Não estando em casa, o homem dos CTT – ou seria uma mulher? – deixou dois postais para ir levantar duas encomendas ao posto de correio, que, por acaso, não é um posto de correio, mas uma grande superfície que vende jornais, livros, material de escritório, brinquedos, tabaco e oferece, desde que pagos, serviços de reprografia, onde se inclui a impressão de fotografias. Também oferece serviços de correio, o que para mim é um sinal de que este é o melhor dos mundos possíveis, pois vou de casa lá a pé, em dois ou três minutos. Hoje decidi ir levantar as encomendas, aproveitando a saga para me banquetear com um salgado que apesar de saber bem, há-de fazer mal. As encomendas eram, como não podia deixar de ser, livros. Talvez inclinado pelas leituras de Jon Fosse – agora, vou a meio de Trilogia –, de Karl Ove Knausgård e, acima de todos, de Knut Hamsun, comprei, num alfarrabista, a trilogia da nobel norueguesa, ou dano-norueguesa, Sigrid Undset, Cristina Lavransdatter, que é como quem diz Kristin filha de Lavrans. A edição portuguesa não será propriamente uma tradução do norueguês, mas uma versão feita de uma língua dominada pela tradutora Maria Franco, imagino. A outra encomenda era constituída por um livro editado pelo jornal Público, na sua Biblioteca da Censura. Os livros reproduzem a edição censurada e contêm o fac-simile do despacho do censor, no caso um capitão. O romance, datado de 1948, é de um autor que desconhecia por completo, Orlando Gonçalves, e tem por título, o romance e não o autor, Tormenta. As considerações para proibir o livro são fastidiosamente ideológicas, embora, desconfio, também corporativos, pois o capitão não terá gostado de umas referências aos militares. No entanto, o texto começa em modo de crítica literária, embora hesitante: Este livro, tentando ser um romance, nem sequer isso atingiu, embora quanto à sua qualificação literária eu nada tenha com isso. Estamos perante um censor militar que, imagino, teria gostado de ser um crítico, mas o curso da Academia Militar, caso ele tenha frequentado algum, não fora suficiente para ter alguma coisa que ver com a qualificação literária de uma obra, embora lhe fornecesse faculdades para a vigilância textual e uma técnica hermenêutica para a descoberta da subversão e da imoralidade. Seria, note-se, um censor dedicado e trabalhador. Como tudo está registado, ou não estivéssemos em Portugal, o livro foi-lhe distribuído para leitura a 12/10/1948 e o despacho exarado a 15/10/1948. A Direcção dos Serviços de Censura apôs-lhe o respectivo carimbo vermelho onde se podia ler em capitulares: POÏBIDO. Fiquei a olhar para o trema e como ele poderia ainda ter utilidade na nossa língua, não para declinar o que é PROÏBIDO, mas tornar as palavras mais belas. O trema, infeliz sinal gráfico, teve uma história triste em Portugal, no século XX. Ele que existia pomposo, foi substituído em 1911, por recomendação de Gonçalves Viana, por acento grave. Em 1920, houve uma recidiva estética e o trema voltou garboso. Porém, em 1945, os dois pontos que decoravam certas vogais foram objecto de supressão legal nas palavras portuguesas e nas aportuguesadas, o que mostra que a própria censura se estava nas tintas para a lei. Foi a morte do trema.
sexta-feira, 31 de março de 2023
quinta-feira, 30 de março de 2023
Citações
Talvez ninguém leia Somerset Maugham, eu não o faço, embora tenha alguns livros dele. Há muito tempo, contudo, li O Fio da Navalha, que me deixou bastante impressionado, mas perdi o rasto a esse livro publicado pela gloriosa editora Edições Livros do Brasil. Mais tarde, tornei a comprar a obra, numa edição da ASA. Não voltei a ler o romance e não sei já o que me terá impressionado nesse tempo tão longínquo. Talvez fosse excessivamente impressionável, embora não seja essa imagem que cultivei de mim. Peguei, há instantes, em Mrs. Craddock, que nunca li, e abri a obra ao acaso, como muitas vezes faço. Li, na página 227, início do capítulo XXV, o seguinte: Se os deuses, que espalham a inteligência nos lugares mais inesperados – é encontrada, às vezes, sob a mitra de um bispo e, de milénio a milénio, na cabeça de um rei –, houvessem concedido a Edward Craddock um pouco desse precioso artigo, talvez ele fosse um grande homem, além de ser um homem bom. Imagino que seja de equacionar uma visita ao universo de Maugham. Talvez os deuses tenham sido tão avaros comigo quanto com Edward Craddock, e seja, como ele, um pequeno homem, embora, duvido que de mim se possa dizer que sou um homem bom. O que me entristece, reconheço, mas nem a bondade nem a maldade fazem parte do meu lote, daquilo que me calhou. Enfim, do mal o menos, a aurea mediocritas é melhor que nada. Leio mais uma passagem: Enquanto isso, Edward, alheio ao que estava sucedendo, assemelhava-se a um louco que, num hospício, exercesse poder monárquico sobre um reino imaginário. Não se dava conta da maneira desdenhosa como Bertha (a mulher) o tratava; notava, isso sim, que ela já não era tão exigente, e isso tornava-o feliz como nunca. Quer dizer: o casamento só se tornou plenamente satisfatório para Edward quando Bertha começou a perder a estima por ele, assunto que certamente interessaria a um filósofo irónico, disposto a tirar conclusões de fundo moral. Por hoje, chega de citações.
quarta-feira, 29 de março de 2023
Uma feira moribunda
terça-feira, 28 de março de 2023
Beber água
Em cima da secretária, tenho uma garrafa de vidro de meio litro quase cheia de água. Trouxe-a para ir bebericando enquanto estou sentado. O nível da água não desce há dias. Consta que se deve beber uma quantidade de água razoável – ouvi dizer entre litro e meio e dois litros – todos os dias. Reconheço que é um exercício difícil. Há dias li um comentário sobre a ideia de que beber água com gengibre ajuda emagrecer. Como de costume, o comentarista dizia que não há qualquer evidência de que isso seja verdade, mas se a pessoa, assim motivada, beber água, então algum benefício terá. Um comentário idêntico também já foi feito para outra receita para emagrecimento fácil, beber água com limão. Estas histórias dietéticas tornam manifestas duas coisas. Em primeiro lugar, o homem antes de ser um animal racional é um animal mitológico, cria mitos como quem bebe água, o que para mim não é fácil, mas também não tenho nenhuma criação de mitos. Em segundo lugar, o homem crê mais facilmente nos produtos da imaginação delirante do que nos factos. Imagino que a causa resida nos factos serem rebarbativos. Esta é uma palavra horrível e que significa, literalmente, que tem duas barbas. No sentido figurado, porém, significa rude. Os factos transportam consigo não uma dupla barba, mas uma rudeza difícil de suportar. Um facto que eu tenho dificuldade em suportar é o da necessidade de beber água. Acabei de tirar a rolha à garrafa e vou beber meia garrafa. É um objectivo para os próximos minutos. Uma aventura que daria uma epopeia.
segunda-feira, 27 de março de 2023
Uma desadequação culpada
Ainda Março não acabou e já há por aqui temperaturas estivais. Na verdade, esta afirmação é um exagero, pois temperaturas estivais, neste lugar abandonado pelo anjo dos climas temperados, são bem acima dos trinta graus, ali pela casa dos quarenta. Hoje, ao atravessar a estrada na avenida, talvez um efeito do sol, tive a sensação de que há em mim – em todos os seres humanos, por certo – uma desadequação à existência, a percepção de uma falta qualquer e inexplicável, que deixa um rasto de desconforto, também ele difuso. Esta experiência, imagino, terá levado à criação da ideia de pecado original. Uma vivência arcaica na história da espécie, na qual se manifestava uma desadequação qualquer que se reflectia num desconforto existencial e sem razão aparente, terá originado a ideia de uma falta metafísica que caiu sobre a humanidade. Uma explicação residiria em afirmar que essa experiência se funda na nossa finitude e esta se manifesta como culpabilidade. Não por acaso, um certo filósofo francês escreveu uma obra com esse título, Finitude et Culpabilité. Finitude e mortalidade não são a mesma coisa. A finitude é muito mais devastadora do que a mortalidade. Esta é apenas uma das dimensões daquela. Não somos finitos apenas porque morreremos, mas porque muitas são as limitações com que o nosso desejo se confronta, esse desejo que é infinito, seja qual for o objecto que ele deseje. Ocorre-me, neste momento, que estou sem assunto digno de escrita. A única aventura que tive foi ir às compras, mas nem aí encontrei tema para epopeia e muito menos para tragédia. Um drama, a falta de motivos narrativos e a subida das temperaturas. Reconheço que estão a tornar-se cansativos os topoi da ausência de motivo e da subida das temperaturas, mas para além da hipérbole também a iteração faz parte dos utensílios deste narrador.
domingo, 26 de março de 2023
Um génio mordaz
Está consumada a mudança da hora para horário de Verão. A partir daqui tenho o direito de me queixar da astenia da Primavera, que, afinal, não é provocada pela pobre estação do ano, mas pela alteração da hora. Bem, está assinalada a efeméride. O dia não me parece particularmente satisfeito. Vejo-o parcialmente ensolarado, visão que confirmo na aplicação meteorológica que a Microsoft, no exercício da sua ampla generosidade, me prodigaliza. Aquilo que vejo, está confirmado, é a verdade e não uma qualquer manipulação da minha mente por seres extraterrestres que a tomaram de assalto para produzirem estados mentais que eu tomo como se fossem verdadeiros. Esta história dos extraterrestres é uma actualização de última hora do Malin Génie, de Monsieur René Descartes. As traduções portuguesas optam por Génio Maligno. Contudo, Malin pode traduzir-se também por astucioso, o que daria Génio Astucioso. Ora, astucioso por astucioso, já temos o Ulisses. Outra possibilidade seria a de traduzir malin por mordaz. É a minha preferida. O Malin Génie cartesiano não passaria de um Génio Mordaz, um diabrete brincalhão que nos engana a toda a hora, apenas para gozar com a nossa cara. É evidente que Descartes é uma pessoa muito mais séria do que este narrador e não criou o Malin Génie como exercício satírico. Ele levava a Filosofia a sério, talvez se risse pouco, mas não lhe conheço a biografia, embora possa adiantar alguns mexericos sempre úteis. Julgo que não se casou, estes homens tinham pouca inclinação para o matrimónio, mas foi pai de uma menina nascida do ventre de uma empregada doméstica, de uma serviçal, como li. O pobre morreu em Estocolmo, de pneumonia. Antes de ter ido para a Suécia, Descartes trabalhava na cama até ao meio-dia. Na Suécia, a rainha Cristina exigia-lhe aulas às 5 da manhã. Preferiu morrer. Podemos também pensar que a rainha Cristina era uma encarnação do Malin Génie. Esta é uma hipótese que nunca vi trabalhada, mas deveria merecer a atenção dos mais eruditos estudiosos do pensador francês. Como se prova, a mudança horária afecta não apenas o horário ou a forma física, mas a relação com a realidade.
sábado, 25 de março de 2023
Linha recta
Há um momento espantoso em que Hannah Arendt, ao referir-se aos gregos antigos, esse lugar que nunca se pode evitar, dá uma definição de um rigor inultrapassável da condição humana. Escreve: É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha recta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. Trata-se assim de uma questão de geometria. As coisas imortais movem-se circularmente, submetidas a um eterno retorno do mesmo. A vida dos homens, os únicos seres mortais ao cimo da Terra, desenrola-se em linha recta, a que une o nascimento à morte. As espécies animais, essas são imortais, pensavam os gregos, pois cada uma é um corpo único que se renova a cada nascimento. A espécie humana é uma inexistência, pois o facto de cada ser humano ser dotado da consciência da sua individualidade rompe a ideia de um corpo que se renova pelo nascimento. Pelo contrário, cada nascimento é um acontecimento singular. O corte do cordão umbilical é o momento em que o recém-nascido se torna indivíduo desligado da espécie, alguém que passa a ter não apenas uma vida, mas um destino. As espécies não humanas, vegetais ou animais, têm vida, que se realiza no ciclo do eterno retorno. Os seres humanos têm uma destinação, pois, ao ser-lhes cortado o cordão que os ligava à mãe, são expulsos do eterno retorno e colocados na estrada que os conduzirá à morte. A destinação não é propriamente a morte, mas a realização do caminho pela estrada que lhe é posta em frente ou, no caso dos mais talentosos, que inventam para chegar ao fim. Por falar em estrada, há um livro, belo e terrível com o nome A Estrada. É seu autor Cormac McCarthy. Li-o quando foi publicado em Portugal, mas duvido que me apeteça voltar a ele. Talvez me tenha tornado incapaz de suportar uma obra em que o terrível excede largamente a enorme beleza que o compõe. Não é claro, todavia, que um dia não mude de opinião e de sentimento, e que volte a essa obra. Na verdade, ela é uma alegoria poderosa daquilo que Hannah Arendt escreve sobre o mover-se em linha recta, por sinuosa que esta seja, o que nos recoloca dentro da geometria, de uma geometria especial, em que a recta é composta por numerosas curvas.
sexta-feira, 24 de março de 2023
Provérbios e máximas
Março marçagão, manhãs de Inverno e tardes de Verão. Sempre que estou em apuros, recorro à minha colecção de frases feitas, lugares-comuns, provérbios ao gosto popular. Enfim, apelo à sabedoria do senso comum. Esta não apenas é tranquilizadora, como é, na verdade, sábia, contrariamente a muitas outras sabedorias que nada têm de sábias. Saí de casa, hoje de manhã, e chovia. De tal maneira que tive de usar um guarda-chuva. Céu cinzento, paisagem urbana soturna, gente com um aspecto quase lúgubre. Há pouco, na rua, perante a inclemência do sol, tive de acomodar as vestes ao fulgor estival. O céu tornou-se azul cintilante, a paisagem urbana era um revérbero, as gentes pareciam irradiar energia e um contentamento inexplicável. Como justificar isto sem recorrer a um ditado? Impossível. Por outro lado, tenho provas inescapáveis da minha proverbial estupidez, para falar claro. Irritei-me com um browser que me permitia aceder à internet. Estava apostado em não querer fazer aquilo para que fora feito. Não estou com meias medidas e, num gesto radical e hiperbólico, destituído de cuidado e sensatez, longe da justa medida por aqui apregoada, desinstalo-o. Vitória, pensei na altura. Derrota, penso agora. Ao suprimi-lo para o tornar a instalar apaguei todos os meus marcadores, aqueles que me permitiam aceder sem trabalho a lugares por onde fazia turismo. Conforta-me a frase de Thomas Carlyle: Com estupidez e boa digestão o homem pode enfrentar muita coisa. Embora, não se aplique completamente a mim, pois nem sempre as digestões são boas. A outra condição, essa está assegurada, pois contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão, como escreveu um dia Friedrich Schiller. Seja como for, noto em mim uma tendência evolutiva. Parece que estou a transitar dos provérbios ao gosto popular para máximas cultas criadas pelo génio daqueles infelizes a quem estupidez foi poupada e que se encontram, as máximas e não os infelizes, ao deus-dará pela internet.
quinta-feira, 23 de março de 2023
Ressurreição
No diálogo Fedro, Platão, através da personagem Sócrates, lança um violento ataque à escrita. Este exercício hiperbólico, ao qual são dadas razões filosóficas, pedagógicas e conviviais, não evitou que Platão tenha construído uma obra escrita também ela hiperbólica. O artefacto hipérbole é usado para referir a dúvida cartesiana, ficando Platão adstrito ao ramo retórico da alegoria e do mito. E se toda a obra platónica não fosse mais do que um exercício hiperbólico? Faria sentido. A hipérbole é um dispositivo da família do microscópio, serve para aumentar a realidade e é nesse processo de a exagerar que talvez ela se deixe vislumbrar. A ideia platónica de que a escrita é um registo morto não resiste, todavia, ao choque com a existência de pautas musicais. Também estas são constituídas por símbolos e compõem um todo que parece morto, mas quem as sabe ler encontra nelas a vida ou, melhor, encontra nelas múltiplas vidas. Também o texto escrito está submetido à ressurreição através da leitura. Toda a vez que se lê um texto este tem o seu domingo de Páscoa. Talvez faltasse a Platão o conceito de ressurreição para perceber a natureza da escrita, mas, por certo, alguma coisa nele lhe sussurrava para que escrevesse sem parar, pois os seus textos, apesar de residirem em mausoléus, acabariam, a cada leitura, por libertar-se da morte e ressuscitar na consciência do leitor. O diálogo vivo entre pessoas vivas, que seria superior à escrita, é agora substituído pelo exercício taumatúrgico do leitor, que opera o milagre da ressurreição daquilo que jaz morto, mas não apodrece.
quarta-feira, 22 de março de 2023
Uma questão de QI
As fases da vida. Uma sabedoria popular alimenta a crença numa vida repartida por fases, uma espécie de etapas de um Tour que liga o nascimento à morte. Cada uma dessas fases terá as suas características e exigirá um modo específico de existência, com os respectivos deveres e direitos. Como não me apetece arguir, aceito a descrição e faço – pelo menos, por hoje – minha essa crença. Interrogo-me, então, que etapa é esta em que estou. Sento-me aqui e adormeço, cabeça tombada para a frente, queixo encostado ao peito. Tudo isto para acordar com uma dor no pescoço e uma sensação de inutilidade. Que direitos e deveres me caberão nesta fase? Antes de adormecer, estava a dar uma vista de olhos por um livro. Lia o seguinte: Mas tens olhado para a tua volta com olhos de ver, nestes últimos tempos? Creio que saberás até que ponto é burra uma pessoa com um QI de cem. / Western encarou-o com ar desconfiado. Acho que sim, disse. / Pois bem, metade das pessoas são mais burras do que isso. Onde é que achas que tudo isto vai parar? / Não faço ideia. Eis uma boa resposta: não faço ideia. É a resposta que encontrar para múltiplas perguntas que me faço, entre elas a da razão por que, nesta etapa do Tour existencial, adormeço sentado defronte do computador. A incapacidade de encontrar resposta talvez resida no meu QI. A média do QI português é de 95. Sendo eu um português médio, devo partilhar a média do QI que cabe aos portugueses. Como assinalou Sheddan, aquele que dialoga com Western, um QI de 100 é já um sinal acentuado de burrice, quanto não fará um de 95. É humilhante, mas basta passar a fronteira para o QI subir 2 pontos. Se foi para isto que o primeiro Rei andou por aí a espadeirar, melhor fora que estivesse quieto. Seja como for, a situação aqui ao lado também não é muito famosa. Segundo vi, o topo do QI foi monopolizado pelos asiáticos. O que me deixou intrigado foi Israel. Tem menos 1 ponto de QI médio do que nós. Será que o QI também acompanha as fases da vida? Bem, não quero saber, contento-me com a pertença a um povo com um QI médio de 95, contento-me por reflectir com precisão essa pertença. Todas as idiotices que escrevo estão justificadas. Coitado, com um QI de 95, muito já faz ele.
terça-feira, 21 de março de 2023
On s'habitue
A Primavera consolida-se. Nas ruas, há já uma quantidade considerável de gente vestida como se fosse Verão e não são turistas vindos da Escandinávia. Não sei, no entanto, se são portugueses encalorados ou apenas crentes em que as vestes atraiam um tempo que com elas se coadune. Se tivesse de votar por uma das duas opções, votaria na segunda. Somos um povo que ainda não abandonou o pensamento mágico. Outrora, isso parecer-me-ia motivo de preocupação. Hoje, não. Não é que ache essa nossa característica uma vantagem competitiva na relação com o mundo, habituei-me, apenas. Estou como o senhor Brel: on oublie rien de rien / on s’habitue c’est tout. Há, contudo, um equívoco nestes versos. Durante grande parte da vida parece que nada se esquece, mas, a partir de certa altura, tudo se esquece, a própria natureza se encarrega de abrir o caminho para a amnésia, até ela ser total. O chilrear dos pássaros – talvez fosse melhor escrever o pipilar das aves – tem-se intensificado, o que confirma que a nova estação vai de vento em popa, desliza pelo lago do tempo com ventos favoráveis. Nunca me faltam provas de que em mim reside um mar de frases feitas e uma montanha de lugares comuns. Estão sempre ao alcance dos dedos. Escrevi acima portugueses encalorados. O Word não gosta da palavra encalorado. Sublinha-a a vermelho, como se fosse um árbitro a expulsar um pobre jogador indisciplinado. Desconfio que aceitaria portugueses calorentos, mas sinto repulsa pela expressão, não a escrevo. Não tanta como por aquilo que tenho diante de mim e espera a minha atenção. E de tanto dar atenção ao repulsivo on s’habitue c’est tout.
segunda-feira, 20 de março de 2023
Astenia
Caso me sinta cansado, já posso dizer que é a astenia da Primavera, mas, segundo fui informado, tenho de esperar pela mudança da hora. Sempre pensei que o cansaço se devia aos fluidos da estação, afinal é à manipulação do relógio. Até que a manipulação se concretize não tenho o direito de ostentar fadiga. Tudo isto para dizer que chegou a Primavera. Contudo, na rua, o meu corpo pensou que estava no Verão. Para apaziguar os espíritos oiço o libanês Rabih Abou-Khalil, um tocador de oud, um instrumento que se parece com o alaúde e cuja sonoridade quase que transporta o ouvinte para um transe contemplativo. Por vezes, gosto de deambular por músicas estranhas à tradição ocidental, como a árabe, a indiana e a japonesa. É a minha forma de viajar, eu que sou das poucas pessoas que conheço que não gosta de viajar. Falta-me a alma de viajante e digo-o com pena, mas cada um é o que é. O nomadismo é-me estranho, mesmo que seja um nomadismo temporário. Por vezes, obrigo-me, mas a coisa resume-se na palavra obrigação. Isto torna este narrador um ser estranho numa cultura que incensa a viagem. O meu ser, porém, acende velas à estância. Permanecer é uma aventura mais funda do que partir, pois é viajar onde se está. A Primavera mal começou e já não me está a fazer nada bem. Trouxe os pássaros com ela e reavivou a minha inclinação para a trivialidade. Diante de mim, tenho uma pilha de trivialidades que preciso de ler. O pior é a astenia.
domingo, 19 de março de 2023
Começos
Uma outra orquídea floriu, flores brancas. Neste momento, estão floridas duas brancas, uma amarela e uma fúcsia. Começo assim, pois não me ocorre nada mais. Também podia começar com o álbum de Jazz que se derrama na aparelhagem. Tem o título sugestivo Being There e é da autoria do pianista norueguês Tord Gustavsen, que é acompanhado por Harald Johnsen e Jarle Vespestad. O CD foi editado em 2006 pela inevitável etiqueta ECM. Outro começo possível seria falar da avenida, mas não se vislumbra nela vivalma, toda a gente recolhida. De tempos a tempos, passa um carro, vai sonolento, os vidros como revérberos. Descobri, há dias, que nela existe uma igreja de uma daquelas seitas neopentecostais que florescem como cogumelos num mundo que um velho conservador diria estar à deriva. Naquele lugar já houve um café ou um bar, não sei bem, pois nunca lá entrei. Pensava que era isso que ainda existia, mas reparei que havia qualquer coisa de inusitado. Apercebi-me, então, que era um lugar de culto. Havia uma assembleia. Uma mulher falava, uma outra, na assistência, estava de pé e tinha um braço no ar. Pensei, a princípio, que fosse uma sessão de esclarecimento político, mas é provável que esse tipo de reuniões já não aconteça há muito, coisa dos anos setenta do século passado. Ninguém precisa de se esclarecer, mas parece que há cada vez mais gente à procura de uma salvação. Duvido que seja a da alma que procuram, mas a do corpo. Isto, porém, é presunção minha. Não faço a mínima ideia do que vai na cabeça das pessoas. Nem na minha, quanto fará de gente que nunca vi. Se soubéssemos o que vai na nossa cabeça, se fôssemos completamente transparentes para nós próprios, será que nos suportaríamos? Também podia começar assim: Quem, se eu gritasse, me ouviria de entre as ordens / dos anjos? E mesmo que um deles, de repente, / me cingisse ao coração: eu desfaleceria da sua / existência mais forte. Pois o belo não é mais / do que o começo do terrível, que ainda mal suportamos, / e deslumbra-nos assim porque, imperturbado, / desdenha aniquilar-nos. Todo o anjo é terrível. Poderia começar assim, caso Rainer Maria Rilke não tivesse começado deste modo a primeira das elegias de Duíno. Para dizer a verdade, Rilke não começou assim. Quem assim começou foi Vasco Graça Moura, ao traduzir as ditas elegias. Então lembro-me das ordens angélicas e repito-as para mim: anjos, arcanjos, serafins, querubins, tronos, potestades e dominações. Falta qualquer coisa e tudo parece fora do lugar. Consulto um site denominado Aleteia e recebo a verdade sobre a hierarquia angélica. Na primeira, e mais elevada, estão os Serafins, os Querubins e os Tronos. Na segunda, intermédia, encontram-se as Dominações, Potestades e Virtudes. Por fim, na terceira e mais próxima dos homens, estão os Principados, os Arcanjos e os Anjos. Será que também esta hierarquia reflecte uma escala de beleza? Quanto mais longe dos homens, mais belos os anjos? Faz sentido, pois não suportamos, com os nossos olhos mortais, um excesso de beleza. Acabo o texto sem me decidir pelo começo.
sábado, 18 de março de 2023
Considerações lastimosas
Um céu azul onde navegam, como barcos de guerra, nuvens de cinza e cal. Parecem cordatas, mas se algum comando inquieto lhes fende a bonomia e o torpor, estão prontas para disparar os canhões de água. Retornei ao exercício da hipérbole. Talvez seja o efeito do Picetoprofeno com que pulverizei o pobre do calcanhar. O odor do produto entranha-se pelas narinas, sobe ao cérebro e deixa-o incapaz de se medir com a realidade. Na descrição da droga está escrito que entre os excipientes se encontra a essência de lavanda. Ainda bem, pois se não estivesse nem sei como seria possível suportar o aroma que se evola a cada pulverização e que persiste no pé, se agarra à meia e se cola ao septo nasal. Também é verdade que entre os tais excipientes se encontra a cânfora. Em tempos, constava que nas cantinas militares misturavam cânfora com o vinho que era dado aos soldados, para fazer baixar a libido. Ora, não é sem surpresa que leio que essa mesma cânfora é um potenciador do desejo sexual, pois estimula certas regiões cerebrais responsáveis pelas pulsões eróticas e, pasme-se, pode ser usada no tratamento da disfunção eréctil. Fiquei siderado por ver refutada uma ideia que eu juraria que tinha ouvido, pelo menos assim o pensava, e, mais do que isso, tinha crido nela. Não encontrei, na internet, indício que ligasse a cânfora, mesmo misturada com vinho, a uma diminuição do interesse pelo sexo. Será que inventei a história e passei a acreditar nela? Parece-me uma ideia demasiado rebuscada. Uma pessoa a pensar que a cânfora era um potenciador da hipolibidemia, um autêntico anafrodisíaco, e afinal não passa de um concorrente verde, apesar de ser branca, do comprimido azul. Descobri que outrora os monges punham raminhos de vitex agnus-castus nas roupas dos noviços, para que nestes se acalmassem os ardores, mas o vitex agnus-castus não é cânfora, mas liamba, e nunca ouvi dizer que na tropa se misturasse liamba ao vinho para esses fins pacificadores. Também consta que já no século XIX se duvidava da eficácia da medida, refiro-me à liamba na roupa dos noviços. Um narrador ocioso começa a falar no azul do céu e acaba a perorar sobre a concorrência ao Viagra e a fazer considerações sobre coisas que uma pessoa de bem não devia considerar.
sexta-feira, 17 de março de 2023
A discórdia
Neste momento, o sol brilha, as paredes dos prédios resplandecem, as folhas das árvores, daquelas que as têm, cintilam e, em súbitas fulgurações, quase cegam o espectador. Há pouco, porém, tudo era diferente. Um fortíssimo aguaceiro abateu-se sobre a cidade e o céu era chumbo prestes a precipitar-se sobre a terra. Estas súbitas metamorfoses talvez possam interpretar-se como um conflito entre o Inverno que se recusa a morrer, agora o que o seu tempo estar a terminar, e a Primavera desejosa de nascer, mesmo que ainda não seja a sua hora. Uma estação quer procrastinar tanto quanto a outra se deseja prematura. A discórdia dos elementos é apenas uma prova de que Heraclito, o obscuro filósofo de Éfeso, teria alguma razão. Nunca deixa de me impressionar o número de trivialidades que me saem dos dedos, e se saem dos dedos é porque me ocupavam o cérebro. Imagino, agora, que escrever estes textos seja uma forma de me alivar das banalidades que navegam no mar insípido da minha alma. Como poderia ser de outro modo? Estou desde manhã bem cedo entregue a trivialidades. Agora, porém, oiço displicente uma sonata para piano de João Domingos Bomtempo. Bocejo, apesar da música. Raramente, as noites me são propícias. Da rua, chega-me o cantar de pássaros que não vejo. A música da natureza mistura-se com a produzida pelos seres humanos, mas não será esta ainda uma música da natureza? O tempo passa depressa. Desfilam sem parar as sonatas do compositor português, enquanto a tarde entra no crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Ainda oiço adolescentes na praceta, jogam com uma bola. Vejo-me há muitas décadas, também a jogar à bola na rua, num tempo em que entre mim e mim não tinha entrado o vírus da discórdia. Essa patologia que fez alguém dizer: Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. // Com dor da gente fugia, / Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim? Bastaria este poema para Sá de Miranda ter um lugar na história da literatura portuguesa. Vou entrar pelo fim-de-semana dentro.
quinta-feira, 16 de março de 2023
Alienação
Meticulosidade será a palavra que descreve duas experiências a que me entrego de momento. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, um filme de 1975, a cineasta belga Chantal Ackerman faz um exercício meticuloso de descrição da vida de Jeanne Dielman (uma magnífica Delphine Seyrig), uma viúva relativamente jovem, com um filho adolescente, e que se entrega pelas manhãs às rotinas domésticas, um exercício escrupuloso, e de tarde se prostitui. O filme tem mais de três horas e estou a vê-lo em pequenos episódios, digamos assim. Ackerman coloca a câmara em cima da protagonista e raramente a tira, dá-nos uma visão da exterioridade daquela mulher, uma exterioridade mecânica, rígida, como se a bela Jeanne Dielman não tivesse vida interior, e tudo nela se resumisse aos gestos precisos e ordenados com que executa as tarefas do quotidiano. Na imutabilidade da rotina doméstica, a realizadora, usando a câmara à maneira de um voyeur insistente e obcecado, mostra a alienação da mulher em relação a si mesma, a sua perda nos rituais da domesticidade. Uma outra experiência da meticulosidade é a leitura do romance O Outro Nome – Septologia I-II, de Jon Fosse. Aqui, porém, a experiência é muito diferente. O narrador e personagem central do romance também é meticuloso, excessivamente meticuloso, na narração da sua corrente de consciência, mesmo aquilo que é dito pelo outros é filtrado pela corrente de consciência. São descrições levadas ao pormenor, com repetições, num exercício encantatório provocado pela minúcia da narração. Tudo no filme de Ackerman é exterioridade. Ao contrário, no romance de Fosse tudo é interioridade. São os pontos de vista narrativos que criam a experiência de alienação de Jeanne Dielman e a experiência de profunda consciência de si de Asle, o artista plástico, personagem de Fosse. Podemos imaginar o artista plástico filmado como foi filmada a jovem viúva. Por certo, a sensação com que ficaríamos era a de uma vida alienada, estranha a si mesma. Também não é difícil conceber Jeanne Dielman a narrar a sua história a partir da corrente de consciência. Por certo, desapareceria a sensação de alienação. Quando se fala em alienação, fala-se sempre de alienação dos outros, pois é plausível pensar que a alienação só existe a partir de um olhar exterior em relação às vidas que são catalogadas como alienadas. A alienação só existe no olhar dos outros.
quarta-feira, 15 de março de 2023
Vinganças
Talvez as coisas estejam a mudar. Duas experiências no campo da saúde em que fui atendido à hora marcada. Ontem, numa consulta com um médico de clínica geral, marcada para às 12:20, entrei para o consultório precisamente às 12:20. Esta foi uma consulta em que comecei por pedir desculpa ao médico por ali estar, devido a um erro do ortopedista da mesma clínica. Este ouviu as minhas queixas relativas ao calcanhar do pé esquerdo. Observou-me o calcanhar, receitou-me um anti-inflamatório para tomar durante cinco dias. Caso a dor não se evaporasse, que fizesse umas radiografias aos pés e tornozelos e uma ecografia às partes moles do pé. Claro que a inflamação não desinflamou e eu marquei os exames, falei com a assistente, decifrei os pedidos do médico e fiquei descansado. Só que, no dia seguinte, ao acordar e colocar o pé no chão fiquei com a sensação de que a ecografia tinha sido prescrita para o pé direito e o que me doía era o esquerdo. Fui ver as prescrições e confirmei. Na clínica arranjaram-me a consulta para que um clínico geral me prescrevesse o exame ao pé esquerdo, pois o ortopedista só lá estaria depois da data dos exames. Senti-me na obrigação de me desculpar perante o médico, pois acho que os médicos são mais do que prescritores de medicamentos e exames. Ele foi simpático e disse que eu não tinha culpa. Hoje fiz os exames, à hora marcada, e recebi a notícia de que tenho uma tendinite. Já estou arrependido de ter trocado a ecografia. Se a tivesse feito ao pé direito, não tinha nenhuma tendinite. Isto é o que dá uma pessoa armar-se em esperto. O destino vinga-se. Seja como for, o mundo parece estar a melhorar, embora eu esteja a piorar.
terça-feira, 14 de março de 2023
Excesso de luz
O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado resplandece. Os raios solares, ao incidirem naquelas amplas superfícies, levemente inclinadas, causam uma fulguração intensa, apesar de branca, que os olhos dificilmente suportam. É o destino dos homens não suportarem uma luz excessiva. Se algum deles traz uma luz intensa, os outros não a suportarão e não o suportarão, e haverão de o amaldiçoar, pois nem os seus olhos, nem o seu pensamento, nem o seu coração foram feitos para esse excedente de luz que, apesar de insignificante, traz consigo uma diferenciação. É plausível pensar que a estranha história narrada por Platão e que ficou conhecida por Alegoria da Caverna não seja outra coisa senão uma reflexão sobre o quão insuportável é para a humanidade ter de conviver com alguém que é portador de luz. A Alegoria da Caverna é interpretada recorrentemente de modo filosófico, tanto epistemológico como metafísico, mas na verdade ela é um arquétipo sociológico, um modo de entender as relações sociais entre o comum e o incomum. Mesmo os mais ardentes defensores das diferenças sociais se tornam igualitaristas na hora em que percebem alguém que é mais dotado do que eles. Um acaso, coisa que sucede tantas vezes, levou-me a ver uma série de reproduções de esculturas de Antony Gormley, onde o corpo humano é o tema. Imagino que o escultor tenha pegado em cada um dos prisioneiros da caverna de Platão e o tenha submetido a uma diferenciação específica. Interrogo-me como se sentirão eles nesses corpos que no lugar de os assemelhar os diferenciam, como se pertencessem a espécies estranhas. Provavelmente, tremerão de medo perante o horror do que vêem. O telhado branco do pavilhão continua preso na sua cintilação branca, cai sobre os olhos como um punhal. O melhor será ir buscar os óculos escuros.
segunda-feira, 13 de março de 2023
Coisas esdrúxulas
Aproxima-se a hora em que terei de me levantar daqui, desta cadeira em que me sento, e tomar o caminho que me leva sempre à perplexidade. Vou constatar o que já sei, mas o facto de saber não elimina o ficar perplexo. Saber implica crer no que se sabe, mas há coisas que nós sabemos e que, no fundo, recusamos crer nelas. Esta recusa é uma revolta contra a ordem das coisas. É um revolta inútil, pois a ordem das coisas é indiferente às nossas rebeliões e às crenças que acalentamos ou que desprezamos. Ainda falta algum tempo para me levantar. O melhor seria não pensar, penso eu agora. A vida é feita de coisas esdrúxulas, apesar de muitas delas não serem acentuadas na antepenúltima sílaba. Por outro lado, não gosto da palavra esdrúxula, mas seria dificilmente aceitável afirmar: a vida tem coisas proparoxítonas. Ninguém compreenderia, embora fizesse mais sentido, devido à presença de oxítono, derivado do grego oxýtonos que significa com acento agudo, o que sublinharia a presença na vida daquilo que é agudo, perfurante, verrumante. A semana útil começa com estas meditações inúteis. A palavra verruma, ou será a palavra verrumante, aprendi-a num texto de António Sérgio, espero não estar enganado. Julgo que foi a única coisa que aprendi com ele. Não que ele não tenha muita coisa para me ensinar, mas nunca prestei grande atenção aos ensinamentos que nos seus livros se ocultam. Daqui a cinco minutos terei de estar a entrar para o carro, pô-lo a trabalhar e começar a deslizar pela rua, à procura de uma outra, e outra, e outra. A vida é isto, um passar de rua em rua, como as notas ou as moedas passam de mão em mão. O dinheiro electrónico é mais asseado.
domingo, 12 de março de 2023
Duas liberdades
Passei a manhã a fugir daquilo que tenho de fazer antes que este domingo se dê por finado. Qualquer pretexto me serviu e, quando não havia pretexto, inventava um ou dois, que logo me davam uma ocupação, a qual não era destituída de prazer. E isto traz-me à memória aquele poema de Fernando Pessoa que começa assim: Ai que prazer / Não cumprir um dever, /Ter um livro para ler / E não o fazer! / Ler é maçada, / Estudar é nada. / O sol doira / Sem literatura. Podemos imaginar que seja falso que o sol doire sem literatura, pois dizer que o sol doira já é literatura, uma narrativa minimalista, mas uma narrativa, e nós nunca saberemos se o sol continuará a doirar quando a literatura desaparecer. A verdade, contudo, é que o poema de Pessoa narra a essência da liberdade nesse não cumprir um dever. Coisa que contrariaria aquele filósofo nascido em Konigsberg e que via a essência da liberdade no cumprir do dever não por prazer, mas apenas por dever, por amor ao dever e por respeito à lei moral. Em mim, este infeliz narrador de uma gesta sem honra nem glória, sempre houve, desde o dia em que na inocência dos seis anos pisei o chão de uma escola, um conflito entre essas duas formas de conceber a liberdade. Nessa altura nem sabia que existia uma coisa chamada liberdade, pois até aquele dia era livre e, como no caso da saúde, ninguém precisa de saber o que é a liberdade quando é livre. Só os doentes querem saber o que é a doença, só os não-livres se preocupam com a liberdade. A partir daí, nem sei bem em que altura, descobri que estava dividido em dois, pois havia em mim duas liberdades que se combatiam com ferocidade. Aquela que insistia no ai que prazer não cumprir um dever, e a outra que me ordenava cumpri-lo por ser esse o meu dever e não por qualquer outra razão espúria que submetesse a minha razão a um qualquer imperativo hipotético. Talvez nada disto seja verdade, mas apenas uma manifestação de uma certa inclinação que há em mim para a hipérbole. Há quem se entregue à metáfora, ou à metonímia, ou à anáfora, ou à litotes. A mim coube-me a hipérbole. Por vezes, imagino-me capturado pela anáfora, e que todo o meu discurso contém, continuamente, a repetição de uma expressão, ai que prazer não cumprir um dever, ai que prazer ter um livro e não o ler, ai que prazer acordar para adormecer, ai que prazer parar para voltar a correr. De certa maneira, a anáfora, na sua ânsia de repetição, contém em si qualquer coisa de hiperbólico. Por isso, dar-me-á tanto prazer.
sábado, 11 de março de 2023
Um casamento em G
Quando nada ocorre, quando a mente é uma página em branco na qual nada se inscreve, quando a preguiça toma conta da rede neuronal, não há outro remédio senão recorrer à citação. Apesar de os linguistas afirmarem que com as poucas letras do alfabeto, o número insignificante, apesar de tudo, de regras gramaticais, e os milhares de palavras, ainda um número demasiado limitado, que as letras têm permitido criar, podemos construir um número infinito de frases e, provavelmente, um número infinito ainda maior – pois, os infinitos não são todos do mesmo tamanho – de textos, apesar deste optimismo linguístico, assevero, o mais plausível é que tudo o que se escreva e diga não passe de citação. Isto absolver-me-á de me entregar agora à tarefa de citar. Leia-se: Gallito está fotografado na minha sensibilidade, com Pavlowa e Massine… Gallito foi, efectivamente, um dos maiores bailarinos que em meus olhos dançaram… Em seus passos ouvia-se castanholar a Espanha. Ora, como me está a agradar a citação, informo que Espanha é seguida de um parágrafo, para depois o texto ser retomado assim: Quando o seu corpo, em desafio, relampejava nos olhos punhalescos do boi, sentia-se viver a raça na distância entre a fera e o matador… Gallito era um grito da tradição, um filho longínquo da Salomé que, à falta de cabeças de profetas, teve que dançar com cabeças de touros… Sempre se pode trocar esta citação de António Ferro por uma de Alexander Kluge: Quando duas pessoas se põem a discutir numa sala, são seis pessoas que ali estão sentadas. São também os pais que ali estão a discutir, disse um amigo psicólogo. Pode ser que sim, mas o problema de Gertie era que ela não era capaz de discutir, pelo menos com o seu actual namorado. Por isso, mesmo quando ela chegava a dizer alguma coisa, era sempre uma só pessoa a falar. Ora, o actual namorado de Gertie é Franz, embora eu imagine uma outra coisa. Suspeito que o seu verdadeiro namorado é o matador Gallito, que, cansado de dançar nos olhos dos toiros, cansado de estocadas finais, apenas olha para Gertie e, farto de multidões, não quer que os pais dele e os pais dela lhes venham estragar o dia ou a noite, pois aquela casa, onde um amor improvável se consuma, não é nenhuma arena. Creio que, juro, um dia destes, depois de uma chicuelina e de uma verónica, ao som de um paso-doble, Gallito pedirá Gertie em casamento. Será um casamento solar, ou em G, que, em certas notações musicais, designa aquilo que noutras é nomeado por Sol, se não estou enganado. Restaria apenas saber se será um casamento em Sol maior ou menor, mas como é regra nestes textos, não se pode saber tudo.
sexta-feira, 10 de março de 2023
Um mundo perfeito
Está concluído o primeiro terço de Março. O tempo desliza, entrega-se a uma volúpia sem nome, arrastando-nos com ele, sem nos dar a possibilidade da recusa. Os dias úteis da semana, tão cheios de inutilidades, também estão consumados. Vai ser um fim-de-semana agitado, com netos que o tempo, mais uma vez, faz crescer, roubando-os à infância. Elas já se afastarem, a passos largos, dessa primeira moradia, ele ainda por ali corre inconsciente de que é a sua casa mais fundamental. Enquanto a casa está tranquila deixo correr, pelas mãos de Daniel Barenboim, as Canções sem Palavras (Lieder ohne Worte), de Felix Mendelssohn, e leio Incendeia-se a desventurada Dido e pela cidade inteira vagueia, / desvairada, qual corça colhida por uma seta, / a quem pegou, desprevenida, no meio dos bosques de Creta, / o pastor que com seus dardos a perseguiu e nela deixou um ferro alado, sem o saber; ela, na fuga, atravessa bosques e barrancos / do Dicteu; aguenta, firme, no flanco a seta fatal. E neste instante penso não apenas que este é o melhor dos mundos possíveis, mas é um mundo perfeito, agora que a tarde se aprestar para se entregar nos braços do crepúsculo, que, ao cingi-la com suavidade, a adormecerá, entregando-a às sombras do reino da noite. Fecho os olhos antes que da Flauta Mágica chegue a Rainha da Noite com a vingança do inferno a arder no coração, e, incendiada, estrague o mundo que mesmo agora, apesar de pensar nessa harpia, me parece tão perfeito.
quinta-feira, 9 de março de 2023
Da visão
Não são poucas as vezes que tenho de me obrigar à contenção e não me deixar arrastar por um desejo insensato de comprar um livro que já possuo, mas que agora se apresenta com uma outra capa. Por norma, resisto, mas esta inclinação não deixa de colocar um problema interessante. Imaginemos que de uma certa obra é feita uma nova edição, sem que o texto sofra uma única alteração, mas o design da capa muda. Será ainda a mesma obra? O design gráfico que opera em produtos como livros, discos, CD, DVD, etc., é eficaz porque passa a fazer parte da obra. Poder-se-á dizer que o design presente nas capas parasita a obra que encapa, mas é duvidoso o que é, nesse processo, parasitado e o que é parasitário. Se se observar com atenção a relação que se estabelece com um livro, descobre-se que é necessário um esforço para separar o conteúdo da obra da sua capa, do seu design gráfico. Será por isso que mesmo os e-books continuam a ostentar a capa, assim como a música digital, tanto a vendida como a alugada em plataformas, não dispensa a exibição da capa do disco ou CD físicos. Tudo isto revela o peso que a visão tem nas nossas escolhas e como a visão poder ser o guia que abre o caminho para outras experienciais sensoriais ou mesmo racionais. Aristóteles já tinha percebido a sua importância. O livro primeiro (alfa) de A Metafísica começa com a seguinte declaração: Todos os homens têm naturalmente o desejo de saber. O que o testemunha é o prazer que nos causam as percepções dos nossos sentidos. Agradam-nos por elas mesmas, independentemente da sua utilidade, sobretudo as da visão. Não se pense que o discípulo de Platão não oferece razões para este louvor à visão: É que ela nos permite, melhores que todos os outros (sentidos), conhecer os objectos, e nos revela um grande número de diferenças. Sendo assim, o prazer de ver que as capas exploram é um modo de intensificar o prazer de ouvir ou o prazer de ler. Curioso, para além da questão das capas, é o início da obra de Aristóteles, daquela que trata dos assuntos mais abstractos, daqueles que estão para além daquilo que é físico ou natural. Começa com uma afirmação de que o desejo de saber faz parte da natureza de todos os homens e passa, de imediato, a uma apologia do prazer proporcionado pelos sentidos. Será por isso que muitas vezes sou tentado a comprar um livro que já tenho apenas pelo facto de se apresentar numa nova capa que os olhos não deixam de desejar.
quarta-feira, 8 de março de 2023
Do disfarce
Logo no início do livro, trata-se de Lacrimae Rerum, Slavoj Žižek, num texto sobre o cineasta polaco Krzysztof Kieślowski, refere o fosso bem visível entre uma realidade social cinzenta e triste e a imagem optimista e resplandecente que impregnava os media oficiais sujeitos a uma censura rígida. Não são poucas as vezes que penso, ao deparar-me com uma pessoa transbordante de optimismo e de esplendor, que qualquer coisa se esconderá por detrás daquela aparência. Nunca sei, porém, se estou perante um disfarce para tentar evitar que olhos estranhos penetrem no segredo de uma existência ou se aquela representação é uma forma de se proteger contra a crueza da vida. Talvez as duas coisas. É possível que, no olhar que tenho das coisas e das pessoas, seja influenciado pela doutrina aristotélica do meio termo. A virtude residirá no meio entre o excesso e a deficiência, no sentido de falta. A fanfarronice é a máscara ostentada pelo cobarde, a cobardia é a deficiência no âmbito da coragem, que não se suporta a si mesmo. A exuberância cintilante do optimista é a máscara de uma vida triste e amargurada, marcada pelo pessimismo. A descrição de Žižek refere-se a sociedades governadas autoritariamente, mas o que poderemos nós pensar de sociedades livres? Nelas não existe uma censura que imponha uma alegria oficial para disfarçar a tristeza real. Todavia, tudo aquilo que podemos colocar sob o epíteto de sociedade do espectáculo pretenderá esconder o quê? Que deficiência, ao vivermos e alimentarmos esse tipo de sociedade, pretendemos ocultar? É plausível que o espectáculo seja o disfarce do vazio que são as vidas dos indivíduos, de todos aqueles que não sabem (e haverá alguém que saiba?) que o lugar do homem não é nem a falta nem a plenitude, mas a mera suficiência, um medíocre qualificativo, mas que está de acordo com a natureza de seres finitos e limitados. Talvez os elementos atmosféricos me tenham impedido de fazer uma meditação menos esotérica. Quando o céu está carregado de chumbo e a ramagem das árvores dança sob o efeito da música impiedosa do vento, o pensamento tende a espelhar aquilo que no mundo se manifesta. Não faltam astrólogos para predizer o ânimo das pessoas de acordo com a conjugação dos astros, melhor fora que se dedicassem à meteorologia ou, para ser mais preciso, a uma psicometeorologia.
terça-feira, 7 de março de 2023
As imperfeições de um cavaleiro andante
segunda-feira, 6 de março de 2023
Universos em expansão
Voltar a um hábito já com algum tempo. Consultar a aplicação que fornece os dados meteorológicos e confirmar aquilo que os olhos vêem. Via chover, mas só tive a certeza de que assim era quando a aplicação do telemóvel me confirmou que, neste lugar, estava a chover. Uma coisa são os nossos sentidos, falíveis e sempre inclinados à ilusão, outra é o mundo dos algoritmos digitais que fornece informação que, pela sua natureza, não estará presa às fantasias das sensações. No friso das orquídeas, há três floridas. Uma, porém, não deve ser tida neste rol, pois foi comprada há duas ou três semanas e já vinha florida. Uma floração branca e pura. A amarela está exuberante e uma de cor fúcsia, se é que se deve assim denominar aquela cor, também iniciou o processo de floração. Uma rápida inspecção permitiu perceber que também outras se aprestam para chegar ao grande momento. A minha relação com as orquídeas é puramente contemplativa, sou um voyeur e não um cultivador, tão pouco um jardineiro. Imagino que deveria haver uma aplicação para confirmar se as orquídeas que vejo floridas o estão de facto, e não é apenas uma presunção minha, uma visão delirante, a obscura ânsia pela anunciação da Primavera. Há pouco, ao ler um poema – melhor, a tradução de um poema – de Rainer Maria Rilke, deparei-me com um mundo que nunca foi o meu. Com os mundos do passado acontece o mesmo do que com as galáxias. Quanto mais longe estão de nós, mais depressa se afastam. O afastamento de nós do mundo de Rilke é menos veloz do que do de Goethe, e o deste menos apressado do que o de Homero. Talvez, por analogia, o mesmo possa acontecer com a nossa vida. O afastamento da minha infância é muito mais rápido do que o afastamento dos meus quarenta anos. Para a minha escala, a infância corre desvairada para trás, sempre cada vez mais depressa, infatigável. Eu vejo-a afastar-se e sinto uma leve tristeza por ela não me poder suportar. Imagino que também os mundos poéticos de outrora não suportem os actuais. Isto significa que o universo poético está em expansão. Significa também outra coisa, o universo de cada um também se expande até à hora em que colapsa devido à velocidade de afastamento de cada época em relação ao presente, sendo a morte a impossibilidade de manter a concatenação dos tempos que nos foram dados a viver. Isto, se nenhuma aplicação o vier desdizer.
domingo, 5 de março de 2023
Macaquices
Entre radicais e terminações, a minha neta mais velha vai compondo o condicional do verbo être. O francês tornou-se um objecto estranho na aprendizagem das novas gerações. Durante muito tempo, o francês e o que se passava em França exerciam uma poderosa influência sobre a cultura nacional, agora parece que só existe o mundo anglo-saxónico. De tal maneira que, muitas vezes, se ouve pronunciar palavras francesas como se fossem inglesas. Isto é uma espécie de traição às nossas origens. Afonso Henriques era descendente de franceses, somos uma espécie de filhos de França. Agora, porém, macaqueamos os anglo-saxónicos, e as nossas elites tentam esquecer que somos um povo com uma língua latina, como se isso fosse uma vergonha. Daí, o crescimento exponencial do uso de palavras inglesas. Nas áreas da economia e da gestão, isso tornou-se uma praga, como se esse uso mágico nos tornasse um povo de grandes empresários e de gestores de alta qualidade. Ora, o que acontece em Portugal é um fenómeno curiosíssimo. Quando uma palavra se torna o que agora se chama um mantra, então podemos ter a certeza que aquilo que a palavra denota não existe, nem ninguém está empenhado em fazer que exista, mas toda a gente está comprometida em fingir que existe. Somos um povo de fingidores, o mesmo será dizer que somos um povo de poetas, pois um poeta é um fingidor. E aqui retorno à trivialidade que me habita, o que está de acordo com este domingo frio. O verbo être lá se vai declinando nos vários tempos e modos. Agora, passou para o imperfeito do faire. Ora, se há uma coisa que me apetece é mesmo não fazer nada.
sábado, 4 de março de 2023
O cine-pipoca e uma teoria do septo
Pela primeira vez, desde que começou a pandemia, fui ao cinema. Um filme inglês, Viver. Ao meu lado sentou-se uma rapariga – ou seria uma jovem mulher, imagino-a na casa dos vinte – que pertence a um mundo estranho, demasiado estranho. Passou o filme a comer pipocas. Ouvia-a mexer naquelas coisas e a mastigá-las. Por vezes, apertava o plástico de uma garrafa de água e este crepitava, tudo ao meu lado crepitava. Só ia a salas de cinema onde não se vendiam pipocas. Por norma, no Monumental, onde passava o cinema europeu. As salas do grupo Medeia fecharam todas. Fui às Amoreiras, onde o cine-pipoca parece ser dominante. Saído do filme, e com a desculpa de ter de comprar um livro para uma das netas, deixei-me cair em tentação. E a tentação traduziu-se em Professor Unrat ou o Fim de um Tirano, de Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas Mann, O Outro Nome – Septologia I – II, de Jon Fosse, Autobiografia de uma Mulher Romântica, de Natália Nunes, e O Marinheiro Que Perdeu as Graças do Mar, de Yukio Mishima. Continuo a acumular livros. É uma patologia, ainda por cima leio mais em formato digital do que em papel. O Word está a ficar sofisticado. Sublinhou a verde a expressão ainda por cima. Fui ver o que ele queria. A mensagem dizia: Locução própria de linguagem informal. Pondere a utilização de uma expressão alternativa. Quem lhe terá dito que estes textos são formais? Não apenas são informais, como são informes, mas a sua falta de forma não chega à criatividade da tradutora do livro de Jon Fosse. Um ciclo de sete romances não recorre, para designação, em português, do conjunto, ao elemento de composição septo, mas hepta. Uma heptalogia, não uma septologia, que me lembrou de imediato uma teoria sobre o septo, talvez o nasal. Isto, porém, pode ser apenas mais um sinal de que o mundo mudou de tal maneira que sete e septo, que em latim significava parede, tapume, sejam da mesma família. Também é possível que o romance de Fosse seja uma teoria das paredes ou dos tapumes. Nunca se sabe.
sexta-feira, 3 de março de 2023
Louvor da banalidade
Chegou o fim de semana. Nada melhor do que uma banalidade para começar. Ora, apesar da má fama, é aquela que torna a vida possível. Ninguém poderia viver continuamente num estado extraordinário, e se isso acontecesse, esse estado tornar-se-ia banal. A banalidade é a medida dos homens. Pelo menos, é a minha. É possível pensar uma arte da banalidade, uma forma de viver em que a existência trivial se torne um exercício artístico, mas de uma arte expectável, de onde foi banida a surpresa. Imaginemos o chamado bom gosto burguês. Ora, essa banalidade bem-apessoada tornou-se o bombo da festa dos artistas, desde Baudelaire e Rimbaud até às diversas vanguardas artísticas que o século XX viu crescer como cogumelos numa floresta. Em Portugal, deu origem ao Manifesto Anti-Dantas, por exemplo. Agora que a pulsão vanguardista passou de moda, é possível, sem correr o risco de passar por tolo, viver banalmente, cultivando os canteiros da sua trivialidade. Numa vida vulgar, podemos assumir a própria frivolidade e não ver nisso o fim-de-mundo ou motivo para ser denunciado na praça pública. Depois, ao contrário das vidas extraordinárias nas quais só acontecem coisas excepcionais, a vida banal pode, por vezes, ser surpreendida por um acontecimento singular, digno de nota e, por ser tão raro, motivo de desmedido prazer. Assim, entro banalmente na insignificância do fim-de-semana e deixo passar pela minha consciência toda a futilidade que me anima.
quinta-feira, 2 de março de 2023
O tempo
O tempo, esse lençol que se estende sobre a terra e se fende, e se esburaca, e se rasga sem parar, numa ânsia, sempre frustrada, de encontrar o futuro que o espera, segundo diz. Esse é o trabalho de Sísifo a que o tempo foi condenado. Atirar-se sempre para diante, e nunca, nunca sair de onde está. O tempo é imóvel, a cada momento está no presente e por mais que corra, que acelere, nunca deixará de estar na casa da partida. O tempo é uma esfinge. Imóvel, as coisas passam perante ele, e ele vê-as passar e, com o seu olhar encantatório, ilude cada uma, fazendo-a pensar que envelhece porque ele, o deus devorador, por ela passa. O tempo é uma mentira. Não, o tempo é um mentiroso. Diz que passa, mas não passa, está preso ao presente como Prometeu estava agrilhoado ao rochedo. O presento é o rochedo onde o tempo foi agrilhoada, para que uma águia, dia após dia, lhe coma o fígado. As nossas rugas são a dor do tempo, a dor do condenado a estar eternamente onde está, a dor do deus devorado pela águia da eternidade. Depois de escrever o que escrevi, pensei que alguma coisa que comi me perturbara a razão, e não haverá nada de mais vergonhoso do que alguém, carregado de dias, deixar a sua razão perturbar-se. Retracto-me. O tempo existe, corre, fende as rochas e derruba as florestas, está cada vez mais próximo do futuro e mais longe do passado.
quarta-feira, 1 de março de 2023
Um modo de cismar
Olha-se o céu e percebe-se que também o Inverno é finito. No declínio da tarde, pressente-se a morte da estação fria. Na linha do horizonte, atrevida, a Primavera assoma, faz trejeitos e acena para a multidão de basbaques que a aguarda. Antes de chegar, suspeita-se que é bela como uma estrela de cinema, daquelas que todos querem ver, não porque represente bem, mas apenas porque foi tocada pela maior das graças, a da beleza. Depois, haverá de envelhecer, criar rugas de calor, num rosto que se desfigura com o passar das horas. A repetição do drama das estações, porém, nunca cansa, pois, ao nascermos, foi-nos dada uma inclinação para querer ver sempre um novo ciclo, para nunca nos cansarmos com a repetição de cenas e quadros. Pelo contrário, com o passar do tempo criamos um ciclo ideal, nunca se sabe quando e como, e, ano após ano, esperamos que ele se repita exactamente como a nossa fantasia o desenhou. A dissonância e a novidade dentro de cada estação causam-nos um profundo desagrado, como se alguma coisa no mundo saísse fora dos eixos e não houvesse quem a fizesse voltar ao lugar. Isto são pensamentos de quem envelheceu, de quem, quando era novo, não pensava nas estações, nem nos ciclos, nem se incomodava com a irregularidade do que acontecia. É uma forma de cismar ao sol nos dias frios de Inverno, de se entregar ao silêncio, enquanto um gato atravessa a rua e um sino toca numa memória muito antiga.
terça-feira, 28 de fevereiro de 2023
Um longo adeus
Fevereiro despede-se com frio e sol, numa cintilação de cristal, de gelo incendiado por uma luz quase primaveril. Nesta hora, em que o resplendor do sol começa a declinar, podia citar o começo de uma pequena narrativa modernista: Conheci Madame Film em Roma, no hall do Excelsior, à hora do chá, essa hora que eu cito frequentemente, porque é a minha hora, a hora em que eu tomo sol aos golos, a hora em que o sol morre nos meus labios… Eu não tomo chicaras de chá, tomo chicaras de sol… Mantive a grafia original, mas o texto não deixa de reverberar. E o autor? Bem, trata-se de António Ferro, o editor de Orpheu, que imolou o talento literário na pira do jornalismo e da política. O mesmo terá acontecido a Platão que abandonou a poesia trágica pela Filosofia, mas aí apenas trocou um género literário por outro, que ainda não existia e que ele acabou por inventar. No lugar da tragédia, temos o diálogo lógico, uma ficcionalização do pensamento. Queria eu despedir-me de Fevereiro e logo umas visitas inoportunas se intrometeram na corrente de consciência. A vida é cheia de intromissões e é preciso uma infinita constância para perseverar no rumo que intromissões e intrometidos tentam destruir. Enquanto a noite se apresta para tomar de assalto a cidadela do dia e uns adolescentes gritam a sua adolescência a plenos pulmões, antes de entrarem na caverna do instituto de línguas, oiço Dark/Light 1, uma pequena peça de Meredith Monk. Deixo-me envolver na voz da cantora e olho o horizonte à espera da hora do crepúsculo, para dizer um longo adeus a Fevereiro.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023
Cibernética e vida no campo
Quem sofre do vício de comprar livros sabe, um saber de experiência feito, que parte significativa do que compra não será lido. Está aí, ao alcance da mão, e caso seja necessário sabe-se onde encontrar. Descobri há pouco um livro nessas condições. Tinha-o esquecido e no acaso improvável de alguém me perguntar se o conhecia, juraria que jamais ouvira falar dele. Trata-se de La Conscience des Machines – Une métaphysique de la cybernétique, suivi de «Cognition et Volition», do filósofo alemão Gothard Günther (1900-1984). Os motivos que me levaram à compra dissolveram-se, talvez tenha julgado que ali seria dito alguma coisa de importante sobre a essência do nosso tempo, se é que os tempos têm essência, se não são apenas mera existência. Resgatado do esquecimento a que tinha sido votado. Ao lado dele, estavam, nas mesmas condições, dois outros ensaios, The Posthuman, de Rosi Braidotti, e Homo Labyrinthus – Humanisme, Antihumanisme, Posthumanisme, de Frédéric Neyrat. Tudo indica que, a certa altura, alguma coisa me preocupou, mas que o peso da realidade dissolveu o tempo que queria dedicar à preocupação, tendo os livros adormecido até terem sido redescobertos. Agora, sou obrigado a ponderar se a preocupação de então continua a poder ser preocupante. Demorei-me, depois da redescoberta, a olhar as paisagens de João Hogan reproduzidas na Electra do Outono passado. Ali, não se encontra nada de anti-humano ou de pós-humano, pois o humano foi varrido delas. São lugares inóspitos, muito diferentes das paisagens posteriores de João Queirós, onde a ausência do humano não gera a mesma sensação de inabitabilidade, mas traz um sentimento de plenitude da natureza. Num dos textos da Electra, da autoria de Jeff Malpas, é dito o seguinte: Regressar ao campo é reencontrar o sentimento de estarmos no sítio de onde viemos, um sentimento que não se esgota nem é plenamente evidente da cidade por si só. Isto recordou-me uma série da minha infância – ou será da pós-infância? – Viver no Campo. Talvez Malpas tenha também visto a mesma série e, na desavença entre marido e mulher acerca da bondade de viver no campo, tenha tomado o partido do marido. Nunca é demais assinalar que nunca se sabe os motivos que nos levam a pensar aquilo que pensamos.
domingo, 26 de fevereiro de 2023
A ordem puritana
Tendo descoberto dois programas de Inteligência Artificial que me permitiam o uso gratuito, entretive-me, durante parte da manhã, a escrever pequenos textos que eram transformados em imagens. Um dos programas, ainda na fase de lançamento, tem já uma vincada personalidade censória. Vincada, pois o texto que lá coloquei não tinha nada de ofensivo seja para quem for, tão pouco palavras que o uso rejeitou como impróprias na conversação social. Uma mensagem informou-me que o texto continha palavras que poderiam gerar imagens inadequadas. Não descobri que imagens seriam essas, mas o pior é que nem sequer discerni quais as palavras que incendiaram, na mente artificial, pensamentos de tal modo escabrosos que ela optou pela censura. Sem se dar por isso, estamos a entrar numa nova era puritana. Apesar dos neopuritanos se encontrarem divididos em grupos inimigos, há uma coisa em que estão todos de acordo, a necessidade e o direito de censurar. Devido à inimizade reinante, podemos prever, sem recurso à profecia ou mesmo à Inteligência Artificial, que o futuro nos trará guerras de censores. Isto não deixa de ser interessante, pois o discurso é tratado como um animal selvagem que há que domesticar. Neste caso, o recuso à Inteligência Artificial parece promissor, pois esta consegue ler o censurável naquilo onde qualquer leitor exímio – embora, humano – jamais o conseguiria encontrar, por perito que fosse na arte hermenêutica. A poesia é o principal inimigo destas hordas bárbaras de puritanos, pois é o lugar onde a insubordinação das palavras gera o selvagem no discurso. Aquilo que era visto como a redenção da linguagem é, agora, tido como uma ameaça à ordem puritana que esbraceja por todo o lado.
sábado, 25 de fevereiro de 2023
Da memória e da nuvem
Acabei de falar com uma sobrinha. Faz hoje anos. Valeu-me a aplicação do telemóvel, que tem a amabilidade de me avisar. Aliás, começa a fazê-lo uma semana antes. Não fora isso, ter-me-ia passado a efeméride. Antigamente, as pessoas usavam agendas, onde colocavam, nos respectivos dias, os acontecimentos que deveriam recordar. Nunca tive agendas. Melhor, tive várias, mas nunca as usei. Por norma, ficavam em branco e esquecidas. As aplicações do telemóvel são coisas mais eficazes para a degradação da memória. Há uns tempos mudei a palavra-passe de uma conta de email que uso na vida real. Como seria de esperar, quando queria aceder à conta, de modo automático, colocava a velha palavra-passe, era-me negado o acesso, mas plataforma informava-me que tinha alterado a senha há x dias. Isso começou a despertar em mim uma curiosidade. Qual seria o dia em que já não me enganaria? Quanto tempo precisava para consolidar na espontaneidade da escrita a nova chave de acesso? Pensei que trinta dias era um prazo razoável para a velha memória ser preterida pela nova. Há pouco, ao tentar aceder à conta, recebo a mensagem de que aquela senha foi alterada há seis meses. Esta questão não é de pouca importância, pois está ligada à natureza dos hábitos. Aristóteles afirmava que estes eram uma segunda natureza, o que significaria mais ou menos que aquilo que resultou de uma escolha ou decisão se tornou numa necessidade. Quanto tempo demorará a trocar uma necessidade por outra? Tem estado um sábado soturno, pouco luminoso, com chuva fria. Não é dia propício para escrever seja o que for. Porém, sempre se pode copiar qualquer coisa de alguém que tenha estado mais inspirado. Numa obra de 1981, com o estranho nome de Introdução à Filosofia, o poeta Fernando Echevarría começa o primeiro soneto do Compêndio de Antropologia com a seguinte quadra: Na memória de Deus se continua / a centelha que fomos de repente. / A nossa sombra segue sendo sua / na suspensão de si que nos consente. Talvez, e isto é uma mera hipótese, possamos recuperar o que perdemos da nossa memória nessa memória que retém a centelha que fomos de repente. O que seria uma forma, usando a linguagem informática, de recorrer à nuvem, embora Deus não seja uma nuvem, mas O que se esconde por detrás da nuvem. O que nos leva a suspeitar que as nuvens informáticas esconderão qualquer outra coisa, talvez um deus virtual.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023
Feridas
Os dias crescem e as noites minguam. Depois, tudo se inverterá, os dias reduzir-se-ão e as noites haverão de se dilatar. E depois? Bem, depois sempre descobrimos que o equilíbrio na natureza é feito de desequilíbrios. Podemos pensar que o justo seria dias e noites serem sempre iguais. A natureza tem outro critério. A igualdade entre dias e noites nasce do somatório das desigualdades que existem entre ambas. No lugar da constância temos uma lei da compensação. Isto funciona nas realidades cíclicas, e durante muito tempo também os homens pensaram que a sua vida se inscrevia nessas realidades. Os ciclos festivos, com os seus rituais, ordenavam a vida desse modo, o que dava a ilusão de eternidade. O senhor Sigmund Freud, num momento inspirado, descreve a história do homem moderno a partir de três feridas narcísicas. A primeira, vem com Copérnico e a descoberta de que afinal não vivemos no centro do universo. A segunda, trazida por Darwin, coloca a nossa espécie como uma entre muitas outras. O que ela é não resulta de qualquer eleição, mas da mera evolução adaptativa ao meio. A terceira ferida é descoberta do próprio Freud. Ao sermos sobredeterminados pelo inconsciente nem sequer somos senhores de nós próprios. Por interessantes e dramáticas que sejam esta feridas, a única ferida real, a chaga verdadeiramente viva que nos atormenta, é a descoberta de que não somos seres cíclicos, mas entidades lineares que percorrem uma linha recta, por sinuosa que pareça, entre o nascimento e a morte. O que nos cabe não é a eternidade, mas o tempo, e um tempo sempre demasiado curto. A tomada de consciência plena do que é ter uma natureza histórica, um processo tardio na nossa espécie, é uma ferida de tal dimensão que ao pé dela as feridas provocadas pelas descobertas de Copérnico, Darwin e de Freud parecem fantasias de crianças. Para a ferida de se ser temporal não há constância no devir nem lei da compensação que a cure. E é assim, com estas meditações sem nexo, que entro naquela parte do ciclo semanal que tem por centro os benévolos dias da sagrada inutilidade.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
Apocrifia e falácias
Uma visita à pasta onde guardo estes textos recordou-me que tinha separado o conjunto de textos escritos durante os tempos mais iniciais da pandemia, entre 1 de Março e 20 de Junho de 2020, e tinha-lhe dado um título curioso: E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor – diário da pandemia. Ora, este título, excluindo a indicação diário da pandemia, retirei-o de uma passagem de uma obra apócrifa de Bernardo de Claraval, também conhecido por S. Bernardo. A obra em causa ostenta o título Traité de la Maison Intérieure ou de l’édification de la Conscience. Segundo li, apesar de surgir como sendo do monge cisterciense, nada no estilo e na organização, um pouco caótica, indica que seja dele. Por que razão li, em parte, a obra, não me recordo e dela só me ficou a frase que utilizei como título do conjunto de textos dos tempos de pandemia. Se à obra não foi reconhecida autenticidade, será que cada uma das suas frases será também inautêntica? Afirmá-lo seria cair na típica falácia da divisão, que consiste em atribuir às partes uma propriedade do todo. Portanto, poderemos considerar a obra apócrifa, mas não a frase que dela extraí. Isto daria um resultado interessante, a obra não seria da autoria do monge de Cister, mas as frases que a compõem poderiam ser, o que provaria que uma obra escrita é mais do que as frases com que ela foi tecida. Ou então, nem sempre a falácia da divisão é uma falácia. Esta quinta-feira não me parece propícia para escrever. Termino por aqui.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023
Cumplicidades e suplícios
De um momento para o outro, sem se saber como, uma pessoa torna-se cúmplice. Ora, como se sabe, tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica de fora. O pior é que nem sequer fiquei de fora à espera, mas fui mesmo à vinha. No post de ontem, sem ter dado por isso, escrevi faturas, em vez de facturas. Já coloquei a pobre consoante muda c no sítio de onde a banira. A perseguição às consoantes mudas infringe todos os princípios de não discriminação que existem. Por que razão haveremos de aceitar esse ataque às consoantes só pelo facto de terem emudecido. Ora, elas não nasceram mudas, foram perdendo a voz e é possível que exista quem ainda pronuncie, talvez de modo muito leve, o c que está em qualquer factura. Aliás, se pronunciamos o c em facto, por que razão não o haveremos de fazer em factura? Não se pense todavia, que este narrador é um militante da causa anti-AO 90. Não é militante de coisa nenhuma, nem sequer um rebelde sem causa. O dia começou sorumbático, mas agora recuperou o ânimo e apresenta uma face risonha e ensolarada. Também a cidade recuperou do desânimo carnavalesco que a atingiu ontem. Hoje comporta-se como se não fosse Quarta-Feira de Cinzas, com as gentes entregues às suas ocupações quotidianas, mesmo aquelas que estão desocupadas. A desocupação é uma actividade intensa, pois não goza da possibilidade de distracção que têm as pessoas ocupadas, pois estas sempre se distraem com as suas ocupações. Ora, estar sempre atento é uma tortura digna da mitologia grega, como aquelas que foram impostas a Sísifo, a Tântalo e a Prometeu. Fora este narrador grego e tivesse vivido há mais de três mil anos e criaria um mito em que um herói sofreria o suplício de estar constantemente atento, apesar de continuamente desocupado. Nasci tarde e fora do lugar, é o que dá estas desatenções da realidade.
terça-feira, 21 de fevereiro de 2023
Descrições
Ainda não dei por hoje ser dia de Carnaval. Espreitei para a avenida, para as ruas circundantes, mas nada de foliões, nenhum mascarado, ninguém a desfilar ao ritmo do samba. As pessoas têm uma cara de quarta-feira de cinzas e parecem ter antecipado a Quaresma, mesmo que já não saibam aquilo que ela significa. Certamente, dispensarão jejuns e abstinências, mas não deixarão de ter um ar compungido. Não por inclinação religiosa, mas para estarem de acordo com estes dias cinzentos e melancólicos. Consta que as temperaturas vão descer e, uma vez por outra, haverá chuva, caso as nuvens estejam para aí viradas. A escola aqui ao lado está vazia. As árvores do pequeno bosque que a ornamenta são agora senhoras do espaço, que parece assim mais belo. As acácias da praceta estão dramaticamente despidas, ainda faltará tempo para que se comecem a cobrir de uma penugem verde. Não, não as árvores não têm penugem, coisa de animais, mas folhagem. Seja, as acácias apenas ostentam os ramos nus e nenhum indício de que se revestirão em breve de uma belo vestido verde. Agora, um cão começou a ladrar, logo se calou, o silêncio caiu sobre as ruas, mas já uma mãe e um filho elevam as vozes para se fazerem ouvir, enquanto ele desliza no escorrega, e ela pensa noutra coisa, no rumor do coração, no pulsar do sangue, nos dias de claridade em que o Sul a espera, oferecendo-lhe uma água meridional para refrescar o corpo tomado pela cintilação do fogo. Podia ir desfilar pelas ruas, mas vou registar as facturas na plataforma das finanças, melhor, numa aplicação do telemóvel, antes que o prazo acabe, pois os prazos tendem a acabar sempre muito rapidamente.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023
Sonambulismo
Falemos então de sonambulismo. Fixemos para memória futura a definição registada num dicionário. Diz assim: automatismo inconsciente que se manifesta no sono por actos mais ou menos coordenados tais como levantar-se, andar, executar uma tarefa simples, etc., de que não fica lembrança alguma ao despertar. Entre 1931 e 1932, Hermann Broch publicou na Áustria uma trilogia romanesca denominada Die Schlafwandler, isto é, Os Sonâmbulos, constituída por Pasenow ou o Romantismo, 1888, Esch ou a Anarquia, 1903 e, por fim, Huguenau ou o Realismo, 1918. O que está em jogo é uma tematização romanesca do processo de degradação dos valores europeus. Isto já era por si mesmo um assunto, apesar de literário, bastante sério. Os europeus caminham sonâmbulos pela paisagem degradada dos seus valores. Para acrescentar seriedade à seriedade, um historiador australiano, Christopher Clark, publicou, em 2012, um livro com o título Os Sonâmbulos. O pior é que não se ficou por aqui e decidiu acrescentar como subtítulo Como a Europa entrou em Guerra em 1914. Em vez de estar a pensar nos desfiles de Carnaval, também a minha condição não me o permite, nesta segunda-feira, deu-me para isto, mas, por vezes, sou assaltado pelo temor de que nós europeus estejamos a viver há décadas mergulhados no mais profundo sonambulismo. Andamos, executamos as tarefas simples da existência, mas quando acordarmos – porventura de modo violento, pois há despertadores cuja sonoridade é odiosa – não haveremos de ter consciência de como nos metemos na boca do lobo. Fiquei espantado com estas considerações, incluindo a definição dicionarizada, do padre Lodo, quando falámos hoje, coisa que não fazíamos há uns tempos. O que se passa, perguntei-lhe. Tenho estado a ler o livro do australiano e passados bem mais de 100 anos dos acontecimentos que levaram à tragédia de catorze, parece termos voltado à casa de partida, como se a vida não passasse de um jogo de Monopólio. Talvez não passe, sugeri. É aí que está o erro, respondeu. Pensar que a vida é só uma partida de Monopólio é aquilo que fazemos e está errado, pois este não passa de uma forma de sonambulismo. Será que sofre de sonambulismo, perguntei. Não, respondeu, pelo menos não tenho qualquer indício que aponte para isso, mas nunca sabemos o que nos pode acontecer quando estamos a dormir.
domingo, 19 de fevereiro de 2023
No observatório
Na avenida, o movimento é reduzido, alguns carros procuram o seu destino, um ou outro passeante espera receber a bênção do sol, embrenhado na liturgia do ar livre. Depois, por instantes, só a solidão ocupa a rua, nem gatos ou cães vadios, se os há, por ali se requebram. Então, uma outra revoada de carros. Voltou-me a inclinação para a hipérbole. Revoada não será, apenas um pequeno bando que nem a meia-dúzia chegará desliza sobre o asfalto para se perder além da rotunda, pois aqui não há avenida que não comece ou acabe numa rotunda, fora aquelas que lhes ficam no meio. Os ramos despidos das tílias deixam ver o sinal, ondas de verde em forma de cruz que vão e vêm, de que a farmácia está aberta, caso seja necessário, encontra-se ali auxílio para a dor, a doença, a indisposição do momento, talvez mesmo para a loucura ou a solidão. Uma pessoa olha de cima, contempla o espectáculo e descobre-se como um ser inclinado ao preconceito. Uma mulher passa, vai entretida na sua caminhada, e logo se desenha uma antipatia por aquela pessoa que não se conhece, de que nem o rosto se consegue perceber os traços. O modo como anda, como as pernas se erguem e os pés pisam o chão, geram um desagrado inexplicável. Depois, um casal arrasta-se no passeio. A esses conheço-os. Nunca tiram do rosto a máscara de tédio que sentem um pelo outro. É um sentimento justo, pois é recíproco. Ainda são relativamente novos, podiam divorciar-se e tornar a vida menos fastidiosa, mas talvez o contrato seja mesmo esse, suportar o peso da sombra e viver entediados até que a morte os separe, e o sobrevivente descubra que o amor também pode tomar a figura do tédio. De um dos prédios, sai um homem segurando uma trela e no fim desta um cão minúsculo. Entre o homem e o cão há uma desproporção inaceitável, uma desatenção ao equilíbrio estético que deverá haver entre pessoas e animais. É o que acontece quando se pensa que tudo é uma questão de gosto pessoal, não percebendo que a harmonia das coisas resulta de medidas objectivas e universais. Há que fazer um esforço para as conhecer. A província caminha por dentro do domingo com a mala a tiracolo. Isto lembrou-me um poema do O’Neil que acaba assim: O homem que pedala, que ped’alma / com o passado a tiracolo / ao ar vivaz abre as narinas / tem o por vir na pedaleira. Na província, porém, não há provir, só pedaleiras, mas nas grandes capitais nem a pedaleira alimenta uma alma.
sábado, 18 de fevereiro de 2023
Da perfeição das coisas
Nas mais pequenas coisas descobre-se o inesperado, por exemplo, a perfeição do mundo. Tendo necessidade de limpar as lentes dos óculos, fui conduzido pela própria realidade a uma reflexão sobre a excelência do mundo em que vivemos, o qual, como se sabe, é o melhor dos mundos possíveis. Um melhor do que este seria impossível. Abro o estojo onde guardo os óculos e constato, mais uma vez, a existência de dois pequenos panos, um oferecido pela marca das lentes e outro, pela das armações. Como sempre, penso estar perante um pano para a lente esquerda e outro para a lente direita. E certifico-me assim de que tudo está conforme a ordem do mundo. Duas lentes, dois panos de limpeza. A perfeição deste mundo, porém, é maior do que aquela que estamos dispostos a conceder. Imagine-se o caso de perder um dos panos, coisa que pode acontecer-me devido ao facto da perfeição do mundo não ser absoluta e dentro da imperfeição que há nele, encontro-me eu. O que fazer se se der essa perda? Ficará uma das lentes por limpar, enquanto a outra regurgita de transparência e cintilação? Isto aconteceria se este mundo fosse pior do que realmente é. Precavido, o oculista – agora designado por Óptica L… – ofereceu-me um terceiro pano, dentro de uma bela embalagem de cartão branco, onde, como se fora um brasão medieval, se inscreve o logotipo e sob o qual se vê a informação desde 1963. Não será uma aristocracia óptica muito antiga. Não se poderia comparar com uma cuja ascendência remontasse a Espinosa, caso este tivesse tido filhos, e estes também os tivessem tido, e assim sucessivamente, todos eles a polir lentes, depois a criar telescópios, óculos, binóculos, ao mesmo tempo que escreviam tratados sobre a reforma do entendimento, ensaios teológico-políticos ou mesmo, por desfastio, livros de ética. Contudo, a aristocracia óptica de Espinosa morreu com ele, sem deixar descendência, perdendo-se um número indeterminado de tratados filosóficos e de lentes polidas. Voltando à questão essencial, a perfeição do mundo manifesta-se também no facto de os próprios comerciantes de óculos, isto é, de armações e lentes, anteciparem a imperfeição dos clientes e contribuírem para que, em caso de perda, não fique uma lente baça, fosca, esmaecida, nebulosa, ocultando a realidade a um dos olhos, enquanto o outro vê tudo, até aquilo que não devia ver. Estamos no Carnaval. É sábado gordo e no telemóvel vejo uma fotografia do meu neto feito transformer. O super-herói chega mais logo. Vou limpar os óculos e esforçar-me por não perder os panos.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023
Mundos
A médica de medicina familiar com que me consulto ultrapassou, há um bom par de anos, os setenta, mas continua em forma e com um espírito agudo, a que junta uma grande bonomia. Não gosta muito de usar o computador e as requisições – ou serão prescrições? – de exames são manuscritas. Usa uma caneta Montblanc de tinta preta para escrever nas folhas brancas com o símbolo da clínica a azul no canto superior direito. Então, o papel enche-se de uma ondulação de caracteres, enquanto o aparo desliza deixando um rasto vindo de longe, de muito longe. Acabada a requisição e antes de colar a etiqueta – imagino que tenha um nome específico – com o seu nome, código de barras e não sei bem mais o quê, usa uma outra folha como mata-borrão. Nesses momentos, confronto-me com um mundo que acabou, onde as pessoas escreviam com canetas de tinta permanente, preta ou azul, compravam tinteiros para encher o depósito da caneta e tinham mata-borrões nas secretárias. Aliás, uma das estratégias publicitárias de então era oferecer mata-borrões no verso de um postal com os produtos da empresa. Olho para a escrita dela, agora diante de mim, e sinto estar perante um mundo absolutamente confiável. O lado negro desta minha posição foi o comentário que fiz sobre a médica, aliás bastante simpática e cuidadosa, que atendeu a minha mãe numa ida às urgências. Disse: era uma médica pouco mais velha do que a… As reticências indicam o nome da minha neta. Ora, isto é bastante preconceituoso, pois ela teria mais do dobro da idade da… Não escreverá com caneta de tinta permanente, usará o computador com rapidez e eficácia, mas pertence a um mundo que já não é o meu, apesar de eu nunca usar a minha Montblanc e conviver com bastante à-vontade com o mundo digital, de tal modo que muito raramente escrevo à mão. Schubert acompanha-me na entrada da noite desta sexta-feira. O Carnaval aproxima-se e sinto já imensa piedade pelos desfiles carnavalescos nacionais. Isto recordou-me a conversa ouvida hoje de manhã na fila de um hipermercado. Uma rapariga, com idade da médica que atendeu a minha mãe, confidenciava a outra que iria ao Carnaval de… com o namorado. E havia entusiasmo nessa confidência, não sei se motivado pelo namorado, se pela ida, se pela confidência. Não temos de saber tudo.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023
Pedras
Estes dias de Fevereiro parecem os de uma Primavera antecipada. Trazem calor e algazarra às ruas, como se toda a gente estivesse exausta dos dias sorumbáticos de Inverno. Agora, os corações sonham com o Estio, as águas do mar, as viagens de férias, mas tudo isso ainda pertence ao domínio da promessa. Talvez ainda volte a chover. No friso das orquídeas, o tempo passa devagar. Apenas uma está florida, tem duas flores amarelas e promete ainda outras para breve, enquanto as suas companheiras de habitação permanecem sonolentas, talvez castas, cheias de pudor, temerosas de mostrar a beleza que as habita. Da janela, ainda avisto uma nesga da torre do castelo, mas a cada ano que passa, com o crescimento de um pinheiro, a nesga é menor. Talvez mais um ou dois anos e a torre desaparece, oculta na verdura da árvore. Resta, no meu campo de visão, a outra, mas essa não esta ameaçada por nenhum ser vegetal. Contemplo as velhas pedras e penso que já viram muitas coisas. Algumas, por certo, seriam dispensáveis, pensarão elas. Sim, também as pedras pensam e, sobre os homens, têm a vantagem de não cometer erros lógicos, nem de se entregarem a sórdidas falácias. É o que penso, quando olho para elas e as vejo cintilar batidas pelo sol, como se fossem a encarnação da verdade num sítio dominado pelo prazer da mentira.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023
Uma revelação
Cheguei tarde a casa. Sentei-me e, mais uma vez, sopesei a estranha herança que me coube em sorte. O que fazer com os cadernos de Eduína que um acaso me tornou proprietário. Talvez não tenha sido o fruto de um esquecimento acidental. Não é impensável que a herança seja uma dádiva consciente. Um artifício para que permanecesse em mim a sua memória. Quando pediu que os guardasse, não imaginei que não os pediria de volta. O que ela pensou na altura, porém, não faço ideia. Não os leio de modo sistemático. Por vezes, espreito para dentro de um caderno, por instantes, perscruto umas frases e fecho-o. Hoje tive uma surpresa. Não esperava deparar-me com o que li, um pequeno poema: eu era a rosa de mim desconhecida / extraviada no odor das pétalas / presa nos espinhos do silêncio // eu era a rosa de mim desfolhada / a corola vazia à espera // do fogo na memória ateado. A surpresa não vem de encontrar um poema nos seus cadernos. Era uma possibilidade em aberto, embora nunca tivesse sabido que Eduína escrevia poemas. A nossa amizade, vejo-o agora, nunca chegara ao ponto que justificasse tal revelação. Tão pouco é a metafórica de origem botânica declinada à volta da rosa que me espanta. A surpresa vem da palavra memória, como se fosse uma designação metonímica do seu ser. Via-se já, nesses longínquos dias, como uma figura do passado. Transcrevi o poema e pensei que ela, ao dar-me a guarda dos seus cadernos, queria que também eu a visse como um ser do passado, alguém que me visita por instantes quando a minha curiosidade não se detém perante as folhas escritas. A noite caiu há muito, uma voz feminina, Bernarda Fink, interpreta um lied de Schubert, um tema sobre os deuses gregos.