O actual estado do mundo, causado pela inopinada chegada de
um vírus inamistoso, uma daquelas visitas não convidadas nem anunciadas, tem
trazido para a ribalta, para além de uma legião de especialistas em epidemias,
pandemias, estatísticas, curvas, picos e planaltos, saúde pública e sabe-se lá
mais o quê, palavras que estavam escondidas em casa e que, ao contrário dos
seres humanos, foram obrigadas a desconfinar-se. Por mim, elejo zaragatoa, não
pela utilidade, mas pela feiura. Há palavras que nascem feias e por mais que se
componham nada há a fazer. Esta pobre que começa a andar pelas bocas do mundo,
coisa pouco recomendável, terá nascido no árabe vulgar como zarqatúnā,
os espanhóis, com o gosto estético que se lhes reconhece, baptizaram-na como zaragatona e nós portugueses, ao
importá-la, tentámos limar sonoridades que nos fazem lembram os sabonetes e
desodorizantes rexona, passe a publicidade. Um leitor menos disposto a
consultar um dicionário perguntará se as zarqatúnās árabes teriam a mesma função que as
nossas infelizes zaragatoas. Não. A palavra árabe designa apenas o caroço de
algodão, o qual pode ser utilizado na alimentação de animais ruminantes. As
coisas inúteis que eu sei não me deixam nunca de maravilhar. Como se vê, na viagem que vai da zarqatúnā árabe à
zaragatoa nacional, muita coisa mudou, embora alguma tenha ficado. Espantoso,
mesmo para mim, o número de palavras e frases que consegui escrever sobre um
assunto que não interessa a ninguém, nem a mim narrador destas aventuras, nem,
tão pouco, ao autor. Hoje é quinta-feira, dia 7 de Maio. A rua está calorenta, mas
a casa primaveril. Passo os olhos pela imprensa e certifico-me que o mundo
continua a ser mundo, os homens não deixaram de ser o que eram e quimeras, fantasias,
devaneios e ilusões não perderam o lar que as acolhia, o desejo sem limites que
arde no coração humano, ou noutro sítio que me recuso a nomear.
quinta-feira, 7 de maio de 2020
quarta-feira, 6 de maio de 2020
A preguiça do vento
É preciso andar de olho no tempo. Não me refiro à duração,
pois essa ninguém sabe quem ela é, mas ao clima, à sua natureza volúvel, às
suas idiossincrasias disparatadas. Ontem refrigerou, hoje aqueceu. A minha app meteorológica informa-me que a
temperatura é de 23 graus mas chegará aos 26. O vento está de norte, mas sem
pressa, desloca-se a 1 Km/h. Não há chuva. Consta que estão com falta de água lá
em cima. Fiquei também a saber que a humidade é de 47%. O problema, e a vida
não é outra coisa senão um amontoado de problemas, irresolúveis as mais das
vezes, é que os meus olhos mostram-me um céu pouco nublado, com um sol radioso
a escapar-se do azul e a aplicação jura-me que há um manto de nuvens, sem
abertas para o astro espreitar. Eu acredito nela piamente e vou já marcar
consultas para o oftalmologista e para o psiquiatra. Terei de investigar a
razão por que, estando um céu nublado, eu vejo um céu azul, ensolarado. Estarei
a ver mal? Cheguei à fase da alucinação? Alucinação ou deficiência visual, o
arvoredo resplandece sob a inclemência dos raios solares, as paredes e os
vidros dos carros reverberam, e tudo parece estar em plena Primavera, com
pássaros a voar, gente a cantar, plantas a florirem ao sol e, se eu vivesse no
campo, haveria de ver rebanhos e pastores e pastoras. O maior enigma, porém, é
a preguiça do vento. Um quilómetro por hora? Se ele trabalhasse para mim, se
fosse o portador das mensagens que envio ao mundo, despedia-o e contratava um
serviço alternativo. Não sei bem a razão, mas na minha secretária poisou um
livro de Orígenes, o Tratado sobre os
Princípios. O autor levava certas coisas demasiado a sério e, talvez guiado
por um impulso cego, castrou-se. É plausível que a partir dessa altura tenha
tido menos insónias, não sei. É uma conjectura que está à procura da sua
refutação. Hoje é quarta-feira, dia 6 de Maio. Muitas são as coisas que
gostaria de fazer, mas continuam interditas. Sempre posso ir dormir uma sesta
ou ver um filme, mas o dever chama-me e como um soldado em estado de prontidão
entrego-me ao que a fortuna, essa deusa avara, me destinou.
terça-feira, 5 de maio de 2020
Um dia difícil
Um dia anémico foi o que o sorteio meteorológico nos deu.
Vítima de uma voraz sangria, arrasta-se amarelento, cansado, como se fora filho
de um mês que, ainda imberbe, tivesse já dificuldade de respirar e de suportar
o peso do corpo, a trama que une as horas em dias e estes em semanas. Uma
funcionária da escola aqui ao lado empurra um corta-relvas, para a frente e
para trás, tenta domá-lo como se fosse um cavalo selvagem, segura-lhe as rédeas
para que não espinoteie. Falta-me vocabulário para prosseguir a analogia,
talvez devesse ler o livro da ensinança de
bem cavalgar toda a cela, embora o hipismo nunca me tenha interessado e é tarde
para me dedicar a torneios e justas equestres. O mais assisado seria dedicar
umas horas ao leal conselheiro, nunca se sabe o valor que pode ter uma
exortação à sensatez. O trânsito parece aumentar a cada dia que passa. Depois
de semanas a engordar ao sol e à chuva ou numa cave húmida, os automóveis
reclamam exercício que lhes adelgace as ancas e disfarce a barriga. Esta noite
uma insónia cravou em mim um punhal traiçoeiro para me roubar o sono e deixar-me
irritado com o passar das horas, perdido entre leituras para adormecer e
tentativas frustradas de dormir que desaguavam em novas leituras para adormecer.
Salvou-me a aurora que me ofereceu grátis duas horas de sono. Hoje
videoconferenciei por duas vezes, falei de coisas extraordinárias como jus ad bellum e jus in bello, para o que havia de me dar num dia como este. Ontem
fui vítima, ainda que indirecta, de uma das versões paroquiais da falácia ad hitlerum. Alguma vez tinha de me
calhar, pois a idiotice não é coisa que escasseie e, queiramos ou não, por
vezes somos abalroados por ela. Hoje é terça-feira, dia 5 de Maio. Deixo-me
hipnotizar pela passagem dos ponteiros do relógio e fico, como sempre, indeciso
se um segundo é pouco ou muito tempo, dilema que me arrasta para as mais
obscuras meditações, às quais pouparei o leitor.
segunda-feira, 4 de maio de 2020
Ocasião perdida
As folhas das oliveiras vão mudando de tonalidade de acordo com o estado de espírito do vento. Como se sabe, se há coisa que possui estados de espírito é o vento. Sopra onde quer. Sopra como quer. Sopra se quer. As folham vão e vêm, rodopiam, ora se tornam sombrias, ora são arrastadas para a luz e logo o verde-cinza se ilumina e toma a cor da prata ou da platina ou do tungsténio. O mundo é feito destas pequenas coisas e mesmo as nossa grandes tragédias não são mais que irrisão no concerto universal. Nestes dias em que me remeti ao resguardo da casa, perdi a oportunidade de escrever uma grande aventura, na qual, como um herói de antanho – que bem que esta palavra rima com estanho –, enfrentava dragões, górgonas e harpias, se calhasse o próprio minotauro, saltava obstáculos e saía vitorioso de mil armadilhas e de outros tantos combates, enquanto me arrastava de recanto em recanto pela casa fora. É sempre dramático constatar que não se nasceu nem para Ulisses nem para Homero e que os dias me tornaram doméstico, sem vontade de convocar uma poderosa armada e ir pôr cerco à primeira Tróia que apanhasse à disposição, para depois ficar prisioneiro da ninfa Calipso e, quem sabe, deixar-me cair na tentação da imortalidade. Sem Tróia para conquistar nem Calipso para me salvar, escrevo sobre a luz nas folhas das oliveiras, o ondular das ramadas sob o capricho do vento e outras aventuras, como a dos pássaros que falam à minha janela, a de um carro que buzina ou a da mulher da máscara verde água que atravessa a passadeira e chega exausta ao outro lado da rua, como se tivesse chegado ao outro lado do mundo. Hoje é segunda-feira, dia 4 de Maio. O país desconfina-se, desenrola-se mascarado, as pessoas entoam loas à normalidade, como se a anormalidade não fizesse parte da norma. Eu não sei o que fazer com tudo isto, sem uma Tróia para saquear, uma Roma para fundar ou um caminho marítimo para Índia a descobrir. Apenas conheço os caminhos dentro de casa e não me esqueci da porta da rua. E isso talvez fosse motivo para toda uma literatura, para a qual me falece o talento e a vontade.
domingo, 3 de maio de 2020
Desejos e factos
O café da praceta aqui em baixo ostenta, num dos vidros, a palavra
aberto e, num biombo exterior que serve de anteparo ao vento norte, a palavra open. Tentei descobrir se utiliza outras
línguas, mas do meu posto de observação foi impossível fazê-lo. O certo é que
não montou esplanada como teria feito se este fosse um dia quente de Maio de um
outro ano. Não descortino pessoas a rondá-lo e, na verdade, não posso jurar que
esteja aberto, pois não consigo ver-lhe a porta. Talvez seja a expressão de um
desejo e não um facto. Entre ontem e hoje vi três filmes de Werner Shroeter. Em
dois deles a trama narrativa é tão ténue que nos obriga a ver os elementos que
compõem a mistificação que é o cinema. Imagens, cores, vozes, a babel das línguas,
música, luz, sombra. No entanto, o fascínio é enorme, tal como o é o provocado
por certa pintura que deixou de lado a figuração e com ela a trama narrativa
que aquieta os espíritos. Com este sol não devia entregar-me a considerações
estéticas, antes descrever a reverberação do mundo, a incidência dos raios
solares em paredes e telhados, o brilho da folhagem das árvores sob a luz, os
fungos das paredes ainda não iluminadas. Nos filmes de Shroeter, nos que vi, o sofrimento
humano tem por contraponto o sofrimento de Cristo, como se o autor quisesse
encontrar uma acomodação para a dor humana ou estivesse a apontar um dedo para
a impotência do sacrifício do filho de Deus para pôr fim aos sacrifícios
humanos. Nenhuma destas interpretações é explícita, mas são ambas possíveis e
talvez nem se excluam, mas o que sabemos nós daquilo que vemos se os nossos
olhos nos enganam e os nossos desejos toldam a razão? Hoje é domingo, dia 3 de
Maio. O estado de emergência acabou, mas isso será mais um desejo colectivo do
que um facto. Se for à rua, entretanto, hei-de confirmar se o café está aberto ou
mesmo open. Isto também é um desejo,
mas tão pouco intenso que o mais provável é esquecê-lo. Estamos já bem dentro
da casa de Maio. Quem diria?
sábado, 2 de maio de 2020
Flores e temperaturas altas
Ontem ao passar de carro pela avenida marginal deparei-me com os castanheiros em flor, uns florescem em branco e outros, em rosa velho, embora não esteja certo da designação da cor dos últimos. Os jacarandás do adro do que foi a Igreja de Santa Maria só florirão para o fim do mês ou no início de Junho. Há muitos anos que cultivo estes dois eventos. Também me dá bastante prazer ver as buganvílias a florirem paredes acima. Juntamente com o friso das orquídeas são toda cultura que tenho acerca do mundo em flor. Por vezes, lembro-me de haver nas casas em que vivi plantas com nomes como aspidistras, árvores da borracha e costelas-de-adão. Haveria outras, mas já não consigo encontrar-lhes a denominação. Pertenciam a um mundo maternal e nunca achei que me dissessem respeito. Leio que no Ribatejo a temperatura pode chegar aos 37 graus. Fico em transe. Entre mim e as temperaturas elevadas há um conflito insanável. Nem o corpo nem o espírito as suportam. Não sei de onde vieram parte dos meus genes para que isto seja assim. Há gente que canta aleluias quando chega o calor, eu uso a blasfémia e linguagem visceralmente baixa. Logo irei ver o meu neto, à distância, pois agora tudo o que era próximo se deve dar no distanciamento. Não tarda e é hora de almoço. Não fiz nada do que tinha programado para a manhã de hoje. Guardei para amanhã, ao contrário do que me ensinaram na escola primária, num célebre conselho dado por um astuto advogado a um pobre camponês, se não me falha memória. Hoje é sábado, dia 2 de Maio. As pessoas continuam a beber, pois acabei de escutar o barulho de garrafas a cair num vidrão. Para passar o tempo, vou descobrindo quem era Micol, uma bela rapariga que habitava numa casa que possuía um jardim. E vejo cinema.
sexta-feira, 1 de maio de 2020
De perdigoto a gotícula
Se fora apenas um problema onomástico, estávamos mais
descansados. Não é. Aquilo que era designado com condescendência por perdigoto
tornou-se nestes dias em gotícula. Perdigotos eram coisas desagradáveis, claro.
Não conheço quem queira receber perdigotos ou mesmo quem os queira lançar.
Podemos dizer que eram seres acidentais, resultantes de um impulso, de uma
emoção incontida, de um excesso de entusiasmo do orador na sua eloquência. Um
acaso fruto da distracção ou do esquecimento das regras da etiqueta. Ou de
qualquer outro motivo fútil. Nisto não se distinguem os perdigotos dos seres
humanos. Agora que o pobre e inofensivo perdigoto passou a gotícula, deu-se
nele uma terrível metamorfose, uma alteração ontológica. Mudou de natureza e a
natureza de uma gotícula pode ser letal. O perdigoto, ao renomear-se,
transformou-se num homicida em potência, senão mesmo em acto. Começar Maio com
pensamentos destes não é um bom augúrio sobre a sanidade mental de ninguém. Se
eu fosse dado à filosofia, poderia dedicar longas meditações à ontologia do
perdigoto, agora gotícula, se ele é um ser em si ou mesmo um ser para si, mas
evito estas ruas esconsas, cheias de becos, alguns sem saída, onde se pode ser
apunhalado pelas costas ou levar com uma chusma de perdigotos. Entrego-me às
grandes avenidas, cheias de claridade e distinção, por onde se passeia sem que
se pense seja no que for. Uma contrariedade, não das menores, é viver, como me
acontece, num sítio onde não existem avenidas grandes e amplas, apenas avenidas
pequenas, quase acanhadas, tão tímidas que ruborescem sempre que se lhes chama
avenida. Nelas, o pensamento é obrigado a trabalhar e depois cai na vexata quaestio do perdigoto, da
gotícula, da nuvem de gotículas que faz lembrar a nuvem electrónica, o que é
uma deriva que conduz ao alçapão da mecânica quântica, que, apesar da incerteza
de tudo, não é chamada para aqui. Hoje é sexta-feira, dia 1 de Maio. É feriado
como acontece sempre que é 1 de Maio. Desde 18 de Março que registo aqui a
data, temo que se tenha tornado um hábito e, como se sabe, o hábito é uma
segunda natureza. Também esta última frase é plágio, mas continuo a omitir os
autores que plagio.
quinta-feira, 30 de abril de 2020
Um aumento da gravidade
O mês fina-se hoje. Que descanse em paz. A sensação mais estranha que tive desde que tudo isto começou aconteceu ontem. Na centena de metros que separam o sítio onde vivo e a farmácia, nunca me abandonou o sentimento de se estar na ressaca de um apocalipse. A combinação da luz coada pelas nuvens com os estabelecimentos fechados, a ausência de gente nos sítios onde abundava, o vento que parecia prometer, caso fosse necessário, trazer os mais terríveis miasmas, tudo se conjugava na minha imaginação e desenhava uma paisagem urbana de uma cidade que fora repudiada pela maioria dos habitantes. As pessoas com que me ia cruzando, ontem menos que em outros dias, traziam máscara e havia em todas elas uma precaução no andar, na forma como o corpo poisava no chão, como se vivessem há muito habituadas a estar alerta contra os raides aéreos das forças inimigas. Exagero? Duvido, pois esta é a época, de todas as que vivi, mais dada à hipérbole. Tudo nela é excesso, mesmo a ausência, mesmo a penúria, mesmo o vazio. Hoje acordei com a impressão de ter sonhado, coisa que raramente acontece. Não sei o que me ocupou enquanto dormia, mas ao acordar não senti alívio nem frustração pelo fim do sonho, experimentei uma sensação de indiferença e a percepção de que os valores da gravidade se tinham alterado, que era mais difícil andar, que a força de atracção da terra aumentara. Ao abrir a janela, a realidade voltou ao que era, se é que a realidade era ou é alguma coisa. Hoje é quinta-feira, dia 30 de Abril. Ocupo os dias em trivialidades, aquelas que contribuem para que pague as contas e estou grato por poder pagá-las. Duvido que isso dependa do meu mérito. Trata-se de sorte, embora aqueles que são afortunados, e por vezes é preciso muito pouco para o ser, raramente aceitam que a sorte desempenha um papel não pequeno na trama que é a sua vida. Há sempre a tentação de exagerar os méritos.
quarta-feira, 29 de abril de 2020
Uma aventura
Um acontecimento. Logo, terei de ir à farmácia. O que era trivial ganhou agora o colorido de uma pequena aventura, à qual irei de máscara como se fosse um assaltante, até que tudo, mesmo o estar mascarado, se torne num novo trivial, pois a banalidade é a casa onde os homens podem dormir em paz. De manhã choveu e as temperaturas andam baixas para a época. Pior seria se o Verão se tivesse antecipado e construísse uma toca nestes dias. Por aqui, o abrigo da serra torna o Estio em animal feroz, pronto a devorar o ânimo dos mortais e, para os perder, a enlanguescer-lhes os corpos. Não posso esconder que entre mim e o calor há um longo contencioso, que tribunal algum arbitrará. Se imagino o paraíso de onde Adão e Eva se fizeram expulsar, pressinto-o como um lugar de eterno Outono, quando o calor se ameniza e ainda não chegaram chuvas e frios e as vinhas ostentam cores esplêndidas que os olhos nunca se cansam de ver. Este bucolismo serôdio enoja-me, quase vomito, mas já desisti de parecer um narrador moderno, daqueles que omitem a acção e esquecem as personagens. Ontem vi um filme inspirado por um romance de Proust, mas não me apetece falar dele. Um sol flébil rompe o cerco das nuvens e brilha lacrimoso e turvo sobre a cidade. Tenho coisas para fazer antes de ir em demanda do santo graal. Da farmácia, quando lhes liguei para fazer a encomenda a levantar mais tarde, disseram-me que o champô medicinal que usava, já nem sei bem porquê, tinha sido descontinuado, mas que procurariam outro com o princípio activo semelhante. Fico sempre maravilhado com a linguagem. As coisas não acabam, descontinuam-se. Todos nós nos descontinuaremos, embora duvide que haja outro produto com o mesmo princípio activo. Hoje é quarta-feira, dia 29 de Abril. Amanhã será o último dia do mês, logo hoje é o penúltimo e ontem foi o antepenúltimo. Há que exercitar a memória para não esquecer estas pequenas relações que ainda nos permitem compreender o que é o tempo, desde que não nos perguntem o que ele é. A última frase é plágio, mas omito o autor,
terça-feira, 28 de abril de 2020
A sombra ataca
Pego num livro que não li. Abro-o e vejo-o sublinhado e anotado por alguém com uma letra exactamente igual à minha, com NB à margem completamente idênticos aos que costumo fazer, até o que os NB salientam é aquilo para que chamaria a atenção. Não apenas alguém leu o meu livro sem me pedir autorização, como se apropriou da minha letra e das minhas idiossincrasias para me fazer crer que fui eu que o li e o destratei com sublinhados e anotações. É evidente que há outras explicações mais prosaicas para o sucedido, como por exemplo a de ter sido eu o leitor e ter-me esquecido do livro. São coisas que acontecem. No entanto, quem quer explicações tão prosaicas, tão incapazes de criar um mistério, talvez mesmo um milagre? Por exemplo, é possível imaginar que, quando me vejo ao espelho, do outro lado está alguém que me imita e que, aproveitando os meus sonos, salta desse mundo aliciano e se põe a ler os meus livros e a imitar a minha letra. É uma explicação menos prosaica que a do esquecimento e, por isso, muito mais verídica. Um leitor pouco dado à imparcialidade dirá que o estado de emergência não me tem feito bem, não o desmentirei, mas chamo-lhe a atenção que o mesmo pode acontecer com ele. O vento tamborila nas persianas, oiço ruídos que não consigo identificar e pergunto-me se irei caminhar pelas ruas da cidade, mas perdi o poder do vaticínio e não sei que resposta dar-me. Hoje é terça-feira, dia 28 de Abril. O mês foi parco em calores e nada augura que se modifique nos dias que lhe restam. Para dizer a verdade, sinto-me cansado, mas já não me lembro de quê.
segunda-feira, 27 de abril de 2020
Meditabundos e cismadores
Abri a janela para que os barulhos do mundo chegassem até mim. A circulação automóvel começa a aproximar-se da de outros tempos. As pessoas têm pressa para voltar ao sítio onde se encontravam há dois meses, ao conforto da ignorância, pois não há coisa mais confortável do que não saber. Os que têm uma inclinação para moralizar os acontecimentos naturais hão-de ficar desiludidos com a ânsia deste retorno. Uma oportunidade tão boa para melhorar o mundo e as pessoas apenas pensam em voltar à dissipação habitual. Durante a história da humanidade, não por acaso, o desejo foi fortemente regulado, vigiado e perseguido se extravasava as duras fronteiras onde era contido. Depois, quando Diónisos derrotou Apolo, o desejo emancipou-se e, como todos os limites lhe têm sido retirados, é inimaginável que a eclosão de um vírus invisível seja motivo suficiente para que lhe ponham de novo o cabresto. Não sei o que me deu para me entregar a tão fútil reflexão. A falta de assunto torna as pessoas meditabundas e elas põem-se a cismar com coisas cuja compreensão está muito para além das suas possibilidades. Retrato-me disso como se confessas, contrito, um pecado mortal. Oiço pombos a arrulhar, imagino que estejam numa fase em que o desejo fale. Sempre estamos na Primavera e a vida precisa de se multiplicar. Se fechar a janela, o mundo cala-se e é possível que deixe de existir. Hoje é segunda-feira, dia 27 de Abril. A meteorologia promete aguaceiros fracos para mais logo, para aquela hora em que eu prometera ir à rua para caminhar pelo mundo, como se me tivesse tornado um homem livre. Não tornei.
domingo, 26 de abril de 2020
A vida inabitual
Depois de todo este tempo, vi o meu neto ao vivo. Estava com
medo que fosse apenas uma presença virtual. Afinal, existe mesmo. Corre, cai, fala
uma estranha linguagem, cujas palavras já não consigo entender, pois não
pratico o idioma há muito. Não nos aproximámos, não peguei nele ao colo, não
lhe dei a mão. Não o levei a fazer experiências no mundo. Aproximámo-nos mas
ficámos afastados. O dia está cinzento e ninguém diria que é domingo, nem
qualquer outro dia da semana. O calendário indiferencia-se e as pessoas vão perdendo
fronteiras e esquecendo taxinomias. Ontem caminhei na serra. Havia pedras,
árvores, arbustos, trilhos para explorar aquele mundo meio selvagem. Havia também
sol e ar e outros caminhantes. A luz vacilava, um pássaro levantava voo, o
coração dos montes exultava. A mesma natureza que ainda ontem envelhecia, hoje
rejuvenesce redimida pelo triunfo sobre a morte. Substituo a frugalidade pela
perífrase e alongo-me em frases desabitadas pelo sentido. Numa rede social,
vejo um padre a oficiar, rodeado por um grupo reduzido e disperso de fiéis,
como se tivesse um poder secreto que lhe abrisse as portas do futuro. Não tem,
mas imagino-o à noite sentado na varanda e, enquanto contempla a serrania, esforça-se
para que os olhos penetrem no que ainda não aconteceu. Como eu, também ele está
cego. Hoje é domingo, dia 26 de Abril. O ano corre sobressaltado sobre um leito
estranho. Em algum lugar, um poeta escreverá um poema e um místico verá Deus ou
um poeta verá Deus e um místico escreverá um poema. Quem quer saber disso? O
melhor é ir dormir uma sesta.
sábado, 25 de abril de 2020
O último é batata podre
O último é batata podre. As coisas afinal não mudam tanto
quanto se supõe. Duas crianças, um rapaz e uma rapariga, irmãos por certo,
correm na praceta aqui em baixo, sob o olhar atento da mãe. Parceria uma cena
trivial de um tempo sem sobressaltos, caso a mãe não falasse com amigas a uma
distância cheia de desconfianças. Agora oiço o barulho de garrafas a cair no
vidrão. Depois, silêncio. Penso nos meus netos, tornaram-se presenças virtuais,
chegam em vídeos ou em conversas através daquelas plataformas cujo nome prefiro
silenciar. Como qualquer avô, faço caretas e figuras idiotas, pergunto coisas
que enviesam os olhares das adolescentes. O rapaz, do alto dos seus dezoito
meses, condescende por vezes em dar-me cinco segundos de atenção. O último é
batata podre, recordo-me, e nesta sentença há toda a sabedoria do mundo. Existe
outra sabedoria, mas essa não é deste mundo. Os últimos serão os primeiros. O choque
destas duas avaliações nunca foi tão claro como na vexata quaestio da batata podre. Se o último afinal é o primeiro,
quem será o batata podre? Será que na catequese colocam às crianças dilemas
destes? O dia já se soltou da manhã e, envolto na capa da tarde, ruma pelos
campos. O último será mesmo batata podre? Hoje é sábado, dia 25 de Abril. A
cidade contínua sitiada, mas os habitantes habituaram-se ao assédio do inimigo.
Caminham pelas ruas, evitam passar perto uns dos outros. Na passadeira, uma
mulher arrasta um cão minúsculo. Chega ao outro passeio como se tivesse
aterrado noutro continente.
sexta-feira, 24 de abril de 2020
Se um deus ex-machina
Tenho visto uns filmes situados na Belle Époque. Ainda hoje a designação faz revirar os olhos a quem
tenha inclinação para os revirar, pois isto de os fazer andar à volta não é
coisa de toda a gente. Começo a afastar-me do tema. Voltando aos filmes. Giram
em torno de gangsters e prostitutas ou de outro tipo de gente que não seria
recomendável frequentar. Não é uma avaliação moral, apenas uma constatação dada
pelo estado de confinamento que até um simples narrador está sujeito. É também
prova de escassez de assuntos e isto é um drama. A oferta de temas contraiu-se
fortemente e uma pessoa fica a olhar para o monitor à espera que um tema lhe
caia em cima, que um deus ex-machina
a salve. Nada. Sempre posso falar do friso das orquídeas, descrever-lhes a cor,
o número de flores por planta, mas a tudo isso falta acção. Nenhuma delas se predispôs
a ser heroína, a encetar uma peripécia que me incendeie a imaginação.
Limitam-se a ficar ali, exibem-se, esperam que cuidem delas, mas a acção está
fora não dos seus poderes mas dos seus interesses. Chegaram-me a sugerir que
tinham vocação de monjas contemplativas, daquelas que almejam sentar-se num
penhasco e ficar ali a olhar o infinito. Também as torres do castelo podiam
cooperar comigo, mas asseveram-me que não têm paciência. Já viram demasiadas
coisas e que nada disso lhes interessa. Estiveram quase a contar-me umas
histórias pícaras que se passavam, e talvez se passem, no interior das
muralhas, mas depois deram uma gargalhada e remeteram-se ao silêncio. Como se
vê, sou um narrador esforçado, mas os elementos não cooperam comigo. Hoje é
sexta-feira, dia 24 de Abril. Informam-me que mais logo choverá e trovejará, mas
também haverá abertas. Se houvesse um deus
ex-machina que solucionasse esta história em que fomos envolvidos, juro que
haveria de encontrar assunto. Sendo assim, restam-me os filmes sobre a Belle Époque.
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Noutro mundo
Ao fim de não sei quantas semanas comprei livros. Heróides, de Ovídio, Poemas, de Tibulo e Epístolas, de Horácio. O confinamento predispôs-me para os
clássicos, dir-me-ão. Falso, os motivos são vulgares. A editora está a
vendê-los com um belo desconto e ao fim de tão grande período de abstinência
decidi que estava na hora de fingir que as coisas são como sempre foram, que a
natureza é imutável e a realidade voltou aos carris de onde nunca deveria ter
saído. Uma ilusão, mas agora tenho um novo horizonte, o da chegada dos livros,
o ritual de os desembrulhar, de passar as mãos pelas capas e os olhos pelas
páginas impressas. Há que ter cuidado na tarefa de lidar com o correio, não
seja uma carta armadilhada, não venha na encomenda uma bomba invisível. Sem
darmos conta, movemo-nos já noutro mundo, novas regras emergem, outros gestos
são obrigatórios. Talvez aprendamos a justa distância, diz-me a consciência,
sempre agastada com as homilias dos afectos, com as pessoas a beijocarem-se por
tudo e por nada. Neste caso, um dos poucos, partilho o ponto de vista da minha
consciência. O ideal seria introduzir a vénia como forma de cumprimento
habitual. Uma leve inclinação da cabeça e o mundo pareceria mais sensato e, por
certo, o deus Eros agradeceria, pois nada o torna mais alegre do que essa
distância que mantém o desejo em tensão. Bem, o autor assim como me proibiu
tiradas políticas, também não me permita derivas eróticas ou sequer
considerações sobre o assunto. Sou um narrador obediente. É mais recomendável
falar do céu cinzento, do verde das árvores, do silêncio do mundo ou da
algazarra que se deixou de ouvir. Tenho pena da minha caixa de email. Parece
uma Penélope a atrair pretendentes, mas não há Ulisses que lhe valha. Hoje é
quinta-feira, dia 23 de Abril. Não chove, mas imagino a água pelos córregos, os
campos a verdejar e, de súbito, descubro-me um amante da natureza. No hospital,
os vidros dos carros reverberam, enquanto a tarde lépida se afasta da manhã.
Espera-a a noite.
quarta-feira, 22 de abril de 2020
Dias intérminos
As águas de Abril recolheram-se à cisterna, onde um deus
imprevisível e de má catadura as armazena para as usar ora como bênção, ora
como castigo dos mortais, segundo uma disposição cujo segredo está oculto aos
poderes humanos. Louvo-me nestas banalidades e evito pensar seja no que for. O
ideal seria pensar em nada e o mais belo de todos os ideais seria que certas
pessoas evitassem o uso sempre deficiente do cérebro e se entregassem a um
estado vegetativo contumaz. O mundo tornar-se-ia um lugar menos triste se esses
animadores nos poupassem os rasgos. De manhã, ao levantar-me, havia sol na rua.
A Primavera endireitava-se sobre as pernas ainda cambas e ensaiava um passeio
pelas ruas. Ninguém diria que cambo tem a sua origem num radical céltico. Asseveram-me,
porém, que assim é. Eu acredito, pois o que mais resta a um confinado do que
crer? Continuo a praticar os pequenos gestos quotidianos de sempre, faço-o como
se tratassem de rituais que me ligam a esse tempo sagrado antes da queda nesta
situação. Estes dias fazem-me lembrar, por vezes, aquelas tarde intérminas do
Verão, em que as horas de calor terrível se recusavam a passar e eu lia, lia.
Não, não era Tolstoi, nem Kafka, nem Thomas Mann. Nesses dias ainda não tinha
adoecido o suficiente. Lia o Texas Jack, o Condor, o Ciclone, o Falcão e as
célebres aventuras do major luso-britânico Jaime Eduardo de Cook e Alvega. O
que eu não sabia na altura é que, no original inglês, o major era
tenente-coronel e de português tinha nada. Também não sabia que o tradutor era
Anthímio de Azevedo, o mais célebre meteorologista português. Agora que sei
isso tudo, não faço ideia para que me serve essa sabedoria. Hoje é
quarta-feira, dia 22 de Abril. O vento estremece a folhagem do arvoredo,
contínuo a ouvir a voz de Montserrat Figueras. O Major Alvega deixou de
combater, já não me recordo das histórias do Condor nem do Ciclone e talvez
Texas Jack tenha sido abatido num duelo. Um dias destes, caso não me cuide,
ainda acabo a falar na Ponderosa, o rancho dos Cartwright.
terça-feira, 21 de abril de 2020
Alexandrinos e redondilhas
Escando os dias como se fossem versos, espero encontrar neles a métrica que dê ritmo ao desconcerto, que transforme a cacofonia numa peça musical digna de ser escutada num futuro em que a memória destes dias seja apenas uma sombra rente ao entardecer. Oiço o barulho de uma rebarbadora, mas não consigo perceber de onde vem. Não é a primeira vez que me atinge, nestes dias, a rugosidade daquele ruído, vindo da rua. Malditas aliterações e assonâncias. Devia evitá-las para não me estragarem a prosa. Vou à janela, olho para aqui e para ali, mas não descubro a fonte do incómodo. Talvez seja apenas parte de um pesadelo, embora eu jure que estou bem desperto, e não me venham com a história de Descartes que não se é capaz de distinguir o sono da vigília. Na avenida é notório já o corrupio dos automóveis. Deslizam como se tivessem conquistado a cidade a um inimigo implacável. Reparo que dei um erro ortográfico, emendo-o, mas fico infeliz, a palavra era mais bela com o erro do que sem ele. Daqui se prova que entre ortografia e estética não tem de haver compatibilidade. Correcção e beleza raramente andam de mãos dadas, mas não quero lançar falsos testemunhos. As oliveiras que ontem tinham desaparecido voltaram para o seu lugar e isso tranquiliza-me, como se me dissessem que todas as coisas têm um lugar a que podem voltar. Hoje é terça-feira, dia 21 de Abril. Continuo a enunciar o dia da semana e o do mês. Faço-o como se isso me protegesse de qualquer inimigo inominável, mas o mais certo é que ainda me transformo em calendário. Antes em calendário do que em herbário, digo-me, mas não estou certo se deveria ter feito tal comentário. Se cada dia fosse um alexandrino, Abril teria trezentas e sessenta sílabas métricas. Não haveria quem suportasse tanta poesia. Talvez bastasse a redondilha maior e ainda dava letra para um fado.
segunda-feira, 20 de abril de 2020
Simulacros
O melhor é não crer naquilo que os olhos vêem. O que até ontem sempre me pareceu ser oliveiras apresenta-se hoje sob uma outra capa que, fora eu dado a crer em metamorfoses súbitas, diria que alguém trocou as árvores. Eu sei que a luz é senhora do mundo e basta que ela mude para que as coisas pareçam outras, e a luz de hoje não parece confiável a ninguém. Um dia destes, tenho a esperança, as oliveiras voltarão para o lugar que era o delas e aqueles simulacros que lhes ocupam os espaços serão levados para longe dos meus olhos. O principal problema de tudo isto é a dúvida para a qual sou de imediato arrastado. Não serei eu também um simulacro de mim mesmo? Não estou certo, mas inclinar-me-ia para a possibilidade disso acontecer rondar os oitenta por cento. Uma estimativa conservadora, dirá um especialista nestas coisas. Não sou eu, portanto, que escrevo, mas o simulacro de mim. A manhã não me terá feito muito bem. Hoje já videoconferenciei duas vezes, pensei em coisas práticas, logo eu tão pouco dado ao prático, e li coisas que não deveria ler. No mundo proliferem coisas ilegíveis, embora sejam as que mais leitores têm. Na consciência deixo correr as coisas que tenho para fazer esta tarde, mas logo o pensamento muda de agulha e se centra não no que devo mas no que desejo fazer. Uma tragédia esse eterno conflito entre dever e desejar. Observo com demora a rua e vejo o dia a cambalear tristonho e choroso pelas áleas escuras do tempo, como se o crepúsculo se devesse demorar hora sobre hora, incapaz de dar à luz a noite escura. Não me ocorre nada de assinalável para assinalar e o melhor é calar-me. Hoje é segunda-feira, dia 20 de Abril. Chove e o mês entrou no seu último terço. Um pássaro abusa do efeito de redundância na emissão da mensagem e do gira-discos, como sou velho, chega-me a voz da Montserrat Figueras e a música de Jordi Savall, no prodígio de misturar vivos e mortos que só a técnica consegue.
domingo, 19 de abril de 2020
A vila sitiada
Sem motivo, deitei-me tarde e tarde me ergui. Quando a janela se abriu havia sol, olhei-o, mas logo descobri que não saberia o que fazer com ele, como começo a não saber o que fazer com muitas coisas. O mês anda resfriado e as tarefas com que os dias são ocupados nunca deixam de exibir a marca de pechisbeque que é a delas. Ainda não fui espreitar o movimento na Sá Carneiro. Talvez a própria avenida se tenha movido para outro lado e eu agora viva num sítio inóspito, cheio de felinos ameaçadores e répteis que nem nos piores pesadelos existem. Ou então terei sido transportado para a Idade Média. A vila está sitiada talvez por castelhanos, talvez por mouros. Estamos em casa, passam dragões fumegantes, as muralhas contêm o inimigo e a peste grassa por entre os dois exércitos. Rio-me com a propensão para a hipérbole e lembro-me que a velha vila foi despromovida a cidade, para que todos se ufanassem da urbanidade decretada, apesar dos dedos rústicos e das mãos calosas. Quem é que quer ser um vilão? Não deveria fazer considerações destas. Avisto, sob a copa das árvores, uma rotunda coberta de repuxos e edulcorada com uma estatuária inominável, talvez comprada em algum leilão aquando da falência de um país socialista, mas estou interdito pelo autor de me meter em assuntos políticos. Sou um narrador obediente e na rotunda apenas vejo os carros que passam. Oiço o grasnar de uma motorizada, a buzina de um carro, o latir de um cão, vozes que vêm da praceta. Abro a janela e oiço o vento, um vento triste, comprometido, com a impotência estampada no rosto. Hoje é domingo, dia 19 de Abril. Anoto na minha agenda que terei de limpar a secretária e arrumar os papéis, ponho o telemóvel a carregar e sinto uma súbita saudade de ir ver o Tejo. As oliveiras da escola aqui ao lado dançam, embaladas pelo vento e nas suas folhas há um brilho de cinza e prata. Cada vez gosto mais delas.
sábado, 18 de abril de 2020
Um armistício com a balança
Até que enfim. Depois de meses de disputa, a balança convenceu-se,
não sei se por piedade, a devolver-me, quando pisada, um peso próximo daquele
que me é recomendado naquelas equações entre peso e altura, talvez com idade a
entrar também no problema. Não se pense que isso se deve ao facto de há mais de
um mês não pôr um pé num restaurante, ou à dieta seguida em confinamento, ou
sequer à prática diária de quase uma hora de exercício. Há que evitar
interpretações maldosamente materialistas. Tudo aconteceu devido à meditação transcendental
e à recitação quase ininterrupta do mantra om
mani padme hum. Não se trata da ideia pouco espiritual de que se uma pessoa
recita um mantra não come. Pode ser verdade. A questão, porém, é outra. A
balança pensou, ao dar conta dos meus exercícios espirituais para combate ao excesso
de peso, que eu ia enlouquecer e, por um acto de misericórdia, começou a devolver-me
números mais afáveis, embora na semana passada tenha hesitado. Assinámos hoje,
eu e a balança, um armistício e, continuando ela assim, haveremos de celebrar
um tratado de não beligerância. O dia está semi-radioso, o céu é uma manta multicolorida
de retalhos, suficientemente esburacada para deixar passar um sol temeroso e
pouco convicto dos seus poderes. Na avenida, passam mais carros do que tem sido
habitual e um transeunte, que ainda não chegou a acordo com a sua balança,
arrasta um peso excessivo sobre a calçada, movendo devagar as pernas,
descansando sob a sombra das árvores, olhando estupefacto para um lado e para
outro. Oiço o barulho de garrafas a cair num vidrão e recordo-me de que fui
acordado pelo ronco de um corta-relvas de uma empresa de jardinagem que cuida
dos espaços públicos. É uma empresa muito preocupada com aquilo que as pessoas
podem fazer na cama ao sábado de manhã e, por isso, elegeu-o para enviar os
seus batalhões de cortadores de relva, com os tanques de combate. Hoje é
sábado, dia 18 de Abril. Os dias passam sorrateiros, a minha caixa de email
continua a ser bombardeada e o telemóvel mostra-me duas fotografias da minha
neta mais velha com um ano de diferença. Abro a boca de espanto, mas logo a
fecho. O tempo passa. Não há nada como um truísmo para acabar.
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