Oiço uma milonga e a tarde abre-se como um enorme
poço de nostalgia. Os portugueses, pensei, têm uma grande fixação pela música
brasileira, mas há uma profundidade de sentimento naquela que nasce na
Argentina que me parece inultrapassável. Talvez o fado se lhe equipare, mas não
estou certo disso. Lembrei-me disto porque ontem estiveram cá uns amigos da
geração intermédia. Um deles tocava violão, mas apesar de argentino apenas se
interessava pela Bossa Nova, a qual estudava com um afinco profissional. Ao
longe, uma outra música se intromete na Milonga del Solitario, a célebre
Mrs. Robinson, de Simon & Garfunkel. Será outra nostalgia, pensei. Uma
notícia informa-me que a bandeira vermelha para indicar praia cheia já foi
hasteada quase 2 500 vezes. A minha consciência sorriu plena de orgulho. Em
nenhuma dessas vezes a lotação esgotada se deveu à minha presença. Gosto de tal
maneira da areia da praia que evito pisá-la. Nunca se deve pôr os pés em cima
daquilo que amamos. Estas graçolas secas dão a medida do meu talento. Agosto
caminha para a meia idade, não tarda estará velho. Depois, virá o mês em que a
realidade reclama a pesada corveia, cheia de projectos, objectivos, cheia de humanidade
e um rosário de abjecções e coisas sem sentido. Estará um tempo de escachar, de
rachar, de derreter os untos, de ananases. De todas estas expressões ao gosto
popular, em uso no tempo do Eça, a que mais me agrada é a de ananases. Um calor
de ananases. Um dia ainda vou investigar a origem da expressão, mas é possível
que já não exista ninguém que tenha assistido ao seu nascimento. A milonga acabou
há muito, agora oiço uma zamba, Luna Tucumana, e uma
melancolia suave escorre sobre o dia.
quinta-feira, 13 de agosto de 2020
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Descrições
O sol brilha estrangulado por um cordão de nuvens, deixando
cair fiapos de calor sobre o lençol encardido do mundo, depois o cordão
adensa-se, o sol sem ar para respirar esconde-se e um vento suave toca a ramagem
dos arbustos. Nos vasos, aspidistras, buganvílias e costelas-de-adão reclamam
água, enquanto se ouve o troar gorgolejante e contínuo dos corta-relvas. Nas
ruas, transeuntes descuidados passam vagarosos e os poucos carros seguem em
velocidade moderada, como se toda a azáfama tivesse sido suspensa pela sombra
que Agosto projecta no calendário. Podia ficar horas e horas a descrever o mundo, mas depois recordei-me que, durante a noite, acordei e, insone, retomei a
leitura de um romance de Thomas Bernhard. Há nele uma enorme capacidade para
descrever o mundo humano, um mundo perturbante que se esconde na Estíria, gente
de uma humanidade rude, violenta, imoral. O leitor do sul da Europa, habituado
ao destrato que o Norte tem por hábito fazer dele, descobre-se, não sem espanto,
como superiormente civilizado. Não é impunemente que se é herdeiro dos romanos –
pensa-se, então – e que se vive em terras onde as vides crescem para
transbordar em vinhos quentes, complexos, vinhos que mobilizam exércitos de metáforas
e sinestesias para serem descritos, ou, melhor, para que deles nos possamos
aproximar através da linguagem, depois da visão, do odor e do sabor se terem
confrontados com sensações para as quais a língua ainda não encontrou o som
exacto. Houve uma altura que Bernhard proibiu a publicação dos seus livros na
Áustria natal, tão insuportáveis lhe pareciam os austríacos. Os pinheiros que
avisto daqui, pinheiros mansos, abobadados, mostram as folhas novas num tom
verde tocado ao de leve pelo amarelo, enquanto na ramagem mais velha o verde das
agulhas é inundado pela cinza, que as escurece, como se prenunciasse o luto
pela sua futura transformação em caruma, hoje em dia inútil. No livro de
Bernhard, o príncipe de Sarau enche páginas e páginas com a descrição da
primeira entrevista que faz aos candidatos para um cargo relevante na sua
imensa propriedade, um homem sem capacidade para o trabalho, um homem enfermiço
e que nada sabe dos assuntos que teria de tratar. A escrita é de tal maneira
envolvente que me prolongou a insónia por mais tempo que devia. Eolo recolheu,
com o seu sopro, o cordão de nuvens e o sol brilha sobre o arvoredo. Um pássaro
poisa no ramo de um cedro e deixa-se baloiçar, e tudo é tomado pelo silêncio,
como se o mundo tivesse emudecido, ou talvez seja eu que esteja a ficar surdo.
terça-feira, 11 de agosto de 2020
O peso da verdade
Poderia contar uma história de ninfas a saírem das águas do
rio, mas a verdade da narrativa teria tal peso que se tornaria insuportável. Se
alguém avistar, como eu avistei, ninfas nas águas de qualquer rio, o melhor é
omitir a história, pois não devemos sobrecarregar o mundo dos outros com o peso
da verdade. Recolho-me à sombra e protejo-me do sol de Agosto. O ramalhar das
árvores e dos arbustos indica a presença do zéfiro e que o dia, aqui neste
lugar onde me escondo da realidade, terá um calor moderado. Ontem nadei, coisa que não fazia há muito.
Não se pode dizer que o resultado seja animador. Os corpos sintonizam-se para
certas actividades e quando os surpreendemos com outras não programadas, eles nunca
deixam de protestar. Há mais de uma semana que oiço, embora sem escutar, as
obras para piano de Grieg. É um ouvir despreocupado, uma presença longínqua que
me abre para o silêncio, a confissão de que por estes dias cultivo a mais funda
despreocupação. Nos arbustos, os nomes escapam-me, fulguram flores a cujas
cores também não sei que nome lhes dar. Talvez nada disso exista, pelo menos
para mim, pois só existe aquilo que sabemos nomear. No dia em que me esquecer
do nome, também eu deixarei de existir.
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
A tortura como prazer
Ao acordar pensei que os dias de férias são uma ilusão, que
passa rapidamente. Depois, pensei que talvez sejam a antevisão do paraíso
celeste. As pessoas, mesmo as que foram educadas no mais estrito catolicismo,
esquecem que, na tradição judaico-cristã, o trabalho foi dado aos homens como
punição e não como uma bênção. Se se quer uma prova de que vivemos num mundo
pós-cristão, basta olhar para o culto do trabalho e da produtividade que há por
todo o lado, basta ter em conta que a punição é agora vista até como um prazer.
Isto disse ontem, ao jantar, o padre Lodo. Estando ele tão perto, não podia
deixar de vir jantar cá a casa. As suas palavras, porém, indignaram a geração intermédia
da família, toda ela crente na máxima que o trabalho é o destino dos homens.
Foi uma indignação silenciosa, pois por deferência remeteram-se ao silêncio,
mas eu bem os conheço. O padre, talvez fingindo que não percebia, continuou,
com o seu espírito verrumante, e disse que mais valia um santo ócio do que
ser-se masoquista e fazer da tortura um prazer. Depois riu-se e pediu para não
o levarem a sério, pois não era pessoa de fiar, ele que foi inimigo da Igreja e
depois dera em Jesuíta, ainda por cima. O ainda por cima ficou em suspenso. Foi
esta conversa que se prolongou noite dentro que me assaltou ao acordar. Agora,
porém, preciso de sintonizar o espírito com a realidade, pois não tarda vêm
aqui fazer umas pequenas obras e, como se sabe, qualquer pequena obra é um
grande incómodo.
domingo, 9 de agosto de 2020
O trabalho do fogo
Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez
em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens
levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte
e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos
para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a
invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção
precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do
sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado
na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta
anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e
fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao
olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora
que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das
tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens
se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais
estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a
existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por
desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo
desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu
bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta
que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o
sítio onde estou.
sábado, 8 de agosto de 2020
Sem alma comercial
Raramente, ao acordar, tenho consciência de ter sonhado, mas
não foi o que aconteceu esta manhã. Era um imbróglio qualquer em torno de um
negócio que já não sei precisar. Qualquer coisa que me resultava numa situação
muito desconfortável. Eu que não possuo uma alma comercial acordei em
sobressalto e lembro-me que fui sossegando dizendo-me, no silêncio do quarto,
que era apenas um sonho, nada mais que um sonho e que, se fosse na vida real,
jamais me meteria num negócio, quanto mais num imbróglio aflitivo. Depois, abri
a janela, a luz entrou, e o sonho começou a apagar-se, restando aquilo que acabei
de contar. Entreguei-me à vida de um sábado de Agosto, mas um certo desconcerto
não me tem abandonado. Será que a minha alma de narrador é apenas uma alma
comercial travestida e frustrada? O mundo está cheio de equívocos e alguns dever-me-iam
calhar, pensei. Será que também a mim se aplicam aqueles versos, Esperanças
mal tomadas / Agora vos deixarei / Tão mal como vos tomei, com que Sá de
Miranda inicia um vilancete? Depois, alvitrei que fora do reboliço académico já
ninguém deve ler Sá de Miranda, mas posso estar enganado. Passa por mim um
grupo de rapazolas e um diz, entre palavras que me abstenho de reproduzir, que
falhou o golo com a baliza aberta. Ele não sabe ainda que a vida não é outra
coisa senão uma sucessão de golos falhados com a baliza aberta, mesmo quando a
bola entra. Entre ou não entre a bola, o resultado será sempre o mesmo. Talvez
seja por sofrer de pensamentos como estes que eu não tenho uma alma comercial.
sexta-feira, 7 de agosto de 2020
A geografia do silêncio
O silêncio tem uma geografia imprecisa, o que torna inúteis
os mapas que dele se fazem. É um território mutável, umas vezes cresce
rapidamente, conquista espaço ao império do ruído. Outras, porém, vê-se drasticamente
diminuído pela invasão de gente inoportuna, que faz da emissão de sons pela
boca a razão de uma existência. Fora eu dado a pedagogo, haveria de criar uma
teoria em que o silêncio seria a primeira coisa a ensinar às crianças.
Idiossincrasias de velho, dirão as pessoas sensatas. Eu concordarei com elas.
Recordo que, em certa altura da vida, procurava sítios em que não se ouviam
ruídos nem havia, durante a noite, qualquer luz artificial. Então, ficava a
olhar o céu, as estrelas nos seus arranjos ilusórios, a que chamamos
constelações, a via láctea como um grande poço polvilhado de pontos brancos,
luminosos. Escutava o silêncio, e conforme ele ia crescendo para dentro
de mim, uma música estranha aos ouvidos citadinos compunha-se no rumor da
terra, no murmúrio do vento, no mistério do éter onde tudo parecia mergulhado.
Se se ensinasse o silêncio, talvez as pessoas aprendessem a escutar e a usar a
voz apenas para dizer alguma coisa. Hoje tornei a ver a mulher que olha o
horizonte. Toda ela é silêncio e nesse silêncio há um convite. A grande
vantagem de se ter passado do politeísmo clássico para o monoteísmo é que se
trocou a algazarra dos deuses greco-latinos pelo silêncio do Deus
judaico-cristão. A mulher levantou-se, saiu da esplanada e, chegada à rua, acendeu
um cigarro. Afasta-se lentamente e eu sigo-a com os olhos perdido no silêncio
que há nela.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020
Um passeio pelo molhe
Quando se põe o pé no cimento que cobre o chão do molhe, são
mais seiscentos metros até alcançar o farol. Se está uma névoa ligeira, como
tantas vezes acontece, esse pequeno passeio proporciona algumas sensações que
não são de desprezar. A cidade à direita esbate-se, como se fosse um desenho a
carvão, desmaiado pelo tempo, adquirindo uma beleza que uma luz límpida lhe
recusa. O mar troca a tonalidade esmeralda e azul por um cinzento cheio de enigmas,
ameaças e promessas, enquanto se ouve o seu restolhar nas rochas. Os outros
molhes fazem lembrar ruínas deixadas por civilizações desconhecidas. Os barcos
ancorados são fantasmas que baloiçam embalados pelo vento, enquanto os veleiros
e os barcos de recreio se aproximam ou afastam do porto, conforme o destino de
cada um. É preciso caminhar de olhos bem abertos para não tropeçar. Quando se
chega ao farol pode-se ficar a contemplar o oceano, a meditar no seu enigma, ou
então virar costas ao sonho e apressar-se, empurrado pelo vento norte, em
direcção a terra. Chegados aqui o sortilégio desfaz-se. Há um porto, com barcos
em reparação, o areal das praias que se vão sucedendo, até se perderem de vista,
o voo das gaivotas que negoceiam com o vento a poupança da energia, planando
sobre a terra. Enquanto caminhava, ainda antes de chegar ao molhe, o sol
matinal foi cedendo lugar à névoa, e eu pensei que o verdadeiro romantismo só
pode existir em paisagens assim, paisagens das terras frias do Norte. Se
importado pelo povos meridionais nunca deixa de ser insípido e, na verdade,
vazio. A luz nunca foi a melhor companhia para os enigmas do sentimento.
quarta-feira, 5 de agosto de 2020
Pão e vinho
À minha frente, havia um caminho estreito de terra batida,
ladeado por arbustos espontâneos, raquíticos, carcomidos pelo vento norte.
Algumas rochas erguiam-se como marcos miliários. Por ali, circulavam aqueles
que, afastando-se um pouco da cidade, imaginavam estar no campo, para lhe
sorver o ar, encher os pulmões de ruralidade. Um homem ia apressado, arrastando
ligeiramente uma perna, um casal caminhava com demora, ele fazia comentários
sobre a paisagem, ela ouvia com atenção e sorria, evitava as palavras, não se
queria comprometer. Dois corvos desenharam um semicírculo no céu e
desapareceram atrás de uns cedros altos. Isto foi antes de ir ao supermercado,
ter de esperar a vez para entrar e, depois, ver-me rodeado de gente inóspita
apenas porque precisava de pão e vinho, para com eles compor um poema, ou esboçar
uma pequena narrativa onde as duas espécies litúrgicas entrariam para produzir o
ambiente e dar-lhe profundidade. Quando acabei as compras e saí, havia sol.
Procurei uma esplanada onde pudesse beber café rodeado de silêncio e
esquecer-me do poema ou do conto que me levaram às compras. Agosto nunca deixa
de ser um mês estranho, cheio de rituais fundados numa mitologia precária,
movida pelo desejo, por sonhos eróticos, histórias onde se cruza a inverosimilhança
e a necessidade de mostrar aos outros que se existe e se tem uma vida plena,
como se a plenitude fosse prerrogativa de mortais. Não é.
terça-feira, 4 de agosto de 2020
A linha do horizonte
Uma mulher pousou o cotovelo na mesa da esplanada, depois
apoiou o queixo na palma da mão. Fiquei à espera que, num súbito movimento de
contorcionista, um pé, levantando-se, acabasse por aterrar-lhe na cabeça. Tenho
demasiadas expectativas sobre a humanidade, não admira que me sinta continuamente
defraudado. Ela podia ser uma contorcionista, afinal era só uma mulher
solitária que apoiava a cabeça para olhar o horizonte e beber café. Quando não
se sabe o que se há-de fazer com as pessoas, o melhor é pô-las a olhar o
horizonte. Não foi este o caso. Eu faria dela uma contorcionista, dar-lhe-ia o
melhor dos futuros num circo já sem animais amestrados, a não ser os humanos,
mas ela preferiu olhar em frente, para aquele sítio onde uma linha ténue une o
céu e o mar. Com vagar, um veleiro foi crescendo, rompendo a linha, e eu temi,
confesso-o sem vergonha, que o oceano se entornasse para dentro do céu, ou que
este lançasse sobre o mar alguma coisa que não quisesse nele. A mulher que
podia ter sido contorcionista mexia, com os seus belos dedos, longos e afilados,
o meio pacote de açúcar que depositou dentro da chávena. Eu vi o pequeno monte
de cristais brancos sobre a espuma castanha. Eu vi-os desaparecer tragados por
aquele buraco líquido. Eu vi-a a fazer rodopiar, com a mão direita, a colher dentro
da chávena, enquanto a esquerda lhe segurava a cabeça para olhar o horizonte.
Se eu tivesse um circo, contratava-a para contorcionista de horizontes. Não
tenho, as minhas palhaçadas – de palhaço pobre, note-se – não chegam para
animar o negócio. Também eu fiquei a olhar a linha do horizonte.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Destinos
A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que
posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns
mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de
faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único
problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através
da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora
uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas
esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências
para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do
passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas
essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há
uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova,
ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o
silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais
tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de
substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de
1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de
participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um
verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as
brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso
é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um
luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num
ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si,
enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.
domingo, 2 de agosto de 2020
Pessoas de papel
Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas
de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis.
As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado
pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio
do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos
problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda
agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade
só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo
e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e,
portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome
não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade
não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira
guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão
Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma
homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que
se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é
Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel
para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam
o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo,
senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica,
embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à
minha neta e tomar café.
sábado, 1 de agosto de 2020
Eu e o Marquês
Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto,
primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu,
só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas.
Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês
ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a
minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros
pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de
expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um
dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências
de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão
expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro
sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As
pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão
muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à
praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e
comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem
valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio,
sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles
que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal.
Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre
é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.
sexta-feira, 31 de julho de 2020
Julho fina-se
Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão
de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso
caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo
fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas,
pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher
formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um
jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras.
Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida
prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão
de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido
no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso
desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem
põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez
esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A
mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal
o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no
divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos
naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por
enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira.
Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a
ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.
quinta-feira, 30 de julho de 2020
O dia da matrícula
Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas
repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de
parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A
memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão.
Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha
mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de
uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho.
Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um
palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois
sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por
professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam
de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me,
passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol
que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno,
que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas
em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais,
pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos
preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num
tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito
dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de
fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo
continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si
assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer
coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma
inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória,
pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não
acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas
de papel almaço. Seriam?
quarta-feira, 29 de julho de 2020
Familiaridades irritantes.
Há familiaridades que me irritam. Quem terá dito aos
programadores do novo Word que sempre que se abre um ficheiro temos
de levar com uma mensagem de boas vindas? Ainda por cima vem acompanhada por
uma injunção disfarçada de conselho: comece onde ficou ontem. A cortesia deve
poder desactivar-se, mas estou suficientemente desactivado para o conseguir
fazer. Talvez não tenha acordado com boa disposição e não saiba apreciar esta urbanidade
informática. Num outro tempo, esta terra era um mar a fervilhar de oliveiras e
figueiras. O azeite e o álcool alimentavam as lamparinas com que a vida por
aqui se iluminava. Havia um calendário de cheiros que desapareceram,
substituído por um mundo inodoro e insípido. A memória apazigua-me com as
tontices do marketing. Aqui perto alguém canta. Não é um pássaro, nem um
anjo. É uma voz de mulher perdida numa lide doméstica. Do prédio em frente,
alguém chega à janela, apanha a roupa e refugia-se. O ritmo dos dias enrola-se
no perfume que alguém deixou no elevador. Sentado, olho para a rua e procuro
descobrir no silêncio a transparência com que o passado me assedia a memória.
Numa outra casa, havia um poço com uma roldana de ferro. A corda descia e subia
com um balde cheio de água pura. Não sei o que hei-de fazer com essa água,
agora que a casa já não existe.
terça-feira, 28 de julho de 2020
Manobras militares
Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os
exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas
do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns
meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação
do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para
aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do
ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o
vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não
consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios,
súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um
restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o
evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma
metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a
mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e
depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico,
imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que
a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas
escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso
das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta
de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho
cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto
atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem
da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre
Marília, também os calores a importunam.
segunda-feira, 27 de julho de 2020
O desejo infinito
Uma das coisas que se aprende com a observação do mundo é
que a maioria das pessoas confunde o desejo com aquilo que é possível. A
realidade surge então sempre de forma sombria e toda a gente parece mancomunada
para evitar o que seria possível, não fora a aleivosia dos outros, porque
nisto, os aleivosos são sempre os outros. Não lhes passa pela cabeça que aquilo
que é possível pode nada ter a ver com aquilo que desejamos. As possibilidades
são finitas e o nosso desejo é infinito. Este tipo de estultícia, muitas vezes
mascarado de erudição, abunda por todo o lado. Falei sobre isto com o padre
Lodo e o casal seu amigo, no jantar de há dias. O mecanismo é interessante, disse
o padre e passou a uma longa explicação didáctica. O nosso desejo, referiu com
uma entoação sempre italianizada, diz-nos que algo é muito desejável. Depois, a
nossa razão contaminada pela sensualidade proclama bem alto que o nosso desejo
é possível de realizar. A partir daí tentamos impor aos outros a realização
daquilo que desejamos, mas como raramente o desejo se atém ao que é possível,
saímos para a rua com o dedo em riste a acusar esses malandros que não realizam
as nossas fantasias. A perspicácia de Lodovico nem sempre lhe granjeou
amizades. Pelo contrário. Lembrei-me disto, depois de ler certas coisas há pouco,
coisas que caem neste erro, mas que merecem longos aplausos e muitos likes
nas redes sociais. Toda a gente sofre de infinidade do desejo, pensei. Por mim,
desejo um café.
domingo, 26 de julho de 2020
Insónias e sonatas
Hoje saí de manhã para fazer os meus seis quilómetros contra
a inércia e a preguiça. Consta que faz bem e evita que a balança se entregue ao
destempero, ao ser pisada por mim, e me devolva algum impropério em forma de
quilogramas. A passeata foi um pouco mais lenta do que a de ontem. Dormi mal,
uma insónia bateu-me à porta e eu, incauto, abri-lha. Dei por mim apreciar a
companhia. Permitiu-me acabar de ler um romance de Ramón del Valle-Inclán, a Sonata
de Otoño. Alguém dirá que também Ingmar Bergman realizou uma Sonata de
Outono, o que é verdade, mas não têm nada a ver uma com a outra. Cada uma
tem o seu assunto e o seu ritmo. Quem me recomendou o Valle-Inclán foi a Emilia
Bazan, a mulher do antigo aluno alemão do padre Lodovico Settembrini, no jantar
do outro dia. Como não conhece nada dele, comece pelas Sonatas,
sentenciou. A primeira é a de Outono, acrescentou, numa tentativa de
trocar o seu magnífico castelhano pelo português. Nesse momento, o padre
Lodovico franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebo-o, agora. O
Marquês de Bradomín não é propriamente um exemplo de bom cristão, mas o padre
também teve os seus dias avessos ao altar. Eu obedeci, muni-me de um exemplar e
li. Isso fez-me andar mais devagar, o que foi logo notado pela aplicação do
telemóvel que me segue os treinos. Na verdade, eu não ando a treinar, mas é
assim que ela interpreta o facto de eu me pôr a caminhar rua fora sem destino,
a não ser o da casa da partida. Caminhar é como jogar ao Monopólio. Vá para a
casa de partida, mas não tem nada para receber. Nos domingos de Julho íamos,
por vezes, almoçar à casa onde nasci. Era um almoço sob uma latada, o que
criava uma sensação de frescura. Naquela altura, ainda ninguém tinha morrido e o
mundo parecia uma clareira aberta. Há muito que não é possível juntar todos
aqueles comensais, mas eles fazem parte de mim. Hoje talvez comece a ler a Sonata
de Estío ou pergunte às minhas netas se querem jogar Monopólio. Presumo que
me olharão de lado.
sábado, 25 de julho de 2020
Não-assuntos
Sábado, dia de ócio. As palavras da família do ócio têm
todas péssima imprensa. És um ocioso. Soa como uma acusação fundada num juízo
moral negativo. No entanto, a palavra ócio quer dizer repouso, descanso, coisas
que me parecem benévolas. Depois, um mundo que ficou fascinado pela agitação,
pela febre das realizações e pela velocidade associou o ócio à preguiça e à
inacção. Os acusadores do ócio tecem loas ao trabalho, mas nunca dizem que a palavra
vem do vocábulo latino tripalĭu. Um tripalĭu
é um instrumento de tortura constituído por três estacas ou paus. O exercício
não seria conhecido pelo prazer que provocava a quem a ele era submetido. Na
verdade, o trabalho, talvez até à Revolução Industrial, nunca mereceu louvor.
Trabalhava quem não tinha estatuto social para fazer outra coisa. No entanto,
podemos encontrar inesperados aduladores do trabalho. No Diário Íntimo,
Baudelaire afirma que o prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Os
nazis não eram destituídos de humor negro e, por certo, percebiam a natureza
torturante do trabalho. Inscreviam na entrada de alguns campos de concentração,
como Auschwitz, o trabalho liberta. Curiosamente, em Baudelaire o
trabalho também é visto como uma libertação, mas da omnipresença na consciência
da sensação do tempo. Tanto o prazer como o trabalho são vistos por ele como
distractores da nossa condição de seres finitos. Tudo isto porque chegámos a
sábado. Nos dias de ócio, pode-se ociar de diversas maneiras. Por vezes,
pratico o ócio procurando autores que ninguém lê. Leio-lhes umas páginas e
esqueço-os. Quem terá ouvido falar em Karl Krause, um filósofo kantiano que
viveu no final do XVIII e no início do XIX? Não o confundir com o famoso dramaturgo
austríaco Karl Kraus. E do pensador holandês François Hemsterhuis, que viveu no
século XVIII? Ninguém. Eu também não. Encontrei-os porque levado pelo ócio me
pus a procurar as obras, numa língua acessível, do romancista romântico alemão
Jean Paul. Deste, eu tinha duas referências. A de Sebald que é elogiosa e a de
Schopenhauer que o acusa de não ter nada para dizer e de só escrever por
dinheiro, isto é, acusa-o de trabalhar. Olho para a minha agenda imaginária e
vejo que tenho de dar parabéns a alguém. Depois, escrevo nela a seguinte nota:
evitar assuntos idiotas ao sábado, aproveitar o ócio para uma coisa mais
decente do que encher o monitor com palavras sobre não-assuntos. O pior, porém,
é que com a passagem do tempo só os não-assuntos me interessam.
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