sexta-feira, 28 de julho de 2023

Mistérios

Há mistérios indecifráveis. Não me refiro, claro, aos segredos que o Pentágono ocultará de naves e restos biológicos alienígenas, coisa que não terá qualquer mistério. Há pouco, ao abrir um livro, deparei-me com um bilhete de entrada numa casa-museu existente no Ribatejo, antiga propriedade de um importante republicano, filho de um acérrimo monárquico, coisa que acontece muitas vezes. É um bilhete curioso, pois tem o preço de entrada em escudos e em euros, o que me leva a presumir que terei feito a vista nesse tempo em que ainda não nos tínhamos esquecido dos escudos, mas que já só circulavam os euros, o que está de acordo com a minha memória. O mistério está nos números escritos a lápis no verso do bilhete. Reproduzo: 284-355; 357-385; 243-255; 125-153. Descobri que indicavam excertos específicos do livro. Até aqui não há mistério. Este surge quando considero aquela caligrafia. Aqueles números não foram escritos por mim. Ora, o livro em causa não foi adquirido em segunda mão e não me lembro de alguma vez o ter emprestado a alguém, até porque quem poderia interessar-se por ele também o terá. Quem terá escrito aqueles números? A caligrafia é marcadamente feminina, mas não conheço ninguém do sexo feminino que se interesse por aqueles temas, e as mulheres que se interessam por ele não me conhecem e, por isso, não me poderiam ter dado sugestões de leitura. Restam-me hipóteses metafísicas. Por exemplo, alguma mulher me enviou uma mensagem codificada, que eu terei guardado no livro, mas cujo código de decifração esqueci, assim como o envio da mensagem e a própria mulher. Outra hipótese é a da existência de anjos do sexo feminino. Uma delas, querendo que eu lesse aquelas páginas deixou-me a mensagem no interior do livro. Parece-me uma hipótese bastante plausível. Não consigo, porém, perceber qual o interesse desse anjo feminino em orientar-me na leitura de coisas tão terrestres. Vou ler aquelas páginas e talvez descubra a razão de a mensageira me ter deixado tal mensagem. Talvez o mistério não seja indecifrável, embora, lamentavelmente, eu não seja um Sherlock Holmes.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Falta de asas

Por aqui está um tempo estupendo. O céu coberto de nuvens, um ar fresco, mas não gélido, mesmo o vento quase frio sopra com sensatez. Nem sequer chove. Para um dia de Dezembro está mesmo muito bom. A perfeição não é coisa que faça parte da minha natureza, por isso sou inclinado ao egoísmo. Eu sei que os veraneantes se sentem deprimidos, alegam faltar-lhes sol, para que possam mergulhar no oceano e depois deitar-se na areia, mas com tantos lugares para uma pessoa se deitar, por que razão terá de ser na areia? Eu sou um banhista não praticante. Creio firmemente que a água do mar faz muito bem, que o iodo faz ainda melhor, mas a fé não me leva a pôr um pé na praia. Este ano estou ainda mais limitado, pois suspendi as longas caminhadas junto ao mar. Um défice na acumulação de pontos cardio que se aproxima da dívida pública. O pé, o meu pobre pé direito, continua em convalescença, com visitas semanais ao cirurgião e, com mais assiduidade, às salas de enfermagem, onde é submetido a esmerada atenção e a comentários que vou registando. Pois, dizem, é um sítio difícil, logo aí, ah, pois, de novo, vai demorar tempo a cicatrizar. Olhe, abriu um pouco. Olho, mas não vejo nada. Eu digo que sim e oiço: o melhor é evitar andar. Dá-me vontade de perguntar se tenho de voar, mas contenho-me. Esqueci-me de trazer as asas e se me dissessem para voar, sentir-me-ia vexado por não ter como fazê-lo. A memória já teve melhores dias, como é possível esquecer as asas em casa? Porque está um excelente dia de Inverno, vou almoçar na rua, sob um telheiro. Se chover, estarei protegido.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Os livros da minha vida

Os livros da minha vida. Esta frase esconde uma enorme presunção, a de que a minha vida tem alguma importância para nomear os livros que fizeram parte dela. Apesar disso, hoje dedico este episódio, pois estes textos não são mais do que episódios de uma história sem nexo e mal contada, aos livros da minha vida. São livros singelos, obras cujos autores desconheço, mas que me ocuparam longas tardes de Verão. As aventuras de Texas Jack, na revista Mundo de Aventuras, ou do Major Alvega, na revista O Falcão, as histórias que eram contadas no Condor ou no Ciclone, e aqueles romances do Oeste das colecções 6 Balas, Cow Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas colecções, ao contrário das referidas antes, revistas de banda desenhada, eram compostas por livros com dimensões minúsculas (8,5 cm x 12,5 cm) e letra que, nos dias de hoje, me seria indecifrável, mesmo com óculos. Tinham 64 páginas e seis delas eram preenchidas com desenhos alusivos à narrativa. Foram estes livros que me fizeram gostar de literatura. Talvez me tenham influenciado mais do que aquilo que eu imagino. A histórias, tanto quanto me recordo, tinham dois pólos. Um primeiro, em que uma injustiça introduzia a desordem numa comunidade, e um segundo, no qual o herói, um herói singular, restabelece a ordem e faz triunfar a justiça. Estes são os livros da minha vida, pois são os alicerces sobre os quais fui construindo outras leituras.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Mesmerização

Um azul cintilante brilhava para os meus olhos. A pequena ondulação abria nas águas rasgões por onde emergia um sangue branco e espumoso, que logo desaparecia. Não se avistavam barcos. Algumas pessoas, empequenecidas pela distância, entravam no mar na orla das praias. Não se ouvia os gritos dos veraneantes nem o rosnar estrepitoso das gaivotas. Vista da esplanada, a baía apresentava-se como uma realidade fantasiosa, a produção de um génio benigno. Não sei quantos minutos me absorvi na contemplação do quadro, até que uma notificação do telemóvel me trouxe para a realidade. O café esfriara e reparei que à minha volta havia pessoas, todas elas, pensei, mesmerizadas pela mesma paisagem. Talvez já ninguém use mesmerizar para falar de fenómenos de fascinação, mas haverá ainda quem dê crédito ao médico alemão Franz Anton Mesmer, morto há mais de 200 anos, e à sua teoria do magnetismo animal. Esta ideia de magnetismo animal, agora transformada em energia universal e com certo cariz sexual, ou pan-sexual, foi retomada, já no século XX por um dos ídolos da juventude contestatária dos anos sessenta e setenta do século passado, Wilhelm Reich, através da teoria do orgone. Este seria uma substância destituída de massa, presente em todo o lado, uma espécie de energia vital. Tanto quanto me lembro, pois entre as coisas sem sentido que li, os livros de Reich foram uma delas, o discípulo desavindo de Freud criou um dispositivo para acumular o orgone. Serviria para curar tudo e mais alguma coisa. Seja como for, apesar da perda de tempo da leitura, o orgone nunca me mesmerizou. Talvez por não ter magnetismo animal, coisa que poderia existir, esta manhã, na baía que me fez deixar arrefecer o café.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Lentidão

Um dia sem história, nenhuma acção valorosa para acrescentar à gesta que vou narrando. Nem todos os dias há oportunidade para se ser um Cid Campeador, ou, em caso de desespero, um Quixote ribatejano, pois isto do Ribatejo não é menos povoado de gigantes e outros seres maléficos do que as terras manchegas. A verdade é que não me faltou, neste dia, viagem por esse Ribatejo lezirioso, embora não me tenha abeirado do Vale de Santarém e, por isso, não me tenha deparado com a Joaninha e os seus olhos verdes. Sei, a fonte é segura, que seriam esses olhos que Camões cantou uns séculos antes de eles terem visto a luz nesta terra. Como se sabe, Camões, para além do dom poético, tinha também o de perscrutador de futuros. Ele pôs-se a perscrutar, a perscrutar, e zás: Verdes são os campos / De cor de limão: / Assim são os olhos / Do meu coração. Eram os olhos da Joaninha que, vindos do futuro, ofuscaram com a sua verdura o coração do poeta, que, ao que consta, se ofuscava com facilidade. Estou a desviar-me do assunto, a minha gesta gloriosa. Repito, nenhuma acção para me ilustrar. Se tivesse chegado ao Vale de Santarém, talvez ainda fosse a tempo de tomar parte na peleja entre liberais e miguelistas, uma peleja que começou no século XIX e ainda não acabou. Talvez, num dia destes, ainda vá a tempo de participar nela. Em Portugal, tudo é, felizmente, muito lento, e eu aprecio cada vez mais a lentidão.

domingo, 23 de julho de 2023

Uma força do Passado

Domingo de Verão. Um acaso – mas haverá acasos? – conduziu-me a um belíssimo poema de Pier Paolo Pasolini. No Youtube, oiço o poema na voz do poeta, mas a experiência é desagradável. Prefiro ser eu a soletrá-lo a meia-voz, num italiano que não sei vocalizar. O poema começa assim Io sono una forza del Passato. / Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do Passado / Só na tradição está o meu amor). O poema acaba por ser uma elegia por essa tradição, o que se manifesta logo no segundo verso. Só se ama aquilo que não se é. Ama-se a tradição porque já se está fora dela, ama-se uma reminiscência. Os três últimos versos confirmam o diagnóstico: E io, feto adulto, mi aggiro / più moderno di ogni moderno / a cercare fratelli che non sono più (E eu, feto adulto, vagueio / mais moderno que qualquer moderno / em busca de irmãos que já não existem). Há um terrível julgamento sobre a condição de ser moderno. Ser um feto adulto, isto é, ser alguém que envelheceu sem ultrapassar a condição fetal, alguém que continua como uma potência que nunca se consuma num acto, que nunca chega a ser um homem. Eu sou uma potência do passado, mas que nunca chego a ser aquilo que essa potência traz em si. Talvez os domingos de Verão sejam também eles uma potência que é incapaz de se tornar um acto, pois também eu trago comigo esse amor por uma tradição composta por inúmeros domingos estivais que desapareceram para sempre.

sábado, 22 de julho de 2023

Um ateísmo contumaz

Por aqui, Deo gratias, está uma manhã sombria. O Sol escondeu-se atrás das nuvens e, enquanto oiço murmurações contra a gestão do clima por estes lados, rejubilo. Talvez isto seja vergonhoso, talvez me falte empatia pelos seres adoradores de areia e sol, talvez seja um egoísta refastelado numa cadeira. A situação, porém, não será particularmente dramática. Os raios solares romperão a cortina nebulosa, os adeptos das orlas marítimas terão oportunidade de ir molhar o pé e eu estarei resguardado desse culto pagão. Por aqui, há um velho ditado que enuncia, sem pudor, primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Há na máxima acentuado exagero, mas terá alguma verdade. Talvez não se trate de uma máxima, mas de uma caricatura oral, com tudo o que as caricaturas têm de hiperbólico. As minhas netas estão por cá, o meu neto não tardará. Também não faltam cães, mas com esses a minha relação é de respeitosa distância, embora um ou outro insista em ser meu amigo. Explico-lhe que não fomos feitos para a amizade, mas eles não se comovem com a minha racionalidade e continuam a tentar estabelecer contacto. Uma vez por outra, cedo, mas não faço parte dos cultores dos animais de estimação. Nada tenho contra eles, claro, mas que sejam outros a praticarem a religião. Neste caso, sou ateu. Aliás, depois de a religião tradicional ter sido vítima da rasura dos costumes, surgiu um número incalculável de deuses, todos a exigirem fé inabalável e ritos abstrusos. Tento manter, perante todos eles, um ateísmo contumaz. Agora, alguém chama pelo meu nome. Posso fingir que não oiço, mas o mais sensato será ir ver o que se passa.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Suportar-se

Há três dia junto ao mar e só hoje olhei bem para ele. Continuo de pé entrapado, embora já tenha substituído a cadeira de rodas pelas canadianas, com as quais fiz um pacto de não agressão. O mar estava ao fundo e este narrador permanecia longe da areia. Há muitos anos que a minha relação com o oceano se tornou meramente contemplativa. Nada de aventuras, quero dizer mergulhos e banhos, essas coisas que fazem os banhistas. Este ano está-me interdito um dos prazeres da época balnear, as longas caminhadas com as águas à vista. Troquei-as, como se pode depreender do que foi escrito ontem, por sestas em frente ao computador ou sentado numa cadeira com um livro entre mãos. Esta afirmação é quase falsa. Entre mãos não tenho um livro, se por isso se pensa um objecto de papel com capas e folhas. Tenho um dispositivo electrónico, onde existem muitos livros que não são livros, mas simulacros de livros que se deixam de ler como tal. Prefiro os simulacros aos livros. Posso negociar com eles o tamanho da letra e nunca são pesados. Depois, se me apetecer sublinhar alguma coisa ou fazer uma anotação, nada disso perturbará a imaculada pureza da obra, pois não tem a irreversibilidade das anotações no papel, mesmo que sejam feitas a lápis. Eu sei que muita gente reprovará o meu gosto, mas eu não tenho nenhum fetiche com o cheiro do papel ou com a sensação táctil que certas capas proporcionam. Eu sei que é defeito meu, mas cada um tem de suportar não apenas as suas virtudes, caso tenha alguma, como os seus vícios e defeitos.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Procrastinar

Depois de almoço, tendo-me sentado em frente ao computador para levar a cabo algumas tarefas, o corpo foi bem mais sensato e decretou que deveria cabecear e dormir, num equilíbrio instável. É uma decisão arriscada, a do corpo, pois pode ter como consequência ganhar uma desagradável dor no pescoço, o que não veio a acontecer. Agora, desperto e com energia renovada, tomo a feliz decisão de procrastinar e deixar para amanhã o que posso fazer hoje. Num dos meus livros de leitura da escola primária, talvez da terceira classe, havia um texto em que um camponês foi pedir um conselho a um advogado famoso. Este respondeu: não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje. Durante décadas pensei que o conselho era uma criação do autor do texto ou a referência a alguma máxima da sabedoria popular. Mais tarde, bem mais tarde, vi que era atribuída a um tal Ralph Maxwell Lewis. É assim que a internet destrói o encantamento do mundo. Consta que o tal Lewis foi um importante Rosa-Cruz, nascido em 1904, embora não imagine o que seja um Rosa-Cruz. Uma coisa é certa, o senhor era um inimigo dos procrastinadores, pois não contente com o não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje, ainda lhe acrescentou o não deixes para a tarde, o que podes fazer pela manhã. Talvez um Rosa-Cruz seja, por natureza e destino, workaholic, sempre a correr para cumprir tarefas, evitando adiamentos e ultrapassagens de prazos e essas coisas que um europeu do Sul reconhece como a essência da sua cultura. Portanto, insisto na procrastinação. Amanhã, logo se verá.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Metafísica

Acabei de descobrir mais um livro repetido. Esta repetição, porém, não é recente. Os dois irmãos gémeos jaziam lado a lado na prateleira de uma estante. É um livro que utilizei em tempos, mas se me perguntassem se eu o tinha, a resposta seria não. A relação dos seres humanos com a realidade é sempre de desconcerto, mas este vai crescendo conforme os anos se vão somando. Para não pensar nestas coisas, ontem e hoje, tenho passado algum tempo a ver o Tour de France. Não que o ciclismo me interesse. As filmagens paisagísticas são sempre excelentes e aquele esforço de subir e descer montanhas quase me faz lembrar Sísifo. Não é que os homens da bicicleta não a consigam fazer rolar até ao cume dos montes. Conseguem, mas logo têm de descer até ao sopé para muitas vezes voltar a subir até a um outro cume. Não é uma pena eterna, pois nada nesta terra é eterno, mas a mim parece-me um arremedo de eternidade. Esta coisa de falar de Sísifo parece ser um truque para dar um ar erudito ao escrito, uma tonalidade metafísica ao pedalar terra fora. Ora, quem prestar alguma atenção aos comentários desportivos, descobre que cada modalidade contém em si uma metafísica, a do ciclismo será a metafísica da roda pedaleira. Imagino.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Opiniões

Até certa altura da existência, uma pessoa espanta-se por haver opiniões diversas das suas. Depois, espanta-se pelo facto de existirem, sobre o mesmo assunto, diversas opiniões verosímeis. Por fim, espanta-se por existirem opiniões sobre seja o que for. Como é possível que um ser finito e limitado tenha a ousadia de ter opinião? Não faço ideia o que me terá dado para escrever o que escrevi acima. Ou talvez saiba. Não foram as abstrusas opiniões alheias que se encontram espalhadas por todo o lado, foi o cansaço com as minhas próprias opiniões. As pessoas gostam muito das suas opiniões. O melhor seria que tivessem vergonha delas e as guardassem dentro de si. Para começar, pode-se fazer uma dieta de opiniões. Por exemplo, evitar ter mais do que uma opinião por hora. O ideal regulador seria chegar à perfeição e não ter opinião sobre nada. As acácias que vejo daqui não têm qualquer opinião, mas são belas, dão sombra e oferecem o tronco a algum cão que necessite de alçar a perna.

domingo, 16 de julho de 2023

Via crucis

Um carro ronca no vazio da tarde. O condutor, por certo um homem, confunde-se com o vazio das ruas e pensa que está no circuito de La Sarthe, onde se correm as 24 Horas de Le Mans, e não numa pacata cidade de província, onde as pessoas, nos domingos do Estio, almoçam tarde e ficam por casa à espera que a soalheira passe. Há um problema qualquer com o QI dos portugueses, que se manifesta mais acentuadamente quando têm um carro nas mãos. Nunca deixa de me espantar a Electra, a revista cultural da Fundação EDP. São 250 páginas de grande qualidade. Desde o papel, aos artigos, passando pela reprodução de fotografias e de pintura. O mais impressionante é o preço, nove euros por número. A assinatura fica por vinte e sete euros/ano, quatro números. A do Verão de 2023 traz algumas reproduções de quadros do pintor suíço Felix Valloton, de que gosto bastante. Traz artigos sobre o wokismo e ócio e lazer, assim como um trabalho sobre o escritor italiano Carlo Emilio Gadda. Este é considerado um dos grandes clássicos do século XX, ao lado de figuras como Proust, Musil, Joyce, etc. Nunca li nada dele e não encontrei rasto de traduções em português de Portugal, embora existam algumas em português do Brasil. Um dos destaques do artigo de Luca Mazzocchi reza assim: É inegável que ler Gadda é tarefa difícil e espinhosa, mas as dificuldades que se apresentam ao leitor nunca são arbitrárias, nem criadas para fazer efeito. Pelo contrário, são coerentes com a sua visão filosófica da realidade enquanto sistema de sistemas, onde cada um deles existe em relação aos outros, e é modificado e deformado pelos outros, tal como a realidade continuamente se modifica e deforma. Neste momento, lamento não saber italiano para me confrontar com as obras de Gadda. Resta-me o recurso a traduções em línguas amigáveis para tentar essa tarefa difícil e espinhosa, isto é, dolorosa. Talvez a leitura do escritor italiano seja uma via crucis, um caminho de salvação.

sábado, 15 de julho de 2023

Pecados provinciais

Quando é que está bom do pé para irmos jantar naquela brasserie com nome de bairro nova-iorquino? Foi assim, à queima-roupa, que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa desta manhã. Está de férias, pensei, na casa da Companhia, e trocou o sábado pelo domingo. Respondi-lhe que a gula ainda constava na lista dos pecados capitais. Ele desconversou, afirmou que estava na província e não em Lisboa. Os pecados cometidos fora da capital são pecados provinciais, o que o autoriza, sem sentir o peso da perdição eterna sobre os ombros, agradecer ao divino criador ter permitido que o homem prodigalize os pequenos prazeres que atenuam o calvário existencial. Ainda não sei quando vou para aí, está dependente da evolução das opiniões do cirurgião, as quais podem ser adversas. A casa, como sabe, não se presta a cavaleiros andantes montados numa cadeira de rodas. Seja como for, continuei, no próximo sábado, estaremos lá, toda a família, para comemorar o aniversário da…. Está convidado, obviamente. Quanto anos faz ela, perguntou. Quarenta, informei. E a ementa? Surpresa, retorqui. Sem essa informação, não me sei orientar nos vinhos que gostava de levar. Não se preocupe. Está tudo tratado. Sem essa preocupação, tenho mais tempo para me concentrar no presente para ela, sempre são quarenta anos, acrescentou. É verdade, disse-lhe, e mais tempo para se dedicar à oração e aos deveres do seu estado. Riu-se e pronunciou uma frase em italiano, cujo sentido não percebi, mas que a entoação me deu a certeza de ser mais um pecado provincial no rol do padre Lodo.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Relações causais

Os baloiços do parque infantil aqui em baixo voltaram a ranger. Conforme as crianças vão e vêm, o ferro das roldanas, ao rodar no ferro do eixo, emite um grito angustioso, a que se segue, passados instantes, um eco também ele lancinante. Não se pense, porém, que o ambiente é pungente. As crianças riem, gritam, chamam umas pelas outras, correm. Ouvem-se pontapés numa bola, vozes maternais a chamar pelos filhos, admoestações leves e benevolentes, encorajamentos assertivos, mas o ferro não se cansa de gritar a dor que o acomete. Quando a luz solar incidir no parque, tudo voltará ao silêncio. Alguém, uma voz adolescida, gritou golo e o ranger dos baloiços calou-se. Haverá uma relação causal entre os dois fenómenos? Quem sabe? O ruído voltou e como ninguém grita golo, promete continuar. Pouco depois das três da tarde, a cavalo do Rocinante, terei de ir fazer uma visita. Tenho de enfrentar esse desafio, logo eu que não li o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, o que me teria habilitado para os mais desafiantes concursos hípicos e preparado para as justas equestres, função que cabe a qualquer cavaleiro que se preze. Irei assim timorato, sem preparo, a não ser uns treinos domésticos, enfrentar os desafios do vasto mundo. Os baloiços não param de ranger. Que raio, ninguém grita golo?

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Presunções e ensejos

Vasculho com atenção os dois livros que recebi. Datam de 1937 e formam um romance histórico de um autor português que já ninguém sabe quem é. O nome dele não vem ao caso. O que procuro são sinais de antigos proprietários da obra. Umas notas numa página, uma carta esquecida, um postal recebido e deixado entre as folhas, umas contas para pagar, sei lá o que mais poderia ser. Nada, nem uma simples dedicatória, uma assinatura com data de aquisição. Este deambular metafísico pelo estranho país de um passado que me é desconhecido não me deu assunto. Hélas! No romance, a certa altura, o autor informa: Francisco de Padilha saiu como um louco. O mal dos autores é presumir que os leitores sabem certas coisas. Como sairá um louco? Ponho-me a imaginar, mas não consigo chegar a um acordo comigo mesmo, tantas são as possibilidades de um louco sair do lugar onde se encontra. Seja como for, não posso deixar de sublinhar as razões que poderiam enlouquecer a personagem. Ser rejeitado por uma mulher seria, naqueles dias, uma desgraça. Parece-me, todavia, que é excessivo estabelecer um nexo causal entre uma rejeição e enlouquecer, ainda que seja apenas como metáfora. Paro as considerações por aqui, antes que entre por caminhos ínvios e escreva frases carregadas de aleivosias, o que poderia dar ensejo a alguém para instruir um processo de cancelamento deste narrador sem narrativa.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Jogar xadrez

Apesar da natureza encantatória do título A insustentável leveza do ser, nunca fui um kunderiano. Li algumas obras, entre elas a supra referida, mas a que mais me agradou foi a Arte do romance, que não é um romance, mas uma reflexão sobre essa modalidade narrativa. Tanto quanto me lembro, entre a minha leitura e a escrita de Kundera nunca se estabeleceu um efectivo contacto. Talvez sensibilidades diferentes. Coisa muito diferente sucedeu com autores da Europa central, como Kafka, Musil, Broch ou Thomas Mann. Talvez um dia volte às obras do agora desaparecido escritor checo. Continuo numa espécie de confinamento, devido à indisponibilidade do pé direito. Entretenho-me a gincanar pela casa. Uma crise atingiu as minhas netas com o drama dos bilhetes para um concerto, mas são coisas que coloco à distância. Não faço ideia quem é a cantora que gera lágrimas e suspiros, mas sei que a adolescência é uma doença aguda, embora passe com relativa rapidez. Num jornal online, vejo que em certas zonas da Estremadura espanhola a temperatura do solo atingiu os sessenta graus Celsius. Tudo indica que a coisa não vai acabar bem. Isso recordou-me um poema de Ricardo Reis. A primeira estrofe reza assim: Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia / Tinha não sei qual guerra, / Quando a invasão ardia na Cidade / E as mulheres gritavam, / Dois jogadores de xadrez jogavam / O seu jogo contínuo. Tornámo-nos todos jogadores de xadrez e nem o incêndio do mundo nos retira da contemplação do tabuleiro, não vá a nossa rainha fugir com o rei adversário, e, por causa disso, tenhamos de ir de novo montar cerco a Tróia.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Um jardim

Em 2018, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han publica um livro com o título Louvor da Terra – Uma Viagem ao Jardim. Na origem da obra estariam razões que se podem resumir no seguinte: Um dia senti uma profunda nostalgia e, além da nostalgia, uma necessidade premente de proximidade da terra. Por isso tomei a decisão de praticar diariamente jardinagem. Apesar da nostalgia e da necessidade que terão assaltado o filósofo, a ideia de cultivar o seu jardim não é uma novidade no mundo da filosofia. Também Voltaire, no Candide, se refere a essa necessidade. Contudo, ela não é impulsionada por uma nostalgia da terra, mas pela necessidade de protecção dos males provenientes do mundo da acção política. Uma outra diferença entre ambos os filósofos é que o jardim do francês é uma horta, o sítio onde se produzem vegetais, o do coreano contém plantas ornamentais. Não se pense, todavia, que não há uma linha que una as duas intencionalidades. Cultivar um jardim é trazer um princípio de ordem ao caos do mundo, essa ordem que, miticamente, existia no Éden e para a qual os homens não foram suficientemente sensíveis. Talvez cada ser humano traga, no fundo de si mesmo, a imagem de um jardim que deveria cultivar.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Capitais

Mais uma viagem à capital de distrito, que deve também ser capital de outra coisa qualquer. Uma epidemia atingiu com ferocidade as vereações municipais, pois não deverá haver cidade, vila, vilória ou aldeia deste país que não seja capital de alguma coisa, por certo apoiada na generosa imaginação de quem preside aos destinos de cada concelho. Eu diria que tanta imaginação é uma pena capital que cai sobre as terras, cobrindo-as de ridículo, mas isto sou eu a pensar, cavaleiro da triste figura, desfasado no tempo e no espaço, um ser anacrónico e atópico. As nossas duas principais cidades poderiam ser as capitais da alface e das tripas. Espero, não sem ânsia, que as respectivas edilidades as proclamem como capitais de tão importantes produtos, o que lhes daria uma marca distintiva e lhes abriria um nicho de mercado, atraindo o investimento estrangeiro, e ainda mais turistas desejosos de conhecer esses produtos existentes apenas em Portugal. Tendo nós uma capital do feijão-frade ou da couve-penca, por que razão não devemos ter uma da alface e outra das tripas? São estes problemas que me ocupam nas tardes quentes de Julho. Há em tudo isto uma metafísica, pois tudo o que diz respeito à cabeça, o significado de capitāle em latim, tem uma natureza não apenas física, mas também metafísica, pois seria, segundo Descartes, num certo sítio da cabeça, a glândula pineal, que corpo e alma se ligariam. Basta.

domingo, 9 de julho de 2023

Ser pessoa

Um domingo de clausura, como se ainda estivéssemos no tempo dos confinamentos. Deixei as horas deslizar, coisas em que elas são de uma competência inexcedível. Troquei telefonemos com amigos e familiares, dormitei, enfim um dia sem história. Peguei num ou noutro livro, abri-os ao acaso. Num desses encontros acidentais li: Qualquer pessoa musical consegue distinguir melodias de meras sequências de sons.  Não foi o conteúdo da proposição, da autoria de Roger Scruton, que me fascinou, mas o sujeito dessa proposição, a pessoa musical. Haverá pessoas não musicais? Imagino que dizer pessoa musical será redundante. Ser musical é uma condição necessária para ser pessoa, mas, reconheça-se, não será suficiente, pois consta que animais que não são pessoas são musicais.  De Scruton saltei para Montaigne. No ensaio sobre a amizade, a certa altura, diz não sem graça: Ao convívio à mesa, associo gracejo, não seriedade; na cama escolho a beleza antes da bondade; na conversação, a competência mesmo sem a virtude. Há na frase uma prosápia insuportável, a manifestação pública de uma imagem hiperbólica de si como sujeito refinado, de bom gosto e espirituoso. Em qualquer circunstância escolho sempre o meu prazer, isto é, escolho-me. Este parece-me, todavia, um caminho para alguém perder a sua musicalidade e, sendo esta condição necessária de ser pessoa, para se perder enquanto pessoa.

sábado, 8 de julho de 2023

Um Rocinante

Ao fim de umas miseráveis trinta e seis horas dependente de canadianas, decidi ir em busca de um Rocinante que me levasse aonde eu quisesse ir, ou quase. Uma cadeira de rodas, onde me transporto sem temer cair. Descobri que não tinha vocação de funâmbulo. Bem tentei equilibrar-me, bem tentei aproveitar as lições online, mas o resultado foram dores no pescoço e um dedo do pé esquerdo preto, motivado por um inesperado encontro com uma das canadianas. Quase ia caindo, mas lá me encostei a uma parede. Sempre tive vertigens e nunca achei que seria boa ideia pôr-me a fazer equilíbrios na corda, fosse ela bamba ou não. O culpado deste desvario foi o cirurgião, quando me disse olhe, tem de usar canadianas por uns tempos. Confesso que olhei, mas não vi nada, não percebi o filme em que estava metido. Poderia ter dito olhe, use uma cadeira de rodas para se transportar e chame-lhe Rocinante. O mal do médico, um rapaz novo e talvez um pouco azougado, é desconhecer quem foi o Rocinante e não perceber que também eu sou um cavaleiro da triste figura. Agora, faço gincanas pela casa. Isto não melhora a minha figura, mas para isso é já demasiado tarde.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Instruções

Como D. Quixote, tenho à minha frente um mar de desafios que farão parte da gesta que será cantada até ao fim dos tempos. Não são coisas ilusórias como moinhos tomados por gigantes ou feiticeiros e encantadores que geram os males do mundo, mas canadianas reais em que me apoiarei, durante as próximas duas semanas, sem que o pé direito, pobre dele, tenha direito (uma contradição nos termos) a suportar o corpo de que faz parte. Desde ontem à tarde que tento estabelecer com os dispositivos de suporte uma aliança e um tratado de paz e cooperação. Não me têm parecido particularmente cooperantes, mas com o passar do tempo, como se deseja nos casamentos por conveniência, as canadianas e este candidato a cavaleiro andante talvez cheguem a amar-se e estabeleçam uma relação harmoniosa, apesar de efémera. Como se fosse ler uma arte de amar, vou ver uns vídeos onde se explica como estabelecer uma boa relação matrimonial com as canadianas. Neste mundo, que é o melhor de todos os possíveis, há vídeos com instruções para tudo, até para as mais inusitadas núpcias.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Remeter-se ao silêncio

O Verão tem sobre mim um efeito nefasto. Já constatei isto milhares de vezes, e já o anunciei aos ventos quase outras tantas. Cheguei à idade em que uma pessoa está condenada a repetir-se. Este pendor para a iteração nada tem de misterioso. É uma forma de luta contra o esquecimento. É verdade que essa propensão tem um poder especial de irritar os outros, os que não podem fugir dos nossos discursos, mas a memória lá se vai aguentando à tona de água. Há também uma outra possibilidade. Remeter-se ao silêncio. Esse silêncio cria um espaço onde a pessoa rememora continuamente aquilo que lhe dá prazer. Se, um acaso, traz uma memória desagradável, basta um encolher de ombros ou um franzir de sobrancelhas, e ela vai-se embora, para que aquilo que é radioso ocupe o palco. E é isso que vou fazer a seguir, remeter-me ao silêncio e contemplar as paisagens luminosas que a memória me traz.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Errância

A certa altura dos Parerga und Parlipómena, Schopenhauer diz: O ponto em que se dissociam em primeiro lugar as virtudes morais e os vícios do ser humano é essa oposição de ânimo fundamental em relação aos outros, que assume o carácter da inveja ou o da compaixão. Como salienta o filósofo alemão, estes atributos opostos nascem da comparação que cada um faz do seu estado com o dos outros. A inveja, fonte da actuação viciosa, levanta um muro entre o eu e o tu, a compaixão torna esse muro menos espesso, mais transparente, podendo mesmo derrubá-lo. Contudo, parece-me, há invejas virtuosas e compaixões que traem a marca do vício. Quando alguém admira o desempenho de alguém excelente, nunca deixa de ressoar uma ponta de inveja. É virtuosa, contudo, porque não deseja eliminar o outro, mas superar-se a si mesmo. Por outro lado, certas formas de compaixão não são outra coisa senão afirmações de uma superioridade, e ser compassivo é uma forma viciosa de prender o outro na sua suposta inferioridade. Imagino que, quando nos prendemos à oposição entre virtude e vício, já nos perdemos no caminho. Perdemo-nos quando cedemos à tentação de nos compararmos com os outros, de aferirmos a nossa singularidade pela de terceiros. Nesse momento, entramos na errância de onde raramente, muito raramente, se sai. Nem todos têm um destino como o do filho pródigo, perdendo-se uns na inveja, outros na compaixão.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Dragões

Julho manifesta a exuberância com que foi dotado. Ri-se com gargalhadas quentes, da sua boca saem baforadas de fumo. Julho é um dragão disfarçado de mês para poder figurar no calendário. Os dragões, como é do conhecimento geral, são seres esquivos, por isso disfarçam-se e metamorfoseiam-se. Ao virar da esquina podemos deparar-nos com um transformado em automóvel ou camião, de preferência. Quem não se deixou enganar foi S. Jorge. Trespassou com a lança um dragão que tinha ultrapassado as marcas. A princípio, como é hábito de todos os dragões, pedia apenas que lhe dessem duas ovelhas por dia para deixar os homens em paz. A certa altura, todavia, em vez de ovelhas quis a filha única do rei da Líbia. Foi a sua perdição, o que está de acordo com a tradição. S. Jorge, imagino que na altura ainda não estivesse canonizado e, por isso, sem direito a título, surgiu do nada, que é o sítio de onde surgem todos os verdadeiros heróis, e zás. Matou a dragão. Não sei se o derrotado teve direito a funeral ou ficou abandonado aos cães selvagens e às aves de rapina. Também não tenho informação sobre se S. Jorge, que ainda não o seria, casou com a filha do rei. Se não casou, é uma pena. Era uma história que além de acabar em bem ainda envolvia a marcha nupcial, apesar de nem Mendelssohn nem Wagner terem escrito as suas, mas na terra onde existem dragões tudo é possível, mesmo a existência de coisas antes de terem sido criadas. Está calor.

domingo, 2 de julho de 2023

Uma demanda falhada

Uma saída de manhã em busca de um produto que, afiançaram-me, estaria num certo sítio. Chegado ao lugar designado, dou conta de que o artigo será tão elusivo quanto o Santo Graal. Como acontece com muitos daqueles que demandam o Graal, acabei por descobrir um sucedâneo e, conformado, troquei o objecto da aventura por aquele que encontrei à mão de semear. Afinal, não sou nenhum cavaleiro da Távola Redonda. Aliás, aquilo que procurava não seria tanto o graal, mas o que se poderia pôr dentro dele. Apesar de tudo foi uma viagem instrutiva. Aprendi que não se deve confiar em certas informações, por mais fiáveis que pareçam ser. A realidade é de tal modo mutante que aquilo que ontem era verdade, hoje será mentira. Depois, a experiência da atmosfera seca que envolve estes sítios recordou ao corpo a realidade, corpo que tinha andado protegido dos calores por terras mais amenas. Tudo se paga. Hoje é domingo, mas não consigo imaginar o que isso significa, tão lassos estão os meus neurónios. Escrevi, sem incorrecção, lassos, mas se escrevesse laços também não estaria incorrecto, pois a lassidão neuronal que me acomete arredonda-me os neurónios, que se curvam sobre si, formando laços e remetendo-se a uma implacável greve ao contacto com os parceiros. Uma tragédia. Pelo WhatsApp recebo um vídeo. O meu neto deu as primeiras pedaladas na bicicleta sem cair. Valha-me isso.

sábado, 1 de julho de 2023

Nêspera

A França, como pertence à sua natureza, está efervescente. Nessa efervescência reflecte-se a tragédia europeia e a morte de um sonho, de uma utopia que não se constituiu a partir da destruição das liberdades e de uma vida de perseguições. Um célebre sociólogo francês, Raymond Aron, publicou, em 1981, um livro de entrevistas com o título O Espectador Comprometido. A expressão assenta num oximoro. A imparcialidade parcial. Na ideia de espectador manifesta-se aquele que observa imparcialmente o que se passa, o filósofo, no dizer de Pitágoras. No compromisso declara-se a parcialidade de tomar partido, de enviesar o olhar para afirmar o bem. Talvez a posição do filósofo seja insuportável. Olhar sem tomar partido parece o desígnio de um deus e não de um homem. Por isso, fantasio, Aron foi um sociólogo. A pergunta perturbante, perante o panorama de uma Europa em convulsão, é se se deve ser apenas um espectador ou se se acrescenta ao acto de olhar a ideia de compromisso? Quem pensa em comprometer-se fica refém da parcialidade do compromisso. Quem se decide por permanecer como espectador poderá ter a sorte da nêspera do poema de Mário-Henrique Leiria: Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia // chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a // é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece. Como narrador, tenho o destino de uma nêspera, ser comido por uma Velha. Talvez, medito, não seja pior destino do que o compromisso, o qual está longe de assegurar que no caminho não existam Velhas que gostem de nêsperas.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Mudança ou permanência

Depois de uns dias de repouso, este blogue volta, embora nada assegure que venha revigorado, para celebrar mais uma efeméride, o fim do mês de Junho. Uma coisa parece já segura. O descanso não intensifica a imaginação. É pena. A rua, apesar do vento, não é de frequência aconselhável, mas se tiver de ser haverá que enfrentar os decretos de quem toma conta das coisas do clima. Depois de todos estes dias fora da pátria, dar uma vista de olhos pela imprensa e redes sociais – apenas uma, saliente-se – permitiu-me uma reflexão mais ou menos filosófica. Afinal, o tempo não existe, pois o que era continua a ser, sem mudança alguma. No velho, talvez imaginário, conflito entre Heraclito de Éfeso e Parménides de Eleia, começo a desconfiar que será o eleata o dono da razão. O mais assisado, todavia, é deixar este assunto de lado, pois o dia, a anunciar fim-de-semana, não está propício a reflexões. Há pouco consegui arranjar uma persiana. Estava parada, como se fosse uma adepta da teoria de Parménides, e por mais que se tentasse, não se mexia para cima ou para baixo. Pura imobilidade. Abri a janela, estive algum tempo em contemplação e, tendo compreendido a situação, com uns encontrões nas lâminas a situação resolveu-se. Isto demonstra, todavia, que é possível que Heraclito tenha razão, pois houve uma mudança radical na situação. Imagino que Parménides diria que a mudança ocorrida não passa de uma ilusão sensorial, pois tudo que é permanece idêntico a si mesmo. Por mim, abstenho-me de tomar partido. Pelo menos, hoje.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Efemérides

Hoje cumprem-se dois terços do mês de Junho. Escrever estes textos fez-me descobrir que sou dado às efemérides, mas talvez não o suficiente. Um verdadeiro amante de efemérides não pode ficar pelos números redondos ou aqueles que assinalam o fim ou início de alguma coisa. Por exemplo, assinalar o décimo sétimo dia de um mês e sexto de outro, não porque haja qualquer motivo subjacente, mas pelo valor intrínseco de serem o décimo sétimo e o sexto. Objectar-se-á, não sem alguma razão, que efemérides são acontecimentos memoráveis, importantes. A objecção, todavia, esquece que na raiz de efeméride está efémero, o que dura só um dia, no dizer dos gregos antigos. Ao assinalar-se o décimo sétimo dia ou o sexto de um mês celebra-se aquilo que passa, que dura apenas um dia. Comemora-se a banalidade e cultiva-se o trivial. É disso que me aproximo velozmente, mas ainda fico preso aos números redondos, ao preconceito da tradição. Luto, porém, para me emancipar desse passado tenebroso que nos prende aos dias memoráveis e aos números redondos. Estive quase três horas a perorar e agora sinto a garganta cansada e um vazio no lugar onde, supostamente, deveria haver um cérebro. Nem sei o que me terá dado para falar tanto, eu que tenho uma propensão para estar calado. Quando escrevi, acima, três horas cometi um erro. Escrevi três oras. Corrigi, mas fique maravilhado com a expressão. É como se dissesse três poréns, caso o ora fosse conjunção. Caso fosse um advérbio, talvez fossem três agoras, o que abre as portas para a admissão da existência de pelo menos três universos, cada qual como seu agora, todos à mesma hora. Ora… ora. Junho chegou ao vigésimo dia e é tudo o que tenho para dizer.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Protótipos

Talvez os portugueses tenham uma inclinação para o dramático. Ontem, falei aqui num livro que, na capa, apresentava O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. O livro denomina-se O Rosto de Deus e é da autoria do filósofo inglês Roger Scruton (1944-2020). Ao olhar, há pouco, para a capa fiquei com curiosidade de saber se ela igual à da edição original. Ora, nesta não é o sacrifício de Isaac que é mobilizado para reprodução, mas um detalhe de uma pintura de Pere Mates (1500-1558), com o título Adão e Eva no Paraíso. Desconheço as razões da editora portuguesa, mas, por estranho que possa parecer, a alteração da capa representa uma alteração da obra. A tradução portuguesa é de 2023, portanto o autor já nada poderia dizer acerca da capa escolhida. Quando se escolhem para capa de uma obra reproduções de obras-de-arte saturadas de sentido, todo o cuidado é pouco, pois esse sentido transborda da capa para o interior do livro e contamina a obra. Contínua um tempo doentio, quente, abafado, ameaçador. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que ultrapassámos a nossa medida e que estamos a manipular aquilo que não está na nossa mão controlar, neste caso o clima. Nas tragédias gregas, é a hübris que perde o herói. A hübris não é outra coisa senão o ultrapassar da medida. Talvez seja isso o que, de um outro modo, nos diz a história de Adão e Eva. Também eles ultrapassaram a medida. Ora, o Adão e a Eva de Pere Mates têm os genitais cobertos de parras, o que significa que ultrapassaram a medida e temem enfrentar o rosto de Deus, um dos temas de Scruton. Se os grandes mitos têm, para além da função de arquétipos, a de protótipos, então poderemos olhar para o destino de Adão e Eva, a expulsão do paraíso, como o nosso próprio destino. A natureza, ou Deus através da mão da natureza, está a expulsar-nos do pequeno paraíso que inventámos nos últimos dois séculos. O calor pega-se ao corpo.

domingo, 18 de junho de 2023

Melhorias e perturbações

Ontem, comprei alguns livros. Entre eles, encontra-se um de Isaiah Berlin. O primeiro ensaio começa com uma citação, em epígrafe, de León Trotsky que reza assim: Quem desejar ter uma vida pacata fez mal em ter nascido no século XX. Uma nota de rodapé informa que aquela formulação do texto de Trotsky é uma “melhoria” típica de Berlin de um texto que diz Qualquer contemporâneo nosso que, mais do que tudo, queira paz e conforto escolheu uma má altura para nascer. De facto, a nota de rodapé andou bem ao colocar melhoria entre aspas, pois o texto original é bem mais interessante do que a adaptação de Berlin. O efeito irónico de colocar o nascimento como um acto do livre-arbítrio do nascituro perde-se por completo, e esse efeito é o melhor da frase, pois é plausível pensar que não houve século da história da humanidade que não tenha sido, para quem ame a paz e o conforto, um péssimo século para nascer, o que torna o incómodo de nascer no século passado uma trivialidade partilhada por todos os que nasceram noutros séculos. A culpa de os séculos serem lugares temporais pouco próprios para nascer, caso se almeje uma vida de paz e conforto, reside na história. Esta é o lugar das mais intensas tropelias e tem um apetite insaciável e buliçoso por todo o género de travessuras, de preferências as mais violentas. Dito de outro modo, a história é uma rameira sedenta de sangue, sempre pronta a usar o chicote para flagelar os que se viciam nela e, por arrasto, os outros que não se esconderam a tempo. Num outro livro comprado, a capa tem uma representação parcial de O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. É uma história que tem final feliz, mas que não deixa de ser extraordinariamente perturbadora, mas não me apetece pensar nesses assuntos, ainda por cima com o calor que se abateu sobre esta terra, como se o clima a estivesse a preparar para a hora em que ela fizer parte do deserto que por aqui se formará.

sábado, 17 de junho de 2023

Um miserável pecador

Agora deixou de dar conta das nossas conversas no seu blogue? Foi com esta interrogação, talvez com um toque de imperativo, que o padre Lodo começou a conversa, hoje de manhã. Não respondi e perguntei-lhe a razão de ter trocado a habitual manhã de domingo pela de sábado para me ligar. Não se faça desentendido, respondeu-me. Sabe bem que sou um Settembrini e que acumulo o treino de jesuíta com uma costela ancestral de iluminista. Eu sei, eu sei, mas não tenho qualquer razão para o facto. Os meus textos, acrescentei, são regidos por um radical princípio de incerteza, que vai bem mais longe do que o de Heisenberg. Acontecem ao acaso, tudo é incerto até estarem online, e mesmo depois ainda pode acontecer que se alterem. Não partilho da ideia de Einstein de que Deus não joga aos dados. Não tem calhado dar conta por aqui dessas nossas conversas. Boa desculpa, respondeu. O facto de não conhecer as causas dessa decisão de me censurar não quer dizer que elas não existam. Agora, deu em determinista, adepto de Espinosa, perguntei. E antes que me respondesse, fiz nova questão: será que se está a tornar um herege, um negador do livre-arbítrio? Olhe que os doutores da Igreja bem pugnaram em sua defesa. Já não tenho idade para heresias, ouvi vindo do outro lado do telemóvel. Sabe, disse de súbito, estou de férias naquele sítio que bem conhece. Não está por cá? Não, respondi e acrescentei: nem vou estar nos próximos tempos. Não faz mal, temos tempo, vou estar por aqui mais tempo do que é habitual. A Companhia acha que devo descansar, meditar, fazer oração e olhar o mar com calma. E fazer uns belos almoços e jantares, acrescentei eu. Isso, retrucou, é para me manter humilde, para não me esquecer que não passo de um miserável pecador, inclinado à gula.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Atraso

Há muito que não escrevia tão tarde estes textos. O dia, com os seus afazeres e peripécias, empurrou-me para estas horas. Há pouco, chegou a minha neta mais velha, veio descansar do exame de Matemática a que foi sujeita no dia de hoje. Ao jantar contou que, na noite de ontem, tinha sonhado que não encontrava a sala onde o exame se iria realizar. Hoje, não dava com a sala e começou a ficar em pânico, como se o sonho se fosse realizar. Depois, a sala veio ter com ela. Não estava num conto de Borges nem numa narrativa de Kafka. Lá realizou a prova. Consta que estes exames não se chamam exames, mas provas finais. Desconfio que deve haver no Ministério da Educação uma direcção de serviços cuja finalidade é mudar o nome às coisas. Imagino que não lhes falte trabalho. No meu tempo, a escola primária era primária, agora é básica do 1.º ciclo. Não sei o que será pior, ser básico ou ser primário. Parece que primária era uma conotação reprovável, mas secundária já é muito digna, pois os antigos liceus foram coagidos a tornarem-se escolas secundárias. Quando era aluno, fazia pontos, agora fazem testes, mas mesmo esta designação parece estar sob fogo inimigo. O crepúsculo prolonga-se. Já passa das nove e meia, mas a noite ainda não acabou de cair. Como se sabe, em certas alturas do ano, a noite cai muito mais devagar do que noutras. Devia ir fazer uma caminhada, mas estou pouco inclinado para o movimento. Aliás, estou pouco inclinado seja para o que for.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Da verdade

Levantei-me, ainda cedo, com alguns projectos claramente delineados para executar durante o dia. A realidade, porém, não tem qualquer consideração pelos nossos planos. Decidiu contra eles, e, agora, que se aproxima velozmente a hora de jantar, nada do planeado foi realizado, tendo sido arrastado por um turbilhão de coisas que teria tido prazer em evitar. Não que me tenham causado dor, apenas um sentimento de que os seres humanos, por mais que proclamem a autonomia, estão submetidos a um mundo que não controlam. Felizmente, apesar de tudo. Pois se cada um tivesse poder para controlar o mundo, este ficaria incontrolável. O que nos salva, ou tem salvado até aqui, é a nossa impotência. Diante de mim tenho um romance. Na página três, sob o título da obra encontra-se escrito entre parêntesis o seguinte: Novela verdadeira. Fico suspenso dessas palavras. O que queria dizer o autor com esse aviso? A ficcionalização de um acontecimento que ocorreu no mundo? Estes casos são aqueles que mais deveriam levar a suspeitar da palavra verdade. Um romance assente com fidelidade canina num caso real é, plausivelmente, uma grande falsificação. Por outro lado, um outro, em que tudo o que é narrado é falso, será efectivamente verdadeiro, pois a verdade de uma obra de arte não nasce do seu acordo com a realidade, mas da capacidade de criar uma realidade. Verdade significa poder de criar mundos. Passo com os dedos pelas folhas e pergunto-me se, apesar de tudo, irei ler este romance. E não encontro resposta. Imagino que a obra seja ilegível. O vento não dá sossego à ramagem das acácias. Um melro poisa num cedro. Ao longe, dois corvos rasgam o horizonte, pois o horizonte é uma coisa que serve mesmo para ser rasgada, de preferência por corvos. É este o meu destino, escrever falsificações, e nem tudo o que é falso é arte, e banhar-me na trivialidade. O que me vale é a existência de corvos, mesmo que não rasguem o horizonte.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Hexadezena

Agora que a primeira quinzena de Junho se aproxima do fim, ainda não sei o que dizer dela. Talvez que uma quinzena sejam duas semanas mais um dia. Eis uma questão factual, embora seja possível pensar quinzenas de dezasseis dias, pois não produzimos, na história da nossa língua, um vocábulo para nomear um período de dezasseis dias. Quinze, quinzena. Logo, dezasseis, dezassezena. Ora, a solução proposta não existe, seria patética caso existisse, e é um sinal claro de discriminação dos conjuntos de dezasseis dias, que podem, e devem, sentir-se em desvantagem, não apenas perante os conjuntos de quinze dias, como diante dos polígonos de dezasseis lados que recebem o nome de hexadecágono ou mesmo ante os polícoros de dezaseis faces, que são chamados de hexadecácoros. Aqui, entre nós que ninguém nos ouve, não são nomes lá muito bonitos, que devemos evitar de colocar a um filho. Seja como for, podem ser inspiradores. Um período de dezasseis dias poderia, então, ser uma hexadecazena ou, mesmo e talvez muito melhor, uma hexadezena. A formação de palavras parece fazer-se por tentativa e erro. Então, diríamos, passarei a primeira quinzena de Julho em casa, mas a hexadezena seguinte será por aí a vaguear sem destino, que é a única coisa que se poderá fazer nas hexadezenas, que não faltam no calendário.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Do mal

Hoje, floriu a última orquídea. Foi a tempo de apanhar todas as outras floridas. Mais uns dias e haveria já uma ou outra que se teria despedido do seu fulgor. Olhando para todas, não encontro razões para tal disparidade na gestão do tempo, mas os meus olhos são pouco indicados para encontrar tais razões, pois a ignorância sobre o assunto é tão grande que mesmo aquilo que vejo é como se não visse. Passei parte da manhã a ouvir alguém em confissão. Logo eu que não tenho qualquer vocação sacerdotal. Bem, não se tratava de uma confissão, mas de um desabafo sobre pecados alheios. A confessada, pois era alguém do sexo feminino, era mais paciente do que agente, sofria mais os pecados de outrem do que se referia aos seus. O interessante é que a pecadora, pois também o agente era do sexo feminino, não vê o pecado como pecado, mas, aposto, acha as suas acções virtuosas. Não se reconhecerá, por certo, como maldosa. Caso fosse religiosa, julgo que se acharia merecedora da glória dos altares. Apesar do discurso quase teológico, a coisa nada tem que ver com a religião, mas com a trivialidade das coisas quotidianas. Enquanto ouvia o desabafo, ia pensando que há pessoas, de tão mal resolvidas que estão na existência, que parecem ter nascido para azucrinar a cabeça a terceiros. Imagino que sintam nisso uma compensação pelo o facto de serem irresolvidas. Fossem essas pessoas orquídeas, e a pecadora poderia ter sido uma bela orquídea, e nunca haveriam de florir. Como se vê, nem tudo o que é possível se torna real. Nem tudo o que está em potência passa ao acto, para citar o velho estagirita.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Impontualidades

O dia não começou mal. Uma consulta marcada para as nove da manhã. Eram dez e ainda não tinha entrado no gabinete do médico. Haverá, por certo, razões ponderosas para explicar este conflito entre a pontualidade e o exercício da medicina. Há dias, no blogue de um conhecido embaixador, este dizia que, finalmente, percebia a razão por que se chamam pacientes aos que têm de recorrer a um médico. Tinha a ver com o tempo de espera no consultório e a paciência necessária. Parece que esta é uma experiência universal. Pelo menos, por cá. Imagino que a D. Filipa de Lencastre nos trouxe imensas coisas, mas uma delas não foi, por certo, a pontualidade britânica. Talvez, nos dias dela, os britânicos não fossem pontuais. Uma competência que foram desenvolvendo ao longo do tempo. Isto dá-me a esperança de que nós portugueses, onde se haverão de incluir os esculápios e as esculápias, já agora, nos tornemos pontuais. Como se vê, eu tenho grande capacidade para me iludir. Se, em tempos, os britânicos faziam gala da sua pontualidade, nós fazíamos, e fazemos, gala da nossa impontualidade. O vício é apresentado como virtude. A partir daí, pouco há a fazer. O dia está cansativo, eu estou cansado, a realidade está um cansaço. Vou descansar.

domingo, 11 de junho de 2023

Bebidas

Para o que é a norma, a norma dos domingos, esclareça-se, almocei cedo. Bebo agora café. Há muito que, num movimento centrípeto, deixei de frequentar cafés, reduzindo-me ao convívio do lar ou comigo mesmo para tomar uma das bebidas de que mais gosto. Há, para além da água, bebidas notáveis. O café, por exemplo. O vinho, uma boa aguardente vínica, o cognac e, como não podia deixar de ser, o whiskey, a versão irlandesa de preferência à escocesa, a qual não leva e. O Word sublinhou-me coganc, assinalando um terrível erro, pois só conhece conhaque. Erro pior cometi há muitos anos quando, num restaurante em França, onde me serviam um cognac e, imprudente, falei de armagnac. O proprietário seria um típico cognaquiano e não me mandou fuzilar por pouco. Um cognac resulta de uma tripla destilação de vinho branco, enquanto o armagnac apenas de uma, não há comparação, sublinhou perante a minha heresia, a qual consistiu apenas na nomeação da coisa, sem fazer comparações. Se o pobre senhor fosse filósofo dira que pertenciam a paradigmas diferentes e, como tal, incomensuráveis. Sobrevivi, mas a partir daí nada de comentários sobre bebidas, pois aquilo pareceu-me pior do que uma disputa política ou mesmo futebolística, que ainda é pior. A realidade, triste realidade, é que, nos tempos que correm, deixei os destilados numa outra era e restrinjo-me a uma santíssima trindade. Água, vinho e café. A água purifica-me, o vinho dá-me o pouco espírito que tenho e o café talvez me mantenha acordado, mas tenho dúvidas. Dá-me prazer. Daqui a pouco chega o meu neto. Tenho de me preparar.

sábado, 10 de junho de 2023

Mitologias

Há pouco passei uns minutos diante da televisão. Num canal de desporto, via-se uma das mais importantes corridas de automóveis, as 24 Horas de Le Mans. Há cinquenta anos eu teria ficado muito mais do que os minutos que fiquei. Nessa altura, as corridas fascinavam-me. Hoje, o que me fascinou não foram os carros que giram interminavelmente pelos mesmos lugares, mas o facto de isso me fascinar há cinquenta anos. Não demorou muito a que o fascínio desse lugar ao alheamento. Será essa a natureza das paixões, um fogo intenso que termina nas cinzas da indiferença. Enquanto arde, parece ser coisa eterna. Terminada a combustão, a vida refaz-se noutros horizontes. De que me lembro desses anos em que as 24 Horas de Le Mans faziam parte da minha mitologia pessoal, bem como dos meus amigos de então? Da feroz rivalidade entre os Ferraris 512S e os Porsches 917K e da morte, faz amanhã 51 anos, de Jo Bonnier, na altura um piloto da Lola. Os Ferraris eram vermelhos e os Porsches, azul-claro com uma lista cor-de-laranja, salvo erro. A experiência diante da televisão não me elucidou sobre o que me apaixonava naqueles tempos. Os comentários fizeram-me sorrir, perguntar-me como é que adultos podem mostrar, perante um simples divertimento, um entusiasmo de jovens acabados de sair da adolescência. Por certo, há cinquenta anos ter-lhes-ia dado a máxima atenção e pensaria que eram sábios. Cada um de nós traz em si um conjunto de mitologias. As mais intensas foram aquelas que, iniciando-se na infância, foram morrendo com o aproximar da idade adulta. A partir daí os mitos morreram e passaram a existir razões, mesmo que, por vezes, travestidas de paixões.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Sonhos

Descubro, com a prestimosa ajuda de Alexander Kluge, que Theodor Adorno, em carta escrita a de 2 de Agosto de 1935 para Walter Benjamin, afirmou o seguinte: Chaque époque rêve la suivante. Estas frases nunca deixam de ser fascinantes, mas o fascínio é um exercício de cegueira. Poder-se-ia perguntar quais as provas que Adorno tem do que afirma. Se isso fosse verdade, bastaria descobrir o que sonha cada época para saber o que virá a seguir. O pior é que as épocas não sonham e os homens, que nunca deixam de sonhar, sonham com coisas tão diferentes que, caso o dito de Adorno fosse verdadeiro, a época a vir seria não uma, mas múltiplas épocas, em conformidade com os diversos sonhos existentes na época anterior. Este tipo de afirmações revela que os homens, mesmo os mais racionais, estão sempre dispostos ao augúrio. Seja no voo das aves, seja nos sonhos dos indivíduos ou das épocas. Existe um inconformismo com o facto de o futuro estar oculto por uma espessa e intransponível muralha. Este narrador está convencido do contrário do que afirma Adorno. Nenhuma nova época se reconhece nos sonhos da anterior, achá-los-á sempre descabidos e, irremediavelmente, presos ao mundo que acabou. Se por acaso as épocas sonhassem, não sonhariam o mundo do futuro, mas o do presente, a do seu presente. O que nos vale, porém, é que as épocas não sonham.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Encarnações

Por quantas encarnações passa uma alma? Ora, não se pense que este narrador se tornou adepto da teoria da reencarnação. Por encarnações entende-se as várias faces, ou máscaras, que, ao longo da vida, uma pessoa vai usando. Nada de transmigrações, apenas metamorfoses. Será que eu sou a mesma pessoa do que aquela que eu era há vinte anos. Tenho dúvidas. Estas meditações foram desencadeadas por uma súbita nostalgia que me pôs a ouvir coisas que eu ouvia noutra encarnação. A nostalgia, porventura, será um sintoma de que sou a mesma pessoa, mas talvez não seja prova suficiente para me convencer. O dia está triste e ventoso. Um sol anémico, alguns chuviscos. Entrego-me a meditações silenciosas. Na verdade, não são meditações, mas antes ruminações e cismas. O pensamento vai correndo, embora, como um bom ruminador e um ainda melhor cismador, não chegue a lado nenhum. Os meus argumentos nunca têm conclusão. E se por acaso encontro alguma conclusão, ela é destituída de premissas. A música parou. Vou deixar a nostalgia dissipar-se e recuperar aquilo que sou nos dias de hoje. O passado é uma sombra pesada, um país estrangeiro em que, acredito, nunca vivi.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não jogo aos dados

Estava a preparar-me para o feriado de amanhã quando me deu o sono. Tive de fazer um grande esforço para não interromper a preparação. Estas coisas têm de ser levadas a sério. Nunca se deve entrar por um feriado dentro sem o devido planeamento, antecedido por um período mais ou menos longo de deliberação. Há quem dê valor ao improviso, defenda que a vida se deve enfrentar com tudo aquilo que tem de inesperado e inquietante. Na verdade, desculpas de mau pagador de quem gere a existência segundo o princípio de incerteza de Heisenberg. Eu sei que o princípio de aplica nos domínios da mecânica quântica, e só neles, um lugar pouco recomendável para pessoas de bem. Contudo, ao falar dele, sempre posso aparentar erudição, e as aparências são a realidade de quem é, como este narrador, destituído de essência. Não me vou pôr aqui a falar de posições e momentos lineares, do facto do crescimento da certeza de um implicar o aumento da incerteza do outro. Não falo disso, em primeiro lugar, porque não sei nada sobre o assunto. Depois, porque não vem ao caso. Aqui defende-se tudo o que é certeza, mesmo que seja a mais estúpida, e procura-se com denodo a sua certificação. Se Deus não joga aos dados, como afirmou Einstein, seria eu que iria jogar aos dados com um feriado, ainda por cima dia santo? Não sou assim tão estulto, embora, não raras vezes, o pareça. Vou continuar a preparar o feriado de amanhã.

terça-feira, 6 de junho de 2023

O mais decisivo

Junho não é um mês fácil, embora tivesse a obrigação de o ser. Deveria entregar-se a amenidades, longe do furor estival e esquecido das intempéries invernosas. A prova de que estamos numa era negra manifesta-se no comportamento dos próprios meses, no esquecimento ostensivo dos seus deveres, da sua desatenção a todos os imperativos a que se submeteram na origem dos tempos. Quando foi altura de arranjarem um lugar no calendário, comprometeram-se a tudo e a mais alguma coisa. Agora, é o que se vê e o que se sente. E não há quem ponha o calendário nos eixos. Temo que nem um astuto Ulisses, tão devotado aos ardis mais inconcebíveis, teria poder para pôr os meses nos eixos ou nos carris, caso se prefira a metáfora ferroviária. Enquanto escrevo estas lamentações tão cheias de trivialidades, não paro de bocejar. Se dou sono a mim mesmo, o que não farei aos outros? Em resumo, sou um chato e talvez essa seja a minha principal característica. De lá de dentro vem um diálogo sobre propriedades matemáticas, diálogo a que minha pobre neta tem de se submeter, apesar dos mais de cem quilómetros de distância. Esta coisa das videoconferências é uma chatice, pensará ela, enquanto boceja e tenta resolver um exercício. Ora, não fora um maçador inveterado, escreveria coisas como estas: Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha e, levantando no ar o seu membro, mijou para cima deles tão energicamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito. Sem contar com as mulheres e com as criancinhas. Como sou o que sou, tive de deixar isto para o senhor Rabelais, o qual deu bem conta da tarefa. Diante de mim tenho um livro que é uma longa entrevista a um amigo meu, um amigo de há mais de quarenta anos. A certa altura ele diz: Platão ainda me desafia, continua presente… e delicia-me enquanto leitor! Uma grande parte da filosofia como a conhecemos é franchising de Platão, se é que não é toda. O que torna duas pessoas amigas é o facto de coincidiram naquilo que é decisivo. E Platão é, atrevo-me a dizê-lo, aquilo que é mais decisivo na tradição ocidental, e não apenas na filosofia. Um vento de noroeste atravessa Junho e eu penso numa grande baía onde pequenos veleiros deslizam à procura do porto do crepúsculo.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Enigmas

Sento-me para ver a Primavera passar, mas um calor lúgubre cai sobre o corpo, a pele parece estalar. Se viesse chuva e trovoada, tudo melhoraria, ouvi há pouco, quando, na rua, me escondia do sol. Retornado a casa, paro diante das orquídeas. Apenas uma ainda não floriu, mas já não faltará muito. O que não sei é se será possível estarem todas floridas ao mesmo tempo. As temporãs começam a ter dificuldade em segurar as flores, que têm um ar tristonho, um semblante que anuncia a queda iminente. A língua, qualquer língua, é uma coisa extraordinária. Veja-se a distância semântica que vai de iminência a eminência. Troca-se uma vogal e tudo muda. Talvez isso se passe em todas as coisas. Imagine-se uma equipa de um desporto qualquer. Troca um jogador e a realidade passa a ser outra. Pensa-se na língua como instrumento de expressão, mas ela também é, no seu conjunto, um símbolo do mundo, a sua estrutura reflecte a estrutura desse mundo. Todo o mundo se encontra em qualquer língua. Podemos pensar, talvez sem errar, que qualquer coisa no mundo pode ser o símbolo desse mundo. Jorge Luís Borges dá-nos, num conto denominado Aleph, uma visão restrita desta simbolização. Haveria um ponto do espaço, por acaso, em Buenos Aires, que abarcaria toda a realidade do universo. Ora, podemos ir mais longe e pensar que qualquer coisa ou ponto do universo contém a totalidade do universo, mesmo um habitante da mais recôndita província ainda traz consigo esse universo. O que é espantoso é que não sinta o peso que transporta. Este será o enigma dos enigmas, que nem o calor mais sinistro poderá apagar.

domingo, 4 de junho de 2023

Da perfeição

Acabei de ler, durante a insónia desta última noite, o romance de Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas Mann, Professor Unrat ou o Fim de um Tirano. É um excelente romance e prova provada de que o génio dos Mann não recaiu apenas em Thomas. Não encontrei mais nenhuma obra de Heinrich traduzida para português, apesar da sua produção ter sido considerável. Talvez alguém se lembre de dar continuidade à tradução das suas obras. Os livros de Heinrich foram queimados pelos nazis, quando ele já estava fora da Alemanha. Passou por Portugal a caminho dos Estados Unidos. A tradução portuguesa de Professor Unrat contém múltiplas informações sobre o escritor, desde as relações tensas com o irmão Thomas, que acabaram em reconciliação, até à notícia do suicídio de duas irmãs Mann. Este tem sido um belo domingo, entregue ao não fazer nada, a mais nobre das ocupações, aquela que é um sintoma da perfeição, num mundo repleto de imperfeições. Isto não significa que aquele que entra na casa do não fazer nada é um ser perfeito. Não, não é, mas reconhece que a perfeição reside não na azáfama que tomou conta do mundo, mas nessa imobilidade que imita o motor imóvel, para retomar, de novo, uma metáfora proveniente do velho discípulo de Platão. Agora, enquanto nada faço, tenho de decidir qual o romance que irei ler nesses longos minutos de insónia.

sábado, 3 de junho de 2023

Problemas de linguagem

Troveja, relampeja e choveja. Bem, choveja era uma ideia para rimar, mas não se pode rimar por dá cá aquela palha. O Word anda a ter lições de erudição. Não gostou que tivesse usado a expressão ‘dá cá aquela palha’, sublinhou-a, em estilo pontilhista, e propôs a substituição, sem se rir, por ‘um motivo fútil’.  A realidade é que tem estado a chover copiosamente, enquanto se ouve e vê nos céus a ira de Zeus, num espectáculo multimédia, com laivos realistas. Voltemos ao ‘dá cá aquela palha’. O processador de texto achou-a linguagem informal, apelando a uma mais formal. Pergunto-me quem andará a educar o Word. Vivemos num mundo informal, se não mesmo informe, logo a linguagem deve estar de acordo com o mundo. Só assim ela será capaz de o exprimir. Imagine-se que eu escrevia ‘mas não se pode rimar por um motivo fútil’. Logo se pensaria que tinha enlouquecido e que agora me tinha entregado a uma linguagem pomposa, empolada, que eu sofria, além de outros males físicos e morais, de afectação, e sabe-se lá mais de quê. Com esta conversa mole, Zeus abrandou a ira, a chuva deixou de cair, entre as nuvens avista-se, agora, pedaços azuis do céu, e o Sol, escondido atrás de uma nuvem esbranquiçada, envia uma luz porosa que cai sob a copa das árvores e as retira da cinza em que tinham caído, permitindo-lhe verdejar diante dos meus olhos. Gosto de espreitar as primeiras frases de um livro, talvez seja uma espécie de voyeurismo, mas já é tarde para abandonar o vício. Diante de mim tenho um que começa assim: A 13 de dezembro de 1880, cêrca das onze horas da manhan, era enorme a affluencia de gente na pequena povoação de Paardekraal, situada proximo de Heidelberg, cidade do Transvaal ou República da Africa do Sul. Esta era a ortografia ainda em vigor no ano de 1905, uma ortografia monárquica, ou que a monarquia não conseguira destruir, apesar de o ter tentado, com o álibi da simplificação, coisa em que a república foi mais bem-sucedida. Não me interessa muito saber as razões que levaram àquela afluência inusitada numa aldeola do Transval, nem o motivo por que um escritor português, Eduardo de Noronha, dedica um romance, O Extermínio de um Povo, ao assunto. Basta-me contemplar aquelas palavras que os simplificadores decidiram exterminar. Tens de te decidir, vociferou o homúnculo que vive na caverna da minha mente, se és adepto da escrita ao gosto popular ou da velha escola armada em erudita, cheia de consoantes mudas. Encolhi os ombros. Não há paciência para idiotas, pensei. Voltou a chover, mas não troveja.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Santa ignorância

Há coisas que os homens nunca deviam saber. Veja-se por exemplo o seguinte: O rei Uther Pendragon, governante de toda a Grã-Bretanha, estava em guerra havia muitos anos com o duque de Tintagil na Cornualha, quando soube da beleza de Lady Igraine, a esposa do duque. Eis uma novidade desnecessária a um rei. Nunca se sabe quão funestas são as consequências que um conhecimento arrasta atrás de si. Não se pense, porém, que este caso é original. Basta recuar ao paraíso. Também o saber que Eva adquiriu era desnecessário e as consequências dessa sabedoria são aquelas que todos experimentamos. Até o mais extremo e radical dos ateus sabe pelo menos uma coisa. Mesmo que nunca tenha existido um paraíso originário, nem um Adão, nem uma Eva, nem uma árvore do conhecimento, as consequências do acto de Eva e de Adão são absoluta e incondicionalmente verdadeiras. Alguém interessado em discussões estéreis perguntará de imediato como é que um efeito pode existir e ser verdadeiro, sendo falsas as causas. Uns rudimentos de lógica dão a chave para o mistério. Imaginemos a seguinte proposição condicional: Se existiu um paraíso e nele havia um casal humano (Adão e Eva) criado por Deus, que se deixou tentar e comeu o fruto proibido, então os seres humanos tornaram-se mortais, têm de trabalhar e tudo o mais que lhes acontece a cada dia.  Se a proposição antecedente, a que vai do ‘Se’ até ao ‘então’ é falsa, a consequente, a que se segue ao então, é verdadeira. Logo, a proposição condicional é verdadeira. Se Eva não tivesse curiosidade em saber ao que sabia o fruto da árvore do conhecimento, também Uther Pendragon não saberia da beleza de Lady Igraine, e o mundo seria um lugar mais respirável. E assim entro na parte final desta sexta-feira. Há uma trovoada seca, a atmosfera está irrespirável e este narrador, sem apetite para os deveres que tem pela frente, ouve os Gurre-Lieder, de Arnold Schönberg.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Designações

Estou a ouvir o concerto nº 1 de Il Cimento dell’Armonia e dell’Invenzione, Opus 8, de Antonio Vivaldi. Ao todo são doze concertos, mas quase só são conhecidos do grande público os quatro primeiros, ditos As Quatro Estações. É curioso o processo de denominação desses concertos. Começa com a Primavera, depois o Verão, segue-se o Outono e, de imediato, o Inverno. O quinto, talvez por as estações serem só quatro, recebe o nome de Tempestade no Mar, e o sexto a designação de O Prazer. A partir daí, não há títulos. Terá Vivaldi ficado sem imaginação para encontrar designações para os últimos seis? A estes apenas coube o número e a tonalidade. Talvez ele tenha pensado que, nestes últimos concertos, não deveria simbolizar fosse o que fosse. Seriam símbolos de si mesmos, pura música sem qualquer mácula exterior. Ou talvez lhe tenha dado nomes e estes se tenham perdido, ou ele se tenha esquecido. Lá fora, o céu está com um ar tempestuoso, mas não chove, não troveja, nada. Entre a escrita destas palavras e chamadas de telemóvel, chegou o quinto concerto. Há uma tempestade marítima, o mar agitado, raios e coriscos fazem os marinheiros praguejar, o revérbero nas águas encadeia quem as olha, a música é uma sombra cintilante na pradaria de Junho, onde os rebanhos adormecem. Volto à cidade, embora esta não seja mais do que uma pequena vila exausta, a perder sangue, uma terra vergada pela anemia. O mar tempestuoso fica longe. Na rua, um casal passa, ele à frente, ela atrás, vão presos à sua indiferença, enquanto o CD chega ao primeiro movimento, Allegro, do concerto Il Piacere. Suspendo a escrita e deixo-me levar no prazer de ser levado.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Em louvor da convenção

Maio, maduro Maio. Amadureceu de tal modo que está a cair de podre. A frase não é particularmente imaginativa, mas tem uma dupla vantagem. Assinala a efeméride, o fim do mês, e abre este texto, para o qual não me ocorria ideia alguma. Também poderia escrever o seguinte: Todos cantaram, dançando: / - Maio está morto! Viva Junho! Viva o novo mês! Isso , porém, seria apropriar-me de um excerto de Irène Némirovsky, que no romance Dois escreveu: Todos cantaram, dançando: / - 1920 está morto! Viva 1921! Viva o novo ano! O problema não seria tanto o plágio, mas a falta de força do escrito, do deste narrador. Uma coisa é comemorar a passagem de ano, outra bem diferente é a de assinalar a transição de um mês para o outro. Do ponto de vista físico, a realidade é exactamente a mesma, mas na perspectiva da psicologia colectiva são coisas absolutamente diferentes. Uma convenção, dir-se-á. Sim, uma convenção, mas nós seres humanos somos o que somos também porque existem convenções. Quando se é adolescente ou pós-adolescente é-se anticonvencional, mas esse sarampelho passa com idade. Se, para infelicidade da pessoa, se torna crónico, então é melhor consultar um médico da especialidade. Isto significa que este narrador é profundamente convencional e não se espere dele nada mais do que convenções e trivialidades. Se alguém estiver interessado em vanguardas, então está no pior sítio para as encontrar. Aqui não se marcha para a frente, mas também não se recua. Aqui é o lugar da pura imobilidade. Mais quieto só o motor imóvel, o qual, apesar da imobilidade, faz mover o mundo.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Palavras

Um dilema. Deixemos de lado os calendários digitais e concentremo-nos nos de papel. Que tipo será preferível? Aquele em que as folhas dos meses estão presas num sistema de argolas e que, acabado o mês, se faz girar a folha para trás ou os que exigem que a folha seja arrancada e deitada fora? São duas concepções de tempo diferentes. Na última, o tempo é visto como linear, esgotando-se para toda a eternidade. Na primeira, porém, subiste um sintoma do tempo cíclico. Ao fazer rodar a folha para trás, fica-se com a impressão de que ela acabará por voltar, numa cadeia interminável. É uma ilusão como todos sabemos, pois, acabado o ano, o calendário não volta ao Janeiro que passou, mas é deitado fora e substituído por outro, com um Janeiro novinho em folha. No entanto, uma ilusão pode ser bem mais do que um erro cognitivo. Pode ser um sinal de que a sensação de um tempo linear que se devora a si mesmo está incrustada no eterno retorno do mesmo. Nos dias que correm, as pessoas estão muito preocupadas com a vexata quaestio da verdade. Uns porque não suportam a sua luz e querem apagá-la, outros porque desejam que ela brilhe mais intensamente. O núcleo do drama reside nas palavras. Com elas podemos fazer quase tudo, inventar ou apagar problemas, estabelecer as mais inusitadas relações, produzir as meditações mais levianas, como a das folhas do calendário ou outras que se propagam nestes textos, cujo núcleo central é o disparate em forma de pensamento. Nos anos setenta, havia uma canção interpretada por Alain Delon e Dalida. A certa altura, ela dizia: paroles et paroles et paroles. Ora, se me falta uma filosofia para tratar do assunto, há sempre uma cançoneta, daquelas que passavam na rádio, perdida no fundo negro da minha memória que explica aquilo que há a explicar. Palavras, leva-as o vento.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Questões climáticas

Isto anda mal. Por isto refiro-me à imaginação. Parece estar pouco disponível para encontrar tema para esta narrativa. Resta-me falar do clima. Por aqui chove e chove desde a manhã. Aliás, já chovia quando ainda não tinha despontado a aurora de róseos dedos, pois acordei às tantas da noite e ouvi aquilo que me pareceu ser chuva. Até o assunto do clima se esgota rapidamente. Talvez seja essa a medida de todas as coisas humanas, esgotarem-se demasiado depressa. Sim, eu sei, há coisas que parecem nunca ter fim. Isso, porém, não passa de uma aparência e nem tudo o que parece é, como sublinha a sabedoria popular. Por desfastio, estou a ouvir uns quintetos com piano, de João Domingos Bomtempo. Ora, a questão climática persegue-me mesmo na música. Logo o homem haveria de se chamar Bomtempo. Por aqui, há uma família conhecida como os Má Tempo, assim mesmo. Não consta que tragam mais tempestades e ciclones do que qualquer outra família. Estes nomes são um mistério. Aliás, tudo é um mistério e o que não nos parece ser misterioso deve-se apenas à habituação do olhar. De tanto vermos uma coisa, pensamos que a conhecemos. Isso, porém, é uma armadilha que as coisas lançam e nós caímos nela. Elas querem repousar descansadas, temerosas das nossas indagações, então deixam que criemos ilusões sobre o nosso conhecimento. Quando estamos distraídos riem-se de nós. Se ficamos atentos, fingem-se de mortas, o que é sempre uma boa solução.

domingo, 28 de maio de 2023

Da estupidez

O último ensaio do livro Ensaios, de Robert Musil, não é bem um ensaio, mas o texto de uma conferência proferida em Viena, no dia 11 de Março de 1937, com o título Über die Dummheit, Da estupidez, na tradução portuguesa. Eis um tema sobre o qual sou versado e sou-o de uma forma decisiva, isto é, de uma forma prática. Não se pense, porém, que me reconheço como estúpido. Impossível. A prática vem de pensar muito no assunto, como se verá na sequência. Todos nós, seres humanos, estamos convencidos de que estamos rodeados pela estupidez, mas pela estupidez dos outros. Se se fizer um inquérito, por maior que seja a amostra, não se encontrará um caso que seja de alguém que se reconheça como estúpido. Isto conduz-nos a uma primeira conclusão, a estupidez é sempre um problema dos outros. Nenhum eu tomará a palavra e dirá: eu sou estúpido. Se o bom senso, no dizer de Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que tem, a estupidez, pelo contrário, é a coisa que mais está em falta nesse mesmo mundo, pois não há ninguém que não reconheça estar desapossado dela, de ser um miserável no que toca à estupidez. Portanto, a estupidez é um problema dos outros pronomes pessoais. É um problema do tu, do ele e do ela, do vós e do eles e do elas. Só as primeiras pessoas, do singular ou do plural, não são estúpidas. Se o fossem como poderiam ser primeiras pessoas? É sabido que aquilo que faz com que uma primeira pessoa seja primeira, mesmo na região etérea da gramática, é a ausência de estupidez. Alguém poderia objectar que não é certo que um nós não contenha um conjunto de estúpidos. Um nós resulta da junção de vários eus. Ora, se não há nenhum eu que seja estúpido, aonde é que um conjunto de eus iria buscar a estupidez? A nenhures. Um problema prático. Muitas almas cheias de boa-vontade costumam perguntar sobre como erradicar do mundo a estupidez, coisa de estão desprovidas, mas que sabem existir ao seu redor. Eu tenho uma solução, embora desconfie que quem me poderia auxiliar nessa gesta gloriosa não esteja disposto a fazê-lo. Bastaria reduzir os pronomes pessoais às primeiras pessoas do singular e do plural. Não havendo nem tu, nem ele, nem ela, nem vós, nem eles, nem elas, também não haveria estupidez. Haverá, porém, algum gramático com alma de redentor do mundo disposto a abolir esses malfadados pronomes pessoais? Desconfio que não, ou não fora ele um estúpido ele.

sábado, 27 de maio de 2023

Mar da vulgaridade

A manhã passada em trivialidades, daquelas que compõem a vida e que sem elas, esta não seria possível. Imagino que o programa existencial produzido para gerir a vida humana ache relevante que a maior parte da curta existência que cabe a cada um seja gasta em banalidades. Talvez não suportássemos ter sido feitos de outra forma. Não conseguiríamos viver, ou mesmo sobreviver, num mundo onde a vida fosse composta por singularidades, extravagâncias e originalidades. Cairíamos por terra logo ao segundo assalto. Vistas assim as coisas, faz sentido que mergulhemos no mar da vulgaridade e orientemos o frívolo barco da nossa existência por essas ninharias que compõem o quotidiano. Comprar pão, beber café, mandar lavar o carro, comprar peúgas ou uma caixa de cerejas, com a qual se foi trivialmente enganado. Caixas de diversos preços e calibres. Compra-se uma de maior calibre, paga-se mais. A realidade, todavia, é que estamos em Portugal, e o calibre que justificava o preço só tinha tocado as cerejas de cima. As de baixo eram miseravelmente pequenas e, para azedar o ânimo, sensaboronas, ao contrário das outras. Julgo que isto fará também parte da trivial arte de ser português. A música corre por aqui, vai variando, de Satie a Messiaen, embora o que me vai na alma seja o desejo de dormir uma sesta, como se fosse espanhol, o que, manifestamente, não sou, nem tenho nostalgia de uma unidade ibérica. Tenho muitas coisas para fazer, mas o melhor é ir dormir.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Do sólido ao gasoso

Uma visita ao registo civil. Eis um belo título para uma novela de suspense. Por aqui, o registo civil mudou, há dias, das antigas instalações para umas modernas. Uma pessoa chega, um segurança levanta-se da secretária e, depois de questionar a finalidade da visita, dá instruções sobre o modus operandi. Retirada a senha de uma máquina que tem por função dar senhas a quem as pede, as pessoas sentam-se e aguardam que num monitor surja o número da sua e a indicação do balcão a que deve dirigir-se. Sentei-me e aguardei, isto é, fui aguardando, pois estamos num território onde o tempo é vagaroso. Quando estava a chegar a vez da minha senha, a senhora evaporou-se do balcão. Passado um espaço de tempo apreciável, vejo-a aproximar-se do lugar, senti que tinha chegado a minha hora, mas sem que eu desse por isso tornou a evaporar-se. Estou num mundo onde as coordenadas físicas são diferentes das habituais, pensei. Passado mais um intervalo generoso, a senhora que tem um talento especial para viajar entre os estados sólido e o gasoso, lá se solidificou na cadeira e, como na lotaria, saiu o número da minha cautela. A senhora foi amável, talvez não muito segura, mas enfim. A certa altura confessou sabe, este processo é um pouco moroso e nós somos apenas três e uma das minhas colegas, por problemas pessoais, teve de faltar, são coisas que acontecem. Pois são, anuí.  E continuou a confissão o melhor é mesmo fazer uma marcação para outro dia, onde estejamos todas e assim haverá mais tempo, a senhora conservadora pode dar uma ajuda. Fazemos assim, fica aqui marcado na agenda (uma agenda em papel), o senhor tira a senha na mesma, mas dirige-se logo ao balcão, diz que tem uma marcação. Encolhi os ombros e disse que sim, que faria isso. Tenho esperança de que a colega resolva os problemas e volte ao serviço, não vá ser precisa outra marcação. A burocracia nacional é uma instituição. Em tempos havia uma coisa extraordinária, que, entretanto, caiu em desuso, julgo. Era a certidão de nascimento. Para as coisas mais estapafúrdias não bastava a presença da pessoa e o bilhete de identidade. Sem a certidão de nascimento, a burocracia nacional não tinha a certeza de que aquela pessoa que estava ali tinha de facto nascido. Imagine-se que um não nascido chegava e queria tratar do casamento ou do divórcio, ou sabe-se lá o quê, o que um não nascido pode querer fazer neste mundo, neste universo onde há pessoas que passam, com facilidade desusada, do estado sólido ao gasoso, embora tenham mais dificuldade em voltar a solidificar-se.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Magnanimidades

Maio escoa-se. Da rua vêm barulhos que me incomodam. Talvez ande a dormir pouco e de dia não tenha paciência para o que perturba uma atmosfera pacífica e silenciosa. Acabei de ler o romance Devorar o Céu, de Paolo Giordano, autor de A Solidão dos Números Primos, que nunca li. Na contracapa de Devorar o Céu estão impressas várias opiniões sobre a obra. Um romance magnânimo, segundo o The New York Times Book Review. Fico perplexo. Será a magnanimidade uma categoria literária ou de crítica literária? Não consegui encontrar o texto onde a obra terá sido assim sentenciada. Faz-me lembrar um dito de Roland Barthes sobre o adjectivo agradável, um dito que talvez seja apócrifo. Diz-se que uma coisa é agradável quando nada se tem a dizer sobre ela. Depois de um convite, profere-se, como agradecimento, foi uma noite agradável, muito agradável. É possível que Barthes nunca tenha dito ou escrito nada de parecido, mas seja ou não ele o autor, o dito capta a coisa. Ora, um romance magnânimo pode estar longe de ser um romance magnífico. É verdade que existe alguma magnanimidade, talvez excessiva, para coisas que o romance manifesta, mas o adjectivo magnânimo soou-me a agradável. Contudo, o romance não é agradável, no sentido do dito de Barthes, mas um romance que merece ser lido e que capta o ethos de uma geração que me é estranha. Quando se fala no ethos de uma geração, faz-se uma generalização imprópria. As gerações têm múltiplos ethos. Uns diferentes, outros antagónicos. O do romance é o dos activistas climáticos radicais e do niilismo que se esconde em todo o agir que, ultrapassando a justa medida, se torna hiperbólico. Acabado o romance, tenho um problema para resolver. Qual será o próximo? Depois penso numa coisa que terei lido já não sei bem onde. Na hora da morte, ou depois dela, o Supremo Juiz perguntar-te-á o que fizeste e não o que leste. Essa frase perturbou-me em tempos. Havia nela uma estranha semelhança com a 11ª tese de Marx ad Feuerbach: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Ora, sempre preferi a interpretação à transformação, sempre dei mais importância ao ler do que ao fazer. Quanto mais se faz, pior se torna a realidade. Exagero, mas talvez esteja hoje dedicado à hipérbole. Maio aproxima-se do fim, mas isso não é um alívio.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Défice hermenêutico

Chove e troveja, o sopro do vento empurra a ramagem das árvores, não avisto ninguém na rua, mas um gato esconde-se debaixo de um carro, espreguiça-se, bem o vejo, mas logo se senta como só os gatos se sabem sentar. Olho os céus à procura de sinais, mas não existem, ou se existem não consigo descortiná-los. Talvez seja melhor assim, pois se os visse não haveria de saber interpretá-los. Apesar da pequena intempérie, os pássaros meus vizinhos continuam a entregar-se a estranhas conversas. Presumo que sejam estranhas, pois também não consigo decifrá-las. Os meus poderes hermenêuticos andam por baixo. Hoje, ao passar pela avenida marginal duas coisas chamaram-me a atenção. A primeira foi os castanheiros. Todos os anos, a época em que florescem é para mim um grande prazer. Este ano, contudo, a floração foi miserável, senão pindérica. Eis outro sinal que não consigo interpretar. A segunda coisa que me chamou a atenção foi o anúncio das festas da aldeia – sim, eu sou um aldeão – onde aterrei neste planeta. Não tenho grande experiência dessas efemérides, mas continuam a ser para mim um mistério. Via as pessoas muito envolvidas, exuberantes, orgulhosas, um entusiasmo transbordante, para não falar em rivalidades, mas nunca consegui encontrar o que motivava tais estados de alma. Aquilo não era mais decepcionante do que a generalidade das coisas humanas, mas não deixava de o ser. Talvez a grandeza da festividade resida na sua pequenez, mas hoje não é o melhor dia para fazer interpretações. As minhas relações com Hermes estão tensas. Numa plataforma que agrega notícias e pseudonotícias vejo anunciar um artigo em que me revelará quais são os três signos mais poderosos do zodíaco. Decido ver. O meu não está lá. Bem me parecia que era um falhado. Contudo, segundo me disseram em tempos tenho o ascendente e a Lua num daqueles que se encontra no top três dos mais fortes. Em resumo, não me saiu a sorte grande, mas tenho a terminação. Há muito que não ouvia esta expressão. Seja como for, não sei como empregar a força que impregna o meu ascendente e a minha lua, se é que possuo um ascendente (sobre quem?) e uma lua. Talvez por isso não passe de um miserável narrador. Parou de chover.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Uma teoria da loucura

Um alarme, presumo que de um carro, esteve mais de um quarto de hora a tocar. Estava a começar a enlouquecer quando alguém o parou. Foi uma sensação de alívio. Não nego a utilidade do dispositivo, mas tem efeitos colaterais desagradáveis, pois parecem ter sido concebidos para afastar ladrões e espalhar loucura no mundo. As pessoas começam a ouvir o ruído, nasce de imediato a esperança de que o proprietário acorrerá para calar a coisa. O proprietário, porém, não reconhece o som ou finge que não está a ouvir. A cabeça começa a ficar em água. Nesse ambiente húmido introduzem-se os primeiros germes da loucura. Quanto maior a humidade, mais depressa os germes se multiplicam. A norma, representada pela curva de Gauss, mostra que geralmente o som é desligado antes que os processos de enlouquecimento se tornem irreversíveis, mas, posso afirmá-lo, nem sempre isso acontece. Então, as pessoas entram no túnel na loucura, com os germes desta a turbilhonar por dentro do cérebro, de onde começa a sair uma água suja e malcheirosa. Nesse momento, incomodado com o aroma, alguém se apieda da vítima e chama uma ambulância. Chegada esta, saem dela polícias que tomam conta da ocorrência e transportam o novo louco para o lar dos loucos, onde a maior parte está ali devido a alarmes que não são desligados a tempo. Escapei por pouco.