha nesses tempos. O prazer de estar contra. Há os conformistas, que estão sempre a favor, e há os contra-conformistas – não confundir com inconformistas – que estão sempre contra. Estar contra parece fácil, pois tudo o que é feito pelo homem é precário e imperfeito. No entanto, estar contra é uma arte. Exige que se explore aquilo que se vai contestar, se lhe descubra a imperfeição, se contribua para que melhore. É isto que um filósofo famoso do século XX propunha para a ciência. As teorias científicas não se podem confirmar, mas há que mostrar que são falsas, para se encontrarem outras melhores. Não se pense que estar contra seja o resultado de um elevado heroísmo. Não é. É, antes, uma coisa que está na massa do sangue, contra a qual não se pode lutar. O grupo de baile voltou aos slows, embora já ninguém constitua família desse modo.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Emprestar a voz a uma mosca

Deveria aceitar emprestar a minha voz, de modo anónimo, a uma mosca? Vivemos num mundo cheio de animação e experiências. Recusei a proposta sem explorar as possibilidades. Disse que não tinha talento para mosca morta. Não era isso, retorquiram. Pensei que poderia ceder o meu aparelho fonador a um moscardo velho, mas contive-me, não fosse dar ideias. Isto foi a coisa mais saliente que me aconteceu no dia de hoje, pelo menos até ao momento. Nada impede, que não surja uma proposta para ceder os olhos a um tigre da Malásia, se é que existem tigres na Malásia. Por vezes, conto mentiras, não pelo prazer de mentir, mas porque a verdade é uma coisa que dá muito trabalho e uma pessoa chega já ao final de terça-feira de língua de fora. Leio numa legenda a uma fotografia de Charles Darwin, pespegada num livro que discute a existência de Deus, que o biólogo britânico explicou de maneira decisiva como a ordem surge naturalmente da desordem. Fiquei siderado, bastou a palavra decisiva para eu perceber que não sou o único a inventar propostas de emprestar a voz a uma mosca. Mesmo na discussão filosófica sobre a existência de Deus, a ficção é o ponto central. Confesso-me darwinista, mas tenho muita dificuldade com tudo o que é decisivo. Eu sei que sou um indeciso nato e que isso não é uma virtude, mas o que posso eu fazer, agora que espero um convite para, decisivamente, emprestar a minha voz a uma lesma?

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Cartas de amor

Talvez o amor não seja mais de que a arte de o amante encontrar justificação para a falta do amado, para falar numa linguagem com cores da mística cristã. Numa carta de 3 a 4 de Março de 1913, dirigida à amada, escolho a palavra com cuidado, Felice Bauer, Franz Kafka escreve: Hoje não tive carta tua, meu amor. É fácil de explicar, a tua irmã esteve ontem em Berlim, não tiveste tempo. O amor não estará na designação da amada como meu amor, mas na antecipação daquilo que desculpará a sua falta. Todavia, qualquer coisa de perigoso esconde-se nesta benevolência amante. E se a irmã de Felice não estivesse estado em Berlim, ou se Kafka não o soubesse, ainda encontraria uma explicação – e toda a explicação é já uma justificação – para a falta de Felice? Esta sombra tão dissimulada faz, contudo, parte do amor humano. Nele se esconde sempre a possibilidade da decepção e da traição, isto é, do fim do amor. Recebi hoje o livro com estas cartas. São, na edição espanhola, um pouco mais de oitocentas páginas com a correspondência enviada pelo escritor checo, entre 1912 e 1917. Não constam as respostas de Felice. Elias Canetti refere-se a essas cartas como as ‘cartas de um tormento que se prolongou por cinco anos’. Também cinco anos antes de morrer, Felice Bauer vendeu as cartas ao editor de Kafka. Quando foram publicadas, o escritor tinha morrido há quarenta e três anos. Se a correspondência diz respeito a um amor tormentoso, há, no gesto de Felice Bauer, qualquer coisa de desabrido, talvez uma traição ao que deveria permanecer na esfera obscura da intimidade. O gesto teatral de queimar as cartas de um amor que não se consumou é, apesar da teatralidade, menos desabrido, para continuar com o mesmo adjectivo, de que a sua venda para publicação. Na verdade, faz lembrar os casos em que dois amantes trocam fotografias íntimas pelo telemóvel e depois, consumada a ruptura, o abandonado publica-as, como vingança, nas redes sociais. Esta consideração, porém, pode ser completamente injusta para Felice. A sua traição pode estar ao mesmo nível da de Max Brod, o amigo a quem Kafka pediu para queimar todas as suas obras. Brod, porém, não as queimou e deu a conhecer ao mundo um dos mais geniais escritores. Felice pode ter pensado que seria muito mais grave privar o público do drama interior de Kafka de que violar os segredos da intimidade. A revelação do génio de Kafka pela traição do amigo abriu o caminho para que a sua vida íntima lhe deixasse de pertencer, se tornasse pública e viesse parar à minha secretária em forma de livro.

domingo, 23 de maio de 2021

Uma questão de angústias

A angústia de domingo à tarde é pior que a do guarda-redes no momento do penalty. Não tenho experiência de guarda-redes, mas possuo uma evidência, fundada na realidade do sentimento, de que o domingo à tarde convoca uma espécie muito determinada de angústia, diferente de qualquer outra que possa existir. Comecei a senti-la quando me apercebi que havia domingo e, pior que isso, também havia segunda-feira, isto é, quando fui para a escola primária. A partir daí, nunca mais essa opressão dominical me abandonou. Durante muitos anos, enquanto o futebol me interessava e se jogava inexoravelmente aos domingos entre as três e as cinco da tarde, a angústia visitava-me com o apito final dos árbitros. Então a realidade fantasmagórica da segunda-feira descia sobre o meu coração para o apertar. Tenho de confessar que em certas épocas, que não são para aqui chamadas, a agonia não se manifestava. Depois, voltou com certa força e manteve-se não sem contumácia. Lembrei-me de tudo isto porque hoje é domingo e não sinto o tal estado depressivo que me tem atormentado ao longo da existência, sempre que o domingo se entrega nos braços de rameira que a tarde lhe estende. Não compreendo a razão, mas com a pandemia a patologia escondeu-se, desapareceu-me do coração, pois é uma coisa que ataca o coração, apertando-o com a tenaz da realidade. Talvez me tenha desinteressado definitivamente da realidade. Talvez.

sábado, 22 de maio de 2021

Cair na esparrela

Depois de uma manhã votada a discussões bizarras, que em nada contribuem para o progresso moral da humanidade, aceito a sugestão de ir experimentar um restaurante de comida grega numa outra cidade aqui perto. A sala estava quase vazia, a comida era razoável, mas a lentidão de todo o processo foi exasperante, quando havia quase tantas pessoas na cozinha quantas estavam na sala para almoçar. Para culminar, descubro que, na cozinha, ou não usavam máscara ou usavam-na no pescoço, talvez para evitar o vírus da papeira. Tendo em conta os preços, ao nível do que se paga nos restaurantes na moda das grandes cidades, a gestão do serviço e as precauções com a ameaça pandémica, não admira que não houvesse quase ninguém na sala. Ainda por cima não havia quem falasse português, embora os clientes pudessem escolher entre o inglês e o francês, para além de uma língua desconhecida que não era grego. A música ambiente, essa era óptima, mas ninguém vai a um restaurante por causa da música ambiente. Na verdade, nunca se deve esperar que limoeiros dêem uvas, nem que se encontre o cosmopolita num lugar recôndito da província. Nesta, o melhor é escolher o tradicional e deixar-se de experiências. Uma pessoa sabe destas coisas, mas acaba sempre por voltar as costas à razão e cair na esparrela.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Da pluralidade das ordens do mundo

Imagino, agora, que há uma ordem única na natureza. Hoje é sexta-feira, ontem foi quinta e amanhã será sábado. Caso a ordem não fosse única, amanhã poderia ser terça-feira e os dois dias seguintes serem ambos domingo. A sucessão dos dias não seria aleatória como acontece com as chaves do Euromilhões, mas obedeceriam a múltiplas ordens que coexistiriam pacificamente, gerando uma sequência de dias sempre inesperada. De imediato, o homúnculo que habita em mim começa a rir. Perguntei-lhe pelo motivo da risota. Respondeu-me que deveria aprender a pensar. Olhei-o de esguelha e com ar interrogativo. Se a sucessão dos dias obedecesse a múltiplas ordens, disse num odioso tom professoral, então também se poderia defender que as chaves do Euromilhões não seriam aleatórias, mas obedeceriam a um mesmo princípio. Nenhuma das bolas que sai é fruto do acaso, mas de uma certa ordem que se conjuga com outras ordens. A chave de um certo concurso estaria já pré-determinada, não por uma única ordenação causal do mundo, mas por múltiplas ordens que se cruzariam e combinariam para dar a aparência de aleatoriedade. Depois, o idiota do homúnculo tornou a rir-se e retirou-se para a caverna de onde nunca deveria ter saído. Olho para o que escrevi e pensei que o dia não está assim tão mau que eu tenha necessidade de me ocupar com estes devaneios em aparência de pensamentos. Eu não penso, embora não seja como o Alberto Caeiro, esse que não pensa, mas sente. Eu também não sinto. Tudo em mim é fantasia e quimera, tontices que me ocorrem.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Viagens e raízes

Não sou dado a viagens. Uma excepção num tempo em que toda a gente tem alma de viageiro e coração de turista. Gosto de estar, mas não aprecio particularmente o deslocar-me, embora quando viajo esqueço-me desse desgosto. A verdade é que sou um ser paroquial. Tudo isto para dizer que hoje tenho viajado bastante. Visitei o Japão através do canto de monges Zen, daí parti para a China, ouvindo a sua música tradicional. Não cansado, dei um salto à Arménia, através do Duduk, a flauta tradicional, e acabei no Irão e na Síria, na música de Mehdi Aminian & Mohamad Zatari. Estas diferentes sonoridades têm o condão de me mostrar que sou inextricavelmente europeu. Não porque me desgostem ou me sejam indiferentes. Não o são. A sua diferença fascina-me e amo-as pela sua diferença, como um homem ama uma mulher, pela sua radical diferença. É estranha a sensação que tenho perante esta música. Por um lado, ela abre em mim a certeza de eu não pertencer a nenhum desses mundos, mas sob essa capa pressinto algo mais fundamental, uma espécie de comunhão, cuja arqueologia se estenderá aos primeiros homens, aqueles que, sendo ainda uma comunidade única, começaram a transformar o mundo no jardim onde os caminhos se bifurcam. Afastamo-nos uns dos outros, mas a música, venha de onde vier, faz soar em nós, sob a capa da diferença, essa pertença arcaica a uma horda e a uma ordem únicas. Devíamos estar em casa fosse qual fosse o sítio onde estivéssemos. Se não estamos, é porque alguma coisa se perverteu em nós.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Questões de imaginação

Um texto que escrevi ontem e que imaginara ter enviado para o destinatário, afinal não tinha saído do meu computador, onde dormia o sono dos justos. Não tivesse sido avisado e o escrito continuaria a descansar na pasta onde jazem esse tipo de redacções. Esta palavra trouxe-me à memória o tempo em que na escola as fazia. Não era um redactor particularmente feliz, falecia-me a imaginação e os textos deveriam ser mansamente insípidos e inodoros. Pior do que as redacções eram os desenhos. Absolutamente estereotipados, com ruas a saírem das portas das casas, estas com telhados encarnados, as árvores com copas verdes e troncos castanhos, o sol laranja e não sei se seria capaz de desenhar qualquer animal. A imaginação era coisa que em mim não abundava. Contrariamente ao que se passa hoje em dia. Imagino que envio coisas, imagino que faço coisas, imagino que sou isto ou aquilo, mas na verdade tudo isso é imaginação transbordante. Parece que aquela que não gastei na infância e na adolescência se acumulou e tenho agora uma grande reserva de imaginação. Não tarda e terei de entrar num webinar. As coisas que inventam. Pessoas que estão a gastar a imaginação e ainda são tão novas.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Abrir o olhar à beleza

Numa das pracetas desta zona, há dois jacarandás. Não percebo o mistério que os separa, eles que estão tão pertos um do outro. Enquanto um permanece adormecido e tímido, o outro decidiu entregar-se a uma floração entusiástica, abrindo-se para o espanto dos olhos que para ele se dirigem. Durante grande parte do ano o jacarandá não é particularmente belo, mas, chegado ao momento da floração, transfigura-se e parece apostado em fazer-nos crer que existe uma ordem no universo e que ela tem por finalidade abrir o olhar dos mortais à beleza. A grande aventura da arte de vanguarda foi a ruptura com a ideia de beleza, imiscuindo-se na arte outros interesses estéticos e artísticos. Durante um período da existência humana, os mortais tinham três ideias que regulavam a sua vida. Na realidade, era uma ideia com três faces, uma espécie de trindade, ao mesmo tempo una e trina. O Bem, a Verdade e a Beleza. Depois, cada uma destas faces foi seccionada e, posteriormente, abandonada. O que me haveria de dar numa tarde de segunda-feira, logo a mim que tanto tenho para fazer. Ainda me esperam duas vídeo-reuniões, das quais há-de resultar a salvação do mundo e a resolução dos mais ingentes problemas da humanidade. Daqui a pouco vou espreitar o jacarandá, de caminho observa o friso das orquídeas. Há no mundo vegetal uma dignidade inexcedível, uma forma de se entregar à vida sem a necessidade do triste espectáculo da morte, ou, pelo menos, minimizando-o drasticamente. Como são sábias e serenas as grandes árvores. Nelas habita a verdade, o bem e a beleza.

sábado, 15 de maio de 2021

Paixões e contabilidades

Depois de meia hora de espera, pude sair. Cumprida a missão de tomar a segunda dose da vacina. Como na primeira, tudo muito bem organizado. Vejamos se me livro dos efeitos secundários. Na primeira toma, não tive qualquer reacção. Como de tudo o resto, também é insondável o caminho das vacinas. O melhor é não o perscrutar. No parque infantil da praceta uns rapazes, talvez com meia dúzia de anos, andam de baloiço, fazem jogos e entoam lengalengas. Depois, falam para uma janela, de onde os pais os vigiam. Também eu ia para a rua e com outros rapazes jogava à bola, ao berlinde, ao pião e ao prego, caso houvesse terreno amolecido pela humidade, mas que ainda não se tivesse tornado um lamaçal. Um jogo para o Outono. Não havia pais nas janelas, o que era sentido como um verdadeiro alívio. Hoje a vigilância tornou-se total. Não há nesta afirmação qualquer avaliação, apenas uma constatação de facto. Maio chegou ao meio, não tarda Junho arvorará a sua bandeira e desatará a correr para a sua perdição. Quando saí da vacinação encontrei um antigo colega dos tempos de escola. Esperava a mulher. Não o via há muito. Troquei amenidades e falámos de futebol, como se tivéssemos treze anos. Na verdade, o futebol tornou-se-me completamente indiferente. Uma paixão que morreu em mim ou que eu matei friamente. Depois, ele entregou-se a uma contabilidade macabra sobre o número de antigos colegas que já tinham morrido. Foram alguns. Talvez essas contabilidades sejam também paixões como o futebol. Talvez.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Acautelar o futuro

Sexta-feira! Acabei de ir buscar a neta mais velha ao Expresso. É a segunda vez que faz a viagem sozinha. Como uma adolescente que se presa, não atende o telemóvel durante a viagem. Aliás nem sequer o tinha com carga, pois não lhe ocorrera que mãe, de um lado, e avó, do outro, haveriam de querer comunicar com ela, para se certificarem que o autocarro continuava a ser autocarro e não se tinha transformado em avião ou barco à vela. Mães e avós têm uma certa propensão para crer nas metamorfoses de Ovídio. A pobre pequena – na verdade, é muito pouco pequena para doze anos – vem para ser massacrada com a preparação das avaliações da próxima semana. Para a compensar, já marquei mesa para o jantar, no restaurante preferido da pequena. Isto, para ela não dizer daqui a quarenta anos que ia a casa dos avós para apanhar uma seca com matemática, físico-química ou português. Há que acautelar o futuro. Enquanto não chega a hora de jantar, vou pondo coisas em dia e ouvindo música. Não faça a ideia da razão, mas tenho estado a ouvir uma cantora country de que gosto bastante, Emmylou Harris. Já não ouvia este tipo de música há muito, muito tempo. Talvez seja dos vapores de Maio.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Uma espiga

Hoje foi feriado por aqui. Quinta-Feira de Ascensão e Dia da Espiga. Este, por certo, estará ligado a rituais pagãos da Primavera. Sobreviveram até ao meu tempo de vida, mas estarão moribundos, senão mortos. Talvez tenha ido uma vez apanhar a espiga, mas não tenho a certeza. Lembro-me de ir a uma quinta de um visconde, que já não o seria, mas fora-o o pai ou o avô. Isso seria plausível, mas é muito possível que tenha lá ido por outros motivos que não me lembro, o que será ainda mais plausível. As pessoas iam aos campos e compunham um ramo, que depois deixavam pendurado à porta de casa para secar. Nunca soube o significado efectivo desse gesto, nem me ocorreu perguntar a alguém a razão porque o fazia. Quando nos interessamos por essas coisas, já elas acabaram. Hoje podia ter dado uma volta pelas aldeias circundantes para ver se alguém tinha pendurado um ramo à porta. Em vez disso, estive a trabalhar e, já depois da sete da tarde, fui fazer uma caminhada. Não vi ninguém de ramo na mão, nem com ar de ter ido aos campos apanhar a espiga. Uma espiga.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Acerca da dor

Oiço uma peça do compositor português Emmanuel Nunes, Épures du serpente vert II, e deixo-me arrastar para uma meditação sobre a densidade, não poucas vezes agreste, da música do século XX. Raras concessões ao público, num tempo em que o público é endeusado. Grande parte da música erudita dessa época parece expressar uma dor irreparável. Talvez todas as dores sejam irreparáveis e irremissíveis. Valem-nos os analgésicos e os cuidados paliativos. Atenuam ou disfarçam, mas nunca a erradicam. Os tempos que nos foram dados acentuam o prazer, transformando-o na única realidade admissível, mostrando o sofrimento como uma patologia, para a qual se busca continuamente medicação. Tudo isto por causa de uma peça musical e do século XX. Este foi um tempo doloroso, mas quem o viveu acaba por ficar ligado ao prazer que ele também distribuiu como nenhum outro antes dele. Um dia de sol, o de hoje, mas o astro está comprometido com algumas sombras trazidas por nuvens esparsas que navegam no oceano celeste. Crianças chamam, lá em baixo, pelo pai. Depois, ouve-se uma voz masculina e tudo se aquieta. Daqui a pouco há-de ser a hora de ensaio do grupo de baile da escola vizinha. Lá virão os êxitos dos anos sessenta e setenta desse século XX, onde os seres humanos se mataram com especial insistência e inventaram regimes políticos dos mais tenebrosos. Para o mal, aos homens nunca falta imaginação.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

A língua originária

Fui trocar a lâmpada fundida de um dos piscas. Custou, com o trabalho de tirar uma e colocar outra, um euro e meio. Fiquei espantado, pois pensava que iria pagar mais. Talvez as lâmpadas dos carros tenham desvalorizado ou a vida na província seja mais barata. O dia alterna períodos de aguaceiros intensos com outros de sol, num Maio que, felizmente, ainda não mostrou as suas garras feitas de calor. Leio, num livro de um famoso teólogo alemão do século XX, que Salimbene, um frade franciscano do XIII, conta uma história terrível de Frederico II de Hohenstaufen. Este mandou recolher vários órfãos ainda em período de amamentação. Ordenou que fossem tratados da melhor maneira possível. No entanto, era rigorosamente proibido falar com eles. Aqui descobre-se, em Frederico II, um verdadeiro ímpeto experimental, pois a finalidade da proibição seria verificar qual a primeira língua que, espontaneamente, as crianças falariam, se o latim, se o hebreu, se o grego, as hipóteses de base do experimento. Desse modo descobrir-se-ia qual a língua originária dos homens. A verdade é que as crianças não começaram por falar nenhuma delas, nem sequer o dialecto dos pais, mas morreram. Morreram à míngua de palavras, literalmente. A tarde progride, as pessoas deambulam vagarosas pela avenida e eu penso que é uma bênção viver num mundo em que aos reis e magistrados não lhes é permitido entregar-se a devaneios experimentais. Muito gostam os homens de endeusar o passado, mas quando visto de perto, descobre-se um filme de terror.

sábado, 8 de maio de 2021

Da vida das máquinas

Há coisas que não compreendo. O meu leitor de CD, na verdade um leitor de DVD adaptado a uma versão apenas musical, decidiu ler o disco que acabei de lá colocar. Fi-lo apenas para confirmar que ele estava definitivamente avariado, pois das últimas vezes recusou-se a trabalhar. Desconfio que passou a ter opinião musical e finge-se morto quando não gosta da música que escolho. Hoje não protestou com os estudos para piano de György Ligeti. Imagino que nós, os seres humanos, temos uma relação distorcida com os objectos mecânicos que produzimos. Pensamo-los como uma espécie de criados que estão aí para o nosso serviço. Um erro. Eles protestam, avariam-se, recusam-se a trabalhar. Tudo isto para chamar a nossa atenção, com a esperança vã de alterar o modo de nos relacionarmos com eles. São entidades sensíveis que escondem os seus afectos sob um aparato mecânico. Os sábados de província são propícios para este tipo de reflexões. Como não se passa nada, nós, os provincianos, começamos a enlouquecer, é um processo lento, embora inexorável. O primeiro passo é falar sozinho, mas quando se chega ao momento em que se descobre uma vida afectiva nas máquinas, então a coisa está já avançada. Quando o disco se calar, levanto-me e saio. Na rua disfarçarei a degradação mental, o que não é mau. Mesmo os mais luminosos sábados nunca deixam de conter neles uma sombra.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Adicções e possibilidades

Voltaram as velhas sextas-feiras. Chegam prenhes de luz e calor, anjos a anunciar o Estio por vir. Os telhados metálicos da escola ao lado reverberam, batidos pela impiedade solar. Oiço extensas conversas dos pássaros meus vizinhos. São diálogos amenos entre pais e filhos. Suponho que a época de acasalamento já foi e não terá sido por aqui. Na Sá Carneiro pais e netos levam crianças para casa, agora que a tormenta escolar foi interrompida por dois dias. Os carros passam vagarosos, indulgentes, fingindo-se civilizados. Tocam à porta. Atendo. Tenho aqui para uma encomenda para o senhor, dizem. Pode mandar pelo elevador, respondo. Recebido o pacote, abro-o. Contém livros comprados num alfarrabista. Autores portugueses que ninguém lê. Eu também não, embora não tenha perdido a esperança. Por vezes, fazem-se descobertas surpreendentes. Talvez eu, ao insistir em comprar livros que não leio, sofra de uma adicção. Hoje em dias há teorias que mostram que todos os comportamentos são patológicos. Todos estamos doentes. Depois de arrumar os livros, desinfecto as mãos, não estejam os livros carregados de vírus. Um casal conhecido caminha pela avenida, ele à frente, ela atrás. O espaço que os separa parece crescer a cada passo. Talvez assim evitem a infelicidade, essa doença surgida quando se determinou que casamentos só por amor e que, não bastando o eflúvio afectivo, devem ser uma festa erótica em exaltação contínua, com sedução permanente para que se evite o tédio, a rotina, o enfado e o hábito. Quando se quer o impossível, não se deve estranhar que ele não seja possível.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Do outro lado

É possível que o que é contrário ao que somos nos atraia com muito mais força do que aquilo a que nos assemelhamos. Pensei isto ao ler, Bajo las Estrellas de Otoño, o primeiro romance da Trilogia do Vagabundo, de Knut Hamsun. Tanto quanto sei nenhum dos romances da trilogia foi publicado em Portugal. Não há nada que me seja mais estranho do que o nomadismo a que o narrador e personagem principal – por acaso, chamado Knut Pedderson, o verdadeiro nome do autor – se entrega, em pleno Outono, por uma Noruega rural de finais do XIX ou início do XX. No entanto, sinto-me completamente fascinado. Hamsun é um dos grandes da literatura mundial, um autor decisivo para compreender o que foi o romance do século XX, e que isso contribui para o fascínio. Não é, contudo, só isso. É o próprio vaguear sem destino, sem compromissos a não ser com o estritamente necessário, que surge como uma vida mais autêntica do que o sedentarismo a que me entrego, pois estabelece uma relação menos tensa com os homens e mais funda com a Terra. O sedentarismo é o pai da civilização, mas a existência nómada será a mãe da autenticidade. Estas reflexões são um alívio daquilo que já tive de fazer hoje. Nem sempre fazer o que está certo significa realizar o agradável. Na rua, o sol já queima, apesar do vento de noroeste.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Da beleza

As orquídeas, no seu friso, continuam esplendorosas. Por vezes, chego-me perto delas e fico a contemplá-las, a olhar os padrões que cada uma apresenta, as cores que nunca são exactamente iguais, num exercício de diferenciação a proclamar que nada na natureza é igual a outra coisa. Talvez aquilo a que damos, sem muito pensar, o nome de natureza não seja mais que um contínuo exercício de criar diferenças, para multiplicar as possibilidades de espanto. Caso as orquídeas fossem todas exactamente iguais, o prazer de as olhar depressa se extinguiria. Descobre-se, então, que a multiplicação sem fim das diferenças não passa de uma manobra de sedução. Não há nada mais sedutor que uma beleza única, diferente de todas as outras. Semelhanças e analogias não passam de pobres estratagemas de mentes incapazes de suportar o terrível que existe no que é belo. Um poeta romeno escreveu o verso a luz continua a trabalhar sob a casca dos frutos. Imagino, de imediato, a luz numa grande e invisível azáfama, até que o fruto se ilumine por dentro e se torne num relâmpago ao sentir os dentes da boca que o há-de comer. Um triste destino o do fruto e de tudo o que é belo.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

O que vemos e ouvimos

Volto, à falta de melhor, às minhas narrativas meteorológicas. O calor está de volta, embora com moderação. Muitas vezes, por aqui, Maio é um mês impiedoso, sem contemplações para com aquelas almas – o melhor seria escrever aqueles corpos – que têm uma pendência irresolúvel com as temperaturas altas. As pessoas aproveitaram de imediato o facto de se chegar aos 23 graus para se porem à vontade, isto é, aliviaram-se de roupa e entregarem, com a habitual falta de pudor, as carnes esbranquiçadas aos olhares incautos que, confiantes no bom senso, são apanhados nessas armadilhas, tendo de sofrer aquilo que se depara diante deles. Não devia escrever estas coisas, mas como tenho cuidado em não ferir a sensibilidade estética dos outros com a minha vontade de exibição das tristezas do corpo que me cabe, não consigo conter a veia venenosa que há no fundo de mim. Num prédio das redondezas alguém percute uma parede com um berbequim. O barulho destas máquinas – e de outras semelhantes – é uma verdadeira anunciação do inferno. Este não será apenas feito de chamas eternas, mas também de roncos de corta-relvas, berbequins, betoneiras e tudo o que o engenho moderno inventou para fazer descansar os corpos e tornar as pessoas surdas. Só que no inferno há legiões de diabos otorrinolaringologistas – só a palavra lembra uma artimanha do chifrudo – que, mal um condenado fica surdo, logo se dispõem, de forma gratuita e rápida, a curá-lo da surdez, e assim continuar a ouvir a sinfonia maldita dos berbequins ínferos. Um célebre escritor-filósofo francês dizia que o inferno são os outros, pois frustram o nosso desejo. O problema não está na frustração do que queremos, mas naquilo que os outros nos fazem ver e ouvir, sem querermos. Isso, sim, é infernal.

domingo, 2 de maio de 2021

O grande reformador

Hoje é o Dia da Mãe. Há na designação qualquer coisa sombria. Antigamente, poucos os dias eram dias de qualquer coisa. Nesse tempo, o Dia da Mãe possuía uma aura que hoje não tem. A proliferação dos dias disto e daquilo foi a melhor forma de aniquilar isto e aquilo e tornou a mãe perdida no labirinto do seu dia, que é agora mais um. A escassez valoriza, a abundância corrói. Uma questão de mercado. Talvez as entidades laicas que superintendem a designação dos dias relativos a uma qualquer coisa pudessem aprender com a Igreja Católica que, por volta de 609 ou 610 da nossa era, criou o Dia de Todos-os-Santos e, lá para o século nono, o universalizou. Assim, teríamos o Dia de Todos-os-Dias, onde cada um escolheria a causa da sua devoção para a ela dedicar o pensamento e, talvez, a acção. Tendo em consideração a quantidade de coisas sem nexo que me ocorrem, suspeito que teria dado um grande reformador, uma daquelas pessoas que, cheia de ideias, pegam em qualquer coisa que funciona mais ou menos e, devido ao seu espírito intrépido e inovador, a deixam de rastos. Depois, serão condecorados e haverá, quando morrem, alguém que lhe escreverá o epitáfio, que há-de reverberar no túmulo. Não faço ideia como cheguei ao que cheguei, mas tornei-me incapaz de compreender esses espíritos sempre prontos a reformar, a inovar, a renovar, que não será outra coisa senão a síntese entre reformar e inovar. Não é que eu ache que não deva haver mudanças. Deve, mas todo o palavreado em torno delas tem o condão de as destruir. Quem melhora as coisas fá-lo sem abrir a boca sobre o assunto, como aqueles monges cartuxos que entregaram a vida ao silêncio. Muito eu gostaria que as pessoas públicas tivessem almas de cartuxos. Não têm. Hélas!

sábado, 1 de maio de 2021

Distracções e esquecimentos

Ando completamente distraído. Começou Maio e nem tinha dado por Abril ter acabado. Uma pessoa caminha distraída pela vida fora e nem repara naquilo que realmente importa. Hoje, só dei que era feriado quando bati com o nariz na porta do bar, onde decidira almoçar. Estava fechado. Olhei para o horário. Aberto aos sábados desde as onze da manhã até à meia-noite. O que terá acontecido, perguntei-me, enquanto virava costas e ia à procura de alternativa. Depois, fez-se luz. Hoje é primeiro de Maio e, sabe-se lá a razão, naquele bar parece haver fidelização ao dia. Lá encontrei outro, agora infiel. A seguir ao almoço, atravessei de carro a cidade. Não havia nela sinais de feriado, tudo estava vestido de fim-de-semana, as pessoas arrastavam os corpos ainda cansadas da corveia semanal, as lojas de rua fechadas e tudo tinha, para dizer a verdade, um ar de sexta-feira santa. Enquanto escrevo estas coisas para memória futura, como chocolates. É a metafísica que me resta, comer chocolates, agora que nem um cigarro devo fumar. Um dia destes, ainda me dirão chocolates, não convém comer. O mal dos interditos é começarem. Nunca se sabe a proibição que vem a seguir. O dia está desabrido e não me lembro de um início de Maio tão invernoso. Também é certo que a minha memória é uma faculdade em rápida deterioração. Há pouco quis-me lembrar do nome do escritor italiano Italo Calvino. Foi um exercício penoso e inútil. O que me valeu foi digitar o nome de um dos seus livros e a memória prodigiosa do senhor Google devolveu-me o nome. O pior será quando não souber o que é o Google ou, então, como se digitam palavras.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Pequenos mistérios

A meio da manhã recebo uma chamada no telemóvel. Atendo e oiço dizer é o carteiro, tenho aqui uma encomenda vinda de Espanha, não está ninguém em casa. Posso deixar na caixa do correio, perguntou. Respondi que sim, que agradecia. Uma drástica mudança no modus operandi. Para melhor. Quando abri a encomenda deparei-me com um pequeno mistério. No dia 27 de Abril encomendei no mesmo site – e na mesma encomenda – dois livros. No dia 28, recebo a indicação de que teriam enviado apenas um. No dia 29, recebo a indicação de que acabaram de enviar o que estava em falta. Hoje, dia 30 de Abril, recebo este e não o que foi enviado em primeiro lugar, o qual, por certo e apesar de ser do mesmo autor, gostará mais de andar a viajar e a visitar lugares desconhecidos. Os livros possuem vontade própria, é a única conclusão a que consigo chegar. A luz solar reverbera nas paredes do hospital, no telhado branco do pavilhão desportivo da escola vizinha e nas folhas das oliveiras, as quais se agitam entontecidas pelo ventania soprada de noroeste. Dentro de meia-hora terei de estar em videoconferência. Uma sessão de três horas. A massa neuronal há-de ficar como o puré de batata, não pela complexidade da coisa, mas pelo tempo de duração e porque hoje é sexta-feira, e este narrador não ter já idade nem apetite para certas coisas. Dantes, quando me faltava o apetite, coisa que ocorria sistematicamente, davam-me Ceregumil. Não sei se fazia alguma coisa, mas levou-me até ao momento em que não mais tive falta de apetite. Algum mérito haveria de ter. Se houvesse Ceregumil para videoconferências, mandava já vir uma caixa.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Ilusões

Foi apenas em 1657 que um quadro conseguiu dar a ilusão de movimento. Trata-se de Las Hilanderas, de Velázquez. Uma fina nuvem, quase transparente, preenche o interior de uma roda de fiar, imitando aquilo que qualquer um veria devido à velocidade de rotação da roda, arrastando velozmente os raios. Talvez se possa formular a lei que guia o olhar. Quanto maior for a vontade de imitar a realidade, maior terá de ser a ilusão criada. Com isto será possível perceber que realidade e ilusão são irmãs gémeas. A discussão, se for caso disso, será sobre se serão gémeas falsas ou verdadeiras. Inclino-me – pelo menos no dia de hoje – para que serão verdadeiras. Terão exactamente o mesmo código genético. Muito eu gostaria de saber a razão por que estou a pensar coisas tão inúteis. Há pouco, e isso foi uma novidade do desconfinamento, o conjunto musical – um verdadeiro grupo de baile – da escola minha vizinha voltou aos ensaios. Tornei a ouvir as músicas que terão animado as gentes nos anos setenta e oitenta do século passado. Não estarão a preparar nenhuma matinée dançante, presumo. O quadro de Velázquez tem outra nota. Uma fiandeira mostra o joelho, e este desvia o olhar da roda para a pele branca da rapariga. Uma ilusão nunca vem só.

terça-feira, 27 de abril de 2021

De olhos trocados

Voltei às caminhadas. As ruas continuam como estavam, apenas uma obra municipal deu dois passos. Um facto assinalável. Há coisas que se movem muito lentamente. Ainda mais do que a tartaruga. A que derrotou Aquiles. Sempre tive pena do pobre herói. Não lhe bastou a monumental zanga que apanhou logo no Início da Ilíada, ainda foi derrotado pela quase imóvel tartaruga, afundando-se no infinito do paradoxo. Recebi um email de denúncia da campanha de vacinação contra COVID-19. Não passará tudo de uma maquinação genocida de poderes ocultos, à qual o nosso governo, como quase todos os outros, obedecem. Há pessoas com uma imaginação delirante. Conseguem ver conspirações terríveis onde elas não existem, mas são incapazes de as ver onde existem. Devem ter nascido com os olhos trocados. Por outro lado, têm uma grande propensão para a evangelização. Andam sempre a anunciar a boa nova, que é sempre má. Não admira que o mundo seja como é e esteja fora dos eixos. Um corvo plana sobre o pequeno bosque da escola vizinha. Traz com ele a noite.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Pequenos interesses

Agora que me preparava para fazer uma caminhada, o céu decidiu encobrir-se de um denso manto de nuvens negras. Ameaça uma chuvada das antigas, talvez com direito a bombos e fogo-de-artifício. Abril, Maio e Junho, por aqui, são meses que, por vezes, se deixam tentar pela exuberância das tempestades. Nunca são catastróficas, a não ser para agricultura quando elas vêm acompanhadas de fortes bátegas de granizo, mas isso costuma ser mais tarde. Como se vê, os meus interesses resumem-se, à falta de uma aventura no reino dos Esculápios, ao registo do estado do clima. Qualquer dia restrinjo-me àquilo que se fazia num certo blogue, em tempos famoso, mas cujo nome não me ocorre. Todos os dias publicava uma fotografia. Sempre do mesmo lugar, sempre do mesmo ângulo. Era um registo do passar do tempo, caso exista tempo e ele passe. Isto, porém, não é para aqui chamado. Talvez existam pessoas que todos os dias, a uma certa hora, se fotografem. Imagino que sim. Podem tomar consciência de como o seu rosto se vai metamorfoseando. Isso permitir-lhes-á escrever um romance designado A Desilusão de Narciso. Os pássaros que a Primavera arrastou para a minha vizinhança não se calam. O seu cântico mistura-se com o do The Hilliard Ensemble acompanhado por Jan Garbarek. O céu está cada vez mais negro. Espero o primeiro relâmpago.

domingo, 25 de abril de 2021

Um feriado ao domingo

Um feriado ao domingo é coisa que não lembra a ninguém. Para tornar as coisas mais penosas o céu decidiu intervir na calma pacífica do dia. Parece que estava com excesso de água e decidiu abrir as comportas. Enxurradas misturadas com estados de acalmia marcam o feriado. Perante a intolerância celestial, recuso-me a sair de casa. Precisava de fazer uma visita e passar por um supermercado, mas tudo terá de ficar para outro dia. À minha volta estão quatro livros de poesia. Nenhum, português. Lembrei-me, ao escrever isto, aquilo que dizia um artigo de jornal. Portugal tem bons vinhos, excelentes, mas não tem os melhores vinhos do mundo. O mesmo se passa com a poesia. Há excelentes poetas, mas não temos, ao contrário do que algum nacionalismo patareco gosta de propalar, a melhor poesia do mundo. Aqui, contudo, há uma diferença grande relativamente aos vinhos. Estes podem comparar-se, mas a poesia não. Talvez seja possível dizer em Portugal existe a melhor poesia do mundo escrita em português europeu. Poemas são coisas intraduzíveis, embora não faltem traduções, as quais, como se sabe, não passam de traições. Traduttore, traditore, diz o provérbio italiano. Há pouco falei com o padre Lodo, Lodovico Settembrini. Não há feriado do 25 de Abril que não telefone aos amigos. Tornou-me a dizer que os Settembrini sempre comemoraram intensamente o 25 de Abril, o da queda de Mussolini. Depois acrescentou que, devido ao seu estado na Companhia, não devia ter estas paixões, mas são de família, o que se pode fazer contra o sangue, perguntou. Quando cheguei a Portugal, achei curioso haver também por cá um 25 de Abril. Adoptei-o como meu, disse-me. Apesar de padre e jesuíta, não deixo de ser um Settembrini, acrescentou. Tenho uma velha costela Iluminista herdada, juntamente com o nome, do meu avô. Fiquei satisfeito com o seu estado de espírito. Aquilo que lhe disse, porém, não o partilho aqui, pois o autor destes textos não me permite qualquer comentário político. Obediente que sou, obedeço.

sábado, 24 de abril de 2021

Uma narrativa médica

Dois temas absorvem os interesses das pessoas que chegam a certa idade. Previsões meteorológicas e narrativas médicas. Descobri que também eu cheguei a certa idade. Falo do tempo ou faço narrativas ligadas à saúde. O tempo não está grande coisa. Contribuirá para encher as barragens e deixar mais água nos solos. De resto, impede-me de ir fazer a minha caminhada por sertões e veredas, isto é, por becos e vielas desta pequena cidade, que seria uma vila interessante, caso não tivesse sido promovida à patente acima, como aconteceu à maior parte das vilas deste país. Quanto às narrativas médicas, o que posso dizer é que ontem me submeti a um exercício tecnológico interessante, o qual ia acompanhando em directo. Quando perdi numa sala de operações a vesícula, não assisti ao assalto. A quadrilha adormeceu-me e, aproveitando-se do meu estado, levou-me, através de uns buraquinhos discretos, uma coisa que não estava a ser nada indiscreta. Isto, porém, já foi há uns anos. Ontem foi muito mais emocionante. Depois de me raparem a pelagem nos braços e em sítios indiscritíveis, levaram-me para uma sala onde um bando, depois de me apalpar o braço, decidiu enfiar-me uma arma por uma artéria acima e andar ali como quem anda nos carros da feira, aqueles que eram para crianças e não os de choque. O bando era composto por dois médicos cardiologistas, um técnico cardiopneumologista, um técnico de radiologia, que fazia o papel de cameraman, um enfermeiro e uma estimável enfermeira, que eu convidaria para jantar caso fosse mais novo e descomprometido. Eu pensava que estava nas filmagens do 2001 Odisseia no Espaço. Os médicos divertiam-se a ver um filme, embora um deles estivesse a escarafunchar-me as artérias com a tal arma que, para disfarçar, davam o nome de cateter. O filme, apesar de ser feito no momento como se fosse uma improvisação num concerto de Jazz, parece que tinha enredo, pois os facultativos comentavam entre si as peripécias, o cameramen recebia instruções deles para colocar a câmara em certas posições, debitando os ângulos, o que me lembrou que a minha neta devia estar a ser massacrada pela avó com assuntos de geometria. A enfermeira perguntava-me se queria pipocas. Eu dizia que não, que estava tudo bem, eu nem estava a ver o filme. A verdade é que os médicos se apoderaram do monitor e, apesar de ter pago bilhete, nem uma sequência vi. Quando se cansaram da história, foram para uma sala ao lado bichanar. Depois de se terem informado dos resultados do futebol, das peripécias da política internacional e dos dramas de meia dúzia de famílias reais europeias, um deles veio ter comigo e disse-me bem, apesar da coisa não estar lá muito boa, há umas calcificações aqui e ali – eu pensei que se deviam à água daqui ser muito calcária – a coisa não está tão má quanto eu pensava. Não lhe vamos pôr nenhuma anilha, coisa a que ele deu o nome esotérico de stent. Temos de acertar a terapêutica medicamentosa em consulta. Daqui a três horas pode ir-se embora, mas já vou ao quarto falar consigo. E foi mesmo, eu saí e fiquei com assunto para hoje. De que falaria? Do tempo?

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Exsudados

Resultado: Negativo. Amostra: Exsudado Nasofaríngeo. Foi isto que li no relatório com o título Virologia SARS-CoV-2. Ontem foi o dia de obtenção da amostra, uma prova iniciática que inclui a introdução nas duas narinas de um objecto acutilante, embora rodeado, na extremidade, de algodão, a que dão o desconfortável nome de zaragatoa. Não contente com a penetração, a colectora de exsudados – mais parecia um astronauta a desembarcar na Lua – achou que se devia divertir e fazer aquela coisa rodar, rodar pelos canais que tinha invadido. Depois cansou-se, tirou a arma da minha narina e exclamou já está. Antes disso perguntou-se se era a primeira vez. Completamente, informei. Então vou fazê-lo chorar. Especializei-me em fazer chorar as pessoas, acrescentou. Eis uma mulher perigosa. Não hesita em partir corações, apenas com o fito de recolher uma matéria nojenta, a que, para disfarçar, se dá o nome de exsudado. O relatório tem uma outra particularidade. Tem uma versão em inglês. Result: Negative. Sample: Nasopharyngeal swab. Isto para o caso que eu queira apanhar um avião e pôr-me a milhas daqui. Era uma ideia, mas para onde iria eu?

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Metamorfoses

Hoje o dia tem estado, por aqui, particularmente tristonho. Vento de sudoeste e uma chuva moderada, mas inquieta, toldam o horizonte. A temperatura não passará dos 17o. Apesar da tristeza, as pessoas andam pela rua, erguem guarda-chuvas e vão com o passo lento, como se se quisessem demorar e, desse modo, tomar parte da melancolia que escorre de todo o lado. Os pássaros remeteram-se ao silêncio. Apenas as orquídeas, no seu friso, se entregam com volúpia à exuberância da beleza, mesmo as duas mais contidas, que apresentam uma floração quase rente à terra do vaso. No bar, do outro lado da avenida, há pessoas na esplanada. A saudade de estar em lugares assim deve ser de tal modo grande que afrontam com fervor, disfarçando incómodos, a indisposição do clima. Há dias encomendei em Inglaterra um livro de arte, mas já não me lembro qual, nem a razão por que o fiz. Deve-me ter parecido de grande importância e de suma urgência fazê-lo, agora já nem consigo ordenar as razões do acto. Há muito que descobri que a vida é isto. Aquilo que parece crucial numa dada hora, será visto na seguinte como despiciendo e esquecido na terceira. Ou então sou eu que fui criado com um carácter volúvel. Leio um email recebido e, de imediato, sinto uma grande saudade do tempo em que os homens eram tratados por senhor seguido do último apelido e não por senhor mais nome próprio. São coisas destas que mostram que o mundo se transforma. Chove bem neste momento, a inclinação da água confirma o vento de sudoeste.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Como no Monopólio

Estamos nisto há mais de um ano e não há prognóstico para o fim do estado em que nos encontramos. As coisas, porém, sofisticaram-se. Hoje fui à clínica de cardiologia levantar uma requisição para um exame. Não se entra, espera-se à porta, depois chega a menina, impecável na brancura da bata, saca de um termómetro-pistola e aponta-me à testa. Ia levantando as mãos, a que se seguiria o inevitável rendo-me. Contive-me. Convém parecer uma pessoa sensata, caso contrário não há quem queira tratar de mim. Lá me foi dado o papel e, curiosamente, não me tornaram a apontar nenhum objecto à cabeça. O mundo mudou. Antes da chegada do vírus não se apontava uma pistola-termómetro – ou será um termómetro-pistola? – à cabeça de qualquer incauto. O mundo, todavia, vai-se enchendo de cores, as pessoas entregam-se à existência com o sonho de voltar precisamente ao sítio em que estavam, como se tudo isto não fosse mais que uma tarde de adolescência passada a jogar monopólio. Uma poetisa americana escreve Mais tarde, volto a casa para apanhar lenha. Também ela sonhava voltar ao sítio de onde partira, talvez porque levasse vida de campo e neste tudo é regulado pelo ciclo das estações, pelo eterno retorno do mesmo.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Exílios

Não sei a razão, mas de súbito perpassou na minha consciência a palavra azáleas. Eu sei que são flores, mas não sei mais do que isso. Por que razão a palavra me assaltou, não o sei. De azáleas, o pensamento saltou para zínias, mas aqui tudo é mais fácil de explicar. Estas, como as azáleas, são flores e também ostentam no nome a letra zê. Associações, todos as compreendem, mas eclosões, aquelas coisas que nos chegam de lado nenhum, são um mistério. E se toda a realidade não passar de uma eclosão, sem que se possa ao certo saber de onde ela vem? Por vezes, ocorrem-me pensamentos destes e eu fico a olhá-los desapontado. Com tanta coisa interessante para ser pensada, entrego o meu tempo a coisa nenhuma. Talvez por ser segunda-feira, talvez por me ter desinteressado de todas as coisas que há por pensar, talvez por não me ocorrer mais nada, talvez por ser esta a minha maneira de me exilar do mundo e de mim mesmo.

domingo, 18 de abril de 2021

Sol de domingo

Há certa forma de o sol brilhar que só acontece ao domingo. A radiação veste-se com uma pacatez melancólica que os outros dias da semana, mesmo o sábado, rejeitam, pois são tomados pela darandina do trabalho ou da diversão. Talvez o facto de outrora o domingo ser um dia sagrado lhe tenha dado uma tonalidade que, mesmo num tempo em que a religião se tornou coisa privada, continua presente como uma mnemónica daquilo que já fomos. As coisas têm razões que a nossa razão não alcança. Aliás, a minha alcança pouca coisa. Tristan Tzara, o papa do dadaísmo, tem uma receita para fazer poemas que, na época, foi original. Pegar num jornal, escolher um artigo, cortar cada uma das suas palavras, colocá-las num saco e agitar com suavidade. A seguir retirar os recortes um a um e copiar as palavras pela ordem em que foram saindo do saco. Ficará um belo poema. Talvez devesse escrever assim estes textos, embora inovasse num aspecto. Em vez de um artigo, escolheria três. Um sobre futebol, outro sobre política e, por fim, um que relatasse um crime passional. Mesmo que não fizesse sentido, não teria menos do que aquilo que escrevo sem recurso a técnicas de vanguarda. Seria um dadaísta provinciano e com um século de atraso, mas sempre fui serôdio e com uma grande tendência ao paroquialismo. Esqueci-me há pouco de referir que o sol de domingo se apanhado com cabeça descoberta está longe de ser benéfico para a saúde mental. Não sei, porém, se Tzara apanhava sol na cabeça ao domingo ou ao sábado, que é o domingo dos judeus.