Chegámos ao penúltimo sábado de Abril. A aplicação do telemóvel afirma, peremptória, que há 83% de probabilidades de chover. A verdade é que não se vislumbra água que possa precipitar-se dos céus. Continuo com falta de assunto. Resta-me apenas escandir o calendário e o clima. Estas duas palavras, que significam coisas tão diferentes, poderiam ser ambas substituídas pela palavra tempo. Esta, umas vezes, significa as condições meteorológicas num certo lugar e numa determinada altura ou, outras vezes, um certo período onde se dão acontecimentos. Sendo hoje sábado, penso não ser propício dedicar-me a uma meditação sobre a polissemia das palavras. Numa daquelas leituras estapafúrdias a que me dedico recebo a informação de que em 1900, metade dos membros da Câmara de Deputados de França era maçon, o que se celebrava numa anedota de gosto popular que insinuava ser a Maçonaria a Igreja da República. Há em todas as organizações secretas um reflexo da infância, daquele tempo em se brinca às escondidas ou que se cultiva o segredo como forma de afrontar os outros. Talvez esta tendência para o velamento e o segredo tenha sido uma vantagem competitiva na evolução da espécie e, por isso, os homens continuam a jogar às escondidas e a brincar aos segredos, muitas vezes de polichinelo. Os pássaros meus vizinhos estão cada vez mais audíveis. Conversam longamente, mas ainda não consegui traduzir-lhe a linguagem. Falta-me uma pedra de Roseta. Também é um facto que não sou um Champollion, mas ele também não seria o Champollion que é caso não tivesse tido o encontro com a pedra de Roseta. Não se pense que a pedra pertencia a alguma Rosa que tratavam pelo desagradável diminutivo de Roseta, em vez de Rosita ou de Rosinha. Não era. Roseta é o nome de um dos braços do delta do Nilo. Nem tudo o que parece é e a polissemia nunca deixa de nos perseguir. O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado reverbera sob a inclemência dos raios solares. Não vai chover. Os 17% ganharão aos 83%.
sábado, 23 de abril de 2022
sexta-feira, 22 de abril de 2022
Universos e informações
Consta que chegou o fim-de-semana, e que será alargado. Assim como o universo – ou um universo – se expande, também é verosímil que os fins-de-semana se expandam. O problema é que, ao contrário do universo, sofrem logo a seguir uma súbita contracção. O mais dramático de tudo isto é que o venerável S. Pedro – santo titular da cátedra do clima – decidiu não emparelhar a expansão do fim-de-semana com a manifestação do bom tempo. Segundo me contaram, terá dito que andavam a queixar-se com falta de água, as barragens vazias, as culturas a morrer de sede, e que, para atender às súplicas, tinha de trabalhar por estes dias. Que não pensassem, por aqui, que era maldade sua. É um mal permitido por Deus, acrescentou, porque dá lugar a um bem maior. Por mim, aceito as explicações do santo e não protesto. Aproveito, para ir à janela ver chover, enquanto o dia se vai desvanecendo, perdendo o fulgor, deixando um rasto de tristeza nas ruas. Volto à questão dos títulos. Numa entrevista ao neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, o Público puxou para título a seguinte frase: Para o Universo adquirir a sua existência, precisou de um narrador. De um momento para o outro, a minha função de narrador está justificada. Faço vir à existência um universo. Não será um grande universo, mas também eu não sou grande narrador. Deixemos o meu pequeno universo de lado e concentremo-nos no outro, naquele que se expande. O que será esse universo, caso não exista um narrador? Será apenas, diz o neurocientista, uma gigantesca massa de informação potencial. Caso exista um cérebro, então este capta essa informação para gerar representações. Um teatro, digamos assim. Todas essas belas paisagens, todos esses luares, sob os quais os amantes passeiam incógnitos, de mãos dadas e com o coração a fervilhar, não passam de informação. Só existem para nós. Uma decepção. Há muito que me parecia que a realidade não era coisa que se recomendasse. Por mim, prefiro aquela narrativa em que existe um S. Pedro que comanda o clima e que hoje está a fazer chover – chuva autêntica e não informação potencial – sobre narradores e sobre os lugares onde não existem narradores. Ah… parece que a chuva também é uma representação a partir de informação potencial. Vou-me calar. Bem, uma última questão: será que a informação potencial está em expansão ou é apenas a nossa narrativa produzida pelo nosso cérebro?
quinta-feira, 21 de abril de 2022
Título
Muitos dos títulos que Hans Kluge atribui aos seus textos na Crónica dos Sentimentos são por si só pequenas obras-primas. Este, por exemplo: Ela queria ser tratada pelo menos com a atenção que é dedicada às coisas. Está-se praticamente no grau zero da exigência de reconhecimento. Ela nem sonha em ser tratada como um ser racional entre outros seres racionais. Também terá desistido de merecer a atenção de um animal ou mesmo de uma planta. Resta que a reconheçam como uma coisa. Talvez existisse nela uma desmedida e um sonho extravagante. Muita gente dá uma atenção sem fim a certas coisas. Por exemplo, dispositivos técnicos como carros, objectos de colecção, coisas da própria natureza. Muitos de nós têm pouca capacidade de olhar para os seus semelhantes, concentrando-se quase por completo nesse domínio silencioso que são as coisas. O título de Kluge torna-se então ambíguo. Aquela mulher estava a exigir o menos possível ou, pelo contrário, a fazer uma exigência extraordinária. Não é relevante saber o que o texto diz. O importante é que o título contém em si múltiplos textos possíveis. Isto conduz-nos a um tema interessante. A relação entre o título e a obra. O título será sempre – mesmo se descritivo – uma abertura de possibilidades. A obra, pelo contrário, é o exercício em que todas as possibilidades são descartadas com excepção de uma. Quantas histórias seriam possíveis sob a designação de Os Maias? Imensas, mas o génio de Eça de Queirós liquidou-as a todas, menos uma. Talvez escrever seja isso. Escolhe-se – ainda que inconscientemente – um título e, depois, começa-se a limitá-lo, desbastando-lhe os conteúdos possível, tal como faz o escultor com a pedra intocada pela sua arte ou o pintor com o branco que o pincel vai limitando. A arte seria assim um exercício de destruição e não de criação. Destruição dos possíveis para que fica apenas um que pareça irremediavelmente necessário. A luz de quinta-feira, uma luminosidade cinzenta e ameaçadora, parece não estar a fazer-me bem. O que vale é que logo terei uma consulta. Mesmo que nada tenha a ver com os efeitos luminosos, como é o caso, só a presença da autoridade médica me disporá, por certo, a pensar em coisas menos inúteis do que títulos.
quarta-feira, 20 de abril de 2022
Sintonia fina
Agora, se me sento a seguir ao almoço, adormeço. Não se pense que são lautos almoços copiosamente acompanhados por vinho. Não são. São refeições frugais, sem álcool. Há coisas que não parece possível contrariar. Depois, ao acordar, não estou com o melhor dos humores e a vontade de fazer alguma coisa é tendencialmente nula. É uma lenta aproximação à realidade, como se o corpo necessitasse de se sintonizar com ela, mas o processo fosse demorado e irregular. Isto recordou-me um rádio que havia em casa dos meus pais, um Blaupunkt. No painel dianteiro existiam dois botões, um para ligar, desligar e controlar o som. O outro movia o sintonizador, um ponteiro que deslizava num painel onde estavam inscritos uns números que, imagino, indicariam os comprimentos de onda. Era com esse dispositivo que se procuravam os postos emissores. A Emissora Nacional, o Rádio Clube Português e os que na época existiriam. A Emissora Nacional tinha dois programas, um mais popular e outro de música erudita, ambos sem publicidade, ao contrário do Rádio Clube, na altura bastante popular. Isto a propósito da dificuldade de sintonizar, em sintonia fina ou precisa, o corpo com a realidade, após uma sesta involuntária. Também a sintonia das diversas emissoras estava longe de ser automática. Havia que treinar para ganhar precisão. Imagino que se poderia fazer uma história do século XX português através dos meios de comunicação. Telefone, rádio, televisão, internet. Uma das coisas mais extraordinárias era o telegrama. Caro, pago à palavra, o que implicava textos curtos com uma sintaxe com cortes idênticos aos orçamentos de Estado. Era radiotelegrafado, o que permitia uma comunicação quase instantânea, em que o quase poderia significar umas horas de diferença entra a emissão e a recepção. Dependia da disponibilidade do boletineiro. Nem sempre era saudável receber um telegrama, um veículo de más notícias. Juro que durante a sesta não sonhei com meios de comunicação.
terça-feira, 19 de abril de 2022
Aparências
Nunca devemos avaliar as coisas pelas aparências. E o que é o título de um livro senão uma aparência? Ora, a editora Relógio d’Água publicou, no ano passado, uma tradução do livro Ararat, da poetisa norte-americana Louise Glück. Imagina-se que, caso exista alguma citação em epígrafe, ela haveria de ser do Génesis bíblico, uma referência ao Monte Ararat onde, depois do dilúvio que caiu sobre este pobre planeta, aportou a Arca de Noé, para que a vida repovoasse a Terra. Pura ilusão. A obra, de facto, possui uma epígrafe, mas do Banquete, de Platão. Diz-nos o seguinte: “… a nossa primitiva natureza era uma e nós constituíamos então um todo. Ora, é essa aspiração ao todo, essa busca incessante, que tem o nome de amor.” Nada de dilúvios e de arcas pousadas num monte, a não ser que o amor não passe de um dilúvio e os amantes devam ser recolhidos numa arca, para que a espécie seja conservada durante a tempestade. As acácias da praceta já têm algumas folhas, pequenos tufos pela ramagem. Tenho muitas coisas para fazer e pouca energia para as realizar. Esta é a verdade crua. Sobre isto não fala o Banquete nem o Génesis, nem há poema que recolha a falibilidade que se apodera dos corpos e os arrasta para a penumbra da existência. Como me acontece muitas vezes, não sei o que fazer à realidade, com a gravidade dos seus imperativos e a inutilidade que confere a tudo em que toca. O vento continua agitado, como o mundo. Talvez estejam, o vento e o mundo, cansados da nossa espécie. Lá terão as suas razões.
segunda-feira, 18 de abril de 2022
Retorno
Retornei a casa, anunciação de retorno à realidade. Por aqui, sol e vento cruzam-se num tumulto embaraçado que faz rodopiar e brilhar, ao mesmo tempo, as folhas do arvoredo. Em mim, alguma coisa murmura: o arvoredo não tem folhas, tem árvores. São estas que têm folhas, mas não é condição suficiente ter folhas para se ser árvore. Os arbustos têm folhas. Também as têm as alface e couves e ninguém se lembraria de dizer que são árvores. Ao escrever alface sinto um ricto de desgosto na testa. Não gosto, de facto, dessas plantas herbáceas do género Lactuca. Talvez porque a nossa alface tenha um gosto árabe – al-khass – muito diferente da espanhola, lechuga, da francesa, laitue, da italiana, lattuga, ou mesmo da inglesa, lettuce. Todas estas alfaces têm um sabor latino e um aroma clássico, enquanto as nossas, na verdade, não passam de alfaces. Já os alemães usam para alface um termo tétrico, vi-o num tradutor automático, Kopfsalat, que com bonomia se pode traduzir por salada do chefe, mas alguém mais dado à literalidade pode ser tentado em traduzir como salada de cabeça. Um nojo. Certamente que não seria sobre alfaces que queria escrever, mas a coisa propiciou-se. Poderia escrever, por exemplo, sobre a incapacidade dos médicos de cumprirem o horário das consultas. Deve fazer parte do juramento de Hipócrates e, portanto, um dos elementos da arte médica. Hoje, ao acompanhar alguém, tive direito a três quartos de hora de espera para além da hora marcada. Contudo, não vou escrever sobre isso, pois pode ser apenas uma experiência minha e eu esteja a fazer uma generalização precipitada. A rua está tristonha, ainda presa ao tempo quaresmal. Ouve-se um cão ladrar, mas tudo parece incerto, como se o dia hesitasse entre estancar a marcha ou precipitar-se para a noite.
domingo, 17 de abril de 2022
Deambulações ao entardecer
Um domingo de Páscoa com parte da família. Na praia, lugar em que raramente ponho os pés, tive de correr atrás do meu neto. Está naquela idade em que os ouvidos não estabelecem relação entre os estímulos exteriores e o cérebro. Em casa, andou a explorar o exterior. Perante um insecto na parede, perguntou o que era. Um bicho, respondi. Vou matar, propôs-se. Não. Então, posso fazer uma festa? Também não, adverti. Tem uma certa inclinação para fazer coisas que não deve. O dia tem estado, por estes lados, nublado. Junto ao mar corre uma nortada fria, e as águas começam a estar encapeladas. Mar de Abril, oiço dizer. Agora, estou dividido entre ir caminhar ou ficar a ler o livro que tenho entre mãos. O mais provável, porém, é recostar-me e adormecer. Uma das últimas coisas que li foi um conto – embora esteja incluído na colecção de ensaios – de George Orwell. Nessa altura, o autor ainda não usava o pseudónimo por que ficou conhecido. O texto é de Eric Blair, o nome de Orwell. A narrativa tem por título O Albergue e conta a experiência num albergue para mendigos. Um texto cru sobre uma realidade cruel. Essa crueldade é menos patente na instituição e na sua superintendência do que no enigma de muitos de nós caírem na situação que conduz ao albergue. Poder-se-ão encontrar muitas e interessantes explicações para esses casos, de natureza psicológica, sociológica, económica ou política. Todas elas parecem falíveis e, na verdade, risíveis. A mendicância, a pobreza visceral, o ser sem-abrigo, todas essas figuras parecem ser emanações metafísicas que manifestam com crueza a dimensão das nossas fantasias sobre o mundo. Entardece.
sábado, 16 de abril de 2022
Modelos
Benjamin Constant teve um preceptor alemão de nome Stroelin. Este tinha alguma criatividade pedagógica e propôs ao pequeno Benjamin, então com cinco anos, que inventassem uma língua que apenas os dois compreendessem. Começaram pela criação de um alfabeto, que era, na verdade, o grego. Depois, passaram à invenção de palavras, gregas, claro, construindo um dicionário. Por fim, a criança começou a dar às palavras leis gerais, que não eram outra coisa que a gramática grega. Tudo se gravava na mente do pequeno de modo maravilhoso, como ele conta. O problema foi que o preceptor não era apenas inventivo pedagogicamente, era também alemão e achava que bater desalmadamente na criança fazia parte da sua função. Foi despedido ou como escreve o próprio Benjamin, em Le Cahier Rouge, fut chassé. Este destino também o teve M. de la Grange, um francês, mas por outros motivos. Transcrevo: Il voulut séduire la fille d’un maître de musique chez qui je prenais des leçons. Il eut plusieurs aventures assez scandaleuses. Enfin il se logea avec moi dans une maison suspecte, pour être moins gêné dans ses plaisirs. Mon père arriva furieux de son régiment, et M. de la Grange fut chassé. Agora não vou contar a história do terceiro preceptor de Constant, um ex-advogado francês, de nome Gobert, mas ela é tão edificante quanto as anteriores. O que me interessa, porém, é a conclusão que ele então tirou: aqueles que eram encarregados de o instruir e de o corrigir eram homens muito ignorantes e muito imorais. Talvez, penso eu, uma educação feita por esse tipo de pessoas tenha um efeito contrário. Quantas vezes uma instrução dada por instrutores sábios e moralmente probos gera pessoas ignorantes e corruptas? Mais do que aquilo que se poderia desejar. Talvez os modelos sejam importantes na educação das crianças, mas há que meditar se o efeito mais poderoso não virá de contramodelos. As novas gerações têm uma certa propensão para fazer o contrário da geração anterior. Se o modelo for péssimo, é plausível que o resultado seja óptimo. Contudo, é preciso dar um amplo desconto a este meu devaneio sobre a pedagogia, assunto sobre o qual pouco ou nada sei. Isto, apesar de eu saber uma multidão de coisas inúteis. Hoje é, no calendário que nos rege, Sábado de Aleluia.
sexta-feira, 15 de abril de 2022
Caos e cosmos
Hoje já caminhei quase oito quilómetros. Devo estar a acumular quilometragem para os dias em que pouco ou nada me movo. Não sei, todavia, se isso será como aquelas promoções em que se acumulam pontos que, depois, podem ser trocados sabe-se lá por quê. Quando saí de manhã – embora já não fosse tão de manhã quanto isso – o céu estava completamente nublado, mas, ao chegar a casa, ele brilhava liberto do véu das nuvens. Mais tarde fui a uma esplanada numa ilha que, na verdade, é uma península. A realidade é feita destas incongruências. A ordem do mundo não passa de uma desordem. Aquilo a que chamamos cosmos é um caos. E quando o caos aparece disfarçado de ordem, logo surge quem torne patente que não nos devemos iludir. Basta dar uma vista de olhos pela comunicação social, essa mensageira do caótico. Talvez não devesse assim classificar esses órgãos que velam noite e dia para nos manterem informados. Quando eu era novo e ingénuo, a informação era creditada como uma porta para a verdade e esta seria o combustível para um agir moralmente correcto. Eu acreditava em tudo isso, talvez por ser novo, talvez por ser ingénuo, talvez por ser idiota e pronto a crer no que me diziam. Hoje já não creio no que me dizem. Fiquei curado de ser novo (uma doença que passa depressa), eventualmente, de ser ingénuo e, apesar de ser desconfiado relativamente ao que me dizem, não é pacífico que tenha ficado curado da idiotia. Esta é um mal que tem muito de incurável. Hoje, no molhe, havia muitos pescadores. Como é habitual, não vi, durante a minha travessia, nenhum que tivesse apanhado um peixe. Julgo mesmo que eles só vão para ali para mostrarem as canas de pesca e mergulharem os anzóis na água fria do mar, enquanto o tempo passa e não é horas de ir para casa. Talvez sejam pescadores amigos dos peixes. Imagino. Isso reconcilia-me com o caos que o cosmos é. Agora, vou acabar de ler um ensaio sobre o velho Sigmund Freud, personagem que deveria saber alguma coisa do caos.
quinta-feira, 14 de abril de 2022
Indulgentĭa
Ontem, pela tarde, instalei-me, por uns dias junto ao mar. Tem sido um fartote de pontos cardio. Mal chegado, fiz uma caminhada de 6 km. Hoje de manhã, repeti o exercício. A parte mais espantosa é caminhar pelo molhe, que tem 600 metros e termina num farol. Isto significa que um quinto da caminhada é feito com água dos dois lados. Também há barcos a passar, outros ancorados, surfistas, pescadores – embora ontem e hoje não tenha visto nenhum – gaivotas e gente que, como eu, está preocupada com os pontos cardio. Hoje, em parte do trajecto, fui acompanhado pelo cão das minhas netas. Não é um mau caminhante, mas é fascinado em postes. Tem de parar em todos para alçar a perna. Tive de o deixar para trás ao cuidado da avó das netas. Após esta experiência, constato não haver compatibilidade entre pontuação cardio e passeio com cães, pelo menos se ainda estão na fase de serem cachorros, pouco experimentados no mundo e pouco conhecedores de postes. Hoje é quinta-feira de Endoenças. A palavra deriva da latina indulgentĭas. Estaremos, então, num dia de remissão de penas, de perdão, mas também de tolerância e de bondade. Seria interessante meditar sobre as quatros palavras – remissão, perdão, tolerância e bondade – mas falta-me a disposição. Estamos em pleno Tríduo Pascal, mas, apesar de Portugal ser tido como um país católico, isso não terá outro efeito senão dar lugar a umas pequenas férias. O que é sempre bom para o turismo, e como se sabe a vocação portuguesa é o turismo. Somos um povo com propensão para velar pelo descanso dos outros, mesmo que isso implique não ter descanso. Talvez estas considerações rocem a política, e esta, como tenho referido por diversas vezes, foi-me interdita pelo autor. Um narrador não se mete em política. Obedeço e será nisso que reside a grande diferença literária entre o autor e narrador, os autores têm opiniões políticas, mas os narradores são obrigados à omissão. Estou a precisar de indulgentĭa.
quarta-feira, 13 de abril de 2022
Sem começo nem fim
O poeta Rui Cóias, em A Ordem do Mundo, começa o poema 15 com o seguinte verso: Nada existe que não tivesse começada. E se esta declaração fosse falsa, se existissem coisas que não tiveram começo? Não serão começo e fim apenas a confissão de que nós, seres humanos, não conseguimos compreender a realidade? Se todas estas divisões entre seres, das quais nasce a crença de que uns são a causa de outros e, por isso, tiveram um começo, não passar de uma ilusão a que somos conduzidos pelos limitados poderes de compreensão com que fomos dotados? Se fosse poeta talvez começasse um poema com o seguinte verso: Tudo o que existe não tem começo nem fim. Isto colocaria o leitor perante uma perplexidade. Esta, porém, não clama para que se demonstre a verdade ou a falsidade do verso, mas que se entre dentro dele e, ao mesmo tempo, se se deixe contaminar por ele. Um verso não é uma proposição lógica. Será mais parecido com um Koan, da tradição Zen. Ele não será, em última análise, acessível à razão. Caso seja assim, talvez o verso de Rui Cóias não diga aquilo que a razão nele lê e, por isso, não seja diferente daquele que eu escreveria caso fosse poeta. Como se vê, o sol desta quarta-feira não me terá feito bem. Ou talvez a missão que tive de cumprir esta amanhã me tenha predisposto para meditações falhas de sentido. Foi uma daquelas missões cujos resultados são nulos, mas que mantêm as pessoas ocupadas, enquanto a terra gira à volta de si mesma e volteia em torno do Sol, e este se desloca pelos espaços siderais, levado num dos braços da nossa galáxia. Princípio e fim serão apenas percepções nossas para darem um aspecto dramático à vida. Amanhã será Quinta-Feira de Endoenças.
terça-feira, 12 de abril de 2022
Alvoroços
A comunidade científica que trabalha em física de partículas está em alvoroço. Consta que descobriram que o bosão W tem uma massa superior em 0,1% ao que o modelo-padrão (imagino que seja o quadro teórico que superintende esta área) propõe. Caso se confirme que o modelo-padrão está errado, isso será uma grande notícia para a física, adianta um reputado físico teórico português. Como eu dizia, um alvoroço. Pelo que parece, os bosões são partículas que têm essa capacidade de alvoraçar os sensatos sábios que a eles se dedicam. Quando foi confirmada a existência da partícula de Deus – expressão que em vez de alvoraçar os físicos os irrita solenemente – foi também uma grande emoção. Ora, a partícula de Deus tem pouco a ver com Deus e não é outra coisa senão o bosão de Higgs. Os cientistas detestam que se confunda ciência com teologia. Elas lá terão as suas razões. É provável que os teólogos sofram de mesmo mal e não gostem que se confunda teologia sistemática com física de partículas. Voltando ao bosão. Por que razão esse tipo de partículas possui tal nome? Segundo deduzo de um conhecido dicionário de língua portuguesa, foi assim baptizado em honra de São Bose. Um santo? Não. Nada de teologia, é preciso não esquecer. Tratava-se de um físico indiano muito importante. Aqui que ninguém nos ouve, não percebo por que raio o dicionário lhe dá este nome de beato canonizado. O nome dele era Satyendra Nath Bose. Como não tinha qualquer aventura relevante para narrar, recorri ao que tinha disponível. Calhou ser um bosão. Poderia ser, por exemplo, Neptuno. Outro caso em que a realidade insiste em comportar-se de forma diferente daquilo que estava previsto. O pobre planeta entrou há vinte anos na sua estação de Verão – imagine-se o que será um Verão em Neptuno – e, ao contrário do que acontece quando se entra no Verão, ele está a arrefecer e arrefece de forma muito rápida. Já agora uma informação que pode ser útil a qualquer um. Um ano de Neptuno equivale a 165 anos terrestres. Se deseja emigrar para lá, pense bem. Moral da história. Seja o bosão W, seja a temperatura estival de Neptuno, a realidade continua com o gosto perverso de ofender as nossas expectativas. Talvez fosse mais seguro, apesar de frio, ir para Neptuno.
segunda-feira, 11 de abril de 2022
Causas e motivos
A fragilidade da condição humana. Foi esta frase que, há pouco, me veio ao pensamento, mas já não consigo saber o que a terá motivado, que estímulo a desencadeou. Estamos habituados a que não existam efeitos sem causas e repugna-nos que uma frase dance na nossa consciência sem um motivo. Quando este não é aparente, existe um truque. Diz-se que foi uma motivação inconsciente. Não a conhecemos, mas ela existe escondida no mais recôndito do nosso ser. Assim como, na sequência de Aristóteles, os escolásticos afirmaram que a natureza tem horror ao vácuo, também nós temos horror ao imotivado e, ainda mais, ao incausado. Se um pensamento sem motivo nos perturba, muito mais perturbará um acontecimento sem causa. E se tudo fosse imotivado e incausado? Se motivos e causas fossem apenas grelhas de leitura que o nosso cérebro estabelece para podermos viver do modo mais sereno possível? Por exemplo, o cansaço que, neste momento sinto, seria muito mais perturbador se eu achasse que não tinha qualquer causa. Encontrar para ele uma causa permite-me descansar sobre o assunto. Está um dia de autêntica semana-santa. As minhas netas parecem agitadas. O cão com que foram presenteadas parece ser a causa desse estado febril. Ele, porém, é um cultor exímio da serenidade. De preferência, evita mexer-se e não me parece ser adepto da agitação com que elas o envolvem. Imagino que ele prefira meditar sobre a ausência de motivos e causas do que ser motivo ou causa de tanto alvoroço. Se a condição do homem é frágil, o que se há-de dizer da condição canina às mãos de uma humanidade frágil? Um sol triste ilumina uns adolescentes que correm atrás de uma bola nos campos de jogos da escola aqui ao lado. Ela foge-lhes e eles correm atrás dela sem se interrogarem por motivos e causas. O importante é marcar golos.
domingo, 10 de abril de 2022
Amêndoas e laranjas
Chegado ao Domingo de Ramos, Abril completou um terço da sua existência. Em vez de meditar sobre a velocidade de Cronos, talvez deva falar de amêndoas. Refiro-me às da Páscoa. Não aquelas envoltas em açúcar empedernido, mas umas cobertas de chocolate e polvilhadas de canela. São essas que conspiram contra mim. Perante o perigo iminente, reajo e como-as. Não devia, mas as coisas são o que são, e a vontade é fraca. Quanto à amêndoa propriamente dita, essa nunca me convenceu. Quando o chocolate chega ao fim e apenas sobra o fruto, sinto uma decepção. Assim como há café sem cafeína e cerveja sem álcool, também deveriam existir amêndoas pascais sem amêndoa. Talvez existam, mas se já experimentei, não me lembro. Por aqui, estou certo, não as há. Acabei de chegar de uma visita à aldeia onde se vendem laranjas à beira da estrada. Talvez as minhas netas cheguem hoje e gostam daquelas laranjas. Os dias começaram a aquecer. Não tarda e o inferno transfere-se para aqui ou, talvez seja mais apropriada, reabre uma delegação. Entrego a tarde à escuta da música da violoncelista clássica alemã Anja Lechner e do pianista francês de jazz François Couturier, um duo que a grande criatividade da ECM records nos dá a conhecer. A generalidade do catálogo desta editora alemã é recomendável. O meu telemóvel informa que me faltam 25 pontos cardio para perfazer os 150 semanais recomendados pela OMS. Parece que tenho de me pôr a andar.
sábado, 9 de abril de 2022
Maldita homofonia
Meu Deus! Ontem, passado umas horas de o ter publicado, reli o post e descobri, de imediato, um terrível erro, onde confundia um monge com uma munição. Não é de bom tom trocar um projéctil cuja função é matar com um religioso que dedica a sua existência à silenciosa salvação da alma e à redenção do mundo, caso este tenha redenção. A causa do erro era fácil de descortinar, a maldita homofonia que ataranta os escreventes pouco cuidadosos e os faz cair no pecado de tomar a absoluta identidade sonora como razão para uma absoluta identidade ortográfica. Em síntese, e para abreviar razões, em vez de escrever cartucho escrevi cartuxo. Quanto aos cartuchos munições não tenho qualquer experiência deles, mas lembro-me bem de outros cartuchos onde se embrulhavam mercearias. Eram de papel e, em nome do progresso infinito em direcção futuro, foram substituídos por sacos de plástico. Contudo, os cartuchos mais extraordinários são os que os vendedores de castanhas fazem com folhas de papel de jornal. Julgo que fazem, pois há muito que não compro castanhas assadas. Nem sei a razão. Talvez por já não haver por aqui quem as venda. Esses vendedores não são bons apenas a fazer cartuchos cónicos de papel. Castanhas assadas? Só as deles. O resto não passa de pobres arremedos de diletantes da assadura da castanha. Não compreendo por que razão a Câmara daqui contrata empresas para tratar dos jardins e espaços verdes sem que lhes imponha uma cláusula que as impeça de trabalhar aos fins-de-semana e feriados. Há não sei quantas horas que oiço o trabalhar dos corta-relvas. Uma tortura para um sábado de manhã. Nem a chuva os dissuade. Deveria cair um aguaceiro dos antigos. Mesmo que eu quisesse tornar-me um cartuxo e dedicar-me ao silêncio, não podia.
sexta-feira, 8 de abril de 2022
Guerra com a semântica
Talvez hoje seja sexta-feira e eu nem tenha dado pelo passar dos dias, apesar de eles serem pesados como chumbo. Isto prova que o chumbo tem o poder de se deslocar rapidamente. Por isso, imagino, é usado nos cartuchos para caçadeiras. Outros metais mais nobres teriam menos propensão para a velocidade. Apertado o gatilho, a prata ainda haveria de correr, mas devagar, o ouro iria em passo lento, embora majestático, e a platina nem se dignaria começar a movimentar-se. Ficaria onde estivesse, afirmando que o estar imóvel é a antecâmara da eternidade. Devido a estas propriedades do chumbo, não há estátuas desse veloz metal. Uma estátua deve ser imóvel. Por isso, recorre ao bronze que, apesar de não ser majestático, não tem propensão para se deslocar. Talvez sofra de preguiça. Como eu. Chego às tardes de sexta-feira e acomete-me uma ignávia acintosa. Há dias em que tenho inveja dos poetas surrealistas, de poder escrever o dorso de cabedal da minha carteira voa para pousar sobre o diamante do meio-dia, desfraldado na acrópole das tuas mãos. Um floco de azeviche cai da asa de um anjo embebido em terbentina, feita do sangue derramado pela árvore do entardecer. Não sou, todavia, nem poeta nem surrealista. Acho mesmo o surrealismo uma ameaça. Já o realismo e a realidade são corveias tão pesadas, quanto mais um sobrerrealismo que, por certo, há-de esconder no invólucro azul dos seus princípios uma sobrerrealidade, pesada como o diabo que a carregue. Mais pesada que o chumbo, mais pesada que a velocidade dos dias da semana. Mais pesada que a minha incapacidade para escrever alguma coisa que faça sentido. Estou em guerra com a semântica. Só isso. Sim, hoje é sexta-feira.
quinta-feira, 7 de abril de 2022
Mitos
Não sei se os dias devoram a vida das pessoas ou se é a vida destas que devora os dias. Os mitos têm uma exactidão que a razão não consegue ultrapassar ou, tão pouco, igualar. O mito de cronos devorador dos filhos possui um rigor insuperável na descrição daquilo que o tempo faz aos seres. Trá-los à existência e devora-os sem piedade. O facto de Zeus, devido à astúcia da mãe, ter sido subtraído à fome ou ao temor cruel do pai torna manifesto que a luta entre o tempo e o ser acaba por ser favorável a este, mesmo que o tempo vá devorando cada um dos seres que vêm à existência. Também o mito bíblico da Queda parece mais útil para a compreensão dos homens que as diversas teorias racionais sobre a nossa espécie. As teorias racionais têm o condão de escavar na realidade para encontrar explicações que, talvez, se vão aproximando da verdade. A verdade do mito, porém, é de outra ordem. Não nos contam factos, não são teorias que descrevam ou expliquem a realidade. São formas de compreender a situação existencial do homem no mundo. Neles, a imaginação mostra-nos o que é, para nós, a realidade e o que somos. O tempo que me trouxe devorar-me-á. A minha finitude – é isso que a queda adâmica torna manifesto – mostra-me como sou falível. Procuro, agora, a razão por que, a esta hora do dia, fui levado a escrever sobre os mitos. Não a encontro dentro de mim, apesar do escrutínio a que me entrego, não a encontro fora de mim. Tudo o que vejo e oiço é meramente prosaico, e estamos convencidos de que os mitos emanam de um fazer poético inimigo feroz da prosa. Talvez esse convencimento seja fruto de um engano, e os mitos nasçam daquilo que há de mais trivial na vida. Olho para a rua lateral e dou-me conta da existência insólita de um sinal de trânsito de sentido obrigatório. A rua tem dois sentidos e o sinal serve apenas para quem sai de uma garagem de um dos prédios vizinhos. Parece pretender impedir que quem dali saia volte à direita, o que é manifestamente absurdo, pois a rua permite esse sentido e essa decisão não trazer qualquer risco. Pelo contrário. Imagino que alguém se enganou ou que o sinal estava ali antes dos prédios serem contruídos e se esqueceram dele. Um dia, transformar-se-á em mito, onde se narrará a nossa condição de seres submetidos a ordens absurdas.
quarta-feira, 6 de abril de 2022
Maus sinais
Os sinais não são os melhores. Acabei agora uma longa conversa telefónica com um velho amigo dos tempos de faculdade. Foi, literal e metaforicamente, uma conversa de velhos. Aferimos as ameaças que se erguem no horizonte, a forma como o mundo parece estar a enlouquecer, o modo como os loucos, com ideias de grandeza, em vez de serem internados em hospícios, são eleitos para condutores de povos, como uma certa visão do mundo civilizada está a dar lugar a coisas insistentemente perigosas, a delírios que se não conduzissem a tragédias inomináveis seriam motivo de umas boas gargalhadas. A verdade, dizia-me ele, é que nunca estamos predispostos a admitir que gente enlouquecida pode chegar ao poder. Uma ingenuidade. Nessa altura lembrei-me de um dito de uma pessoa com quem trabalhei há umas décadas. Ingenuidade depois dos quarenta não é ingenuidade, é burrice. É isso que sinto. Fui demasiado burro ao crer que as coisas no mundo sempre se podem compor. Não podem. Uma conversa de velhos. O pior foi, porém, outra coisa. Quando fui à cozinha dei com uma chávena de café cheia ao lado da respectiva máquina. O café estava frio. Comecei a tentar perceber quem se teria esquecido de tomar café depois de almoço. Terei sido eu, perguntava-me, mas não sabia. Há pouco fui informado de que o esquecimento era da minha autoria, aquele café era meu. Não faço ideia por que razão o deixei ali. Hoje esqueci-me de tomar um café já tirado. Não tarda e esqueço que bebo café. Os tempos andam interessantes e isso está longe, muito longe, de ser uma boa notícia.
terça-feira, 5 de abril de 2022
Um pouco de hipocrisia
O que vou escrever a seguir, note-se, não é uma incursão na política. Longe de mim emitir opinião nesse campo tão minado. Parece que o ministro irlandês das Finanças e presidente do Eurogrupo, quando esteve a última vez em Lisboa, foi levado pelo incumbente português da altura a visitar um museu. Achou o simpático irlandês que era o de Fernando Pessoa e que nele tinha conhecido a viúva do poeta, um notório não casado, nem, quanto se sabe, amancebado, nem com inclinação para conúbio com alguém que se pudesse tornar viúva dele. Na minha opinião, vale o que vale, o pobre do ministro teve pouca sorte. Tivesse ido numa outra altura e teria conhecido várias viúvas. Imaginemos que a cada heterónimo, semi-heterónimo, pseudónimo ou alcunha pessoanos correspondia uma viúva, não faltariam viúvas para conhecer. Calhou-lhe só lá estar a do ortónimo. Azar. Provavelmente, a viúva seria a de Saramago e este, tanto quanto se sabe, não era um heterónimo de Pessoa, mas não juro. O mundo não está para graças, mas não deixa de ter a sua graça. Estas gentilezas para fazer sala têm sempre os seus inconvenientes. Há uns anos, num município das redondezas, o então presidente da Câmara disse-me, com amável sinceridade, que continuava a gostar imenso dos artigos que eu escrevia num jornal daqui. Agradeci e omiti a informação de que já não escrevia há bastante tempo. Temos aqui matéria para um debate senão teológico, pelo menos moral. O que é pior, a gentil mentira do presidente ou minha não menos gentil omissão da verdade? Talvez eu me tenha, do ponto de vista moral, portado pior. Do ponto de vista civilizacional, porém, ambos nos portámos muito bem. Não há nada como um pouco de hipocrisia para tornar a vida mais saudável.
segunda-feira, 4 de abril de 2022
Um dia quaresmal
Está uma segunda-feira quaresmal. Um sol raquítico, algum vento quase frio, um sentimento de tristeza pelas ruas, as gentes sem ânimo a caminhar pelos passeios. O processador de texto onde escrevo insiste que devo grafar o nome dos meses com inicial minúscula. Sempre que opto pela maiúscula, ele, sem que eu lhe peça opinião, coloca um traço azul sob a palavra e dá a sugestão em letra minúscula. Ora, não me apetece segui-lhe a orientação. Os meses são entes importantes e, caso olhemos para uma vida, mesmo longa, não são coisas que abundem como grãos de areia. São sempre poucos e, por isso, preciosos. Logo, devemos dar-lhe um tratamento diferenciado, caso tomemos por comparação os dias da semana. Um carro azul flamejante passa devagar na rua, depois fica um vazio que demora a ser preenchido. Não há outros carros, nem bicicletas, nem pessoas, nem animais. Passados longos instantes, uma ambulância do 112 ocupa a estrada, vai vagarosa, mas também ela é engolida por aquilo que não vejo. De dentro de um carro cinzento, sai um homem. Devia ali estar há muito. Talvez a enviar mensagens no telemóvel. Sai e com passo decidido desaparece. A rua de que falo é uma lateral pouco concorrida da avenida. Num dos passeios erguem-se quatro acácias, ainda de ramos despidos. Não se ouve ninguém. Não haverá nada para ouvir, imagino.
domingo, 3 de abril de 2022
Luzes que não iluminam
O argumento não me parece muito bom, mas compreendo, respondi ao padre Lodovico, na longa conversa que tivemos esta manhã. Está muito abalado pelos acontecimentos na Ucrânia. Se queremos uma prova sobre a verdade de facto, e não meramente simbólica, da queda adâmica, basta olhar para o que se passa naquela terra, argumentou ele, quase irado. Disse-lhe que essa interpretação não se coaduna com a tradição iluminista da sua família e dele próprio. Ao diabo o Iluminismo, respondeu. Ele agora não serve de nada, quando as forças da escuridão avançam, As Luzes não deitam luz nenhuma sobre as trevas. Nem a (palavrão não publicável) de um raio. Respondi-lhe que talvez ele estivesse a blasfemar sem ter consciência disso. Por certo que um historiador como Tom Holland não deixaria de ver As Luzes, apesar das tropelias de um Voltaire, como uma consequência do cristianismo. Talvez mesmo um reflexo da abertura do evangelho de João, atrevi-me. Ele riu-se, imagino que se tenha persignado ao ouvir o nome de Voltaire, e mudou de assunto. Começou a contar-me a última consulta médica, por causa do coração, e enumerou as drogas (sic) que lhe são impingidas diariamente. Isto de uma pessoa se manter viva exige uma autêntica ascese, comentou. Por causa disso, confessou, depois de dizer a Missa do meio-dia, vou almoçar com uns amigos e enumerou-os. Gente que não se coíbe de não respeitar o jejum da Quaresma, disse-lhe eu. Claro, mas já basta a tristeza do mundo e o domingo está, em Lisboa, com uma luz esplendorosa, que merece o sacrifício de um pecadilho. Uma ascese ao contrário, comentei. Isso, respondeu e despediu-se. Ao contrário do padre Lodo, eu vou entregar-me, neste domingo, à frugalidade. Já bastou o jantar de família ontem, no qual talvez não me tenha portado lá muito bem. Continuo a ouvir música da Renascença, de várias origens nacionais. Penso na alegoria de Abel e Caim. O mundo nunca terá descanso. Não haverá Renascimento nem Iluminismo que nos valha. O projecto de Paz Perpétua de Kant há-de sempre esbarrar no Caim que cada um traz dentro de si. Uns mais que outros, acrescento.
sábado, 2 de abril de 2022
Chocolate picante
Até que enfim. Após uma longa ausência – porventura, desde antes do início da pandemia – um dos meus chocolates preferidos, tornou a aparecer por aqui. Trata-se de um chocolate preto com piripíri, de uma conhecida marca austríaca, cujo nome omito, não se vá pensar que estou a soldo de alguma multinacional. Também existe um chocolate semelhante de uma marca nacional, mas, tal como o austríaco, levou sumiço das prateleiras da superfície comercial onde me abasteço. Durante este tempo e sempre que ia demanda, sempre frustrada, do santo Graal, considerava que, sendo esta uma cidadezinha provinciana, não haveria mercado para essa combinação entre o chocolate e o picante. Hoje reconciliei-me com o mercado, com a cidadezinha e com a própria superfície comercial. Seja como for, este meu gosto por chocolate preto, aliado ao prazer que tenho no sumo de toranja e no café sem açúcar, segundo alguns estudos, indicia uma personalidade psicopata. Parece que não é bom sinal preferir alimentos e bebidas agrestes, embora nunca tenha detectado em mim tendência para a psicopatia. Não serei das pessoas mais sociáveis ao cimo da terra, mas mantenho relações de cordialidade com toda a gente que me rodeia. Não desistirei nem do chocolate negro, se for picante, melhor, nem do café sem açúcar. O sumo de toranja, porém, é um prazer que me foi vedado devido a uma incompatibilidade extrema com a medicação que me coube em sorte. A partir de certa altura da existência, os pequenos e os grandes prazeres começam a sofrer uma censura atroz. Hoje é sábado, tenho muito para fazer, mas troco os deveres por ficar a ouvir música para alaúde de um compositor do século XVI, John Dowland. Gosto bastante da sonoridade do alaúde. Talvez isso prove que, apesar dos meus gostos gastronómicos, não serei um psicopata, mas ninguém é bom juiz em causa própria.
sexta-feira, 1 de abril de 2022
Do tempo do yé-yé
Acabou. Refiro-me não ao mês de Março, mas ao ensaio da banda – do conjunto pop/rock – da escola aqui ao lado. Pelo tipo de música que me chega aos ouvidos, caso o vento esteja favorável, presumo que não deve haver alunos entre os instrumentistas. As canções são ainda aquelas que animavam os bailes de finalistas na década de setenta, logo os músicos deviam ser alunos por esses anos. Tudo isto é presunção minha, embora fundada em alguma evidência. O vocalista foi meu colega, em certa altura do percurso escolar. Os outros membros da banda não sei quem são. O facto de estar a falar disto a uma sexta-feira prende-se com uma alteração radical nos hábitos trazida pela pandemia. Os ensaios, bem me lembro, eram às quartas-feiras, à tarde. Depois, veio o silêncio pandémico. Cansados da pandemia, os músicos voltaram aos anos setenta, mas à sexta-feira. Fazem parte de uma onda revivalista que grassa por aí. Costumo encontrar, num certo restaurante a que me afeiçoei, um outro vocalista. Um rapaz mais velho do que eu uns dez anos. Fazia parte de um conjunto musical aqui da zona, no tempo do yé-yé. Presumo que fosse um yé-yé tardio, mas animava as pessoas e parecia trazer um ar de modernidade e cosmopolitismo a uma província enterrada num país periférico, fechado ao mundo e mergulhado numa guerra. Contou-me ele há tempos que retomaram – os que estavam vivos – o grupo e que ensaiam todas as semanas. Serve para descansar dos negócios, disse-me. Foi na voz dele que ouvi pela primeira vez um tema pouco Yé-yé, Guantanamera. Nunca esqueci o facto e, confesso, continuo a gostar dessa bela cançoneta latina. Tudo o que escrevi hoje é a mais pura verdade. Recuso-me às mentiras de 1 de Abril. Estas, contudo, eram um motivo de animação social ao lado do Festival da Canção e dos jogos de futebol ao domingo, pelas três da tarde. As pessoas entretinham-se em descobrir qual a mentira contada pelo seu jornal, caso tivessem um. Vivia-se então numa grande mentira anual disfarçada numa mentirinha de primeiro de Abril. Isto, porém, são considerações que o autor não me permite explorar, pois proibiu-me, literalmente, qualquer comentário político. Obedeço.
quinta-feira, 31 de março de 2022
Eros, esse deus itinerante
A compra de livros usados não é interessante apenas por se poder adquirir autores que deixaram de ser publicados. Um outro atractivo é descobrir aquilo que os seus compradores originais lá deixaram escrito. Diante de mim, dois romances da mesma autora. Num deles, está grafado: Para ti minha jóia preta, com a dedicação do teu (segue-se assinatura legível). Isto passou-se no mês de Maio do ano de 1954. No outro, diz-se mais prosaicamente: Com um grande abraço da tua mulher que te ama (segue-se rúbrica ilegível). A data é de Dezembro de 1972. Imagino, assim, que os anos cinquenta do século passado seriam mais inclinados às declarações românticas, fundadas na metaforização, do que os anos setenta, mais dados à linguagem corrente. É uma hipótese, embora possam existir outras. A relação entre o autor da assinatura e a sua jóia preta estaria ainda num tempo em que tudo parece digno de valor, em que até os defeitos e vícios da coisa amada são vistos como verdadeiras virtudes, únicas ao cimo da terra. Por outro lado, o casamento, como toda a gente sabe, tem um poder extraordinário para transformar as alianças de ouro, que selaram o amor eterno, em pechisbeque do mais trivial que exista. Já não há motivação para mais do que um grande abraço, isto é, a declaração de amizade, de onde Eros, esse deus itinerante, foi expulso. Não deixa de ser curioso o lugar onde se encontra a dedicatória, mesmo ao lado do título, que em letras garrafais diz: Desejar Não é Amar. A autora da dedicatória confessa que ama o marido, mas não o deseja. Isto acontece a muito boa gente, que vive em dissociação cognitiva. Quanto à autora do romance, Carmen Figueiredo, hoje praticamente desconhecida, recebeu os elogios da crítica do seu tempo, algumas das suas obras foram apreendidas pela PIDE, sempre zeladora dos bons costumes e da moral pátria, e recebeu o Prémio Ricardo Malheiros, pelo romance Criminosa. Continuo a comprar coisas inverosímeis. Como por exemplo, a novela naturista (assim mesmo), publicada em 1916, com o título Regresso à Felicidade, de Sousa Costa, um autor tradicionalista e ruralista, casado com Emília Sousa Costa, também ela escritora, dedicada à literatura infantil e à ficção regionalista. Assim se chega ao fim de Março.
quarta-feira, 30 de março de 2022
Enganos do tempo
“Estamos em face de uma organização de romancista como poucos temos em Portugal”. “Caminhada é, sem dúvida, um dos melhores romances do nosso tempo”. “Leão Penedo tem o seu lugar entre os melhores romancistas portugueses”. “Um dos maiores romances de autores da nova geração”. Encontramos tudo isto e muito mais na contracapa do romance A Raiz e o Vento, do escritor algarvio Leão Penedo. Não se pense que este tipo de comentários surge na imprensa de província. Pelo contrário, as citações pertencem a jornais e revistas de âmbito nacional. Não me foi possível saber a data de publicação do romance, mas presumo, com alguns dados a que tive acesso, que terá sido nos anos quarenta do século passado. A questão que se coloca não é se alguém ainda lê um romance do autor, mas se alguém sabe que terá existido um escritor chamado Leão Penedo. Ao ler a contracapa – de natureza publicitária, mas, como ainda hoje acontece, mobilizando aquilo que foi dito por autoridades com algum reconhecimento no mundo da literatura – pensamos estar perante um autor decisivo no panorama da literatura nacional. A história não o mostra assim. Não faço ideia se as avaliações referidas são justas, pois ainda não li o livro que me chegou hoje às mãos, mas talvez se deva considerar que os críticos literários daqueles tempos estavam longe de possuir instrumentos analíticos actualizados para avaliar as obras que liam. Faltava-lhes, por certo, um saber universitário adequado e sobrava-lhes a veia jornalística. Perguntar-se-á por que razão escrevi tudo isto. A resposta é simples. Para não falar do tempo, do vento frio, de Março a deslizar para a caverna de Abril. Águas mil.
terça-feira, 29 de março de 2022
Mudanças
O mundo mudou, comentou ontem um amigo cujo nome não vem ao caso. O problema do mundo, respondi, é mesmo esse. Estar sempre a mudar, tomado por uma volubilidade doentia. Não se trata disso, mas de uma mudança benéfica, uma luta contra o castigo imposto pela tentativa de construir a Torre de Babel. Os tradutores automáticos, continuou, são uma bênção. Pode-se ler com razoável fiabilidade coisas escritas em algumas línguas que não se conhecem. Tive de concordar. Habituei-me a usar esse truque com textos escritos em alemão ou nas línguas nórdicas. As traduções automáticas colocam-nos num francês ou num inglês bastante aceitáveis. É possível mesmo ler com razoável precisão prosa de ficção, isto para não falar da técnico-científica. O mundo, de facto, mudou. No entanto, isto não significa que estejamos mais próximos uns dos outros. Esta aproximação linguística talvez nos esteja a afastar ainda mais. A nossa esperança já não está em aprender uma língua, mas em haver um tradutor automático que coloque na nossa, ou numa que compreendamos, aquilo que queremos ler e está escrito em língua inacessível. Por outro lado, há uma desumanização da linguagem. É possível imaginar que, não tarda, as traduções automáticas serão muito mais exactas do que as de um bom tradutor, que conseguirão mesmo captar as inflexões literárias, as derivas estilísticas individuais, tudo aquilo que torna um texto único. A inteligência artificial aprende muito depressa. Isto piora a situação da humanidade ao cimo deste planeta. Enquanto esta se entretém em guerras e outras actividades do mesmo calibre moral, os seres de silício encarregam-se de tornar manifesto que a nossa espécie está obsoleta. Obsoleta e uma péssima companhia neste mundo, o tal que mudou.
segunda-feira, 28 de março de 2022
Dia de aluamento
Enquanto muitos outros povos cultivam o dia após o domingo como um tempo de aluamento, os portugueses referem-no como o segundo dia de férias. Veja-se, por exemplo, Lunes, Lundi, Luni, Luns, Lunedi ou Monday, Montag, Maandag, Mandag, etc. Em todas estas designações encontramos a Lua como fonte de inspiração. Conseguimos a proeza de resistir aos encantos da Lua, de ficarmos aluados, mas a verdade é que atribuímos, a cada dia útil da semana, a designação de um dia de férias, enquanto para os tradicionais dias de descanso adoptamos uma estratégia diferente, que agora não vem ao caso. De tudo isto podemos extrair a conclusão de que os portugueses não vivem na Lua, mas o seu ambiente natural são as férias. Mesmo quanto a malevolente realidade os obriga a trabalhar, eles fazem-no em plenas férias. Não vou daqui retirar qualquer justificação para a baixa produtividade nacional, nem fazer considerações da resistência lusitana à ideologia do capitalismo e ao seu acordo tácito com Paul Lafargue, esse genro suicida de Karl Marx, que ficou para a história com a obra imortal, não poupemos nos adjectivos, O Direito à Preguiça. Um escrito pouco alinhado com o sogro. Sublinho apenas que as línguas reflectem, de forma secreta, o inconsciente colectivo dos povos, dizem, com as suas palavras, aquilo que lhes vai na profundeza das almas. Uns sonham com a Lua outros com umas férias eternas apenas interrompidas pelo descanso de sábado e pelas festas dominicais. Eu, esclareça-se, não sou de andar na Lua. Sou português e isso explica tudo.
domingo, 27 de março de 2022
Deixem as horas em paz
Chegámos ao último domingo de Março. O mês galopou pela planície do ano e prepara-se para acabar. A vida dos homens é assim, um galope desenfreado entre dois abismos. Como todos os abismos, estes são secretos e nunca se sabe o que está neles. De um sai-se puro, inocente e ingénuo. No outro cai-se, embora as virtudes com que se tinha nascido tenham sido exauridas no trajecto, e vai-se para o abismo final com pouca pureza, inocência e ingenuidade. As mudanças horárias perturbam-me sempre. Já era tempo de acabarem com esta arbitrariedade, com este tira hora, põe hora. Se eu fosse dado à iniciativa, um empreendedor, na linguagem de hoje, haveria de criar um movimento, talvez uma organização não governamental, para exigir que deixem as horas em paz. O que me vale é que não sou dado a iniciativas e, apesar de resmungar com a desfaçatez da gestão política das horas, acomodo-me, resigno-me a este domingo triste e de hora roubada. O dia está macambúzio. Eis uma palavra que não tenho o hábito de usar. Poderia ter escrito soturno, triste, taciturno. Poderia mesmo escrever que o dia está sorumbático, mas não. Escrevi macambúzio. Não faço ideia a onde se terá ido buscar tal palavra. Seja como for, é assim que o dia está. E eu, se não me acautelo, fico como ele. Tudo isto porque me roubaram uma hora ao domingo, que eventualmente será devolvida lá mais para a frente, mas ninguém paga juros de mora. A Quaresma avança e, não tarda, chega ao porto sereno da Páscoa.
sábado, 26 de março de 2022
Sombras
Perante a desmedida fúria de Ajax, enraivecido pela facto de os chefes aqueus terem dado a Ulisses a armadura e as armas de Aquiles, tenta matar os comandantes do exército grego e torturar Ulisses. Intervém, porém, a sábia deusa Palas Atena, criando no agastado herói uma ilusão que o leva a confundir um rebanho de ovelhas com seres humanos. Ajax entrega-se a uma carnificina inominável. Pensa ter assassinado Agamémnon e Menelau e ter em seu poder o astuto Ulisses. Este, perante o espectáculo da fúria fantasiosa do seu rival, diz, não sem piedade: vejo que, nesta vida, não passamos de fantasmas ou de sombras vãs. Certamente, a intelectualidade grega daqueles tempos estaria muito perturbada com o nosso estatuto, com a terrível pergunta: quem somos nós? Platão, tempos depois, conta-nos uma história que a posteridade conhece com a Alegoria da Caverna, na qual os homens não passam de prisioneiros que apenas vêem sombras. Talvez esta preocupação com as sombras derive toda ela de um verso de Píndaro de uma Ode Pítica: O homem é o sonho de uma sombra. Nesta viagem pelo mundo das sombras, há um lento deslizar para a carnalidade. Em Píndaro o homem é apenas o sonho de uma sombra. Nem sombra chega a ser. Em Sófocles, no julgamento piedoso de Ulisses, o homem é já uma sombra, embora vã. Em Platão, o homem não é filho de sombra, nem sombra, é um ser de carne que vê sombras e para o qual há a esperança de, caso se decida a isso, de ver a luz e a própria realidade. Quase que podemos dizer que a fúria de Ajax foi o caminho que conduziu o homem de filho onírico das sombras ao ser que pode ver a luz. Não sei, se estes pensamentos que me ocorreram nesta manhã de sábado se adequam à natureza deste dia de descanso e ócio. Os antigos gregos, porém, acreditavam que o amor à sabedoria nasce precisamente do ócio. Estou com saudades de ver o mar. Não há ócio melhor do que escutar a voz rumorosa do oceano.
sexta-feira, 25 de março de 2022
Poeiras agarenas
As poeiras do deserto tornaram a visitar-nos. Ontem tinha o carro tão lavado, graças à chuva dos últimos dias, e hoje, quando cheguei perto dele, constatei estar literalmente empoeirado. Parece que agora entre a península e o deserto se estabeleceu um protocolo de intercâmbio. O deserto envia as poeiras em excesso e a península há-de enviar-lhe qualquer coisa de que não precise, embora eu não saiba bem o quê. Para além da vexata quaestio das poeiras, há outro problema que me atormenta, o do nome do deserto. Não sei bem porquê, habituei-me a grafá-lo com um h entre dois aa, Sahara. O dicionário que uso economiza um pouco e elimina o h, talvez por ser cronicamente mudo. Por outro lado, o jornal de que sou assinante, no seu livro de estilo, optou ainda por uma ainda maior economia e escreve o deserto do Sara. Ora, isto parece-me uma incongruência. Aliás, uma dupla incongruência. A primeira incongruência tem a ver com Sara. Ora deveríamos dizer que as poeiras vieram do deserta da Sara. É sempre possível imaginar que uma antiga e muito poderosa matriarca fosse a proprietária de tal deserto. A segunda incongruência é que a mulher que foi para o deserto não foi Sara, mas Agar. Como todos sabemos, Sara era estéril e Abraão teve de recorrer aos serviços de uma escrava egípcia, uma barriga de aluguer na época, Agar, para se tornar pai. A coisa correu bem, nasceu Ismael, mas depois as sortes mudaram. Não vou aqui contar a história, que não é particularmente edificante. O que quero afirmar é que se era para dar um nome de mulher a um deserto, deveria ter sido o de Agar. Se fosse esse o caso, hoje estaríamos a receber poeiras agarenas na Península e a protestar contra a mãe da moirama, dos agarenos ou ismaelitas. Isto lembrou-me um exercício com que me entretinha nos finais da escola primária. Contar as designações dadas, nos manuais adoptados, aos povos do Islão. Mouros, árabes, infiéis, muçulmanos, maometanos e sarracenos. Claro que poderia ter acrescentado, sem grave prejuízo, as designações de agarenos e ismaelitas. Um pouco mais tarde entretive-me a contabilizar as designações dos que nascem em Lisboa. Para além de alfacinhas, eles são lisboetas, lisboeses, lisboninos, lisbonenses, lisboenses, lisboanos. Isto tudo, para além de olisiponenses, lisboetas com inclinação para os estudos clássicos. Foi a partir da multiplicidade das designações possíveis dos naturais de Lisboa que eu compreendi por que razão aquela cidade é a capital de Portugal. Hoje é sexta-feira, como se nota pelo escrito. Agora, vou fazer umas compras para o jantar, segundo fui informado. Ao menos podia chover para me lavar o carro das poeiras agarenas.
quinta-feira, 24 de março de 2022
Ninguém
As coisas conspiram para me levarem a falar do tempo. A barra de ferramentas do Windows mostra-me um guarda-chuva azul aberto. Segue-se-lhe a seguinte informação: Chuva em breve. Por mais que eu a queira evitar, a questão persegue-me. No entanto, eu não sei se a informação é uma descrição de um estado real do mundo, embora futuro, ou apenas a manifestação de um desejo por parte do software que gere estas coisas. Se for uma descrição do estado do mundo, preocupa-me a imprecisão do ‘em breve’. Quantos minutos ou horas representará? Mudando de assunto. Tenho aberto à minha frente um livro de Herberto Helder. O poema começa assim: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Ao ler isto, estremeci. Descobri que chego a esquecer-me do que vou dizer quando falo com alguém. Uma frase que deveria ser dita daí a uns segundos – em breve – desaparece-me da mente. Talvez eu não devesse dizer mente, mas consciência. Mente tem uma tonalidade anglo-saxónica. Por lá, eles têm mentes. Na Europa continental, temos consciência. Portanto, as frases que se me varrem, varrem-se-me da consciência e não da mente. Isto significa que estou com contínua propensão para a perda de consciência. O poema de que falei, depois de se expandir, como um exército invasor, por quatro páginas e meia acaba com o seguinte verso: A sonhar. Ocorreu-me que poderíamos elidir todos os outros versos e ficar apenas com o primeiro e o último: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. / A sonhar. Esta nova composição dá-me outra perspectiva do meu estado. É a sonhar que a minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Talvez tudo isto não passe um devaneio onírico, ou talvez esteja a falar de esquecimento porque hoje fui visitar alguém que se esqueceu de que sou o seu próprio filho e me perguntou várias quem sou. Suspeito que estou já reduzido à condição do Romeiro, do Frei Luís de Sousa. Sou ninguém, embora isso não seja compatível com o ensinamento cartesiano de que sou uma coisa pensante, uma alma. Talvez uma coisa pensante seja um ninguém, um sujeito despido de biografia. Um ser de papel. Agora vou videoconferenciar.
quarta-feira, 23 de março de 2022
Falar do tempo
Muitos destes escritos contêm anotações meteorológicas, como se eu fora um velho agricultor preocupado com o destino das sementeiras, das searas, das colheitas. Não sou, mas é possível que todos tenhamos não uma alma agrícola, mas algum gene que, vindo do passado, se manifeste nesta preocupação com o estado do tempo. Uma outra teoria também é plausível. Quando as pessoas se encontravam e nada tinham em comum, nada tinham para dizer umas às outras, o estado do tempo era salvífico. É isso que pode acontecer comigo. A falta de assunto. Podia discorrer sobre a justiça no mundo. Não faltariam casos exemplares para mostrar que ser injusto tem bom rendimento e, por isso, os que o podem ser não hesitam em espalhar o sentimento de injustiça entre as suas vítimas. Têm sempre a esperança de que a força os livrará de algum percalço. Esta esperança, contudo, assenta numa aposta. Se se olhar para a história dos homens, não faltam casos de gente militantemente malévola que morreu sem que sobre ela o destino fizesse cair mão pesada. No entanto, não são poucos os casos que exemplificam o contrário e que corroboram o ditado popular cá se fazem, cá se pagam. Tudo isto daria lugar a interessantes discussões sobre o mal no mundo e o papel da Providência divina na atribulada história dos homens, a qual nunca se cansa de sangue. Um dos argumentos mais poderosos contra a existência de Deus prende-se com isto mesmo. Se Deus é sumamente bom, misericordioso, omnisciente e omnipotente, então o mal não poderia existir. Porquê? Porque Deus saberia da sua existência, devido à omnisciência, e, porque é sumamente bondoso e misericordioso, não o permitiria, pois, sendo omnipotente, teria poder para tal. Como o mal existe no mundo, como se vê a cada momento, Deus não poderia ter pelo menos uma daquelas características. Não seria bondoso e misericordioso, caso fosse omnisciente e omnipotente. Ou, então, se fosse omnisciente, bondoso e misericordioso, não seria omnipotente. Há várias tentativas de responder a este argumento, mas a mais interessante é a dos teístas cépticos. Confessam a sua crença em Deus, mas reconhecem-se impotentes para compreender as suas razões e porque permite o mal no mundo. Talvez seja esta incompreensão das razões divinas que permite que refinados filhos da mãe sejam ao mesmo tempo crentes e completamente malévolos, apostando em espalhar a crença à força do sangue dos outros. Têm esperança – ou apostam – que o mal que fazem se encontre justificado por alguma razão divina que desconhecemos. São também cobardes. Ao menos Maquiavel foi claro. Quem quiser exercer e segurar o poder não pode aspirar a outra coisa senão ao inferno. Ora, esta gente quer tudo. Quer criar um inferno para os outros e reservar um lugarzinho catita no céu para eles. Talvez seja melhor falar no tempo.
terça-feira, 22 de março de 2022
Metáforas dispensáveis
Está um início de Primavera incerto. S. Pedro, depois de muito instado, lá se comoveu um pouco e começou a deixar cair alguma chuva, mas longe da exuberância que a secura vivida até agora exige. Talvez o santo esteja surdo e não oiça as preces. Talvez as orações saiam de vozes impotentes para se fazerem ouvir. Num caso como este, seria aconselhável usar vozes de soprano e deixar os barítonos e os baixos de folga. Depois de almoço, dei uma vista de olhos pela imprensa. A realidade continua a cheirar mal, e isto é um eufemismo. Nada que incomode, todavia, o bando de adolescentes que espera a hora de entrada no centro de línguas aqui ao lado. Protegem-se da chuva debaixo de uma varanda e para eles não há realidade, nem dor, nem ideias loucas, nem sequer tempo. Vivem na eternidade, na deflagração hormonal, no vozear dos sentimentos que os atravessam. Quando o sol encontra uma camada mais fina de nuvens, deixa cair sobre a cidade uma luz irreal. Na avenida, passam pessoas com chapéus de chuva na mão. Imagino-os a rodar a grande velocidade, como se fossem hélices, erguendo os donos aos céus. O pior, porém, é a gravidade que insiste em não suspender a sua lei de ferro, condenando aqueles pobres transeuntes a deslocarem-se a pé, roubando-lhes a oportunidade de ver o seu mundo um pouco mais de cima. Fui consultar a minha aplicação meteorológica para nela ler a vontade de S. Pedro. Parece que vai haver chuva nos próximos tempos. Terá ouvido as preces. Imagino que lhe tenham oferecido um aparelho auditivo. Só uma última recomendação ao santo padroeiro da meteorologia. Quando nós, pobres mortais, pedimos chuva, a expressão é para se ser entendida de forma literal. Chuva mesmo, água a cair dos céus. Não estamos a pedir chuva em sentido figurado, bombas a cair do empíreo. Neste caso, as metáforas são dispensáveis.
segunda-feira, 21 de março de 2022
Perplexidade
Só hoje dei conta da morte, no passado domingo, de Gastão Cruz, um dos poetas portugueses mais significativos da segunda metade do século XX. Um breve poema de Escarpas (2010): Como é possível que o silêncio pare / e o som não regresse? É o segundo oxímoro para uma ausência. Muitas vezes, a poesia é um campo de batalha onde se defrontam os que defendem ser ela puro ritmo, quase música, e os que vincam o sentido que emerge da versificação. Entre os dois bandos existem outros intermédios. Não vou tomar partido na querela, mas sublinhar uma outra coisa que o dístico de Gastão Cruz revela, e que não é ritmo nem sentido, mas a ausência, essa coisa que o poema descobre entre som e silêncio. Essa coisa inominável confronta-nos, presos que estamos aos pares de opostos e às gradações entre os dois pólos, algo já presente no pitagorismo, com um mundo que não se adequa à nossa capacidade de descrição. O sublinhar dessa ausência é um modo de confrontar os limites do entendimento e manifestar que há mais coisas do que aquelas que pensamos existirem ou que haverá outros limites que nãos os da experiência possível. A ausência é a manifestação de uma presença, da presença daquilo que não conseguimos nomear, que não é som, nem silêncio, e que se manifesta na perplexidade poética sublinhada pela interrogativa. Esta perplexidade não é outra senão aquela que emerge perante uma hierofania. Penso que o almoço não me terá feito bem. Não devia escrever coisas como as que acabo de escrever. A consciência, porém, gritou-me que se o fiz, foi porque não tinha outro assunto. Talvez ela tenha razão, mas a crermos na lição do dr. Freud, todas as razões conscientes não passam de distorções de motivações inconsciente e, porventura, inconfessáveis. Não é que este narrador creia na narrativa do velho Sigmund, mas o mais sensato é não descartar nenhuma hipótese. Vou espreitar o friso das orquídeas.
domingo, 20 de março de 2022
Tempo de Papagenos
Começou maldisposta a Primavera. Há pouco fui a uma aldeia aqui perto comprar laranjas. Por vezes, tenho umas quedas no bucolismo e imagino que, consumindo produtos da zona, estarei a animar a economia local. Pura fantasia. Comentei que o céu estava muito escuro e recebi como resposta da vendedora de que iria chover lá para as cinco horas. É o que dizem, acrescentou, não fosse eu pensar que ela era uma profetiza de outros tempos. Profetiza ou não, a realidade é que chove e estamos em cima das cinco da tarde. A indisposição da Primavera, tema inicial do escrito, talvez se deva a ela rejeitar a realidade de já ter nascido, de estar numa atitude de negação. Imagino que preferisse ficar onde estava por mais uns dias, até para ver como param as modas por estes lugares. O pior foi o Inverno ter-se recusado a continuar em funções e, para não haver um vácuo estacional, a Primavera lá chegou, mas tristonha, zangada, sem aquela exuberância que toca nos corações para os incendiar, para que os Papagenos deste mundo encontrem as suas Papagenas e, sobre a Terra, existam muitos Papageninhos e Papageninhas, uma grande família de passarinheiros que trabalhem nas florestas da Rainha da Noite, essa malvada. Escuto um Stabat Mater Dolorosa, de Orlando de Lassus, interpretado pelo The Hilliard Ensemble. Acho estas peças da Renascença mais adequadas ao dia de hoje do que a maçónica Flauta Mágica, de Mozart, de onde veio a família dos Papagenos. O domingo entardece. Quando dei a volta pela cidade, quase não se via ninguém, tudo recolhido ou, o mais certo, eu vivo numa cidade fantasma, de onde os habitantes foram evacuados, mesmo sem qualquer ameaça de guerra. Talvez por precaução, pois nunca se sabe do que é capaz a Rainha da Noite.
sábado, 19 de março de 2022
Carbonária da língua
Descobri há dias onde, no Word, se selecciona a forma como a correcção ortográfica pode ser verificada. Como vivemos numa sociedade marcada pela liberdade de escolha, são oferecidas três possibilidades de correcção – em honra de Milton Friedman, imagino eu – para o cliente português escolher como quer ver corrigida a sua ortografia. Temos uma versão pré-acordo, uma versão pós-acordo e, para os indecisos, uma versão que é, ao mesmo tempo, pré e pós. Em tudo o que é sério ou que me dá algum prazer, uso a versão pré-acordo. Nos usos triviais marcados pela necessidade, uso o pós-acordo, adoptado por quem ordena as coisas que não devia ordenar. A partir dessa descoberta, não há dia em que não saltite entre pré e pós. Não uso a possibilidade dupla, porque se deve evitar a promiscuidade. Esta não é apenas responsável pelo alastrar de doenças sexualmente transmissíveis, mas também de formas ortográficas hilariantes, em que o pobre escrevedor tanto escreve concepção como conceção, numa algaraviada destituída de sentido. Neste momento, como estou a usar a versão pré, o Word assinala, e muito bem, conceção como erro. Caso mude para a versão pós, a língua também muda. Passa a ser erro concepção. Em tempos desenvolvi uma teoria extraordinária contra o acordo ortográfico. Embora ninguém a tivesse levado em consideração, penso que fornece, através de um poderoso argumento por analogia, razões suficientes para pôr fim ao desvario do pós-acordo. Explicava eu que, por exemplo, as consoantes mudas são os vestígios do passado da nossa língua. Ora, também os castelos, as ruínas romanas, os mosteiros onde não há monges, etc. são vestígios da nossa história. Apagar as consoantes mudas é tão criminoso, como destruir o castelo de Guimarães ou de S. Jorge, Conímbriga ou o mosteiro da Batalha. Ninguém me deu ouvidos e agora anda por aí um linguajar que perdeu o vínculo à história da nossa língua. A culpa de tudo isto começou há muito, quando, no furor da República, uns carbonários da língua decidiram bombardear a presença grega na ortografia portuguesa. Aviso aos mais novos: os carbonários portugueses, incluindo os da língua, não o eram porque gostassem particularmente de esparguete à carbonara, embora as duas palavras, nascidas em Itália, tenham a mesma origem, o carvão.
sexta-feira, 18 de março de 2022
Ginástica
Olho pela janela do escritório. Está uma tarde luminosa. O céu tem estado de um azul puríssimo. Nos campos de jogos da escola aqui ao lado, bandos de adolescentes, enfileirados, correm batendo bolas de basquetebol, é o que me parece. Sempre são uns duzentos ou trezentos metros de distância. Imagino que estarão numa aula de Educação Física. Eu sou do tempo em que não havia Educação Física. O que tínhamos era Ginástica, um eufemismo para uma coisa em que se era posto a correr à volta de um campo ou a fazer corta-mato, enquanto o professor lia o jornal ou punha a vida em ordem. Desconfio, embora sem qualquer prova, que havia, por esses tempos, um programa por cumprir, mas os professores – se o eram, pois devido à escassez eram recrutados uns curiosos que tinham sido militares ou praticado algum desporto – tinham uma grande liberdade curricular. Hoje em dia já não será assim, mas isto é apenas uma suposição. Refiro-me à província. Em Lisboa ou no Porto, nos liceus as coisas seriam diferentes. Os senhores doutores que ensinavam por lá seriam mesmo licenciados. Por aqui, muitos senhores doutores, gente com real destaque na vila provinciana e pacata, era gente com cursos por completar há muito, que tratava da vida dando umas aulas. Havia-os bastante talentosos. Tive um, um autêntico cavalheiro, que me ensinou Francês. Mais tarde descobri que era senhor doutor por ter passado por Coimbra, onde se dedicou a fazer umas gincanas e outras actividades extracurriculares, embora se tenha esquecido de estudar. Coisa que acontecia a muito boa gente. Seja como for, foi um dos melhores professores que tive. Nas aulas, fumava desalmadamente cigarros Monserrate. Era um tempo heróico. De tal maneira, que o primeiro cigarro que fumei foi na casa do director do colégio que frequentava. Era amigo de um dos filhos. Esse director, um senhor doutor a sério, era das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje, e, apesar de nunca ter sido seu aluno, foi outro dos professores que me marcou. E não por causa do tabaco, apesar de ele ser um fumador inveterado. Do que me fui lembrar.
quinta-feira, 17 de março de 2022
A rameira da realidade
O céu mudou de cor, abandonou o agoirento laranja e abraçou a cor cinza, tudo numa ordem irrepreensível. Se ontem o céu parecia em fogo, faz sentido que hoje aparente ser cinza. O que terá ardido é um mistério sem solução. A nossa espécie, por vezes, entrega-se a grandes quimeras. Crer que tudo poderá explicar recorrendo ao cérebro com que foi dotada. Ora, por mais actualizações que o software que o gere sofra, ele, esse hardware neuronal, tem limitações, as quais são inultrapassáveis, a não ser que se mude também o hardware, mas nesse momento já não seremos seres humanos, mas outra coisa qualquer. Talvez fosse nisso que estava a pensar Nietzsche quando anunciou o advento do super-homem. Com outro hardware esse ser pós-humano haveria de produzir outro tipo de software e, por isso, de valores. O século XIX foi um tempo muito propício a este tipo de ficções. Um outro autor desse século profetizou o advento, eliminada a propriedade privada, do paraíso na terra. Aquilo deveriam ser tempos terríveis, pois não havia quem não quisesse pôr-se a milhas da realidade em que vivia. Uns fugiam de si, outros da sociedade, mas acabaram todos por morrer prosaicamente no corpo que eram e no lugar em que viviam. A realidade é uma rameira com grande experiência e nunca deixa de levar a sua avante.
quarta-feira, 16 de março de 2022
Invasões
Esta luz alaranjada que escorre do céu enlouquece-me. Talvez esta afirmação seja falsa. Verdadeira poderá ser outra. Vejo uma luz alaranjada a escorrer do céu porque estou louco. Também pode acontecer que eu apenas esteja numa deriva narcísica e que a cor da luminosidade nada tenha a ver comigo, mas com os próprios céus que enlouqueceram. Se assim for, adiro ao temor dos gauleses e olho constantemente para cima para me proteger caso os céus comecem a cair. Há ainda outras possibilidades. A coloração celestial ser um presságio nefasto, mas não é isso que escuto no vozear dos adolescentes que jogam à bola na praceta. Não lhes toca onda ruim de qualquer mau prenúncio, logo não se trata agoiro negativo. As forças do mal têm andado demasiado activas nestes últimos tempos para terem energia para lançar novo ataque. Pode também acontecer que alguns anjos se tenham entregado a tortuosas experiências estéticas e tenham dito: vamos lá pintar o céu de amarelo para ver o que acontece. Dito e feito, pintaram o céu de amarelo. Esta é uma boa explicação, porventura a melhor. A que me parece menos verosímil é a da história das areias do Sahara terem decidido invadir a Península Ibérica. Quem acredita em invasões?
terça-feira, 15 de março de 2022
Exaltação e exaltados
Estes são dias de exaltação. Anda tudo um bocado exaltado, até eu que já não tenho idade para isso, desabafou comigo, a meio da manhã, o padre Lodo. Respondi-lhe que sempre imaginei os Settembrini como cultores de uma exaltação de fundo disfarçada pela pose serena de quem contempla o mundo com ironia. Ele riu-se, depois lamentou os seus amigos ucranianos. Conheci vários, continuou, quando participava em reuniões ecuménicas por essa Europa fora. Não apenas sacerdotes, mas também leigos. Os religiosos de leste são diferentes dos latinos, possuem um vínculo mais sério com aquilo que a religião tem de exigente e sacrificial, enquanto os de cá parecem mais comprometidos com a vida confortável, como se fossem guiados por um ideal burguês. Eu mantive-me em silêncio, enquanto ele continuava a sua comparação. Ao perceber que eu não intervinha, disse-me: já sei o que está a pensar, que eu sou esse protótipo de sacerdote burguês. Não digo que não, mas o que hei-de fazer, um pouco de boa vida ajuda muito a uma vida boa. Quase que estive para lhe perguntar se não tinha pena de não ter filhos e netos, mas calei-me. Depois, despediu-se, informando que tinha entre mãos a correspondência, outrora secreta, entre o seu avô e o incorrigível Leo Naphta. Nem tudo o que corre por aí corresponde à verdade, mas isso passa-se com tudo, concluiu.
segunda-feira, 14 de março de 2022
Múmias
Sou informado de que há oito mil anos já havia múmias no vale do Sado. Talvez, imagino, o território português seja o lugar de origem da mumificação. Esta conclusão não a retiro da notícia, mas de ver por aí tanta múmia viva. A mumificação geral da nossa sociedade alguma causa haverá de ter. Esta – a de ser uma antiquíssima tradição – parece-me a melhor explicação disponível. Antes de sermos mumificados, já somos autênticas múmias. Eu sei que há por aí muita gente que se acha o contrário de múmia, pessoas sempre em movimento, sempre com o cérebro a fervilhar de ideias, sempre prontas para lançar o caos. O lamentável é que na essência são autênticas múmias, e o que conta não é a aparência, mas a essência. Há múmias paralíticas – para citar uma séria humorística brasileira cujo nome não se mumificou na memória – e há múmias andantes, múmias de triste figura, talvez parentes, por linhagem colateral, daquele cavaleiro manchego que confundia moinhos com gigantes. As segundas-feiras não deveriam ser propícias para a exibição dos meus dotes de sociólogo, mas, à falta de assunto, não consegui evitar. Pior, seria ter dotes de economista. Punha-me aqui a fazer previsões e, como qualquer economista que se preza, não as conseguiria acertar, mesmo depois dos factos ocorridos. Em economia nem depois dos jogos é seguro fazer previsões. Amanhã, pelas doze horas, Março atingirá o meio do caminho. O tempo voa, embora não se lhe conheçam asas, nem hélices.
domingo, 13 de março de 2022
Conspiração contra o domingo
Contrariamente ao hábito, o almoço de domingo foi cedo. Talvez por isso sinta um leve desconforto. Os hábitos – os velhos hábitos – devem ser conservados e apenas, em última instância, se deve admitir uma alteração, o que não foi o caso. O problema reside no aspecto que logo o domingo toma. Comporta-se como um dia útil, o que é uma maldade para a qual não há nome. Os domingos devem ser dias inúteis. Aliás, qualquer dia que se presasse deveria ser inútil. Eu sei que não somos seres destituídos de corpo e que este nunca se cansa de nos lembrar que a carne é fraca e está submetida à tirania da estrita necessidade. Há na nossa natureza de homo sapiens sapiens, isto é, de homens que sabem que sabem, uma armadilha, a mais cruel e desassisada das armadilhas. Foi-nos dado o poder de pensar e a faculdade de imaginar, mas ao mesmo tempo, como meros animais, estamos submetidos a ter de fazer pela vida. Fôssemos saguins ou marmotas e não haveria lugar para este sentimento de desadequação entre a realidade e o que podemos pensar e imaginar. Como já aqui escrevi – e será um leitmotiv destes textos – a realidade sofre de uma deficiência ontológica estrutural. Nunca é como deveria ser. Pelo contrário, há nela um princípio conspiratório que se compraz em desdizer não só os nossos mais legítimos desejos, como desmente constantemente aquilo que pensamos. Hoje é um domingo com aspecto de dia útil, nem sequer vou ter a melancolia do domingo à tarde. O mundo já não é como era.
sábado, 12 de março de 2022
Em tom de elegia
Nem sei bem a razão, mas há pouco tomei consciência de que no ano passado morreram dois poetas importantes. Primeiro, Pedro Tamen, estava Julho a preparar-se para ceder o lugar a Agosto. Depois, Fernando Echevarría, mesmo no dia anterior à comemoração da República. É possível que tenham morrido outros poetas durante esse malfadado ano, mas disso não tenho consciência. Lembro-me bem de um ano em que a morte também decidiu, naquele arbítrio que lhe rege as escolhas, levar dois outros poetas importantes. Foi o de 1978. Quase eu não tinha idade, embora tivesse ocupado largos meses desse ano com o cumprimento dos meus deveres militares. Nesse longínquo ano, a incansável ceifeira levou Jorge de Sena e Ruy Belo. Este tinha quarenta e cinco anos e Sena ainda não chegara aos sessenta. Nesse ano, também morreu Jacques Brel. Nunca esqueci, pois faziam parte do meu mundo, isto é, do conjunto de referências que começara a construir no início da juventude, seja lá isso o que for. Não vale a pena perguntar-me a razão porque enveredei por este escrito fúnebre. Talvez porque o dia tenha estado triste, talvez porque o Andante tranquilo do primeiro Quarteto de cordas de Joly Braga Santos me tenha disposto para a elegia, talvez porque não tenha mais nada para dizer. Um anjo agastado que habita no meu escritório, não se esqueceu, agora mesmo, de me admoestar. Quem não tem nada para dizer, o melhor é calar-se. Obedeço.
sexta-feira, 11 de março de 2022
Viagens musicais
Estou a ouvir a quarta sinfonia de Joly Braga Santos, dirigida pelo maestro Álvaro Cassuto. O que me terá dado para estar, numa tarde de sexta-feira, a escutar esta música? Apesar de haver muitos, há menos mistérios no mundo do que se pensa. Vinha para casa almoçar e na Antena 2 passava uma entrevista com Álvaro Cassuto, na qual ele falava das suas gravações, tendo o entrevistador salientado a excelente recepção feita pela Gramophone, uma revista especializada e muito cotada no mundo da música. Eis a razão. O maestro explicou por que motivo o alemão Klaus Heymann – o fundador da etiqueta Naxos e também da Marco Polo – apostava em música erudita pouco conhecida, como a portuguesa. A tese de Heymann mostra que ele é um verdadeiro homem de negócios. Os consumidores de música erudita não estão interessados em mais uma sinfonia de Beethoven ou numa peça de Mozart. Terão pelo menos umas cinco gravações de grande qualidade. No entanto, há no mundo um milhão de coleccionadores de música erudita que se interessam por aquela música quase desconhecida ou, então, que foi esquecida. Além de consumirem, coleccionam. Um mercado com um milhão de potenciais consumidores não é mau. Esta é a vantagem da música relativamente à literatura. As fronteiras das linguagens musicais são muito mais dúcteis do que a das línguas nacionais. Na música não há tradução e com mais facilidade se penetra em universos musicais que nos são estranhos. Por vezes, sou acometido por uma necessidade de fazer viagens musicais. A música do Japão, da Pérsia, do mundo árabe ou o canto bizantino são lugares que gosto de visitar. Não é preciso passaporte nem saber a língua. Basta deixar-se invadir por essas sonoridades estranhas. Acho que vou passar uns dias a ouvir a música de Joly Braga Santos.
quinta-feira, 10 de março de 2022
No manicómio
A certa altura, no romance Solaris, Stanislaw Lem escreve: Naturalmente, podemos sempre fugir, nem que seja para o Satelóide, e daí enviar um SOS. Mas vão-nos tratar, obviamente, como loucos. Fecham-nos num hospício na Terra até ao dia em que retirarmos tudo o que dissemos. Excertos como este ajudam-nos a compreender a situação em que estamos. Teremos perdido a memória, mas parece óbvio que já devemos ter vivido noutro lugar e, na altura, não soubemos manter a boca fechada. Dissemos o que não devíamos ou o que alguém não queria ouvir, o que, na prática, é a mesma coisa. Resultado, fomos encerrados na Terra, a qual, como facilmente se pode comprovar, não passa de um manicómio. Mesmo que fôssemos sãos de espírito, o facto de aqui estarmos e disto ser um manicómio tem um efeito na sanidade mental da espécie. Em Roma, somos sempre romanos. Logo, num manicómio só nos resta ser loucos. Ora, há certos movimentos que andam à procura da palavra perdida, para nos podermos retractar. Que palavra será essa? Ninguém sabe. Este texto, por exemplo, é uma evidência do estado de insanidade mental da espécie humana. A princípio atribuí-o a ter estado todo o dia a trabalhar num documento cuja utilidade é nula, embora seja fundamental. Na Terra em geral e nesta em particular, só o inútil é fundamental. Agora que citei o Lem, tomei consciência de que a insanidade textual se deve à tal palavra que foi dita fora da Terra e que nos condenou a vir para aqui, pois, confidenciou-me quem sabe do assunto, o planeta Terra é um dos vários manicómios existentes na nossa galáxia, para onde são enviados aqueles que são tidos por loucos. Garantiram-me, também, que a regra diz que depois de curados da loucura, voltam para o lugar de onde foram exilados, mas não há memória de alguém que tenha sido dado por curado. Apanhei a realidade em flagrante delito, a mentir em acto. Enquanto a minha aplicação meteorológica me informa que não chove, nem há previsão para que isso aconteça hoje, os meus olhos vêem chuva a cair sobre ruas e prédios. A realidade é uma mentirosa ou, então, os meus olhos são enganadores.
quarta-feira, 9 de março de 2022
Apetites
Não tarda e estará cumprido o primeiro terço de Março. Nestes últimos dias, tem sido fiel à sua natureza de mês invernoso. Chuva, vento, algum frio, manhãs de Inverno, tardes de Verão. Depois de almoço, sentei-me em frente ao computador, deixando Março na rua, apostado em adiantar alguns assuntos que tenho entre mãos. O resultado não foi brilhante. Adormeci. Agora dói-me o pescoço. Fui acordado por uma chamada. Alguém precisava de uma informação e fez-me o favor de interromper o meu sono, acordando-me para a miserável realidade. Passei os olhos pela informação. O mundo continua a ser mundo, um sítio onde o deplorável acontece com demasiada facilidade. Leio que descobriram uma nova variante do vírus que nos preocupava antes da guerra ter renascido na Europa. Resulta do casamento das variantes Delta e Ómicron e foi baptizada como Deltacron. Esta é uma excelente ideia para dar nomes aos filhos. Imaginemos que um João casa com uma Maria. O filho seria Jomar. Caso fosse uma filha, Marjo seria o ideal. Isto enriqueceria a nossa onomástica e dispensava inclusive a criatividade dos nossos irmãos brasileiros. Agora, vou dedicar-me aos assuntos a que me deveria ter dedicado quando adormeci. O que me apetecia mesmo era ir dormir, mas há que dominar os nossos apetites.
terça-feira, 8 de março de 2022
Problemas de orgulho
Hoje o tempo conseguiu estar de acordo com a previsão meteorológica da aplicação que uso no telemóvel. Choveu, como tinha sido predito. Agora, porém, o céu está mesclado de azul e vários tons de cinzento. Não chove e um sol sem convicção derrama-se sobre as ruas da cidade. Na praceta aqui em baixo, um pai e um filho jogam à bola. O pai tenta industriar a criança nas artes do drible e do pontapé. Ela, embevecida perante o seu herói, imita o modelo. É assim que se produz a aprendizagem, por imitação de modelos, o que tem as suas vantagens, mas grandes desvantagens, caso os modelos sejam maus. E não faltam por aí maus modelos, como se pode verificar pelo estado em que se encontra o mundo. Por vezes, muito mais vezes do que seria admissível, entrego-me a ociosidades completamente dispensáveis. Por exemplo, à leitura de certos livros repletos de coisas que não sei classificar. Um deles explica-me que há proposições que não sendo verdadeiras também não são falsas. Nem todas as proposições não verdadeiras são falsas, enfatiza a prosa. Há umas que se limitam a ser não verdadeiras. Depois, adianta um exemplo: ‘O André é mais alto do que…’. Argui o autor que esta proposição não é verdadeira nem falsa, é apenas não verdadeira por ser incompleta. Ora, se é incompleta, não é sequer é uma proposição e logo a questão da verdade e da falsidade não se coloca. Como se pode ver, estou, mais uma vez, sem assunto. Isto é terrível, pois o mundo borbulha de assuntos. Por exemplo, leio que, segundo o Patriarca Ortodoxo da Rússia, Cirilo I, a culpa da guerra na Ucrânia é do orgulho gay. Até que enfim que encontro uma explicação plausível para o acontecimento. Como se pode perceber, isto tem implicações extraordinárias sobre aqueles que parece terem orgulho em invadir um país mais pequeno e menos armado, que sentem prazer em bater nos fracos. Gostava de saber o que anda esta gente a fumar lá para os lados de Moscovo. Ao menos podiam ler livros sobre proposições que não são verdadeiras nem falsas, isso não mata ninguém e, que eu saiba, não é razão de orgulho gay, o que poderia descansar o patriarca.
segunda-feira, 7 de março de 2022
Percussão
A manhã de trabalho em casa. Coisas urgentes entre mãos, necessidade de silêncio e concentração. O mundo, porém, insiste em mostrar o seu desconserto. Num dos apartamentos contíguos, alguém decidiu testar a capacidade de as paredes percutirem o som dos martelos. Entrega-se com denodo à tarefa. Por vezes, pára, parece faltar-lhe energia, mas logo recupera e continua a testar a capacidade percutora das paredes. Estas respondem com prontidão, o pior são os meus ouvidos. Também é verdade que poderiam ter melhor qualidade e, em casos como este, fazerem orelhas moucas. Isto lembrou-me o antigo adágio ao gosto popular, que por aqui corria: mulher séria tem orelhas moucas. Não é fácil ligar a seriedade à surdez, mas a sabedoria popular não seria propriamente igualitária e estaria longe de se preocupar em justificar aquilo que lhe ia no ânimo. A percussão continua, mas agora em harmonia com uns guinchos vindos da rua, onde um pequeno bando de adolescentes sofre o peso das hormonas, tudo acompanhado pelo ronronar irritante de um camião, cujo motorista se esqueceu de desligar o motor. A minha aplicação meteorológica informa-me que hoje há 94% de possibilidades de chover, embora de momento não exista precipitação. O vento sopra de sudoeste a 4 km/h. Não tem pressa de chegar, tal como o vizinho percutidor não tem pressa de acabar o concerto. Imagino que tenha vocação de baterista.
domingo, 6 de março de 2022
Endomingamento
Por aqui, as promessas de chuva dissolveram-se. Se nem São Pedro se mantém fiel à sua palavra, o que poderemos esperar dos outros homens que nem santos são? Está um domingo rumoroso de Primavera. Dei uma volta pela cidade, as pessoas dividiam-se entre as compras e o endomingamento, embora hoje se endomingue muito menos que outrora, ou, antes, se endomingue de forma diferente, descuidada. Neste tempo sem graça, toda a gente faz gala em vestir-se de forma leve, desportiva, casual (em inglês, claro), como se estivesse enfastiada do dress code que é obrigada durante a semana, embora a maior parte não esteja sujeito a qualquer código de vestuário. Ora, a questão é outra. No tempo em que o domingo era um dia de festa, uma festa solene, cujo centro era a missa, as pessoas vestiam-se de forma cerimoniosa, pois tinham de participar numa cerimónia. Agora, o domingo é apenas um dia de ócio, um retemperar forças para os dias de negócio. Creio que a dessacralização do domingo teve um enorme incremento com a possibilidade de a Eucaristia semanal ser ao sábado. Ofereceu-se uma alternativa, mas as pessoas e optaram pela terceira via. Nem sábado, nem domingo. Nunca. Estas últimas reflexões sobre a missa não me pertencem, mas ao padre Lodovico, que desabafou comigo, ainda há pouco, numa longa conversa telefónica. Veio dar-me a novidade de que esteve em casa retido devido ao vírus. O que vale, informou-me, é que não teve sintomas, a não ser um certo anasalamento da voz. Depois, entrou no assunto da Ucrânia, de como o coração se lhe partia, o medo pelos amigos que por lá tinha. Hoje, porém, evitou a escatologia e não referiu o Anticristo. A COVID retemperou-lhe a veia racionalista, marca essencial da família Settembrini, a que ele, apesar de jesuíta, não deixou de pertencer. A escatologia pertence mais à família dos Naphta, mas esse é outro assunto que não vem ao caso. Como é habitual, ao domingo almoço mais tarde. Enquanto escrevo, vou espreitando a rua e ouvindo um disco de Jazz com o título Copal, do Eurico Costa Trio. Uma descoberta recente e interessante. O pior é mesmo a falta de chuva.
sábado, 5 de março de 2022
Conspiração contra as famílias
Acabei de fazer uma ronda electrónica pelos covidados da família. O curioso é que a origem não é a mesma. Há três focos diferentes de contaminação. Isto faz suspeitar que os números de novas infecções que são adiantados nos últimos dias estão longe da realidade. Deve haver muita gente que não é detectada. Agora, oiço uma voz perguntar avó, posso fazer um intervalo? A vida é dura. As pobres pequenas vieram para cá quatro dias para trabalhar. Nem houve oportunidade para ir dar um passeio. Desde o tempo em que entrei na escola primária, e isso foi há muitas décadas, que acho que tudo isto não passa de uma conspiração contra a felicidade geral das famílias. Introduz uma angústia pior que a do guarda-redes no momento do penalty. Claro que não advogo a ignorância nem o analfabetismo, apenas quero salientar que a espécie poderia ter sido melhor fabricada. Deveria aprender Matemática, Física, Química, Gramática, História ou Filosofia do mesmo modo que aprende a andar ou a falar, mas não, alguém – por certo, um deus distraído – fez com que tudo tivesse de ser adquirido de modo penoso, com esforço, exigindo aquilo que os latinos designavam por conatus. Isso se exceptuarmos alguns felizardos que, não se sabe bem a razão, não foram apanhados pela distracção do deus e acham-se como peixe na águaa quando o assunto é aprender. Ainda não saí de casa, mas já percorri as varandas para observar o mundo. Aquilo que vi não é particularmente exaltante, mas o melhor de tudo é mesmo isso, não haver coisas exaltantes, pois estas, por norma, são acompanhadas de verdadeiras tragédias, como se está a ver. As acácias da praceta estão completamente despidas, os ramos nus fazem lembrar dedos apontados ao céu, numa acusação silenciosa. A minha aplicação meteorológica informa-me que há 79% de probabilidade de chover. Repare-se como estas coisas são feitas. Não se comprometem. Se não chover e forem postas perante o falhanço da previsão, argumentarão que havia 21% de probabilidade de não chover, o que significa que jamais falham uma previsão, a não ser que arrisquem os 100% ou o 0%. Os dias já estão muito maiores. Não tarda, chegará a hora de almoço. Depois, elas, as pobres pequenas, vão-se embora.