quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Broch e Cortázar

Continuo enredado na escrita de Hermann Broch, mas o digno de nota não é isso. Existe, na Gallimard, um volume do escritor austríaco, com o título La Grandeur Inconnue, o nome do primeiro romance do autor. Contudo, existem nela mais coisas. Cartas para Willa Muir, ensaios, narrativas e um fragmento de romance. Como não conhecia nada disto, ontem decidi comprá-lo online. Fui à Amazon francesa, passe a publicidade, o livro estava disponível. Tinha o preço de 18,60€ e os portes de 8,07€. Fui espreitar se o mesmo livro existia na Amazon espanhola. Existia, custava um pouco mais, 18,95€, mas os portes para Portugal eram gratuitos. Encomendei-o eram cerca das 11 horas de ontem. Recebi-o hoje por volta da mesma hora. É possível que de Espanha nem bom vento, nem bom casamento. Tenho alguma experiência do vento espanhol, mas não de casamento. Na verdade, o primeiro, não é grande coisa; o segundo, não me pronuncio. Sei, todavia, que os livros vindos de lá chegam rapidamente. Talvez venham a fugir do vento ou de um casamento que lhes desagradou. Tudo é possível, embora as pessoas tendam a não acreditar na proliferação das possibilidades. Estes enredos em Hermann Broch são apenas diurnos. À noite, nos períodos de insónia, vou lendo O Jogo do Mundo (Rayuela), de Julio Cortázar. Em conversa com um amigo disse-lhe que estava a gostar da obra, mas não tanto como teria gostado há trinta ou quarenta anos. Hoje, aquele ambiente intelectual e boémio de Paris, presente pelo menos no primeiro terço do romance, não me causa qualquer exaltação. Pelo contrário. Dou comigo a pensar que se trata de uma rêverie de adolescência ou de primeira juventude, mas que há pouca seriedade nela. Não afasto a possibilidade de mudar de opinião, caso os dois terços que me faltam ler tenham esse poder. Estes escritos estão a ficar fastidiosos, quero dizer: estão a ficar ainda mais fastidiosos. Talvez seja o efeito da operação ao pé esquerdo. A anestesia local pode ter provocado uma mais intensa paralisia da imaginação. Tenho de voltar às reflexões sobre o estado do tempo, isto é, do clima.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Midinettes

Numa conferência, La vision du monde donnée par le roman, Hermann Broch, a certa altura, para exemplificar um tipo de arte preocupada em produzir um qualquer fogo-de-artifício, diz: Je choisis Zola, car personne n’osera prétendre que Zola ait écrit des romans pour midinettes. Apesar de Zola ter escrito romances para produzir fogo-de-artifício, isto é, para vender uma certa ideia, Broch exemplifica, não chegou a cair nesse abismo de onde não há regresso, escrever para midinettes. O que terão feito estas pobres raparigas para que seja negativo um escritor importante fazer romances para elas? A palavra resulta de uma aglutinação de midi + dînette. Literalmente, significa que janta ao meio-dia, isto é, que toma uma refeição àquela hora. Quem o fazia, em Paris, no tempo de Zola, eram as costureirinhas. São elas as midinettes, referidas por Broch. Nelas se consuma a sentimentalidade ingénua e a simplicidade frívola. Todo essa gente que ganhava a vida costurando para que outros andassem vestidos, estava à partida excluído da grande arte, mesmo quando não era assim tão grande ou não era mesmo arte. Contudo, o primeiro nome que refere o escritor austríaco é o de Hedwig Courths-Mahler, uma escritora alemã que escreveu mais de 200 romances de amor, na primeira metade do século XX, que por certo fariam o encanto das descendentes sociais das costureirinhas parisienses. Podemos imaginar que os romances da senhora Courths-Mahler tocariam a sentimentalidade ingénua e a simplicidade frívola de qualquer costureirinha. A vida da autora, porém, está longe de ter sido cor-de-rosa e é possível que tenha sido pouco dada a frivolidades e ingenuidades. Quando se julga que a grande arte resulta de vidas ricas e duras, é possível que se esteja errado. O mais plausível é que entre arte e vida exista um claro divórcio, e só por uma ingénua e frívola concepção de arte se pensa que esta tem a sua causa eficiente no que foi vivido pelo artista.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

A primavera outonal

O tempo continua a passar. Não é uma abertura brilhante, mas talvez seja verdadeira. O talvez deve-se a não haver certeza de que exista uma coisa a que damos o nome de tempo. Ora, se o tempo não existir, então não pode passar. Estou a perder-me. A manhã foi passada em estágio para o que iria acontecer à hora de almoço. Essa preparação foi acompanhada por um número infinito de concertos para rebarbadora e corta-relva. Não sou refractário à música contemporânea, mas há coisas que excedem os meus poderes. Às empresas que foi concessionada a manutenção dos jardins e parques municipais falta-lhes a sensibilidade que havia nos antigos serviços camarários, onde tudo era mais lento e com enormes intervalos que deixavam o auditório descansar contemplativamente. Pela hora de almoço, dei entrada no bloco operatório para excisão de um sinal no pé esquerdo. As enfermeiras, antes da chegada dos médicos, anestesista e cirurgião, falavam de sopa de tomate, se era refogada, se era à alentejana, conversa que desembocou em tomatada com ovos escalfados. Chegados os médicos, a conversa mudou de rumo. Cheguei a participar dela, mas já não me lembro bem qual o assunto. Uma anestesia no pé acaba por ter um efeito na mente. A continuar assim, chego ao fim-de-semana cheio de aventuras, para ilustrar a minha gesta. O pior é conseguir andar. Vale-me um poema de Hermann Broch que, a certa altura, diz, na tradução francesa: Oh printemps automnal ! / Il n’y eut jamais de plus beau printemps que cet automne-là. / Le passé se mit à pousser des bourgeons, toutes les fleurs s’épanouirent / C’était le calme délectable qui précède l’orage. / Le Dieu Mars même souriait. Só espero que a tempestade seja no mar alto, naqueles lugares onde nem os barcos passam. Só espero que Marte, depois de sorrir, se sinta furioso por terem sido frustrados os seus planos, pois mesmo um cavaleiro andante tem os seus limites.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Luta com um moinho de vento

Comecei o dia da melhor maneira possível, irritando-me com a pessoa que me atendeu, através de contacto telefónico, num serviço público. Conforme ia pondo as questões, respondia-me com a ironia que se utiliza perante a insistência de estúpidos contumazes, a que se associava um tom paternalista, maternalista, no caso, para vincar a sua supina superioridade intelectual perante um representante imaculado do império da estupidez. Que eu seja estúpido, aceito-o com bonomia, pois ninguém pode fugir ao que é. Que outros me pensem estúpido, também o aceito sem reclamações. Que comentem nas minhas costas a infinita estupidez de que sou proprietário também não me levanta qualquer objecção. Que me o façam notar, isso ultrapassa a linha da vida civilizada. Eu sei que era cedo, mas a pessoa é paga para responder a questões e prestar esclarecimentos. Se está descontente por não poder, no exercício das suas funções, candidatar-se a prémio Nobel do que quer que seja, paciência, procure outra ocupação onde possa chegar à glória. Eu compreendo que a função seja de um aborrecimento mortal, que as pessoas lhe ponham mil vezes as mesmas questões, mas ninguém tem culpa da natureza esotérica da burocracia nacional, nem da inimizade para com o cidadão com que são construídos os sites dos serviços públicos. A certa altura, acabei por me irritar e dizer que ela estava ali para prestar esclarecimentos, que era essa a sua função e que também lhe cabia ter paciência para os que estão perdidos nos arcanos da literatura pública. Não foi bem assim, pois não perceberia a linguagem. A partir daí a situação tornou-se mais produtiva e os esclarecimentos foram prestados, descodificando siglas e não sei mais o quê, dando as informações pretendidas. Não há como começar a semana com um combate com um moinho de vento.

domingo, 17 de setembro de 2023

Domingo

Gosto destes dias de chuva, cada vez mais raros, de fim de Verão. Somos devolvidos a um mundo mais sério e autêntico, marcado pelo cheiro da terra molhada. O Verão é um tempo fantasioso, apesar do calor funesto. Agora, o Sol brilha, mas há pouco chovia intensamente. Não tarda, o Sol será ocultado por densas barreiras de nuvens escuras e a água cairá mais uma vez dos céus para fecundar a terra, numa manifestação da virilidade celestial e da feminilidade terrestre. O masculino e o feminino, em mitos de muitas tradições, tinham uma função ordenadora da realidade. O homem e a mulher eram apenas uma manifestação dessa estrutura que organizava o mundo e lhe fornecia um princípio de compreensão. Talvez porque vivamos numa época desencantada, onde o mito parece moribundo, o masculino e o feminino perderam não apenas a sua função estrutural, mas também a evidência com que se manifestavam. Este, porém, é um assunto que caiu no alçapão do debate ideológico e foi capturado pela política, o que o exclui deste espaço, onde um narrador dedicado cumpre as ordens de um autor que decidiu rasurar esse assunto que tanto ocupava o ócio dos cidadãos gregos. Descubro, não sem surpresa, algumas folhas amarelas nas acácias da praceta. Vêm muito mais cedo do que o habitual. O chão molhado do campo de jogos da escola aqui ao lado reverbera. Na rua, não passa ninguém. É domingo e a vida parece suspensa. Ah passa um carro, vagaroso e tímido. Não tarda, recomeça a chover.

sábado, 16 de setembro de 2023

Uma tarde desportiva

Passei parte da tarde a ver o jogo de Râguebi. Portugal perdeu, mas não seria de esperar outra coisa, já que o País de Gales pertence a outra galáxia. Contudo, não foi mau, a distância entre ambas as selecções já não é infinita. O gosto por esta modalidade, ocorrência não muita antiga, acabou por ser uma reminiscência. Na adolescência, numa época em que já teria nascido a RTP 2, eram transmitidos os jogos do Torneio das 5 Nações, aos sábados à tarde. Se não tinha nada melhor para fazer, ver os jogos era uma alternativa muito decente a estudar. Passada essa época, o Râguebi foi esquecido, mas há uns vinte cinco ou trinta anos, já nem sei bem como, voltei a ver, sempre na televisão, jogos de Râguebi. Quando posso – isto é, quando passam em canal aberto, já que não assino canais desportivos – vejo um jogo. Dá-me mais prazer do que o futebol, pois o ethos do jogo é muito diferente, mais decente, sem manhas e truques, sem perdas de tempo, sem violência, apesar de ser muito duro. Há muito que não tinha uma tarde desportiva.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Silêncio

Sexta-feira tornou a ser um dia de libertação e, ao mesmo tempo, de melancolia, pois sabe-se que a libertação é passageira, e as duras garras da realidade voltarão mais depressa do que se deseja. A madrugada desponta e mais um dia / Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da madrugada / Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui / Ou ali, ou algures. No meu começo. Por mim, penso ao ler estes versos de Eliot, deixava ir o calor, pedindo ao vento do mar que o levasse para longe, e ficava com o silêncio, pois não tenho outro começo que não o silêncio. É nele que tudo começa, mesmo o ruído mais abominável ou o gesto digno do maior louvor. O silêncio é uma casa, a minha casa comprada sem prestação mensal, sem pagamento a pronto, herdada dos dias de nevoeiro ou das noites veladas à luz estelar. Caminho pelos corredores do silêncio, entro em cada um dos seus quartos, em cada uma das suas salas, e ele é sempre diferente, como são diferentes os dedos de uma mão. Há dias em que habito não o silêncio, mas o vento, um certo vento que desliza sobre a terra de um modo que só eu reconheço. Dançava diante da escola onde aprendi a ler, e por isso aprendi a ler, e se amo a leitura foi porque amei antes dela o vento que a trouxe, nesse começo que era, ao mesmo tempo, começo e continuação e, ainda, fim, mas isso eu não sabia, pois nesse tempo a sexta-feira ainda não era um dia de libertação. Tudo era então mais lento, e havia que esperar a chegada do sábado ao início da tarde, quando saía da escola, e o vento esperava por mim para me guiar à casa do silêncio, onde ouvia as vozes que dobavam, para o meu prazer, o silêncio infinito que me cabia.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Solipsismo neurónico

Retorno a uma das minhas ocupações desesperadas. Consultar as previsões para a evolução do estado do tempo. Tornei-me um amante da meteorologia. O calor retornou e o corpo, miserável e incapaz, protestou, recusando-se a grandes pressas. O pior, contudo, é o cérebro. Sinto-o empapado, sem vontade que nele os neurónios se entreguem à feroz actividade exigida pelas sinapses. Quando o calor cai sobre mim, os neurónios, todos eles, tornam-se solipsistas e recusam qualquer contacto com outros neurónios, cuja existência é negada não sem veemência. Em dias como o de hoje o meu cérebro é habitado entidades solitárias que se negam a trabalhar. Daí os meus pensamentos serem o que são, fruto de uma mente implantada num cérebro deliquescente.  Apesar disso, nem tudo tem sido mau. Recebi uma notícia agradável, relativamente inesperada, mas cujo conteúdo omito. Falo do assunto, para evitar espalhar a impressão de que só me preocupo com os males e não dou a devida atenção aos bens recebidos. Imagino que a esta hora o calor tenha declinado e vou sair um pouco. Talvez o vento me arrefeça o cérebro, os neurónios comecem a trabalhar e me nasçam algumas ideias que, caso não as esqueça, utilizarei amanhã.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Paisagens

Em 2020 foi roubado do museu de Groninger um quadro de Van Gogh. Foi agora recuperado. O título da obra é O Jardim do Presbitério Neunen na Primavera. Tudo no quadro, porém, é outonal, as corres sombrias, a natureza representada, mesmo a figura humana com o seu vestido negro. Imagino que uma pintura destas não fosse possível num país do Sul da Europa. Também não consigo imaginar uma indiferenciação entre o crepúsculo que antecede a noite e aquele que anuncia a manhã. É possível que aquilo que cada um é e o modo como vê e representa o mundo dependa tanto da geografia como dos genes. Imagino que sejamos filhos das paisagens, pois são elas o pano de fundo onde se desenrola o drama de cada um. Quanto mais poder essas paisagens têm sobre nós, menos damos por elas. Tornaram-se carne da nossa carne. Aquelas que se impõem à atenção são as que são estranhas. Podem ser belas, mais belas que as nossas, mas nelas somos sempre estrangeiros. Talvez o jardim do presbitério de Neunen nunca tenha sido abençoado com uma Primavera.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

O absoluto

É na “Introduction” à sua obra God, Freedom and Evil que o filósofo norte-americano Alvin Plantinga propõe a distinção entre crer em Deus e crer que Deus existe. Nesta última formulação, crê-se que um conjunto de proposições acerca de Deus são verdadeiras. Na primeira formulação, a crença ultrapassa dimensão epistemológica e implica um compromisso com essa crença. Seria um compromisso com o absoluto e, para ser autêntico, seria um compromisso absoluto. Esta ideia de um compromisso absoluto, a certa altura da história da Europa, e a Europa é muito mais do que a Europa, emigrou da relação com o divino para outras áreas. Para a política, para a arte, para o amor. Em todas estas dimensões, a procura do absoluto redundou em desilusão, no melhor dos casos, ou em tragédia, como aconteceu nessa terrível ligação entre a política e o absoluto. A razão de ser da desilusão ou da tragédia é fácil de compreender. Nem na política, nem na arte, nem no amor, existe um absoluto, ao qual alguém se possa entregar até à extinção de si, do seu ego. Aqueles são sítios humanos, demasiado humanos, para que o absoluto resida neles. A distinção de Plantinga é interessante não porque assegura que Deus existe, mas porque, sub-repticiamente, mostra que crer em Deus, nesse absoluto absolutamente perfeito, é uma resposta, a única resposta, ao desejo de um compromisso absoluto que habita o coração de muitos seres humanos, senão de todos, mesmo que disso não tenham consciência. David Hume estava errado ao pensar que a ideia de Deus tem a sua origem numa reflexão sobre as operações da mente humana e eleva sem limites essas operações de bondade e sabedoria que encontrou na mente humana. A ideia de Deus nasce de uma fome de absoluto, de um desejo que as coisas terrenas, mesmo as mais sublimes, não saciam. Dito de outra maneira, a ideia de Deus nasce do desejo humano. Nada disto prova, porém, que Deus existe, mas também não prova que não existe.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Uma rapaziada

Tudo tem um tempo. Findo este, tentar prolongá-lo torna o prolongador não apenas insensato, mas também ridículo. Uma consulta, na capital de distrito, antes de almoço. Outra, na capital do antigo reino, depois de almoço. A conjugação das duas levou à supressão do almoço. De retorno a casa, sem almoçar tive a estulta ideia de uma rapaziada. Que tal uma sandes de leitão, ali mesmo à saída da auto-estrada? Se bem o pensei, melhor o executei. Na altura, tudo me pareceu perfeito. Depois descobri o ridículo de um narrador a quem retiraram a vesícula, a biliar, crer que tinha direito a certo tipo de rapaziadas. Não tem. Resume-se nesta experiência trivial todo o drama metafísico da finitude do homem, a tensão entre um desejo infinito – nem que seja de uma sandes de leitão, num dia sem almoço – e os limites de um corpo. Salvou-me o dia a pontualidade dos médicos, eu que tantas vezes sublinho a sua tendência para os mais inexplicáveis atrasos. Como castigo, além da caminhada, embora lenta, que já fiz, eximo-me à tarefa de jantar. Entrego-me, como penitência, ao jejum, embora a Quaresma ainda venha longe, mas já ninguém jejua na Quaresma. Agora jejua-se não por amor a Deus, mas por amor à forma física, isto é, por amor a si mesmo. Temo que o meu próximo jejum se inscreva nesta última categoria. Também é verdade que quem quer conquistar a glória do altar não se torna narrador e não se põe a escrever sobre coisas sem nexo, o que, segundo a crença de Einstein, não é particularmente bem vista por Deus, o qual, di-lo o eminente físico alemão, não joga aos dados e muito menos à roleta russa, acrescento eu.

domingo, 10 de setembro de 2023

Contra a querela

A certa altura, no século XVII, desencadeia-se em França uma querela que ficou famosa, a denominada Querela dos Antigos e dos Modernos. Que tipo de arte é superior, aquela que imita os clássicos greco-latinos ou a que pretenda inovar? Como acontece nestes conflitos de ideias, as posições extremam-se e acabam por parecer incompatíveis ou mesmo incomensuráveis, como se a arte clássica e as suas imitações pertencessem a um universo e a arte moderna pertencesse a outro, e entre eles não houvesse possibilidade de estabelecer mediação. Muito curiosamente a Querela estava fundada numa exclusão, a da arte medieval, de acordo com a ideia de que a Idade Média tinha sido uma era de trevas. Havia no espírito do tempo uma propensão para a exclusão. O que fará sentido, porém, é a atitude contrária, perceber que a arte de uma certa época terá de carregar com o peso do passado, terá de apropriar-se das tradições e reinventar-se nesse solo mil vezes adubado e por isso fecundo. A que propósito vem isto? Ocorreu-me e não encontro razões conscientes para falar deste assunto, mas é plausível pensar que haverá razões inconscientes que, através dos artifícios que só o inconsciente conhece, tivessem desencadeado em mim a vontade de escrever sobre ele. Talvez, ao contrário ao dos modernos, o meu inconsciente não esteja inclinado a matar o pai, dando-lhe um lugar e fazer da arte um lugar onde o novo, o inédito, se insere num culto dos antepassados, como acontece em certas tribos arcaicas.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Uma inclinação nacional

Hoje, pisei a areia pela primeira vez este ano. Quase ninguém no areal, o mar enrolado em algas, um céu cinzento. Eis, para mim, um dia perfeito de praia. Passeei com o meu neto e tive de esforçar-me para correr atrás dele. Valeu a pena depois de uma manhã inteira entregue ao ócio da realidade. É provável que sofra de um défice cognitivo não diagnosticado, mas ainda não consegui perceber a capacidade que as pessoas têm para inventar coisas cuja utilidade é zero, ou, para ser mais rigoroso, negativa. Imagine-se uma qualquer instituição, pública ou privada. Imagine-se ainda que se acha que ela tem de ser melhorada. O que acontece muitas vezes é que as acções tomadas para a melhorar a tornam pior, acelerando a sua decadência. Creio na existência de um gene português que nos inclina para a irrelevância e perdição. Agora, vou ao parque infantil, embora não me seja permitido andar de baloiço e deslizar no escorrega.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Essa é uma questão filosófica

Mas essa é uma questão filosófica, e, após a sentença, continuou a derramar sobre o assunto, para logo de seguida acrescentar, para vincar a certeza, mas essa é uma questão filosófica, o que não foi suficiente para acalmar o derramamento, pois este prolongou-se até chegar novamente ao estribilho, o motivo real do escrito, mas essa é uma questão filosófica. O assunto não vem ao caso, a escrita aconteceu numa caixa de comentários de um blogue, cujo nome e autor omito. Fiquei a meditar no sentido da frase, enquanto olhava o céu. Uma parede de nuvens apresentava, por vezes, abertas por onde passavam quentes e ameaçadores raios solares. A expressão é usada, amiúdo, num sentido pejorativo. Quer dizer: essa é uma questão obscura que não interessa a ninguém. Outra possibilidade é que sobre essa questão cada um diz o que lhe der na veneta, como se sobre o assunto pudesse exsudar os sentimentos que lhe atormentam a alma. O estranho é que as questões filosóficas são, em geral, claras e pouco consentâneas com a democratização opinativa corrente, porque a generalidade das pessoas não tem capacidade para as pensar – mais por falta de disciplina, do que de inteligência – e aquilo que as pessoas chamam pensar não passa de uma amálgama de desejos, sentimentos, emoções, interesses pessoais, tudo articulado por uma sintaxe generosa que permite confundir expressão com pensamento. Quando se ouve, e tantas vezes se ouve, mas essa é uma questão filosófico, o melhor é pensar que é um ouriço-caixeiro ou uma zebra pintada de azul a sair do autocarro que vai para o Cais do Sodré, pois, por certo, não será uma questão filosófica. O mais provável é ser um eflúvio que se desprendeu de uma mente sobressaltada com qualquer emanação vinda de um órgão do corpo em funcionamento deficiente. Também é verdade que se o meu corpo fosse completamente são, não teria escrito este texto, mas a manhã vai avançada, tenho coisas para fazer e espero, depois de almoço, o meu neto.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Experiências matinais

Hoje fui a uma agência bancária, sítio onde não ia há muito. Fiquei espantado. Quase não havia funcionários, também eram poucas as pessoas que solicitavam os serviços desses funcionários. O lugar para o público combinava o aspecto de uma sala de espera de um consultório médico com o de um café. Tudo se resolveu com rapidez, no meio de um silêncio reverente, o que me fez suspeitar que aquilo seria também uma espécie de igreja, com bar e lugar para os crentes prepararem as suas confissões. Um exemplo de metamorfose moderna, que ainda não descobriu o seu Ovídio para a cantar. Ao sair, encontrei o mundo profano que deixara ao entrar. Respirei fundo e caminhei descansado para o carro. Chegado a casa, depois desta vibrante aventura, dei uma vista de olhos pela imprensa online. Parece que as máscaras estão a começar a voltar aos hospitais, ainda por causa da COVID-19. Temo que esse retorno se propague. O que me chocou, porém, foi saber que a nossa espécie esteve quase para não chegar à existência. Um tenebroso colapso populacional, ocorrido há 900 mil anos, reduziu os nossos antepassados, em idade reprodutiva, para cerca de 1280. Note-se a precisão do número aproximado, passe a incongruência. Não foram cerca de 1300 ou de 1200, mas cerca de 1280. Foi uma sorte esses 1280 não terem entrado todos num convento e feito votos de castidade ou terem trocado os encontros presenciais por contactos virtuais, ou mesmo terem achado o sexo uma prática repugnante e desistido dela. Não, fiéis ao compromisso que tinham para assegurar que nós haveríamos de existir, decidiram nada de entradas em conventos, nada de uso de telemóveis, nada de repugnâncias com a troca de fluidos. Sacrificaram-se, usando os sexos, para que nós tivéssemos a possibilidade de vir à existência. Devemos admirar e honrar o seu altruísmo.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Assim seja

Hoje tomei um banho não no mar, mas na realidade, e esta é opressivamente maçadora, mata o espírito de uma pessoa pelo tédio. Não passa de uma água chilra, onde se adiciona uma quantidade significativa de soporíferos, ao mesmo tempo que se mistura doses significativas de fantasias adequadas à primeira infância. Nunca fui adepto das desconstruções, mas posso converter-me às desrealizações, uma tarefa hercúlea para tornar manifesto quanto a realidade é perversa. Quase podia fazer minhas as palavras do primeiro verso do “Recanto 11”, de Luiza Neto Jorge, O verão deu-nos uma volta aos olhos. Só não faço, porque não é necessário o Verão para nos dar a volta aos olhos, basta a realidade, basta a existência de realistas, simulacros de seres humanos que dizem amar a realidade e que com eles não há cá fantasias. Esta gente dá-me volta aos olhos, põe-me estrábico, como se os olhares que me saem de ambos os olhos fossem cordéis a que deram nós cegos. Estou com pouca paciência e tenho uma caminhada pela frente, de onde posso varrer, caso tenha cuidado com a circulação, a realidade realista. É uma forma de me lavar do contacto com o real. Assim seja.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Notas biográficas

A minha vontade, alimentada por uma inclinação natural, era de falar sobre o tempo, não a duração, mas o clima. Contenho-me, pois não tenho habilitação meteorológica, e o que é demais, é demais. Já para falar da duração, teria habilitação, desde que não falasse mais de três minutos, o que é obviamente pouco. Talvez pudesse discorrer acerca do conflito entre guelfos e gibelinos, mas isso foi há tantos séculos que, apesar de ter participado nessas lutas, já não me recordo do resultado, nem do lado a que ofereci os meus primeiros serviços, embora, como se sabe, tenha combatido ora de um lado, ora de outro. Se foi essa a verdade, pois tudo em mim está difuso, não se pense que eu chefiava uma comandita que usava mercenários para combater pelo lado que melhor pagasse. Nesse tempo, o meu espírito ainda não se tinha rendido à economia de mercado. O que me movia nesses séculos finais do medievo, se bem me recordo, era um espírito de equanimidade, no sentido de advogar a igualdade e a imparcialidade, oferecendo os meus serviços a quem estivesse em pior posição, de modo a repor a igualdade entre os contendores. A minha alma não se movia nem pelo papado nem pelo império, mas pela ideia de equilíbrio. Consta que esta posição foi, desde muito cedo, atacada, pois ela significava um prolongar infinito da guerra. Para que haja paz, é necessário que uma das partes fique mais fragilizada e se submeta, o que acabaria por promover a felicidade do maior número de intervenientes no conflito, argumentou-se. Ora, posso jurá-lo, nunca o utilitarismo me moveu, o que me terá levado a rejeitar com acinte as críticas, continuando apostado na promoção de equilíbrios, sempre que um desequilíbrio surgia. Tudo isso se passou há muito, bem antes de ter partido nas naus portuguesas e, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, ter aportado a terras de Vera Cruz, e ter acompanhado a redacção da carta de Pêro Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel, o primeiro dessa denominação no rol dos reis pátrios. Cansado de tantas peripécias, sento-me agora à janela e vejo a chuva cair, para adormecer de seguida, acordando se algum trovão ribomba, sentindo um leve ânimo se o horizonte se abre num clarão ou um raio fende a atmosfera cinzenta e entra pela terra.

domingo, 3 de setembro de 2023

Pobres planos

Chove e troveja, venta, parece um pequeno temporal, com um céu de cinza e chumbo. Lamento os meus planos, pobres enganos. A caminhada da tarde, com os respectivos pontos cardio, está comprometida. Resta-me esperar que S. Pedro, o meteorologista-mor em exercício, se apiede de mim e mande suspender o temporal. Os santos, todavia, regem-se por uma lógica que os pobres pecadores não compreendem. Não sei se isso será da santidade ou da falta cultura filosófica. Talvez São Tomás de Aquino seja mais lógico, mas não lhe foi dada a incumbência de reger o clima. Pior do que isso acontecia, segundo o poeta Rilke, ao Rei de Münster: Já não se sentia legitimado: / o senhor nele era moderado / e o coito era falhado. Talvez a pobre majestade tivesse medo da trovoada, o desejo sucumbisse ao ruído dos trovões e o sentimento real se apagasse à luz dos relâmpagos. É possível que impérios tenham caído por coisas de menos importância. Portanto, podemos pensar que o brevíssimo reino de Münster tenha sucumbido por motivos tão triviais como esse. Convém, no entanto, não confundir os reinos de Munster e de Münster, o primeiro, na ilha da Irlanda, foi duradouro, o segundo, na Vestefália, resistiu um ano. Foi governado por Jan Leiden, um alfaiate holandês, de orientação religiosa anabaptista, e proporcionou não pouca diversão. Para além de tornar obrigatório o rebaptismo, pôs em comum os bens e decretou a poligamia. Imagino que as competências do alfaiate não estivessem ao nível do que era proposto, o que permitiu que os inimigos da experiência sitiassem a cidade, se apoderassem da corte tresloucada e executassem os seus membros. Se me perguntarem qual a opinião de S. Pedro e de S. Tomás, confessarei que não faço a mínima ideia. Talvez, no momento da conquista da cidade, S. Pedro tenha mandado uma tempestade, e S. Tomás, escrito, no paraíso celeste, mais umas páginas da Summa Theologica. Isto, porém, são especulações intempestivas de alguém que é, por natureza, anacrónico. Os trovões calaram-se, mas continua a chover. Münster será reconquistada.

sábado, 2 de setembro de 2023

Curva de Gauss

É no início do décimo primeiro capítulo do romance A Rebelião que Joseph Roth escreve: O dia em que Andreas devia comparecer no tribunal despontou como um dia inteiramente normal, como todos os dias que o tinham precedido. Imagino que seja este paradoxo que torna a vida possível. Qualquer acontecimento anormal – uma ida a tribunal, um casamento, uma declaração de amor, a morte – tem o seu lugar na existência no quadro de um dia normal. Isto significa que tudo o que é excepcional, tem por pano de fundo a trivialidade, e esta acaba por colonizar o extraordinário, contaminando-o com a sua vulgaridade. Os antigos gregos – por exemplo, o velho Aristóteles – viam no espanto o início do filosofar. Ora, este não é mais do que a redução desse assombro, desse espasmo perante o anormal, à normalidade da investigação. Os seres humanos, por muito que pensem o contrário, não foram feitos, nem lhes foi dado por destino, o viverem na assombração. Por isso, os dias, com a sua variabilidade sem fim, nunca deixam de ser normais, para que nós possamos adoptar a nossa anormalidade a essa norma e evitar um destino funesto, como sermos fulminados por um raio ou transformados em estátuas de sal. Por muito que protestemos, as nossas vidinhas, mesmo quando matamos dragões e combatemos gigantes, cabem todas dentro da curva de Gauss.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O encoberto

Hoje foi o dia em que estive mais perto da areia. Passei pela travessia que divide duas praias com o mesmo nome, mas que se distinguem por que uma é do Norte e a outra do Sul. O caminho aliás é duplo, um para carros, em alcatrão, e outro para peões, em cimento. Passei por ali como peão e fui sentar-me numa esplanada voltada para a praia do Norte, onde, outrora, passeava e mergulhava nas águas frias do Atlântico. Estava um dia espantoso, com um enorme nevoeiro que mal se via o mar. Havia pessoas deitadas na areia a apanhar banhos de névoa. Esta, com o passar dos minutos, ia ficando mais densa. Do mar veio o barulho de uma sirene ou qualquer coisa do género. Pensei que seria o barco que traria D. Sebastião. Se ele vinha, não desembarcou. Penso, porém, que qualquer rei encoberto, mesmo quando chega a algum sítio, nunca perde essa característica e, por mais que se manifeste, nunca deixa de estar oculto. Este texto, em particular este último período, é a minha contribuição teórica para o desenvolvimento do sebastianismo em Portugal, talvez a mais importante de Fernando Pessoa para cá, ou mesmo desde antes dele. É plausível, penso agora, que o nevoeiro seja uma forma de me contrariar, quando penso que o Verão se vai prolongar por dentro do Outono. Será, antes, o contrário, uma invasão outonal na terra do Estio. O jovem Werther reforça esta intuição, pois de uma intuição se trata. Diz ele, a 4 de Setembro, apesar de estarmos a um: Tal como a natureza se encaminha para o Outono, também dentro de mim e em meu redor faz-se Outono. As minhas folhas amareleceram e as folhas das árvores vizinhas já caíram. Ele, tão jovem, parece-me muito impressionável, mas, é preciso não o esquecer, está apaixonado e sofre, uma coisa que, em naturezas delicadas e submissas às impressões, pode acabar em suicídio, embora eu não seja psicólogo para o asseverar. Quanto à areia, consegui não lhe tocar. Na esplanada, estava um casal alemão, mas não me constou que fosse Werther, agora menos jovem, e a sua amada Lotte. Ele talvez fosse o encoberto, quem sabe?