Imaginei que não tinha tempo para vir aqui escrever. Afinal, o tempo apareceu trazido pela chuva da tarde. Sem poder ir fazer a minha caminhada, retido em casa em vez de andar a deambular por aí ao deus-dará, sobrou-me tempo que não me apetece ocupar com alguma coisa mais momentosa. Ainda saí, fiz umas centenas de metros, mas logo um aguaceiro se anunciou nos pingos grossos que decidiram cair sobre mim. Vai para casa, diziam. Obediente, eu vim. A tarde tem estado tensa. As aplicações meteorológicas anunciavam trovoadas, mas não trovejou nem relampejou. O que ficou foi uma ameaça a pairar sobre os corpos, uma tensão que se abate sobre os ombros e desliza pelo peito, o esboço de uma angústia que se infiltra no coração. Será a angústia para o jantar? Será a angústia do guarda-redes antes do penalty? Lembrei-me de que ainda hoje não fiz as palavras cruzadas do jornal. Nunca tive o hábito de as fazer, mas há umas semanas que comecei a dedicar-me ao cruzadismo. Gosto particularmente dos prefixos que exprimem a ideia dista ou daquilo, das interjeições, dos elementos de formação de palavras e, acima de tudo, dos regionalismos. Também não acho desagradáveis os símbolos químicos. Símbolo químico do Érbio ou do Rubídio. Talvez as palavras cruzadas sejam um símbolo do mundo, no qual se cruzam múltiplos universos formando universos possíveis que logo se esgotam. Como é visível, ando falhado de motivos que alcem à glória escriturária. Sempre me podia ocorrer um assunto metafísico, mas não ocorre. Pena que não tenha podido ir caminhar.
quarta-feira, 14 de abril de 2021
terça-feira, 13 de abril de 2021
O galope do tempo
Nunca tinha passado por aquela rua. É espantosa a minha falta de curiosidade. A cidade é pequena e vivo nela há muitas décadas. Apesar disso ainda há rua antigas pelas quais nunca passei. Na caminhada de hoje, descobri uma. Pequena, pouco mais que uma travessa, com moradias baixas. Fez-me pensar nas aldeias de antigamente. Pequenos jardins, nespereiras e limoeiros, um ar de tranquilidade, de um lugar onde as pessoas levam uma vida sensata, em que o dia e a noite se distinguem com clareza. Agora oiço o Quator pour la fin du Temps, de Messiaen. A sua tonalidade apocalíptica choca com a rememoração tranquila do passeio dado. O compositor escreveu a obra quando estava preso na Alemanha pelos nazis. Não tinha à disposição ruas pequenas com casas orladas por árvores de fruto, nem um sentimento de sensatez. Ali, onde o reinaria a maior ausência de sentido, só o fim do tempo poderia dançar na imaginação com uma promessa de libertação. Anoitece, o tempo galopa, galopa, mas talvez não tenha um fim que o liberte da sua correria desenfreada.
segunda-feira, 12 de abril de 2021
Sonatas dos Mistérios
Olho para uma das estantes do escritório e vejo uma pilha de CD fora do lugar. A entropia é isto, pensei. A desordem vai crescendo dentro do sistema. Em vez de ir arrumar os discos, coloquei um na aparelhagem e deixo-me estar a ouvi-lo enquanto permaneço sentado. Se o crescimento da desordem for musical, talvez não seja uma situação entrópica. A música tem um poder de salvação tal que até da doença da entropia ela é capaz de salvar uma casa. Escuto as Sonatas dos Mistérios, de von Biber. No século XVII, havia uma bela imaginação para colocar nomes, mesmo num sítio tão hirsuto como a Boémia. Chamava-se ele Heinrich Ignaz Franz von Biber. Um nome barroco, tal como a música. Também o dia está barroco, cheio de rococós. Isto não é verdade. Está um dia pesado, quase lutuoso. Na avenida, as pessoas passam, algumas abrem o guarda-chuva, outras afivelam máscaras, mas também há quem se sente na esplanada do bar e, enquanto bebe uma cerveja, pede aos céus para se conterem e não derramarem águas que lhes estrague o interlúdio. Estas sonatas de Biber acompanham os mistérios do rosário. São as gozosas, as dolorosas e as gloriosas. Deste modo, o Príncipe Arcebispo de Salzburgo podia acompanhar a oração desse mesmo rosário, de que era um adepto fervoroso, pareço estar a falar de futebol, com a nobreza e a elevação que seria a de um príncipe e de um arcebispo, em vez de misturar a sua voz à do rebanho. Hoje, e não fosse o caso da pandemia, talvez ele fosse mesmo ao estádio apoiar a equipa da cidade. Consta que o próprio Papa não se coíbe de partilhar com o mundo o clube do coração. O mundo está cheio de coisas insensatas, mas essa será a sua natureza. Refiro-me ao mundo. Como o bom julgador a si se julga, está tudo dito.
sábado, 10 de abril de 2021
O mistério de tudo
Um terço de Abril está cumprido e não têm faltado as águas mil. Há pouco fui espreitar a Sá Carneiro. Só para ver o movimento. Não o havia ou quase não se dava por ele. No seu friso, as orquídeas estão, todas elas, esplendorosas. Contaram-me, então, uma história de alguém que também tem orquídeas em casa, mas que estas nunca florescem. Elas não gostam da proprietária, expliquei. Talvez seja eu que não goste dela, embora não tenha qualquer motivo para isso, mas nunca se sabe aquilo que move as nossas palavras. Especulo, porém, que o problema dessas orquídeas reside na má relação com quem se apropriou delas. O dia tem estado triste por aqui. Há pouco liguei para uma amiga. De um momento para o outro, caiu-lhe o céu em cima e ela não é gaulesa. Foi diagnosticada uma doença daquelas muito desagradáveis ao marido. Ela procura encontrar dentro de si forças e esperança perante a ameaça. Vivemos todos nós como se a vida fosse ora um Natal, ora um Carnaval. Nunca nos lembramos da Sexta-Feira de Paixão e do calvário, a não ser quando nos batem à porta. Nunca se está preparado para aquilo que desejamos que nunca aconteça. O dia corre, sob bátegas de água, para a caverna da noite. Da janela do escritório, avisto uma paisagem de cinza recortada pelo anúncio luminoso de uma cadeia de hambúrgueres. Mais ao longe, as paredes outrora brancas do hospital continuam a cobrir-se de fungos, enquanto oiço o Cântico ao Sol, da russa Sofia Gubaidolina. São misteriosas as almas russas, assim como as orquídeas, assim como a vida.
sexta-feira, 9 de abril de 2021
Sou um taxinomista
Sentei-me pela primeira vez numa esplanada. Um acontecimento. Na verdade, um acontecimento infeliz, pois estava um vento demasiado fresco e a chuva ameaçava a cada instante. Penso no interior vazio do café, e desconfio que nos metemos todos num grande sarilho e não fazemos a mínima ideia de como sair dele ou se ele tem saída. O país televisivo passou a tarde muito entretido e agora deve andar por aí a alardear opiniões inflamadas, embora as opiniões não passem de paixões da alma. Num artigo de um site há conselhos para pessoas indecisas. Podia propor ter três passos ou sete, talvez nove para acabar com a indecisão, mas não. Terão de ser cinco passos. Pensei de imediato que a precisão é a alma do negócio. Todavia, ao olhar para eles pensei que qualquer indeciso, perante para cada um daqueles milagrosos passos, ficaria indeciso se o devia dar ou não. Por isso é que é indeciso. Observo o que escrevi e dou com um erro. Nem digo qual para não ferir susceptibilidades, mas não era ortográfico. Perante os erros, vivo como como o guarda-redes antes do penalty. Com angústia pela possibilidade de deixar passar uma palavra mal escrita. Como dar erros é inevitável, substituo a angústia do erro pela sua classificação, tentando descobrir-lhe a origem. Tenho uma alma de taxinomista. A maioria dos erros são compreensíveis, bastando olhar para o teclado. Outros devem-se a certos cruzamentos das linhas cerebrais. Outros há, porém, que possuem motivação secreta. Que força estranha e inimiga me terá levado àquele erro, pergunto-me, mas não descubro. Esses são os piores. Falar sobre erros ao anoitecer de sexta-feira é tontice, mas a generalidade das coisas que me ocorrem são tontices, portanto nem estranho.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
O retorno das águas
Voltou a chuva. Talvez as potências que governam o clima tenham decidido que chegara a altura de cumprir o ditado Abril, águas mil. Os provérbios populares fizeram-se para que sejam tomados a sério. Neste momento, cai uma bátega enorme, a água desce furiosa de um céu de chumbo. Olho para o pequeno bosque da escola ao lado e parece que uma cortina se intromete, tornando os contornos das árvores incertos. Das esplanadas da avenida, os ocupantes tiveram de fugir e que passam ergue, como um estandarte, chapéus de chuva. Ouviram-se gritos de excitação, mas agora tudo está silencioso, para que eu possa escutar o ruído das águas ao despenharem-se sobre o alcatrão e as pedras do passeio. A caminhada que tinha pensado fazer foi adiada para um tempo em que o tempo tenha melhor cara. A chuva abrandou e os campos de jogos estão cobertos por um fino lençol líquido. Reverberam batidos pela ténue luz da tarde. Havia uma tensão no ar, sentia-a no corpo e na consciência, mas agora dissipou-se. Pára um carro, de dentro dele sai uma mulher sem idade, abre o guarda-chuva e dirige-se para a porta de um prédio. Na secretária repousam os mil afazeres e eu repouso com eles. Oiço uma porta ranger e passos pela casa. Na rua, voltaram as vozes. Trazem nelas o ferrete da adolescência. Desequilibradas, perdidas entre guinchos e grunhidos. É a isto que se chama vida. Podia ser pior.
P. S. Este blogue teve durante dezasseis meses um ritmo diário. A partir de agora terá uma actualização mais irregular. Mais do que de coisas certas, a existência é feita de irregularidades.
domingo, 4 de abril de 2021
Mãe e mãiiii
No parque infantil, as crianças continuam a correr e a gritar. Uma chama pela mãe, prolongando desmesuradamente um i final, como se uma mãe fosse, de facto, uma mãi e neste i estivesse contido todo o universo. Talvez seja assim. Para os filhos, as mães começam por ser o universo, todo o universo. Crescer significa fazer encolher a dimensão de universo que é uma mãe. Enquanto os filhos crescem, as mães diminuem. Passam a galáxia quando os filhos chegam à escola, depois a sistema solar, de seguida a planeta e, conforme os filhos envelhecem, as mães vão-se tornando mais reais, até atingirem a dimensão que é a delas, a de serem mães. Os pais são construções das mães e, para os filhos, são sempre mais reais, pois não foram nunca o universo, mas o símbolo da realidade. Temo que estas opiniões que me ocorreram agora possam ser mal interpretados e sobre elas seja lançado qualquer anátema. São apenas opiniões que me ocorreram. Foram estas, poderiam ter sido outras, mesmo contraditórias, mas a verdade é que eu ouvi um i longuíssimo preso à palavra mãe. Seja como for, a família recolheu-se, pois não tarda é hora de almoço, ainda por cima é domingo de Páscoa e as pessoas, mesmo que não saibam o que significa a Páscoa, gostam do almoço do domingo de Páscoa. Sobreveio um grande silêncio. Um sinal para me calar.
sábado, 3 de abril de 2021
Tempo de amêndoas
Das várias perspectivas sobre a arte, agrada-me aquelas que estabelecem analogia entre o mundo da arte e o universo. Estão ambos em expansão. Isto permite pensar que não existe uma definição de arte, uma definição onde se captaria a essência da arte, uma característica que estaria presente em todos os objectos artísticos e só neles. Não há, e isso deixa perceber que sob a ideia de arte se esconda um universo em expansão, a que se vão juntando novos e novos objectos. Isto há-de contrariar aqueles que pensam saber o que é a arte e estão sempre prontos a lançar anátemas sobre aquilo de que não gostam ou não compreendem. Seja como for, hoje é Sábado de Aleluia e talvez não seja o dia mais indicado para pensamentos destes. Segunda-feira, intuo-o, serão bem mais justificados. In illo tempore, quero dizer no tempo em que a existência de pandemias era uma coisa longínqua, um conhecimento abstracto e por ouvir dizer, a casa estaria cheia. Filhos e netos trariam uma luz suplementar a quem aqui vive. Este ano, mais uma vez, cada um estará no seu lugar, cumprindo instruções das autoridades e esperando que tudo isto se possa mandar para trás das costas. Enquanto o dia desce o declive em direcção ao oceano da noite, oiço a cantora de jazz Maria Viana, filha de um conhecido artista de revista – e pintor – José Viana. Nunca o vi actuar, pois a revista sempre me foi uma coisa estranha, mas nunca esqueci uma cantiga, Zé Cacilheiro, por ele cantada e que havia num LP lá por casa. Talvez a memória tivesse ficado presa aos versos E navegando / A idade foi chegando / O cabelo branqueando / Mas o Tejo é sempre novo. E uma súbita saudade de ver o Tejo acometeu-me, o pior é que é proibido circular entre concelhos e o rio da minha terra não é o Tejo, mas apenas um pobre afluente do rio que vindo de Espanha vai morrer ali mesmo para os lados de Lisboa. O melhor é ir comer uma amêndoa. De chocolate, que é mais metafísica das amêndoas.
sexta-feira, 2 de abril de 2021
Proibido proibir
Talvez ainda hoje seja assim, pelo menos em certos círculos. A Sexta-Feira de Paixão estava marcada por um conjunto de proibições. Lembro-me que, na infância, a própria televisão suspendia o seu ruído diário, um ruído inocente, diga-se, e apenas transmitia música clássica. Não sei se a finalidade era marcar o luto religioso com a grande música, ou se se pretendia ligar esta, aos olhos das pessoas, a momentos lutuosos. Quem em casa recebia uma educação religiosa, talvez a maioria das pessoas, era iniciado nesse jogo de permissões e proibições, que pautavam a vida. Hoje em dia tudo isso parece abolido. Suspeito que se deverá, a abolição, ao princípio utilitarista da felicidade geral. As proibições tornam as pessoas infelizes e vivemos numa época em que cada um não aspira a mais do que participar nessa exigência da felicidade. Não há coisa mais espantosa do que a reivindicação do direito a ser feliz, como se isso pudesse ser garantido por algum poder ou por alguma instância, como se fosse possível recorrer a um tribunal para reivindicar o preenchimento do direito sonegado. Admitindo, com certo filósofo, que vivemos no melhor dos mundos possíveis, já se constatou que dentro desse melhor cabem infelicidades sem fim, que não resultam de nada a não ser do acaso, e não há direito que lhes valha. A prosa está demasiado meditabunda. Talvez seja o cinzento do dia que inclina o espírito para este tipo de cogitações. Há quem jure que o destino de cada um é regulado pelos astros. Em vez da astrologia, proponho a climatologia. As conjugações climáticas trazem-nos dores e o alívio delas, flectem o espírito às trevas ou deixam-no galhofeiro, como um aldeão antigo a caminho da romaria. Oiço o ranger das roldanas das cadeiras de baloiço no parque infantil da praceta. Constou-me que a sua frequência estava proibida, mas isso tornaria as crianças e os pais infelizes. No fundo, somos todos herdeiros do proibido proibir. É o que me ocorre, nesta sexta-feira nebulosa.
quinta-feira, 1 de abril de 2021
Primeiro de Abril
Minto se digo que minto. Este tipo de charadas é o mais adequado ao primeiro de Abril. Tentei perceber o motivo por que a data se tornou o dia das mentiras. Constou-me que terá sido na transição do calendário juliano para o gregoriano. Em 1564, parece que foi ontem, Carlos IX de França determinou que o início do ano novo passaria a ser 1 de Janeiro e não 1 de Abril. Como é hábito entre os franceses, houve resistência à despótica e absolutista decisão. Algumas pessoas continuaram a comemorar o ano novo a 1 de Abril. Gente de boa disposição e pertencente ao partido de 1 de Janeiro, começou a pregar umas partidas – plaisanteries – aos resistentes à mudança. Presentes estranhos e convites para festas que não existiam. Como se vê, o mundo parecia naqueles tempos inocente. Uma mentira célebre em Portugal ocorreu, segundo apurei, em 1933. O vespertino Diário de Lisboa, de que cheguei a ser leitor, apresentou uma reportagem do duelo, ocorrido nesse dia 1 de Abril na Tapada da Ajuda, entre os poetas Afonso Lopes Vieira e Alfredo Pimenta. Lavavam a honra devido a uma torrencial polémica em torno da lírica camoniana. O pobre Pimenta foi tocado no antebraço direito, onde se inscreveu uma incisão de três centímetros geradora de abundante hemorragia. O duelo, que nunca começara, terminou ali, em bem, com a honra de ambos lavada em sangue. A mentira foi bastante convincente, pois não foram poucos os que fizeram sentir ao Pimenta a sua preocupação com o antebraço atingido, não fora ele, o poeta, ficar inválido e deixar de escrever. De resto, chegámos a Abril, águas mil.
quarta-feira, 31 de março de 2021
Astenia primaveril
Aquilo que trouxe Março prepara-se para o levar. Não sei o que dizer deste mês, agora que tudo está jogado e seria a hora de um balanço. Ofereceu uma nova estação e com ela despejou sobre mim uma fulgurante astenia de Primavera. Já a tarde ia avançada quando fui fazer uma caminhada. Ao sair, espreitei a caixa do correio. Lá estava o relatório do exame médico, cujos resultados esperava há dias. Contive a curiosidade e disse-me que havia tempo. Lá fui andar por becos e ruas, vielas e largos, entregue aos próprios passos. Ao chegar, dirigi-me à caixa do correio, enfio a chave na fechadura, dou o impulso habitual à mão e a chave parte-se. Fruto da astenia, não amaldiçoei nem a chave, nem o acidente. Lá fui buscar umas ferramentas e, com sorte, consegui apanhar o envelope. Abro-o, retiro o selo que oculta o relatório. Ponho-me a ler e, para dizer a verdade, fiquei na mesma. Uma linguagem esotérica, tenho a vaga impressão que já tive melhores dias, mas nem sequer vou entregar-me a uma hermenêutica do texto mediada pela internet. Amanhã marco uma consulta e o cardiologista que interprete e me conte o que se passa e o que me espera. É para isso que é pago. Nestas coisas há que ser pragmático e deixar que cada um faça o seu trabalho. Para dizer a verdade, nem sei se Março acaba bem ou mal, ou se nem uma coisa nem outra. O pior é a astenia primaveril.
terça-feira, 30 de março de 2021
Questões capilares
A arte de bem conservar os seus cabelos em tempo de pandemia. Oiço, sem o querer, uma conversa sobre cabelos. Há teorias em disputa sobre o que os estraga e os protege, todo um manancial de informações que davam para escrever um tratado. Apesar do êxtase, afasto-me rapidamente, cansado da lição, e percorro algumas ruas conhecidas. Não tenho destino onde ir, mas isso já não é novidade. Ando por aí aos tombos, tenho vontade de dizer, mas temo ser mal interpretado. Agora que rememoro essa parte da manhã, estou sentado a escrever. Lá fora, um carro, movido pela urgência de se escapulir do lugar onde se encontra, desata às buzinadelas. Um outro tapa-lhe a saída e não há no mundo quem suporte que lhe sejam tapadas as saídas. Se carros e pessoas soubessem a verdade, logo se acalmariam, pois, por mais saídas que encontrem, permanecerão no mesmo lugar. Este é um sítio esférico, fechado ao exterior, onde não existem portões, portas ou janelas, nem mesmo aquelas gateiras que antigamente existiam nas casas das aldeias, por onde entrava e saía o gato da família. Na verdade, não vale a pena buzinar, pois, por mais que se ande, fica-se onde se está. A rua foi invadida por uma luz difusa e um sentimento de irrealidade apodera-se de quem para ela olha. Não há vento e um pássaro voa entre tílias. Amanhã o mês acaba e talvez deva ir cortar o cabelo.
segunda-feira, 29 de março de 2021
Fora dos eixos
De súbito, olho pela janela e a luz que vejo mais parece anunciar a chegada de Março do que a sua iminente partida. Já de manhã, ao sair de casa, tive esta sensação de desacordo entre a luz que caía e o curso do calendário. O mundo está cheio de desconformidades, as coisas estão fora dos eixos como se lamentava certa personagem teatral. O enigma é que elas nunca estiveram nos eixos e sempre rolaram tempo fora. Há dias, num livro de um psicólogo cognitivo americano na moda, lia uma série de lamentações sobre a péssima qualidade de escrita das novas gerações. O caso, porém, é que essas lamentações se referiam a diferentes tempos da vida americana, desde os dias de hoje até aos da fundação do país. E ele, talvez entusiasmado, citou uma lamentação idêntica, em Inglaterra, pouco tempo depois dos livros passarem a ser impressos. Por fim, concluiu com uma referência às placas de argila sumérias onde tal lamentação já se encontrava com mais ou menos clareza. Dito isto, descobrimos que o mundo não precisa de estar nos eixos para rolar. Acudiu-me uma possibilidade tenebrosa. Se alguma vez os homens pusessem o mundo nos eixos, ele deixaria de rolar, todos nós nos transformávamos em estátuas, provavelmente de sal, e nenhuma novidade, nem vida nova haveria de surgir sobre a Terra. A conclusão desta pobre meditação de um meditante cansado é de louvor à desconformidade, a essa realidade eternamente fora dos eixos. Assim seja. Agora vou vídeo-reunir.
domingo, 28 de março de 2021
Mudanças de hora
Quando olhei para o mostrador do telemóvel, ao acordar, achei que tinha dormido em excesso. Depois consultei o relógio e descobri que havia uma discrepância de sessenta minutos. Afinal, tinha dormido um pouco menos, mas o relógio estava irrevogavelmente atrasado. Atrasado e fora de moda, pois não se auto-actualiza como os computadores, tablets e telemóveis. Começa a irritar-me esta história da mudança da hora. Uma para a frente, uma para trás, uma para a frente, uma para trás. Que falta de constância, que volubilidade. O relógio em casa da minha mãe, esse é muito fiel ao seu fluir sensato. Metade do ano está certo, a outra metade, adiantado uma hora. O dia ficou estragado nem sei bem porquê. Acabo de acertar o relógio. Não tarda e serão cinco da tarde, como no poema de Lorca. O almoço de tardio passou a ultra tardio. Uma hora na vida tem mesmo excessiva importância. Recordo-me de um primeiro-ministro ter decidido que os nossos relógios se deviam acertar pelo meridiano de Berlim e não pelo tradicional Tempo Médio de Greenwich, como se ele pudesse decidir, pelo poder que lhe fora conferido para governar, o lugar geográfico do país. Agora nada de meridianos ingleses, nós somos todos da Europa central, mesmo que vivamos na periferia, quero eu dizer no subúrbio da Europa. Portugal é um país maravilhoso, mesmo se há gente com ideias destas ou como o outro que transformou o árabe Algarve no britânico Allgarve. Ou, ainda pior, aqueles que acharam que dinamitar as consoantes mudas das nossas palavras era um progresso em direcção sabe-se lá a quê. É preciso muita paciência e eu estou proibido pelo autor de derramar sobre assuntos políticos.
sábado, 27 de março de 2021
À superfície
Ontem fiz uma boa caminhada. É um sintoma, pensei, de que vou retomar a prática. Agendei de imediato na memória repeti-la hoje. Não me esqueci do agendamento mnemónico, mas o projecto gorou-se. Deixei passar a hora certa, pois todas as coisas têm a sua hora, e agora, nesta altura do ano, é demasiado tarde, pois o ar fica frio, há um vento desagradável de Noroeste, que se entranha e acaba por fazer a garganta ressentir-se. Fui à farmácia comprar um sucedâneo da vesícula, uns comprimidos que imitam aquilo que ela era devia fazer, mas por se ter perdido numa sala de operações, não pode fazer. Imagino que apenas dará conta das actividades mais superficiais, mas essas bastam-me. Aliás, o melhor é uma pessoa deixar-se de profundidades, quanto mais à superfície, melhor. Quando se é novo e pretensioso, julgamos que só as coisas profundas interessam. Com o passar dos anos, vai-se mudando de ponto de vista. O mais interessante está à superfície. Não há como uma bela aparência. Quanto ao que ela esconde, o mais sensato é não querer saber. Há ainda uma luz crepuscular. Amanhã a hora mudará. Dizemos estas coisas, como se existissem horas para mudar. A vida não passa de um conjunto de ficções de que nos convencemos que são a realidade.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Cabalas e citações
De noite, o parque infantil recebe a luz de um candeeiro, daqueles que se tornaram comuns na iluminação pública um pouco por todo o lado, um poste de aço terminado por um globo de um branco encardido, e de onde se solta uma luz amarelada que espalha pelo parque uma atmosfera fúnebre. Ao olhar cá de cima descubro uma amolgadura no globo, como se alguém, talvez por falta de ocupação, tivesse querido emular o ovo de Colombo. O que torna o mundo digno de interesse são estas pequenas imperfeições, uma forma de resistência da realidade aos instintos perfeccionistas da espécie humana. Onde se queria a pura esfericidade, um corpo perfeito no seu ser rotundo, inscreveu-se uma depressão. Assuntos profissionais ocuparam-me com uma chamada telefónica de uma hora. Devia ter posto o telemóvel em alta-voz, mas esqueci-me. Agora tenha a orelha a arder e o ouvido exausto. Talvez por causa disso bebo um copo de água, dizem que faz bem, que hidrata o corpo e que devemos beber um número significativo deles durante o dia. Suspeito que serão sete os necessários, pois é um número cabalístico e a vida não passa de uma cabala. Devo evitar estas considerações, pois acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Esta é uma famosa citação. Também poderia dizer, e ainda com maior exactidão, bem-aventurado silêncio. Feliz o homem que nada sabe e nada quer. E esta é a segunda citação, embora não do mesmo autor. Na verdade, não há discurso, oral ou escrito, que não seja citação, mas também sobre isto o melhor é silenciar-me.
quinta-feira, 25 de março de 2021
À varanda
Almocei tarde, pois passava do meio-dia quando fui levantar à FNAC dois livros que tinham sido encomendados para a minha neta mais velha. Aproveitei e comprei um livro de Louise Glück, a Nobel da Literatura de 2020. Leio o primeiro poema e discordo de imediato da tradução de um verso, não porque esteja mal traduzido, mas porque lhe rouba o pathos poético. A palavra inglesa pode ser traduzida por um verbo ou por um substantivo. O tradutor escolheu o substantivo, eu traduziria com o verbo. O substantivo, naquele verso, fixa a realidade, o verbo põe-na em movimento. A poesia despetrifica o real, mostrara-o no seu eterno fluir. Umas vezes fá-lo com um verbo, outras com um substantivo. Depois da discordância, fui à varanda fumar meio cigarro, enquanto bebia café. Na praceta, um casal apanhava sol sentado numas escadas que esboçam um anfiteatro que nunca virá à existência. O cabelo dela refulgia. A uns dez metros, dois homens conversavam sentados no murete de cimento de um dos canteiros. Do outro lado, uma rapariga, sentada numas escadas que levam a uma empresa de serviços, apanhava sol e escrevia num computador. Tudo isto acontecia sob o véu do ruído que se desprendia da praceta contígua, onde um homem com uma máquina de cortar ervas as ia decapitando em sossego. Olho, agora, para a Sá Carneiro e vejo outro homem debruçado sobre o capot de um carro. Rubrica folhas brancas, talvez uma escritura. Aposto que o faz no canto superior direito. O documento é enorme, pois ele está constantemente a voltar as folhas e a rubricá-las. Temo que se canse ou que passe alguma sem nela deixar o sinal da sua vigilante anuência. Por detrás dele passa uma criança de bicicleta, seguida por uma mulher. Será a avó, pensei. Há poucos carros em movimento e o dia tem um ar quaresmal. Da varanda vejo tudo o que há para ver no mundo, pois este não é mais do que aquilo que se avista de uma varanda, da minha varanda. Leio um novo poema, Primavera, e torno a discordar. A poetisa escreve the warm air fills with bird calls. O tradutor verte por o ar morno enche-se do chilrear dos pássaros. Agora, a minha discordância tem sinal contrário. Onde é usado o verbo, chilrear, eu usaria o substantivo, chamamentos, o ar morno enche-se com os chamamentos dos pássaros. Não, os pássaros meus vizinhos não chilreiam. Eles fazem chamamentos, convocações. Por vezes, intimações. É esse poder de convocação existente na linguagem dos pássaros que Louise Glück dá a ver. Digo eu, que talvez não veja muito bem.
quarta-feira, 24 de março de 2021
Das coisas ambíguas
Uma das coisas mais extraordinárias que as línguas possuem é a ambiguidade. Ocorreu-me isto quando, ao abrir um livro para consultar um certo assunto, me deparei com a seguinte interrogação: Para que serve argumentar? Pensa-se, de imediato, que a frase interrogativa abrirá o caminho para uma explicação sobre os serviços que são prestados pela arte de argumentar. O que é o caso. No entanto, essa mesma interrogação pode ser usada como uma exclamação que nega qualquer préstimo ao acto argumentativo. Usar a linguagem é entrar num território minado. Rio sempre que vejo certas personagens a vituperar o uso comum da linguagem por falta de precisão, por ambiguidade e por mais alguns crimes do género. Sonham com uma linguagem completamente unívoca e transparente. Não compreendem que essa ambiguidade estrutural não se deve ao desleixo ou à incompetência dos falantes, mas que a própria linguagem faz parte da imprecisão e ambiguidade gerais que compõem a realidade. É uma emanação desta. Ter-me dado para falar disto tem, desconfio, uma dupla explicação: o cansaço e a falta de assunto. Olho pela janela e as paredes encardidas do hospital reverberam fustigadas pelo brilho de uma intensa luz solar. Hoje de manhã perdi alguns minutos a contemplar o friso das orquídeas. Estão todas floridas, até a mais débil, que anda há anos a prometer morrer, está belíssima. Também nelas há uma ambiguidade, como se a existência fosse algo que não estivesse previamente determinado, mas fosse uma indeterminação que aparenta, aqui e ali, precisão, apenas para tranquilizar algumas almas infelizes pela complexidade do mundo. Para o que me haveria de dar hoje. Metafísica à hora do lanche é coisa que não se aconselha a ninguém. Além disso, não há mais metafísica no mundo do que comer chocolates.
terça-feira, 23 de março de 2021
Um bom conselho
Numa das estantes perto da secretária está o romance Adoecer, de Hélia Correia. Espera vez. Os extractos de críticas presentes na contracapa denunciam que se está perante uma segunda edição. Fui verificar. Não é o que se passa. É uma primeira edição, mas numa primeira reimpressão. Todos eles são encomiásticos e nada me leva a crer que haja ali algum exagero. O livro é de 2010, ainda não havia pandemia, e isso deve sossegar o leitor. No entanto, o título, vindo do passado, parece mesmo propositado. Na imprensa, a qual já pouco impressa é, as coisas obscurecem-se. Países a confinar de novo, outros em catástrofe contínua. Entre os hosanas à vacinação e a realidade da libertação do estado patológico em que se caiu há uma grande diferença. Afigura-se existir um braço de ferro entre o vírus e a humanidade. Esta teima em voltar ao ponto em que se estava. O vírus, todavia, parece não estar pelos ajustes. É um agente de mudança. Quer-nos a todos mais afastados, mais protegidos, mais comedidos. A questão que me surgiu ao ler o título do romance de Hélia Correia foi se o vírus nos tornou doentes ou se nós já estávamos doentes e ele veio chamar a atenção para o facto. Não tinha pensado em nada disto. Ocorreu-me agora, talvez devido à inclinação do sol. Na página 120 da primeira reimpressão, a autora escreve: O Doutor Hailes recomendou muito repouso. Era o que sempre recomendava quando não se entendia com a doença. Já há muito que não via conselho tão sensato. Alguém se entende com a doença? Parece que não. Então que se repouse muito e de preferência afastados uns dos outros, não vá o vírus tecê-las.
segunda-feira, 22 de março de 2021
Uma colecção de hábitos
Os dias passam-se numa sucessão pavorosa de pequenos nadas, que, ao avolumarem-se, tomam o dia e acabam por lhe retirar sentido, se ele tivesse algum. Talvez a vida seja uma sucessão de irracionalidades, que de tão habituados a elas nem as vemos como tal. Aquilo a que chamamos razão não, passaria, de um longo hábito, de uma colecção de hábitos que rapta o que sucede da sua inquietante estranheza e nos permite dormir descansados. O pior é quando as pessoas envelhecem e os nexos criados pelo costume se começam a desfazer. Então, os tempos irrompem fora da ordem corrente e o caos instala-se. O que acontece agora já nem se distingue do que sucedeu há oitenta anos, saltando-se no tempo com muita mais vigor de que se salta no espaço. Parece mesmo haver uma estranha e negativa correlação entre um corpo cada vez menos capaz de saltitar e uma mente cada vez mais saltarela. Há em tudo isto alguma coisa de grotesco, traços demasiado exagerados que fazem lembrar certas obras expressionistas. A hora crepuscular aproxima-se, o dia acerta as contas na portagem da auto-estrada que o levará para a noite. É o que me apraz dizer neste dia em que faz anos que morreu Johann Wolfgang Goethe e que foi extinta a Ordem dos Templários. Estas informações são irrelevantes, mas o que o não será nesta vida?