Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a
meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus
único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga
renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão
saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia
também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em
Creta e os Inuit no Alasca e entro no
fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não
como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém
ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que
tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na
Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse
dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos
homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha
designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar
cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era
melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e
envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É
possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com
isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade,
um Inuit perdido no horror de um
pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
O pobre destino da caligrafia
Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa
descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As
escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo,
desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável,
enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o
acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler
um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar
no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe
de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a
arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa
democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a
caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico,
expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada.
Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois,
sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir
prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos
contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda
esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez
a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica,
libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras
belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes
do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a
chinela.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Amor máquina
Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de
gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um
cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma
literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o
ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da
rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia
mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e
contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me
bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao
lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos,
mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o
isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não
escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc
pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial
de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar
durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico
grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto
tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de
qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê?
Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez
um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa
acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador
estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer
perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa.
Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios
colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do
mundo.
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Um estóico falhado
Cheguei à tarde desta terça-feira irritado e irritado com a
minha irritação. Deveria ter entrado no clube dos estóicos e entregar-me à apatheia. Olhar com indiferença olímpica
os acontecimentos que, por vezes, me acontecem e deixar o mundo correr para a
foz, sem julgar ter o dever de lançar bóias aos náufragos que encontro. As Parcas, porém, não me quiseram ver
perdido entre gente que se entregava a tal filosofar, arrancaram-me da sombra
do pórtico pintado e, no seu sábio julgamento, determinaram que no meu lote também
cabe a irritação. Quis enganá-las e a conselho médico comecei a tomar um
betabloqueante. Pensei, na minha ingenuidade, ou estupidez, conforme as
opiniões, que tinha, ainda em vida, entrado no paraíso pela porta da química.
Não havia irritação que me chegasse. Nestas coisas, a história tem sempre
desenvolvimentos que estão ocultos aos protagonistas. Os betabloqueantes
deixaram de betabloquear as irritações e o paraíso foi dando lugar ao
purgatório e, agora, ao inferno. Eu sei o que o leitor está a pensar. O inferno
são os outros. É verdade, se crermos nas homilias de Sartre. Eu não tomo
partido sobre elas. Oiço o ruído irritante de um aspirador e penso comigo que
deveria falar com essas Parcas ou Moiras, caso esteja mais inclinado para
o grego do que para o latim. Depois, achei melhor não as irritar e deixá-las
longe de mim. Esperam-me horas de grandes inutilidades e isso realiza-me
profundamente. Fosse eu um estóico e tudo me seria indiferente. Bastava
adequar-me à natureza. Estaria irritado, mas feliz.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
Ficções e fingimentos
Se tivesse engenho para a poesia épica, hoje escreveria sobre a epopeia da caldeira aqui de casa. Assaltou-me, porém, uma dúvida. Tendo em conta que ela decidiu fazer de morta, talvez o talento requerido fosse o do poeta trágico. Uma tragédia o não haver aquecimento nem água quente. A expectativa é que cheguem os técnicos e façam manobras de reanimação e ela ressuscite, sem que tenha de ir para o hospital ou para a morgue. A tarde ergueu sobre si um véu de chuva. Cobre-se com ele e caminha como uma noiva para o altar. Como ela, também a tarde desconhece que é ali, no altar, que se cumpre o seu destino de vítima sacrificial. Ainda me acusarão de querer destruir o instituto do casamento. Longe de mim tal ideia, chego mesmo a ter grande admiração por quem se casa quatro e cinco vezes. A persistência é uma virtude louvável e digna dos maiores encómios. Os técnicos já deveriam ter chegado. Daqui a pouco espera-me uma função daquelas que pela sua profunda inutilidade se tornam absolutamente imprescindíveis. E são coisas destas que me fazem amar esta pátria. Somos especialistas em ficções. Fingimos que gostamos, fingimos que pensamos, fingimos que sabemos, fingimos que fazemos. É um dom que nasce da combinação genética com a educação que o meio promove. Se os poetas são uns fingidores, são-no porque são portugueses. O que arrasta a extraordinária conclusão de que só existem poetas portugueses. Os outros ou não são poetas ou se o são, são portugueses mas não o sabem. O que faz a falta de água quente.
domingo, 26 de janeiro de 2020
Dia de nevoeiro
Cheguei à janela e disse é hoje. É tal o nevoeiro que D.
Sebastião não pode perder a oportunidade para regressar do seu infausto exílio.
Para tornar a hipótese verosímil, não sei bem onde, ouve-se a voz de Tony de
Matos cantar Tempo Volta para Trás.
Todos sabemos que a preocupação do artista não era propriamente o nosso pobre
rei maltratado nas terras da moirama, mas a Severa. Pensei de seguida que se D.
Sebastião chegasse agora ao aeroporto da Portela, logo a seguir viria a Severa
e os problemas que nos afligem ficariam todos resolvidos. Estou proibido pelo
autor destas palavras de ter opiniões políticas. Um narrador, diz-me ele dia
sim dia não, não se mete em política. Isso é coisa de autores. Eu anuo com
servilismo, mas sempre posso dizer que já conheci uns tantos D. Sebastiões, vi-os
chegar e partir e todos continuam à espera que ele chegue. Um domingo de
nevoeiro é sempre propício às minhas meditações sem nexo. Para tornar as coisas
mais densas, contrariamente ao que canta o artista, as horas para mim não são
dias, nem estes são anos. Aos fins-de-semana passa-se o contrário. Os anos para
mim são dias e os dias são horas. O que me atormenta não é que a Severa se tenha
ido, mas a possibilidade que ao virar a esquina dê com ela. Há encontros que
devemos evitar. O nevoeiro não faz intenção de se dissipar. Tenho de me
apressar, antes que D. Sebastião aterre, eu não possa acenar-lhe e gritar viva
o Rei. Ah, esquecia-me, de política não posso falar.
sábado, 25 de janeiro de 2020
Exercícios melancólicos
Ser avô não é um dado, mas um exercício difícil e
persistente. Depois de um mês de afastamento, o meu neto esteve comigo.
Olhou-me com olímpica distância. Nos seus catorze meses mal condescendeu em estar
ao meu colo, embora lhe agradassem certas cabriolices que fazem parte do
repertório que qualquer avô tem para lidar com netos renitentes. Preferiu fazer
explorações solitárias. A certa altura descobriu umas pequenas pinhas que eu
nem sequer sabia existirem. Achou que as poderia partilhar comigo. Dava-me uma,
esperava que eu a devolvesse e colocava-a onde estava. Recomeçava de imediato o
jogo. Foi-se embora há pouco e deixou um buraco no meio do sábado. Deveria
remendá-lo, mas uma preguiça ancestral insinua-se em mim e prende-me a coisas
triviais. Depois de uma manhã ocupada, deveria ir à rua e comprar o jornal de
fim-de-semana. Há uns anos tinha uma verdadeira obsessão pela imprensa hebdomadária,
comprava uns quatro semanários. Depois, alguns foram morrendo, outros mudaram
de sexo e mesmo o que resistiu perdeu a aura sagrada que tinha naqueles anos.
Hoje olho com condescendência para a prosa que se produz. Se a leio é por
desfastio, muito longe do entusiasmo com que no final da adolescência ou início
da juventude comecei a comprar os meus jornais. Ó miséria, lembrei-me que
o primeiro jornal que comprei com devoção foi o Motor, naqueles anos em que as corridas de automóvel faziam parte
do imaginário de uma adolescência à procura de rumo, como todas as
adolescências. Agora sou avô e há muito que morreram em mim os ecos da luta
entre Jackie Stewart e Emerson Fittipaldi, entre os Tyrrell e os Lotus.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
Romantismo tardio
Rápida, a noite aproxima-se no veleiro do entardecer. Como asas gigantescas, as velas da tarde enfunadas pelo vento arrastam a luz e murmuram uma litania dolente para a semana que agoniza. Dois corvos levantam voo do pequeno bosque e desaparecem do meu campo de visão. Anjos negros à procura de almas perdidas nos interstícios da serra, esse conjunto de morros cinzentos, curvados sob o peso dos anos. Não é preciso muito para o romantismo voltar e exibir o seu coração descarnado diante dos olhos atónitos do espectador. A primeira vez que entrei na sede da CGD, na João XXI, em Lisboa, para ver uma exposição, pensei que tinha aterrado numa catedral transposta da Idade Média para os nossos dias. Uma visão romântica das novas divindades. Também hoje visitei uma capela do novo deus e não sei bem por que razão achei que estava num confessionário. Na avenida, os carros lançam já os seus holofotes sobre o horizonte. Circulam devagar, presos à escuridão que avança. Também eu tenho de sair. Esperam-me num café ou, talvez seja mais certo, não tenho nada para dizer. É sexta-feira.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Os quatro caracteres
A humidade destes dias abriu caminho por dentro da secura do
clima. Não é uma terra fácil. Exige um carácter compassivo mesmo aos mais
coléricos. Sem a virtude da paciência será difícil enfrentar e suportar os
humores climáticos. Tenho pena, ou não fora um exemplo de melancólico, embora haja
que descontar a tendência para a hipérbole, tenho pena, dizia, que a psicologia
se tenha vindo a esquecer daquela velha divisão dos caracteres em quatro, todos
eles belos como metáforas à deriva num campo em flor. Esta última frase
mereceria ser riscada e não sem violência. O apelo ao pathos através destas estratégias para caçar ingénuos deve ser proscrita.
Fica lá, só para eu não me esquecer que há coisas que nunca se devem escrever.
Voltando aos caracteres, eles faziam uma bela divisão com os seus nomes.
Fleumáticos, melancólicos, sanguíneos e coléricos. O facto de serem quatro
ainda os torna mais dignos de admiração. A perfeição do número par, que se opõe
à imperfeição de qualquer ímpar, contrasta com o caos classificativo com que
hoje em dia designamos as pessoas. Como se pode negar a eficácia de dizer ali
vai uma melancólica? É pena que tenha casado com um colérico. Assim nunca
poderá ter filhos fleumáticos. Tornou-se moda, uma triste moda, ser contra as
classificações. Por tudo e por nada, se grita não me classifiques que eu estou
para lá de todas gavetas com que organizas a realidade. Presunção e água benta,
penso eu, cada um toma a quer. Um ditado ao gosto popular nunca fica mal para
pôr fim a um texto.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Contemplação e pontos Cardio
Com tantos tortos por endireitar e o mundo tão fora dos
eixos, e eu sentado à secretária a pensar coisas que não hão-de salvar ninguém.
Foi o que me ocorreu quando dei comigo a olhar com demora a Adoração do Cordeiro Místico, do
retábulo de Ghent, uma obra dos irmãos van Eyck, agora restaurada. Se pensarem
como motivo da minha contemplação os olhos humanos do Cordeiro ou o jorro do
sangue do seu corpo para o cálice, estão enganados. O que me retém é a ordem
perfeita com que os adoradores são dispostos na adoração, não tanto porque essa
ordem seja uma convenção cristalizada dos poderes sociais, mas antes o
resultado da própria natureza mística da figuração simbólica do Cristo. Meu
Deus, um dia destes ainda me torno um erudito. Não devia dizer estas coisas,
pois contrariam a vulgata social que hoje faz de cartilha maternal pela qual
todos aprendem a ler o que se passa por aí. Recebo uma mensagem. A aplicação
que me controla o exercício diz-me que está tudo OK!, com exclamação para
enfatizar a situação. Depois percebo que é um estratagema reles para motivar-me
a estar ainda dezassete minutos activo e obter mais um ponto Cardio. Desconfio que se obtiver todos
os pontos Cardio em jogo ganho uma
viagem a Ghent, mas talvez o mundo não funcione segundo as minhas conjecturas
e, mal faça uma, ela receba imediata refutação. Uma outra mensagem põe-me
perante um dilema, plausivelmente falso. Será a amizade um sentimento ou uma virtude? Para
piorar as coisas, alguém que desconheço, de um país do leste europeu, pede-me
amizade. Não lhe consigo pronunciar o nome. Ainda bem que não é um pedido de
casamento, pois os meus pontos Cardio
não seriam suficientes para tamanha comoção.
terça-feira, 21 de janeiro de 2020
Pobre Katharina
Passo os olhos pelos jornais e descubro que cinco pinturas
roubadas há quarenta anos na cidade alemã de Gotha tinham sido recuperadas.
Entre elas encontra-se uma de Hans Holbein, o Velho, que o jornal indicava ser Santa
Catarina, um quadro de 1509. Havia naquela mulher uma tal tristeza que duvidei
que se tratasse de alguém tocado pela graça da santidade. É o retrato de Katharina
Schwarz, onde no lugar da beatitude se encontra uma infelicidade resignada com
o mundo e consigo mesmo. Procurei outros retratos de mulheres do mesmo Holbein.
Neles há sempre um elemento desconcertante, como se a beleza tivesse sido
proibida àquelas mulheres e lhes restasse apenas o ar austero para assegurarem
um lugar no mundo. Exceptua-se uma representação de Maria, onde o amor pelo
Menino a resgata dessa rispidez fria e lhe dá uma beleza contida e secreta.
Olho pela janela e descubro que sob a copa das árvores do pequeno bosque
consigo avistar uma rotunda cuja estatuária, tão do agrado popular, me faz
lembrar as soturnas representações do realismo socialista. Sorrio e volto os
olhos para a infeliz Katharina. Apesar da beleza das mãos, a imperfeição do
rosto rapta-a e cerra-a num mundo de onde nenhum príncipe, mesmo de gosto
plebeu, a há-de resgatar. Na rotunda, os carros circulam devagar, talvez em
contemplação, enquanto a minha memória me traz, sem que eu saiba a razão, um
filme alemão visto há uns anos com o estranho nome Adeus, Lenine! Pobre Katharina, pensei.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
Erros meus
Cometem-se erros por ignorância.
Não se sabe como se escreve um vocábulo, mas incitados pela preguiça natural
que faz parte do ser humano escreve-se aquilo que parece ser a palavra e não o
que ela é. Outros erros há que são mais interessantes. Sou atingido por eles
com regularidade. Ainda ontem escrevi usou no lugar de ousou. A quase homofonia
explica aquilo que os dedos, comandados por um cérebro confuso, digitaram.
Colocamos esses erros sob o manto do descuido e com este tapamos não o erro,
mas o que se passa na nossa mente, a ameaça de caos que a atinge. Semelhanças
diversas, com o passar do tempo, fazem com que as fronteiras que distinguiam
certas palavras sejam cruzadas e um caos ortográfico atinja as regiões
policiadas do léxico. Não deverias começar a semana – de trabalho, claro – com
meditações dessas, diz-me a consciência, sempre pronta para moralizar e dar
conselhos a quem não lhos pediu. Levantam suspeitas, continuou, e roubam-te o
ânimo para enfrentares os dragões, os quadrilheiros e as amazonas mórbidas que
te hão-de saltar ao caminho. Tapei os ouvidos interiores e pedi-lhe com
delicadeza que se calasse. Tenho uns emails para ler, decisões para tomar e,
acrescentei não sem acinte, sei tomar conta da vida sem que precise dos teus conselhos de rameira convertida em puritana. Vindo da praceta ao lado,
oiço um barulho. Parece um martelo a percutir pedra. Imagino que estão a cuidar
da calçada, mas retenho a curiosidade. Talvez seja uma ilusão e o melhor é não
a desfazer, antes que tenha de me interrogar por que razão ando a imaginar
coisas.
domingo, 19 de janeiro de 2020
Críticas impertinentes
Não sem um sorriso compassivo leio que Baudelaire e Verlaine seriam dois versejadores muito inábeis na forma e baixos e banais no conteúdo. Depois a diatribe continua por mais um parágrafo, dezassete linhas em que a espada crítica enche os alvos com vários golpes. Ambos sangram com abundância e, nos espectadores, há lágrimas a rolar pelas faces. Na continuação, conclui-se que tão má poesia é vista como genial porque na sociedade onde ambos versejam a arte não é levada a sério. Quem o disse, perguntará o leitor, dado à poesia, condoído do pobre crítico, que deveria saber tanto de literatura como eu de chinês. A vida é feita destas coisas. Comecei o domingo assim, com uma má leitura, dir-me-ão, mas não tarda ponho o livro de lado para ir ver a rua e deixar-me embalar pelas ondas luminosas que se desprendem do Sol. A natureza tem sempre o condão de lavar a alma, quando não é ela que a suja, pois esconde no mais fundo de si um verdadeiro talento para desencadear a concupiscência. Esta palavra recordou-me as quatros virtudes cardeais, mas só me lembro de três. A força, a temperança e a justiça. Dou voltas à memória e, como ela se ri das minhas pretensões, recorro à informação em linha. Ah, exclamei ao ver estampado num texto a sabedoria. É o que me falta para ser virtuoso, pensei, embora nem toda gente esteja de acordo sobre se essa é a única virtude que me falta. O leitor não desespere, porém. O autor impertinente que ousou afrontar Baudelaire e Verlaine também escreveu coisas como Guerra e Paz ou Anna Karenina. Vou almoçar.
sábado, 18 de janeiro de 2020
Heróis e peregrinações
Está um entardecer soturno o deste sábado. Passei a manhã a
trabalhar, depois acabei por ir almoçar ao bar da esquina. Contrariamente ao
que acontece à noite, tinha pouca gente, o que me permitiu ler umas páginas de
um artigo sobre ficção. Quando saí, voltei a aventurar-me pela cidade. A
continuar assim torno-me um verdadeiro peregrino. Isso recorda-me a peregrinatio ad loca infecta, de Jorge
de Sena. É isso o que eu sou, um peregrino em lugar infectado, e, posso-o
assegurar, também estou contaminado ou, o que será mais justo afirmar, sou um
dos contaminadores. Seria interessante contar aqui as peripécias da minha
caminhada, mas ela foi pouco aventurosa. Não tive de enfrentar gigantes, nenhum
bando de maltrapilhos me saiu ao caminho. Foi uma andança compassada e
pequeno-burguesa, de quem digere o almoço e aproveita os raios de sol para se
iluminar um pouco. O autor destes textos bem podia fazer de mim um herói dos
antigos, mas suponho que ele deve ter sido infectado por alguma literatice moderna
e acreditará em anti-heróis. Hoje surpreendi-o numa discussão com alguém
que não conheço sobre a natureza da narrativa, defendendo, contra a opinião do interlocutor,
que uma narrativa não precisa que todos os elementos se acordem e conjuguem,
pelo contrário. Convém que o texto seja atravessado por presenças e
acontecimentos inúteis e que nada contribuam para o desenlace da intriga.
Escondi-me, antes que ele desse por mim. Nessas coisas, não me meto. Faço o que
me mandam, pois este é o papel do narrador e o seu principal dever, que nem
sempre cumpro, é o da obediência. A luz, como um funâmbulo, equilibra-se no
arame esticado entre o dia e a noite. Não tarda e há-de despenhar-se. Talvez
ressuscite na madrugada.
sexta-feira, 17 de janeiro de 2020
Das placas toponímicas
Há muito que não fazia uma caminhada. Depois de um almoço tardio, em vez de me sentar e adormecer em frente do computador decidi pôr-me a andar. Literalmente. Cinquenta minutos por ruas e travessas. Aqui e ali, observava as placas toponímicas, as quais não poucas vezes têm motivo de meditação. Numa inscrevia-se o nome de um farmacêutico do século XIX, cujas virtudes desconheço por completo, outra dizia Rua do Jardim de Infância, embora não consiga perceber a relevância da escolha, imagino que deve ter sido objecto de profunda investigação. A vida na província tem sempre estas animações. O amor ao local é tão transbordante que o mais efémero merece aspirar ao reconhecimento eterno. Não deveria falar destas coisas, pois tudo se torna motivo de ofensa, mesmo a mais simples incompreensão. Aliás, nem deveria ler as placas. O verdadeiro caminhante vai de olhos em frente, concentrado no seu objectivo, sem deixar que as tentações literárias interferiram no mover das pernas. Que lhe interessa que o Largo General Humberto Delgado tenha sido em tempos Rossio de S. Sebastião? Desde que possa avançar passeio fora, o resto não tem relevo. Quando cheguei perto de casa, a luz do dia velava-se, mas as ruas ainda buliçosas estavam invadidas com gente a sonhar fins-de-semana, pais sem ocupação e avós reformados à espera de filhos e netos, que as escolas iam vomitando das suas entranhas. Nas esplanadas não havia anjos nem deuses, apenas pessoas enfastiadas. O langor das pequenas cidades inscreve-se no rosto dos habitantes, como um quebranto que reza alguma terá o poder de espantar.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
Problemas teológicos
O advérbio que não seria advérbio mas conjunção, depois de demorada ecografia, revelou o sexo. Afinal não era conjunção mas advérbio, um rapaz presumido pronto para qualquer conexão. Imagino que a continuar assim terei na classificação das palavras motivo de escrita para os próximos anos. Por causa das coisas, guardei longe de mim a gramática de Lindley Cintra e Celso Cunha, que tanta estima tinha gerado em mim, e coloquei em cima da mesa uma outra dita prática, daquelas de onde todo o gosto aristocrático foi banido em nome do respeito que se deve à ciência. Imagino-me já perdido nela em investigações sem fim sobre a nova nomenclatura. Percorro-a em diagonal e parece-me cheia de palavras bárbaras e expressões oblíquas. Isto digo eu que não pertenço ao clube dos linguistas e não me interesso por este tipo de teologia. Fora o problema da processão do Espírito Santo e outro galo cantaria. Até João Escoto Eriúgena haveria de citar, para dar ares de entendido. Um sopro roncante vindo da rua choca não sem ira contra os vidros. Forma-se então uma melodia em que o bafo acidulado do vento lembra o som de uma fita magnética a que se junta o batimento improvisado das persianas percutidas pela flébil mão da ventania. Ainda me acusam de não saber o significado de flébil e usar palavras a esmo. A música do mundo está onde menos se espera, pensei já esquecido da acusação. Janeiro desliza destemperado em direcção à foz. As suas águas, porém, não engrossarão Fevereiro, pois este, mesmo quando bissexto, debita menos tempo que qualquer outro dos rios que formam o grande lago do ano. Tamanha irregularidade mostra que a fonte de onde se deu a processão do calendário pouco devia à perfeição.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2020
Erros funestos
Ontem confundi uma conjunção com um advérbio. Dei por isso porque uma musa deleitosa, apesar de invisível, mo soprou ao ouvido. Há erros funestos, mesmo que tenha tido como auxiliares a minha desatenção, uma certa preguiça para consultar na memória a cantilena das adversativas e um dicionário famoso que, para me certificar sem esforço da classificação da palavra, consultei e me propôs um erro sem que eu pestanejasse. Não fora isso, e hoje não choveria a cântaros. É evidente que tendo em conta a quantidade de chuva, a causa não reside apenas no meu erro gramatical. Se fosse só ele, hoje o tempo seria de aguaceiros com boas abertas. O conjunto de erros gramaticais praticados ontem deve ter sido enorme, para que o tempo esteja assim. Por muito que esta teoria contrarie a ciência meteorológica, a verdade é que aquilo que acontece tem as causas mais insuspeitas. Nunca se sabe bem que erros sintácticos se cometem nos dias de Verão para que um calor abrasador caia sem piedade sobre nós. O céu que avisto daqui está escuro, mas vejo alguns telhados a reverberar o que indica que uma réstia de sol se infiltrou na densa cortina de nuvens. Daqui a pouco sairei de casa. Espera-me o suplício de Sísifo. Rolarei a pedra até quase ao cimo da montanha, mas algum pecado gramatical cometido na adolescência há-de arrastar-me encosta abaixo. Hei-de levantar-me e recomeçar a empurrar o penedo.
terça-feira, 14 de janeiro de 2020
Poréns
Quando fechei as persianas a noite ainda se apressava ao longe para chegar à hora marcada. O horizonte porém estava negro. Ao escrever isto, paro e fico a olhar demoradamente para a conjunção. Em certos países de língua portuguesa usam porém como nome, sinónimo de defeito ou mácula. Ela tem muitos poréns, imagino eu. Enquanto olho para a chuva penso que também eu possuo muitos poréns. Depois, tomo consciência da aliteração em p e deixo de pensar e de possuir, não vá ofender a estilística, fico só com os poréns. Cultivo-os como se fossem um dom precioso e com isso espero tornar-me virtuoso. Há dias em que não tenho nada para dizer, mas insisto em falar, muito gostava de saber por onde anda o meu amor ao silêncio. A mulher que sob um pequeno chapéu-de-chuva atravessou uma passadeira na avenida poderia dar uma história. Inventava-lhe um desgosto amoroso para explicar a pressa, o coração dorido pelo abandono, mas já ninguém quer saber de gente enjeitada e os abandonos são, num mundo como o nosso, uma oportunidade a reclamar o talento de quem foi trocado. Também as coisas do coração ou do sexo, para nos mantermos no estrito domínio da fisiologia, têm a sua economia e o mercado há-de ter os seus nichos à espera dos ousados que enfrentam com bravura uma ou outra falência. Os carros vomitam raios de luz que a chuva recorta em tiras, transeuntes recolhem-se nos estabelecimentos abertos e toda esta gente sem metafísica há-de chegar a casa. Resta-me comer chocolate com a mesma verdade que uma pequena o comia perdida num poema de certo autor cujo nome não me apetece citar.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2020
Jardins de Epicuro
A melancolia da manhã encheu a cidade com pequenos farrapos
de tristeza, vestígios de um Inverno que, passados os dias de chuva lacrimosa,
se negou a si mesmo, parecendo em ânsias para se tornar numa Primavera
exuberante nos seus rebentamentos. Ao longe, num campo de jogos, adolescentes
entregam-se ao futebol, jogo para que parecem ter uma infinita capacidade de
reinvenção, traçando regras que o momento exige, galgando por cima delas de
seguida, se atrapalham. Oiço o ronco de uma moto, um ronronar monocórdico
perfurado por rápidas acelerações, onde o motor guincha numa estridência de
irritar o mais indiferente dos homens. Dos homens e das mulheres, deveria
escrever, pois também as há envoltas no manto ondulante do epicurismo, com o
qual saem à rua, cultivam o seu jardim, e se abstêm das convulsões que um
excesso de pathos traz à vida. Conheci
algumas que se lavravam assim na vida, cujos casamentos se fizeram felizes por
imperturbados pelo ímpeto da paixão, mas devo abster-me da inconfidência, um
vício que a razão condena sem remissão. Em cima do muro da escola aqui do lado,
um gato pardo caminha devagar, tranquilo, sem exuberâncias de trapezista,
também ele um cultor secreto de Epicuro. Pára, agacha-se e fica especado a
olhar um alvo invisível. Arqueia o corpo e logo desce para o lado de lá,
desaparecendo da minha vista para entrar no jardim que o espera.
domingo, 12 de janeiro de 2020
Semanas de cinco dias
Fosse eu um revolucionário, e bater-me-ia pela semana de cinco dias. Três deles dedicados ao provimento de bens para enfrentar o mar encapelado das necessidades e dois para descansar dessa árdua corveia. Não se pense, porém, que o meu intuito é solapar a economia de mercado. Ela saberia adequar-se, talvez até em demasia, à nova realidade. A minha intenção é mais penetrante. Funda-se na ambição de dar uma maior racionalidade ao calendário. Passaríamos a ter anos com setenta e três semanas, nos quais desapareceria aquela incerteza de saber a que dia da semana corresponde o dia do mês. Estariam sempre casados, num casamento indissolúvel. Nas escolas, ao lado da tabuada ensinar-se-iam as correspondências entre os dias do mês e os da semana e ao fim de uns anos ninguém precisaria de consultar um calendário. Nos anos bissextos, como o actual, o dia superveniente seria declarado o dia órfão, pois não teria nem pai nem mãe, já que não pertenceria a nenhum mês nem a nenhuma semana. Poderia ser também chamado o dia sem-abrigo. Devido à sua superveniência, ocorreria depois do último dia de Dezembro e antes do primeiro de Janeiro. O que se faria nesse dia deixo-o à consideração do leitor. Tudo isto é muito mais razoável do que afinar os dias da semana com as fases da Lua, com o estendal de irracionalidades que isso traz ao mundo. O pior é que não tenho talento para revolucionário e acomodo-me desavergonhado com semanas de sete dias, impotente para enfrentar o obscurantismo desta divisão do calendário, produto da magia negra, a qual como se sabe tira a sua luz das fases lunares, fundamentalmente da lua nova. Alguém me diz, ou eu imagino-o, que também a minha mente é iluminada por essa luz. Não tenho ambição de contrariar seja quem for.
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