terça-feira, 11 de agosto de 2020

O peso da verdade

Poderia contar uma história de ninfas a saírem das águas do rio, mas a verdade da narrativa teria tal peso que se tornaria insuportável. Se alguém avistar, como eu avistei, ninfas nas águas de qualquer rio, o melhor é omitir a história, pois não devemos sobrecarregar o mundo dos outros com o peso da verdade. Recolho-me à sombra e protejo-me do sol de Agosto. O ramalhar das árvores e dos arbustos indica a presença do zéfiro e que o dia, aqui neste lugar onde me escondo da realidade, terá um calor moderado.  Ontem nadei, coisa que não fazia há muito. Não se pode dizer que o resultado seja animador. Os corpos sintonizam-se para certas actividades e quando os surpreendemos com outras não programadas, eles nunca deixam de protestar. Há mais de uma semana que oiço, embora sem escutar, as obras para piano de Grieg. É um ouvir despreocupado, uma presença longínqua que me abre para o silêncio, a confissão de que por estes dias cultivo a mais funda despreocupação. Nos arbustos, os nomes escapam-me, fulguram flores a cujas cores também não sei que nome lhes dar. Talvez nada disso exista, pelo menos para mim, pois só existe aquilo que sabemos nomear. No dia em que me esquecer do nome, também eu deixarei de existir.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A tortura como prazer

Ao acordar pensei que os dias de férias são uma ilusão, que passa rapidamente. Depois, pensei que talvez sejam a antevisão do paraíso celeste. As pessoas, mesmo as que foram educadas no mais estrito catolicismo, esquecem que, na tradição judaico-cristã, o trabalho foi dado aos homens como punição e não como uma bênção. Se se quer uma prova de que vivemos num mundo pós-cristão, basta olhar para o culto do trabalho e da produtividade que há por todo o lado, basta ter em conta que a punição é agora vista até como um prazer. Isto disse ontem, ao jantar, o padre Lodo. Estando ele tão perto, não podia deixar de vir jantar cá a casa. As suas palavras, porém, indignaram a geração intermédia da família, toda ela crente na máxima que o trabalho é o destino dos homens. Foi uma indignação silenciosa, pois por deferência remeteram-se ao silêncio, mas eu bem os conheço. O padre, talvez fingindo que não percebia, continuou, com o seu espírito verrumante, e disse que mais valia um santo ócio do que ser-se masoquista e fazer da tortura um prazer. Depois riu-se e pediu para não o levarem a sério, pois não era pessoa de fiar, ele que foi inimigo da Igreja e depois dera em Jesuíta, ainda por cima. O ainda por cima ficou em suspenso. Foi esta conversa que se prolongou noite dentro que me assaltou ao acordar. Agora, porém, preciso de sintonizar o espírito com a realidade, pois não tarda vêm aqui fazer umas pequenas obras e, como se sabe, qualquer pequena obra é um grande incómodo.

domingo, 9 de agosto de 2020

O trabalho do fogo

Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o sítio onde estou.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sem alma comercial

Raramente, ao acordar, tenho consciência de ter sonhado, mas não foi o que aconteceu esta manhã. Era um imbróglio qualquer em torno de um negócio que já não sei precisar. Qualquer coisa que me resultava numa situação muito desconfortável. Eu que não possuo uma alma comercial acordei em sobressalto e lembro-me que fui sossegando dizendo-me, no silêncio do quarto, que era apenas um sonho, nada mais que um sonho e que, se fosse na vida real, jamais me meteria num negócio, quanto mais num imbróglio aflitivo. Depois, abri a janela, a luz entrou, e o sonho começou a apagar-se, restando aquilo que acabei de contar. Entreguei-me à vida de um sábado de Agosto, mas um certo desconcerto não me tem abandonado. Será que a minha alma de narrador é apenas uma alma comercial travestida e frustrada? O mundo está cheio de equívocos e alguns dever-me-iam calhar, pensei. Será que também a mim se aplicam aqueles versos, Esperanças mal tomadas / Agora vos deixarei / Tão mal como vos tomei, com que Sá de Miranda inicia um vilancete? Depois, alvitrei que fora do reboliço académico já ninguém deve ler Sá de Miranda, mas posso estar enganado. Passa por mim um grupo de rapazolas e um diz, entre palavras que me abstenho de reproduzir, que falhou o golo com a baliza aberta. Ele não sabe ainda que a vida não é outra coisa senão uma sucessão de golos falhados com a baliza aberta, mesmo quando a bola entra. Entre ou não entre a bola, o resultado será sempre o mesmo. Talvez seja por sofrer de pensamentos como estes que eu não tenho uma alma comercial.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A geografia do silêncio

O silêncio tem uma geografia imprecisa, o que torna inúteis os mapas que dele se fazem. É um território mutável, umas vezes cresce rapidamente, conquista espaço ao império do ruído. Outras, porém, vê-se drasticamente diminuído pela invasão de gente inoportuna, que faz da emissão de sons pela boca a razão de uma existência. Fora eu dado a pedagogo, haveria de criar uma teoria em que o silêncio seria a primeira coisa a ensinar às crianças. Idiossincrasias de velho, dirão as pessoas sensatas. Eu concordarei com elas. Recordo que, em certa altura da vida, procurava sítios em que não se ouviam ruídos nem havia, durante a noite, qualquer luz artificial. Então, ficava a olhar o céu, as estrelas nos seus arranjos ilusórios, a que chamamos constelações, a via láctea como um grande poço polvilhado de pontos brancos, luminosos. Escutava o silêncio, e conforme ele ia crescendo para dentro de mim, uma música estranha aos ouvidos citadinos compunha-se no rumor da terra, no murmúrio do vento, no mistério do éter onde tudo parecia mergulhado. Se se ensinasse o silêncio, talvez as pessoas aprendessem a escutar e a usar a voz apenas para dizer alguma coisa. Hoje tornei a ver a mulher que olha o horizonte. Toda ela é silêncio e nesse silêncio há um convite. A grande vantagem de se ter passado do politeísmo clássico para o monoteísmo é que se trocou a algazarra dos deuses greco-latinos pelo silêncio do Deus judaico-cristão. A mulher levantou-se, saiu da esplanada e, chegada à rua, acendeu um cigarro. Afasta-se lentamente e eu sigo-a com os olhos perdido no silêncio que há nela.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Um passeio pelo molhe

Quando se põe o pé no cimento que cobre o chão do molhe, são mais seiscentos metros até alcançar o farol. Se está uma névoa ligeira, como tantas vezes acontece, esse pequeno passeio proporciona algumas sensações que não são de desprezar. A cidade à direita esbate-se, como se fosse um desenho a carvão, desmaiado pelo tempo, adquirindo uma beleza que uma luz límpida lhe recusa. O mar troca a tonalidade esmeralda e azul por um cinzento cheio de enigmas, ameaças e promessas, enquanto se ouve o seu restolhar nas rochas. Os outros molhes fazem lembrar ruínas deixadas por civilizações desconhecidas. Os barcos ancorados são fantasmas que baloiçam embalados pelo vento, enquanto os veleiros e os barcos de recreio se aproximam ou afastam do porto, conforme o destino de cada um. É preciso caminhar de olhos bem abertos para não tropeçar. Quando se chega ao farol pode-se ficar a contemplar o oceano, a meditar no seu enigma, ou então virar costas ao sonho e apressar-se, empurrado pelo vento norte, em direcção a terra. Chegados aqui o sortilégio desfaz-se. Há um porto, com barcos em reparação, o areal das praias que se vão sucedendo, até se perderem de vista, o voo das gaivotas que negoceiam com o vento a poupança da energia, planando sobre a terra. Enquanto caminhava, ainda antes de chegar ao molhe, o sol matinal foi cedendo lugar à névoa, e eu pensei que o verdadeiro romantismo só pode existir em paisagens assim, paisagens das terras frias do Norte. Se importado pelo povos meridionais nunca deixa de ser insípido e, na verdade, vazio. A luz nunca foi a melhor companhia para os enigmas do sentimento.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Pão e vinho

À minha frente, havia um caminho estreito de terra batida, ladeado por arbustos espontâneos, raquíticos, carcomidos pelo vento norte. Algumas rochas erguiam-se como marcos miliários. Por ali, circulavam aqueles que, afastando-se um pouco da cidade, imaginavam estar no campo, para lhe sorver o ar, encher os pulmões de ruralidade. Um homem ia apressado, arrastando ligeiramente uma perna, um casal caminhava com demora, ele fazia comentários sobre a paisagem, ela ouvia com atenção e sorria, evitava as palavras, não se queria comprometer. Dois corvos desenharam um semicírculo no céu e desapareceram atrás de uns cedros altos. Isto foi antes de ir ao supermercado, ter de esperar a vez para entrar e, depois, ver-me rodeado de gente inóspita apenas porque precisava de pão e vinho, para com eles compor um poema, ou esboçar uma pequena narrativa onde as duas espécies litúrgicas entrariam para produzir o ambiente e dar-lhe profundidade. Quando acabei as compras e saí, havia sol. Procurei uma esplanada onde pudesse beber café rodeado de silêncio e esquecer-me do poema ou do conto que me levaram às compras. Agosto nunca deixa de ser um mês estranho, cheio de rituais fundados numa mitologia precária, movida pelo desejo, por sonhos eróticos, histórias onde se cruza a inverosimilhança e a necessidade de mostrar aos outros que se existe e se tem uma vida plena, como se a plenitude fosse prerrogativa de mortais. Não é.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A linha do horizonte

Uma mulher pousou o cotovelo na mesa da esplanada, depois apoiou o queixo na palma da mão. Fiquei à espera que, num súbito movimento de contorcionista, um pé, levantando-se, acabasse por aterrar-lhe na cabeça. Tenho demasiadas expectativas sobre a humanidade, não admira que me sinta continuamente defraudado. Ela podia ser uma contorcionista, afinal era só uma mulher solitária que apoiava a cabeça para olhar o horizonte e beber café. Quando não se sabe o que se há-de fazer com as pessoas, o melhor é pô-las a olhar o horizonte. Não foi este o caso. Eu faria dela uma contorcionista, dar-lhe-ia o melhor dos futuros num circo já sem animais amestrados, a não ser os humanos, mas ela preferiu olhar em frente, para aquele sítio onde uma linha ténue une o céu e o mar. Com vagar, um veleiro foi crescendo, rompendo a linha, e eu temi, confesso-o sem vergonha, que o oceano se entornasse para dentro do céu, ou que este lançasse sobre o mar alguma coisa que não quisesse nele. A mulher que podia ter sido contorcionista mexia, com os seus belos dedos, longos e afilados, o meio pacote de açúcar que depositou dentro da chávena. Eu vi o pequeno monte de cristais brancos sobre a espuma castanha. Eu vi-os desaparecer tragados por aquele buraco líquido. Eu vi-a a fazer rodopiar, com a mão direita, a colher dentro da chávena, enquanto a esquerda lhe segurava a cabeça para olhar o horizonte. Se eu tivesse um circo, contratava-a para contorcionista de horizontes. Não tenho, as minhas palhaçadas – de palhaço pobre, note-se – não chegam para animar o negócio. Também eu fiquei a olhar a linha do horizonte.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Destinos

A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova, ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de 1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si, enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.

domingo, 2 de agosto de 2020

Pessoas de papel

Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis. As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e, portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo, senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica, embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à minha neta e tomar café.

sábado, 1 de agosto de 2020

Eu e o Marquês

Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu, só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas. Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio, sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal. Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Julho fina-se

Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas, pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras. Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira. Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia da matrícula

Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão. Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho. Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me, passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno, que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais, pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória, pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas de papel almaço. Seriam?

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Familiaridades irritantes.

Há familiaridades que me irritam. Quem terá dito aos programadores do novo Word que sempre que se abre um ficheiro temos de levar com uma mensagem de boas vindas? Ainda por cima vem acompanhada por uma injunção disfarçada de conselho: comece onde ficou ontem. A cortesia deve poder desactivar-se, mas estou suficientemente desactivado para o conseguir fazer. Talvez não tenha acordado com boa disposição e não saiba apreciar esta urbanidade informática. Num outro tempo, esta terra era um mar a fervilhar de oliveiras e figueiras. O azeite e o álcool alimentavam as lamparinas com que a vida por aqui se iluminava. Havia um calendário de cheiros que desapareceram, substituído por um mundo inodoro e insípido. A memória apazigua-me com as tontices do marketing. Aqui perto alguém canta. Não é um pássaro, nem um anjo. É uma voz de mulher perdida numa lide doméstica. Do prédio em frente, alguém chega à janela, apanha a roupa e refugia-se. O ritmo dos dias enrola-se no perfume que alguém deixou no elevador. Sentado, olho para a rua e procuro descobrir no silêncio a transparência com que o passado me assedia a memória. Numa outra casa, havia um poço com uma roldana de ferro. A corda descia e subia com um balde cheio de água pura. Não sei o que hei-de fazer com essa água, agora que a casa já não existe.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Manobras militares

Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios, súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico, imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre Marília, também os calores a importunam.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O desejo infinito

Uma das coisas que se aprende com a observação do mundo é que a maioria das pessoas confunde o desejo com aquilo que é possível. A realidade surge então sempre de forma sombria e toda a gente parece mancomunada para evitar o que seria possível, não fora a aleivosia dos outros, porque nisto, os aleivosos são sempre os outros. Não lhes passa pela cabeça que aquilo que é possível pode nada ter a ver com aquilo que desejamos. As possibilidades são finitas e o nosso desejo é infinito. Este tipo de estultícia, muitas vezes mascarado de erudição, abunda por todo o lado. Falei sobre isto com o padre Lodo e o casal seu amigo, no jantar de há dias. O mecanismo é interessante, disse o padre e passou a uma longa explicação didáctica. O nosso desejo, referiu com uma entoação sempre italianizada, diz-nos que algo é muito desejável. Depois, a nossa razão contaminada pela sensualidade proclama bem alto que o nosso desejo é possível de realizar. A partir daí tentamos impor aos outros a realização daquilo que desejamos, mas como raramente o desejo se atém ao que é possível, saímos para a rua com o dedo em riste a acusar esses malandros que não realizam as nossas fantasias. A perspicácia de Lodovico nem sempre lhe granjeou amizades. Pelo contrário. Lembrei-me disto, depois de ler certas coisas há pouco, coisas que caem neste erro, mas que merecem longos aplausos e muitos likes nas redes sociais. Toda a gente sofre de infinidade do desejo, pensei. Por mim, desejo um café.

domingo, 26 de julho de 2020

Insónias e sonatas

Hoje saí de manhã para fazer os meus seis quilómetros contra a inércia e a preguiça. Consta que faz bem e evita que a balança se entregue ao destempero, ao ser pisada por mim, e me devolva algum impropério em forma de quilogramas. A passeata foi um pouco mais lenta do que a de ontem. Dormi mal, uma insónia bateu-me à porta e eu, incauto, abri-lha. Dei por mim apreciar a companhia. Permitiu-me acabar de ler um romance de Ramón del Valle-Inclán, a Sonata de Otoño. Alguém dirá que também Ingmar Bergman realizou uma Sonata de Outono, o que é verdade, mas não têm nada a ver uma com a outra. Cada uma tem o seu assunto e o seu ritmo. Quem me recomendou o Valle-Inclán foi a Emilia Bazan, a mulher do antigo aluno alemão do padre Lodovico Settembrini, no jantar do outro dia. Como não conhece nada dele, comece pelas Sonatas, sentenciou. A primeira é a de Outono, acrescentou, numa tentativa de trocar o seu magnífico castelhano pelo português. Nesse momento, o padre Lodovico franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebo-o, agora. O Marquês de Bradomín não é propriamente um exemplo de bom cristão, mas o padre também teve os seus dias avessos ao altar. Eu obedeci, muni-me de um exemplar e li. Isso fez-me andar mais devagar, o que foi logo notado pela aplicação do telemóvel que me segue os treinos. Na verdade, eu não ando a treinar, mas é assim que ela interpreta o facto de eu me pôr a caminhar rua fora sem destino, a não ser o da casa da partida. Caminhar é como jogar ao Monopólio. Vá para a casa de partida, mas não tem nada para receber. Nos domingos de Julho íamos, por vezes, almoçar à casa onde nasci. Era um almoço sob uma latada, o que criava uma sensação de frescura. Naquela altura, ainda ninguém tinha morrido e o mundo parecia uma clareira aberta. Há muito que não é possível juntar todos aqueles comensais, mas eles fazem parte de mim. Hoje talvez comece a ler a Sonata de Estío ou pergunte às minhas netas se querem jogar Monopólio. Presumo que me olharão de lado.

sábado, 25 de julho de 2020

Não-assuntos

Sábado, dia de ócio. As palavras da família do ócio têm todas péssima imprensa. És um ocioso. Soa como uma acusação fundada num juízo moral negativo. No entanto, a palavra ócio quer dizer repouso, descanso, coisas que me parecem benévolas. Depois, um mundo que ficou fascinado pela agitação, pela febre das realizações e pela velocidade associou o ócio à preguiça e à inacção. Os acusadores do ócio tecem loas ao trabalho, mas nunca dizem que a palavra vem do vocábulo latino tripalĭu. Um tripalĭu é um instrumento de tortura constituído por três estacas ou paus. O exercício não seria conhecido pelo prazer que provocava a quem a ele era submetido. Na verdade, o trabalho, talvez até à Revolução Industrial, nunca mereceu louvor. Trabalhava quem não tinha estatuto social para fazer outra coisa. No entanto, podemos encontrar inesperados aduladores do trabalho. No Diário Íntimo, Baudelaire afirma que o prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Os nazis não eram destituídos de humor negro e, por certo, percebiam a natureza torturante do trabalho. Inscreviam na entrada de alguns campos de concentração, como Auschwitz, o trabalho liberta. Curiosamente, em Baudelaire o trabalho também é visto como uma libertação, mas da omnipresença na consciência da sensação do tempo. Tanto o prazer como o trabalho são vistos por ele como distractores da nossa condição de seres finitos. Tudo isto porque chegámos a sábado. Nos dias de ócio, pode-se ociar de diversas maneiras. Por vezes, pratico o ócio procurando autores que ninguém lê. Leio-lhes umas páginas e esqueço-os. Quem terá ouvido falar em Karl Krause, um filósofo kantiano que viveu no final do XVIII e no início do XIX? Não o confundir com o famoso dramaturgo austríaco Karl Kraus. E do pensador holandês François Hemsterhuis, que viveu no século XVIII? Ninguém. Eu também não. Encontrei-os porque levado pelo ócio me pus a procurar as obras, numa língua acessível, do romancista romântico alemão Jean Paul. Deste, eu tinha duas referências. A de Sebald que é elogiosa e a de Schopenhauer que o acusa de não ter nada para dizer e de só escrever por dinheiro, isto é, acusa-o de trabalhar. Olho para a minha agenda imaginária e vejo que tenho de dar parabéns a alguém. Depois, escrevo nela a seguinte nota: evitar assuntos idiotas ao sábado, aproveitar o ócio para uma coisa mais decente do que encher o monitor com palavras sobre não-assuntos. O pior, porém, é que com a passagem do tempo só os não-assuntos me interessam.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

As rosas da Piéria

Safo, no poema As rosas da Piéria, lança, talvez sobre alguma amante que a rejeitara, o pior dos anátemas que os ouvidos gregos podiam, naquele tempo, escutar: Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória / nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas / da Piéria. Ser perdido pela memória dos outros. Não haver quem no futuro de si se lembre. Os séculos edulcoraram a maldição, até a transformar em pura aceitação, como se o esquecimento dos outros fosse o próprio da condição humana. Em muitos, todavia, persiste a revolta. Persegue-os aquilo a que popularmente se chama a mania das grandezas ou o desejo da fama, mas isso não é mais do que o temor de ser esquecido pelo futuro. O colírio para esse mal não era, segundo Safo, um qualquer, mas a participação na vida das musas, as rosas da Piéria. A arte seria assim o resultado de um combate pela memória e a saudade que o futuro teria do artista. A sua ausência e a sua falta seriam sentidas. Dignos de imortalidade, de persistirem na memória dos vindouros, não eram apenas os grandes feitos, mas também as grandes palavras. O melhor seria que aquele que realizasse um grande feito dissesse também grandes palavras, que participasse no convívio com as rosas da Piéria. Gostaria de saber a razão por que me pus com estas elucubrações, enquanto a vida lá fora fervilha e as pessoas caminham para o seu próprio esquecimento. Vão esquecidas de que serão esquecidas. Recordei-me agora de um poema de David Mourão-Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais. Relei-o e soletro baixo para que ninguém me escute: Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que terei de novo o Nada a sós comigo. Nem as rosas da Piéria nos salvarão. O fim-de-semana abre-se diante de mim e isso é o mais que posso desejar.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Um fado, uma sina

A semana entrou na recta final. É uma frase estranha, mas não notamos a estranheza, de tanto a usar. Nem sempre o tempo foi visto como uma recta, melhor como uma flecha que segue sempre em frente, sem que nada a detenha ou desvie. Tempos houve em que o homem o compreendia como se fosse um círculo, em que tudo voltava, num verdadeiro eterno retorno do mesmo. Tudo isto para dizer que a semana se aproxima do fim. Ainda há dia e meio para as utilidades, mas logo chegará o ócio do fim-de-semana. A imprensa substituiu o retrato imaginário de um vírus COVID-19 pelo de Amália Rodrigues, no centenário do nascimento da fadista.  Ficámos todos a ganhar. O vírus é horrível, enquanto Amália era uma bela mulher. Fica muito bem nas capas dos jornais. Os olhos agradecem. Durante muitos anos, não liguei nada ao fado. Depois, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo dobraram-me. Hoje em dia, quero dizer no tempo em que ainda não havia retratos de vírus na primeira página dos jornais, vou a concertos de fadistas. Nunca me arrependo. Talvez seja a isto que se chama envelhecer. Na rua, os cães ladram, um casal passa devagar, cada um ajoujado ao peso da própria sombra. Separa-os meia dúzia de metros, como se já não pudessem suportar a companhia um do outro. Foi por vontade de Deus. Também eles têm a sua sina. Um pássaro canta, enquanto um par de anjos poisa no prédio em frente.