domingo, 29 de novembro de 2020

O desaguar dos domingos

Visto da cadeira do meu escritório, o domingo desliza placidamente em direcção à foz. De imediato se levantou uma discussão sobre o tipo de fozes – é um plural horrível, que nem a semelhança com vozes poupa ao escárnio – cabem aos dias da semana para desaguarem uns nos outros. Cheguei a acordo. Tudo depende. Os domingos, por exemplo, podem desaguar em delta na segunda-feira, mas que o de hoje se há-de abrir num estuário de águas negras, embora límpidas. Há pouco, falei com o padre Lodovico. Continua abatido com o confinamento, a falta dos jantares de sábado à noite. Perguntou-me o que ando a ler. Disse-lhe o Sillanpää. O finlandês, questionou como se afirmasse. Disse-lhe que sim. Não conheço, sublinhou e pediu-me para lhe ler uma passagem ao acaso. Não foi ao acaso, mas li em todas as condições sociais o tempo já vivido aparece à memória ansiosa com um solene esplendor. Interessante, há muito que noto isso, comentou. Nas confissões, continuou, não é raro observar as maiores idiotices feitas no passado envoltas nesse solene esplendor. Sempre me intrigou, acrescentou, essa luz com que o presente envolve até o mais indesejável que se foi obrigado a viver. Tenho de pensar mais nisso, concluiu. Numa das acácias da praceta restam ainda algumas folhas que tremem ao vento. Num dos ramos, um anjo medita sobre o mistério da encarnação. No céu, nuvens brancas e negras disputam a primazia. Uma rapariga sem máscara e calçada com ténis brancos atravessa a rua, e eu recolho-me, como se vivesse num ermitério. Sítio para onde deveria ter entrado há muito, caso não fossem as tentações do mundo. Escrevo isto, e alguma coisa dentro de mim desata a rir. Sempre encontrei graça nesta ideia de considerar o riso um nó que tivesse de ser desatado.

sábado, 28 de novembro de 2020

Universos paralelos

Antigamente nem me ocorreria fazê-lo, mas de há uns tempos para cá, vou a uma aldeia aqui perto, já em plena serra, comprar laranjas. Um enclave minúsculo tem um microclima que proporciona uns frutos excelentes. À beira da estrada os pequenos produtores locais vendem as suas laranjas e outras coisas que cultivam nas hortas. Hoje fui lá mais uma vez. Chovia e enquanto fazia o caminho para cá e para lá, pensava que todos vivemos em vários universos, que, sendo paralelos, possuem portais que permitem transições confortáveis entre eles. A noite caiu há muito, o dia foi invernoso e rendeu-me pouco. De lá de dentro vem um comentário, as orquídeas este ano estão malucas. Não digo nada, mas sei o que se passa. Estão prontas para antecipar a floração. Não são como eu, sempre pronto a retardar seja o que for. Não são apenas as orquídeas, contudo, que estão malucas. Também o mundo sofreu uma súbita aceleração na tontice e anda um pouco fora dos eixos. Não faltam por aí moços pimpões prontos a proclamar que hão-de pôr tudo na ordem. Depois de escrever esta frase, dou-me conta de que nunca uso a palavra pimpão e não faço ideia por que razão ela me ocorreu. Talvez os moços sejam mesmo apimponados. No telemóvel, recebo um vídeo do meu neto entregue a um jogo de colocar umas bolas de cor em buracos. Isso basta para que a noite me seja benévola.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O peso da identidade

Também eu não conhecia Frans Eemil Sillanpää, um finlandês que ganhou o Nobel da literatura em 1939. Como muitas vezes acontece, um acaso levou-me a ele e consegui comprar os dois romances que a Editorial Inquérito, há muitas décadas, traduziu pela mão de José Marinho. Tratam-se de Silja e Santa Miséria. Estou a ler este último. A personagem central, um homem um pouco lento de raciocínio, vai recebendo nomes diferentes ao longo da vida. Fiquei a invejá-lo, também eu poderia receber diversos nomes conforme os anos se fossem acumulando. Tinha várias vantagens. Diversificaria, coisa que está muito em voga no espírito do tempo. Depois, evitaria o cansaço da identidade. Ter uma identidade é um peso que chega a ser insuportável, ir tendo várias é como se não tivesse nenhuma, o que seria uma grande liberdade. A noite cerrou-se já. Acompanho com zelo o minguar dos dias, enquanto o Outono progride. Hoje dei uma volta, depois de almoço, pela praceta e ruas adjacentes. As folhas molhadas amontoam-se debaixo das acácias, os ramos parecem antenas ocupadas em captar algum sinal de vida alienígena e as pessoas são agora incógnitas sob as máscaras que as protegem dos vírus e do mau olhado. Entrei em fim-de-semana. Nesta expressão ressoa sempre uma qualquer ameaça de apocalipse, mas pode acontecer que o problema resida em mim, uma mente, além de lenta, demasiado impressionável por certas palavras. É o que faz o peso de ter uma identidade.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Algumas armadilhas

São quase cinco da tarde. Fez-se silêncio, depois dos adolescentes que frequentam o centro de línguas se terem evaporado. Um sol outoniço mostra um sorriso triste nas paredes da escola e nas copas dos cedros e pinheiros do pequeno bosque que por lá existe. As sombras, com as suas garras de seda fria, avançam sem pudor e cobrem já uma vasta superfície. Há pouco quis usar a palavra estaleiros. Não me ocorria, tentava ludibriar a memória, estender-lhe armadilhas, mas ela ganhava sempre. Desisti e googlei sítio onde se constroem navios. Gentil e afável, o Google devolveu-me estaleiro. Fiquei-lhe grato, embora a situação não fosse embaraçosa. Por vezes, acontece-me em público. O nome de um livro ou de um autor, e a minha mente é uma cisterna vazia. Comecei a evitar esse tipo de exibições. É como se gaguejasse da memória e isso é sempre perturbador e desconcertante para quem assiste. As tílias desnudaram-se por completo, e as folhas dos jacarandás começam a amarelecer. Na Sá Carneiro, os carros deslizam devagar, desolados, enquanto alguns mascarados enfrentam o Carnaval. Não tarda, e as iluminações natalícias acender-se-ão para acolher a noite com uma névoa despudorada de tristeza. Se tivesse cigarros, fumaria um. Não tenho.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Uma manhã de Inverno

Foi chuvosa e fria a manhã. Juntamente com o vento, a água despiu as acácias da praceta aqui em baixo. Por baixo delas, o chão ficou coberto de um tapete com estranhos padrões, onde se combinam, segundo o ritmo de um quadro abstracto, os amarelos, os castanhos, diversos verdes, tudo isso salpicado pelo branco do calcário dos passeios, que irrompe aqui e ali. Uma sirene uivou sobre a cidade. Anuncia a aproximação da uma da tarde, um hábito que terá ficado dos tempos em que a pequena vila vivia das indústrias que por aqui havia. Agora toda a gente trabalha nos serviços e os seus horários já não se hão-de regular com sirenes, mas pelo brilho do smartphone ou, no pior dos casos, pela pulsação do quartzo dentro de um relógio. O sol atravessa uma camada mais fina de nuvens e uma luz esbranquiçada invade as paredes dos edifícios. Navegamos já na última semana de Novembro. Não tarda e estará aí o Natal e o Ano Novo, onde se haverá de estar mais confinado do que confiado. Chegou a hora de almoço. A tarde espera-me com o seu punhal de aço inoxidável. O mais sensato será retemperar forças.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Contar ovelhas

Cheguei a casa já a noite, com as suas asas de veludo negro, tinha descido sobre a cidade. O desgosto com esta frase só pode ser ultrapassado pela contemplação das cornucópias natalícias da avenida. Olhei-as, enquanto conduzia, e elas cornucopiavam tanta tristeza que a avenida, a mais concorrida deste lugar, exalava tamanha melancolia que não cabe na exiguidade das minhas frases. Há coisas e pessoas assim. Trazem nelas mais melancolia do que aquela que cabe num dicionário e numa gramática. Não porque queiram ser melancólicas, apenas por lhes terem retirado qualquer coisa que não se sabe bem o que seja. Leio que no Utah andavam de helicóptero a contar ovelhas quando depararam com um monólito perdido na paisagem desértica e vermelha. Na verdade, não era bem um monólito, pois não era feito de pedra, mas de metal. Pergunto-me o que encontraria eu se me pusesse a contar ovelhas. Provavelmente, nada, pois não teria à disposição um helicóptero nem a paisagem desértica do Utah. Só ovelhas, um ou outro carneiro, papel e lápis. Talvez uma calculadora para me ajudar nas somas. É a desvantagem de viver na semiperiferia do mundo. Em contrapartida, quando fui levantar uns livros à lavandaria, falo a sério, comi uma fartura. Quente, nada oleosa, doce, como só uma fartura sabe ser. Bem podias comer outra e deixares-te de lugares comuns e frases frívolas, rosnou o homúnculo que habita a caverna da minha consciência. Perguntei-lhe se queria que lhe fizesse um hematoma na testa. Recolheu a penates. Como eu.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Da repetição

Chegámos então a segunda-feira. A vida é muito repetitiva, de sete em sete dias volta-se ao mesmo, até que vem o dia em que não haverá mais dias, nem semanas. Aí nada se repetirá a não ser essa repetição infinita de nada acontecer, mas nessa altura nada disso nos diz respeito. Nem a nós nem aos outros, esta é a verdade crua. A inexistência de cada um é indiferente a ele e a todos os outros. Sem excepção, sublinho. Não faço ideia por que me vieram agora estes pensamentos à cabeça. Num livro, leio que ela, sem nome, quer por prenda de anos que ele a leve à pensão, se não o corpo, o dela, explode. Tudo isto parece um bocado hiperbólico, já que muitas haverá que não são levadas à pensão e não se ouvem por aí explosões. A crer no que leio, a realidade deveria ser um teatro de guerra entre bombardeamentos e deflagrações, mas a vida desliza tranquila. Oiço a Montserrat Figueras a cantar música composta no tempo do Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão. A Figueras não voltará a cantar, infelizmente, mas nós ainda a podemos ouvir. No friso das orquídeas, a branca já lançou umas hastes e ameaça florir antes de todas as outras. Como certas pessoas, também há plantas que sofrem de hiperactividade, perdem a noção do ritmo e vão pela vida fora em acelerações e travagens sem nexo. Por mim, prefiro a hipo-actividade, deslocar-me pela travessa da lentidão, pois sempre se há-de chegar à praça do serôdio bem a tempo. A segunda-feira não me ajuda. Como se pode ler.

domingo, 22 de novembro de 2020

O tempo passa

As minhas netas estão cá a passar o fim-de-semana, mas alguma coisa mudou. Ainda há uns meses, vinham para o escritório e, em voz baixa, brincavam aos colégios, o que envolvia multiplicidade de funções e de máscaras sociais. Ora mães, ora alunas, ora professoras, ora empregadas, ora directoras, ora discutindo em que turma a filha deveria ficar, ora fazendo avisos sérios sobre que avaliações daquelas não seriam permitidas. Passavam horas assim, usando a secretária da avó, sem me incomodarem, sem perceberem o prazer que eu tinha em observá-las pelo canto do olho. Agora, esse jogo acabou. Foi levado pela trama das conversas secretas, dos risinhos sobre assuntos de natureza iniciática, pelas séries da Netflix ou pelos vídeos do Youtube. A mais velha fica a olhar para o infinito e não tarda a mais nova segue-lhe o caminho nessa procura do que está para além do que é visível. Isto prova que os dias passam, e com eles passam as semanas, os meses e os anos. Foi isso que pensei há pouco ao ver-me ao espelho. Não senti náusea ou repugnância pelo que via, apenas a constatação de que nós insistimos em fazer o tempo rodar e ele vinga-se. Há coisas, porém, que têm uma natureza eterna. O mau gosto, por exemplo. Ontem, saí à noite e pela primeira vez, este ano, tive de enfrentar as iluminações natalícias. Em duas rotundas o Menino Jesus continua a ser assado numas brasas vermelhas, sem que nenhum vereador municipal se apiede e O retire daquela inominável situação. Quanto às cornucópias da Sá Carneiro, encimadas por um crescente e uma estrela, nem sei o que possa dizer. Talvez sejam símbolos metafísicos cuja hermenêutica me escapa. A ignorância é um belo e aprazível lugar para viver.

sábado, 21 de novembro de 2020

Uma luz excessiva

Está uma bela Primavera outonal. Reverberam, nas acácias, as folhas amarelas batidas pela cintilação da luz. Na desolação em que a vida caiu, estes dias luminosos, onde o calor excessivo está proibido, cingem a vida com uma promessa maior que o desalento semeado pelo génio maligno que preside ao reino das doenças, pandemias e negócios correlativos. Quando a situação deflagrou sobre as nossas cabeças, a ingenuidade que nunca falta aos homens, perversos que sejam, pensou que seria coisa de dias, duas ou três semanas e tudo voltaria ao que estava. Passaram dias, semanas, meses, e nada voltou ao que estava. Isto não deveria ser novidade, pois nunca, mesmo nos tempos de bonança, se volta ao que estava. Um gato espreguiça-se na relva da escola aqui do lado. Estira-se, o corpo arqueado, e quase o vejo a abrir a boca. Depois, enrosca-se e logo se levanta, sacode o pêlo e entrega-se, com a língua, a abluções rituais. Talvez se imagine no Ganges, talvez seja apenas um gato sem culto nem rito e faz aquilo que o código genético lhe ordena. Da aparelhagem chegam-me as vozes de The Hilliard Ensemble e a música sacra escrita por Pérotin, magister Pérotin magnus, que nos finais do século XII e nas primeiras décadas do XIII encarrilou a música medieval em direcção à estação ferroviária da Renascença. Também naqueles dias – ditos da idade das trevas – havia luz como hoje, talvez uma luz excessiva que cegava quem para ela olhava, mas estas considerações estão-me proibidas. Não porque me façam mal, mas talvez porque eu seja um homem da Idade Média, um monge copista que se perdeu nestes dias. Ah como eram suaves aqueles tempos em que sentado no scriptorium, primeiro como livreiro e depois, já velho, como amanuense, rodeado pelo pergaminho, a pedra-pomes, a tinta e as penas, copiava lentamente os vetustos tratados da antiguidade. Depois, aterrei aqui e é o que se sabe.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Solidão solar

O dia está a chegar à colina do crepúsculo, um sol sem vontade de viver demora-se ainda uns instantes numa das paredes do hospital, depois penso sobre as palavras e ocorre-me que as haverá em maior número do que coisas para dizer com elas. Isto, todavia, é uma formulação obscura e deve ser banida do texto. Não foi uma semana fácil, mas hoje é véspera de sábado, aquele dia que, de manhã, faz parecer que todas as possibilidades estão abertas. Vieram-me à memória antigas manhãs de sábado em que, depois de comprar um maço de jornais, me sentava no café a lê-los. Muitos deles já morreram, jornais e cafés, assim como esse meu hábito. Hoje cultivo uma sóbria solidão e as coisas do mundo reverberam muito menos dentro de mim. Outrora, agora não sei, nas aldeias, os velhos sentavam-se ao sol e ficavam em silêncio. Cismavam, deitavam contas à vida, enxotavam algum cão, se se aproximava. Se alguém os cumprimentava, respondiam lentamente, como se fosse penosa a viagem entre a cisma e as regras do mundo. Um dia, desapareciam do seu lugar, deixavam de cismar e morriam com a vida revolvida naquelas horas intermináveis de solidão solar. Talvez pensassem que o sábado era eterno. Talvez pensassem no que não tinham feito. Talvez pensassem em nada.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Quase

Ocorreram-me de manhã duas coisas. Haveria de escrever sobre elas. Guardei-as na memória. Que melhor sítio do que esse para se guardar seja o que for? Não contei com um possível bug no software instalado na minha mente e o resultado é este. Não faço a mínima ideia do que me ocorreu. Por certo, não se perderá nada, mas fiquei sem assunto, embora não sofra da angústia da página em branco. Na praceta, existe um centro de línguas. Antes ou depois das aulas, os adolescentes estão por ali naquela difícil tarefa de adolescer. Eles gritam, elas trocam segredos e risinhos. Depois, ouvem-se mais gritos, uma rapariga diz é mentira, grasnam as gargalhadas, e o crepúsculo desce sobre eles mais depressa do que passa o intervalo. Num vaso, três bolbos deixam escapar outros tantos jacintos, que se multiplicam em flores, de onde se evola um perfume delicado e persistente. Olho-os e digo prefiro as orquídeas. Eles encolhem os ombros e respondem é o costume. Vejo um anúncio, de um alfarrabista, ao primeiro volume da História Universal da Pulhice Humana, do inevitável Vilhena. Asseguro desde já que o autor fez parte da minha formação. Quase tenho pena de não ter idade para voltar a ler o Vilhena. Quase.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

A dama do Tivoli

Acordei ainda bem antes do despertador anunciar que a hora de sair da cama chegara. Tinha tempo e faltava-me sono. Pego no meu leitor de livros digitais e leio um pequeno conto, umas dez páginas, A dama do Tivoli, de Knut Hamsun. Como acontece sempre com as obras deste autor, fiquei preso ao texto. Acabei de o ler e ainda esperei pela hora de despertar. Há pouco, porém, quis lembrar-me do desenlace da narrativa e ele tinha-se apagado. O que teria acontecido? Fiquei perplexo e temi que ao despertar, como acontece quando sonho, a história se tivesse diluído na minha consciência. Depois, fiquei na dúvida se teria de facto acordado e lido o conto ou se tudo isso não passava de um sonho que teimava em persistir. Agora, porém, sei que não estou a sonhar. O dia resvala veloz e esbranquiçado, uma mulher de casaco amarelo transporta um saco de papel preso ao braço, atravessa a passadeira e perde-se no lado oculto da avenida. De seguida, um homem de máscara azul caminha sem pressa, olha, atónito, para a esquerda e para a direita, enquanto os carros passam furtivos. É triste a história da dama do Tivoli, como são tristes os transeuntes que passam pela avenida, como é triste a cor do céu nesta quarta-feira. Ao menos, podia chover. Seria bom para a agricultura e ajudava a encher as barragens.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Não é bom sinal

Os dias continuam a minguar. Eu empequeneço com eles, mas quando eles, em súbita reviravolta, deixarem de diminuir, eu não deixarei de me tornar mais pequeno. A natureza, com os seus ciclos, é uma armadilha. Dá aos homens uma ilusão de eternidade para os distrair da sua finitude, desse contínuo encurtar da linha da vida. Quando, hoje, atravessei a cidade pela primeira vez, pensei que o Verão de S. Martinho se atrasara. Não é bom sinal a pontualidade falível dos santos. Algum assunto momentoso os reterá para que não cumpram a tempo e horas os seus compromissos. Nas ruas, pessoas mascaradas deslocam-se devagar, como se lhes faltasse a energia e tivessem entrado num ritmo de câmara lenta. A gravidade resplandece agora naquela parte do rosto que ainda é visível. Há notícias de surtos, alteram-se as contabilidades, há quem diga não tarda e está tudo confinado como em Março. Outros vão em silêncio ou passeiam cães à trela. Eu olho para tudo isto e penso que é terça-feira, e este foi o pensamento mais profundo que me ocorreu durante todo o dia.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Morte e ressurreição

As acácias, só de olhar para elas, eram-me ainda há dias motivo de prazer. São agora causa de decepção. Estão a outonar mal, como aquelas pessoas que, com o aproximar do fim, deixam cair o manto da dignidade com que se cobriam. Quando vier, com a sua melíflua rudeza, o Inverno destas paragens, elas, as acácias minhas vizinhas, serão apenas troncos e ramos, súplicas dirigidas aos céus, esqueletos petrificados para sobreviver ao frio. Depois, chegando o tempo ressuscitarão. Talvez tudo acabe por ressuscitar, quando chegar o tempo. Deveria evitar este tom oracular. A profecia não me coube como dom. O dia já esmoreceu, a luz abandonou a tonalidade quente com que há pouco cintilava e arrefeceu. Vai arrastar a palidez até que a noite a cubra de escuridão. Abro um livro e deparo com uma interrogação: Où allez-vous? Ora essa, aonde haveria eu de ir. A lado nenhum. Um grito lancinante corta o entardecer. Fico à escuta, mas apenas oiço o nevoeiro dos carros que passam ao longe.

domingo, 15 de novembro de 2020

O valor da paciência

Está um domingo melancólico, polvilhado de cinza, coberto por um grande véu de tule encardido. Os pombos que andavam arredios voltaram para os prédios envolventes. Não tarda, suspeito, chegarão os anjos com as suas enormes asas, cantando em coro numa língua desconhecida pelos homens. Nada do que escrevi representa uma descrição da realidade, mas como acontece sempre, um devaneio do meu espírito, caso eu tenha um. Toda a realidade, a minha, existe apenas na minha mente de narrador. Há pouco recebi uma chamada do padre Lodo. Disse-me que o confinamento o entristece, que precisa de sair à tarde e fazer o seu jantar de sábado com os amigos, o que não foi possível ontem. Quantos anos ainda terei pela frente, perguntou-me como se fizesse uma afirmação. Lembrei-lhe que a paciência é uma virtude de alta cotação que a Companhia dele deve ensinar. Deu uma gargalhada e respondeu-me que até o Lenine achava o mesmo e não consta que estivesse preocupado com o céu ou que fosse jesuíta. E os Settembrini sempre tiveram uma posição ambígua perante a paciência, acrescentou. Desligou, informando-me que tinha de ir dizer missa, mas que andava com pouca paciência para o vírus. Também eu estou com pouca paciência, não para o vírus, mas para mim. Tenho de ler não sei quantas coisas que não contribuirão nem para o meu agrado nem para a salvação de quem as escreveu. O almoço será tardio. Há uns maduros que não param de insistir que possivelmente não passamos de cérebros conservados numa cuba a ser estimulados por computador, que não há como contrariar isto. Ora, se assim fosse, eu que sou destituído de cérebro, não existiria. Portanto, o melhor é encontrarem outra narrativa que resista ao meu contra-exemplo. Ou será que este texto encerra uma contradição insanável?

sábado, 14 de novembro de 2020

Não tenho ideias, tenho desarranjos fisiológicos

Um acaso levou-me a ver um vídeo sobre a área em que cumpro a corveia que me permite enfrentar a gélida necessidade. Ao fim de trinta segundos, tinha reconfirmado que aterrei num país estrangeiro, com uma língua fruste e onde as pessoas capricham em vestir-se mal, como se isso fosse garantia para a qualidade do que fazem. Por princípio, não atento no que vestem, mas, por vezes, a exuberância do mau gosto é de tal ordem que sou obrigado a ver aquilo que evito ver. Sempre se dirá que não há correlação – utilizar esta noção estatística dá logo um ar científico à arenga – entre o que se é e a forma como nos apresentamos, que os grandes génios não atentam a essas coisas. Claro, mas não há coisa pior do que querer ter a aparência de um grande génio não porque se o seja, mas porque se imita o desleixo com que eles apedrejam os outros com a sua figura. Além do mais, o exterior nunca deixa de ser uma emanação do interior. Deveria ter apagado estas considerações, nas quais me deixei cair, talvez motivado pelo processo com que o corpo digere o almoço de sábado. Muitas das nossas ideias. Refaço, muitas das minhas ideias, se é que lhes posso chamar ideias, nascem de processos fisiológicos. Uma digestão mal feita, uma vibração indevida na batida cardíaca, um atraso na ida à casa de banho, um ataque de sono, um desvario de qualquer hormona que decida, sem me consultar, afastar-se do que é esperado e outras coisas do género de que omito, por pudor, a nomeação. Para ser honesto, eu não tenho ideias, nem pensamentos, nem argumentos, tenho apenas reacções a desarranjos no corpo. O que me aborrece, porém, é a acácia que tinha até ontem um belo fato de folhas amarelas, de um amarelo levemente torrado, a lembrar tâmaras ainda não completamente maduras, mas que impelida por algum desarranjo hormonal, se começou a despir, deixando ver uns membros raquíticos. A beleza é um exercício difícil.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O aspirador de tempo

Há uns tempos a esta parte que sinto uma distorção na realidade. Chego a sexta-feira após o almoço e aquilo que se apresente à consciência não é o fim-de-semana prestes a começar, mas uma sensação de que ele está quase a acabar. Isto não vem acompanhado por qualquer angústia, apenas pelo sentimento de que alguma anomalia existe ou na percepção do tempo ou no próprio tempo. A minha imaginação, coisa pouco confiável visto ser dada a delírios frequentes, diz que há, em qualquer parte, um buraco por onde o tempo está a ser sugado com voracidade. Dentro desse bocarra haverá um aspirador de grande potência que sorve as partículas do tempo a uma velocidade inabitual. No entanto, o melhor é o leitor não dar crédito a qualquer palavra que este narrador diga sobre este assunto. Delírios e hipérboles são a sua especialidade. A sexta-feira continua com vinte e quatro horas, cada hora com sessenta minutos e cada minuto com sessenta segundos. Esta é a realidade, mas o problema é que toda a realidade, nos dias que correm, parece sofrer de uma qualquer deformação, de um qualquer aleijão.  Por exemplo, o meu telemóvel continua a enviar-me sinais. De súbito, tive uma iluminação. É por ele que o tempo está a ser sugado. As partículas temporais entram nele e são enviadas, de imediato, para o grande buraco. Um telemóvel não é um telemóvel, mas um terminal do grande aspirador de tempo. Agora vou tomar a medicação.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O peso das coisas subtis

Há matérias tão subtis que esmagam quem com elas tem de contactar por obrigação ou dever irremissível. Não se trata desse peso que resulta da acção da gravidade sobre os corpos, mas de um outro que advém de certas coisas se furtarem aos efeitos gravíticos e se abaterem sobre espíritos preparados para a trivialidade e não para subtilezas metafísicas. Isto disse-me há pouco o meu amigo Rogélio. E continuou a diatribe, embora eu já soubesse aonde ela ia dar. Numa época onde se propagandeia que tudo é para todos, o que acontece é esmagar essas pobres almas – transcrevo as palavras dele – com subtilezas para as quais não têm vocação nem o mundo lhas exige. Isto faz dos nossos tempos uma era de infelicidade, pois a única infelicidade que existe é arcar com o peso de coisas que não foram feitas para nós. Enquanto falava, ia fumando a sua inevitável cigarrilha. Como costuma acontecer, ri-me e disse-lhe que a teoria dele tinha um aspecto que que me agradava de sobremaneira. Desligava a infelicidade do sentimento e dos afectos, e isso é uma enorme vantagem num mundo onde não há cão nem gato que não fale de afectos. Foi com esta conversa que me distraí e não vi chegar a noite. Agora está tudo escuro, na rua as pessoas parecem almas penadas, e as luzes dos estabelecimentos e da iluminação pública semeiam irrealidade sobre a minha irrealidade, sobre mim, um dos pobres que se sentem esmagados pelo peso metafísico das coisas subtis. Hoje não deveria ter escrito uma linha.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A sensatez do santo

O tempo é um animal implacável. Foi o que pensei ao ver a fotografia de uma pianista que em tempos exerceu um enorme fascínio sobre mim. O passar dos anos não teve piedade para com ela, como por vezes acontece a certas mulheres. Ou talvez a fotografia a tenha apanhado num dia infeliz. Ou, a melhor das hipóteses, estou a ver mal e confundo-me com facilidade. Para a vingar, oiço-a numa sonata para piano de Brahms, e esqueço-me do tempo, do arado que sulca a pele dos mortais, para que eles se cansem de si e da vida. Hoje é dia de S. Martinho. Antes de a pandemia nos ter trazido ao sítio onde estamos, havia por aqui perto grande feira e não pequenas romarias. Tudo em honra do Santo, mesmo as enormes bebedeiras, a estúrdia campestre e as bravatas de senhoritos que são já uma encenação museológica, embora ainda não o saibam. Confesso que gosto desses equívocos trazidos pelo passar do tempo, em que as pessoas ficam presas ao que eram e julgam-se assim merecedoras de uma distinção que ninguém reconhece ou dá por ela. Soubessem elas a verdade e talvez se rissem de si próprias. E o que é a verdade? A verdade é que não passamos de nada, vamos a cominho de lugar nenhum, onde florescem ininterruptamente ninguéns. A poeira ou as cinzas são a nossa verdade, embora o santo não descure as castanhas e a água-pé. É sensato, apesar de santo.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Experiências arcaicas

Cheguei a casa já a noite caíra. Não foi, porém, um grande trambolhão. Escorregou e, tentando equilibrar-se, segurando-se aqui e ali, estatelou-se sem se magoar, sem fazer barulho. Com ela veio a cerração e o mundo tornou-se mais secreto. Outrora, a noite era um grande mistério, uma prova iniciática. Hoje, não passa de um conjunto de pequenos enigmas que não tocam o coração nem o espírito de ninguém, a não ser por convenção. Se está muito escuro, liga-se a luz eléctrica, e os arcanos são engolidos pelos sucedâneos do dia. Num livro de poemas, leio a palavra umbral. Fico a recitá-la devagar, como o fazia quando era criança. Pegava numa palavra e repetia-a vezes sem conta, até o seu sentido se dissolver na consciência. Era um rito encantatório ou talvez tivesse já nessa época um instinto homicida relativamente às palavras. Estava a dizer que gostava muito do som umbral. Também gosto de limiar e, ainda, de fímbria. Que experiências arcaicas nos fazem gostar daquilo que gostamos? Poucas coisas sabemos, e as que sabemos o melhor seria não as saber. Aos ombros, transportamos a ignorância. Enquanto ela cresce e o seu peso se avoluma, o corpo começa a penetrar na terra e acaba por desaparecer. Devia poupar os eventuais leitores a estas derivas retiradas das memórias grotescas de um candidato à loucura perdido à porta do manicómio. O gosto pela hipérbole continua bem vivo.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A beleza, de novo

Os campos de jogos da escola ao lado estão cheios de vida. Ao sol, camisolas de múltiplas cores cintilam e, como anjos travessos, as bolas sobem e descem, partem de mãos exaustas para serem recebidas por outras, ávidas, desejosas de tocar no anjo, para logo se cansarem e o arremessarem aos ares. Então ele sobe em turbilhão, quase que se suspende naquele ponto onde as forças da gravidade e do arremesso se equilibram, para logo cair. Um raio de sol fúlgido perfura a tarde e os olhos vislumbram por instantes essa beleza infinita, que, de tão bela, seria para nós, seres decaídos, mortal. Não há coisa mais perigosa do que a beleza, não pela perversão que possa conter, mas pelo bem que a habita. Quem suportaria tal bondade sem que o coração sucumbisse? Olho para o que escrevi e penso que as segundas-feiras não me fazem bem. As acácias amarelecem e no friso das orquídeas há uma, nova em casa, exuberante na floração malva. As outras entregam-se a uma plácida hibernação, onde as folhas verdes descansam dos dias em que tinham de carregar sobre os seus ombros a beleza com que incendiavam os olhares dos circunstantes. Os campos já estão vazios, o sol declina e eu oiço o Stabat Mater, de Pergolesi. Stabat mater dolorosa… E talvez seja esta a beleza possível. Ou não.

domingo, 8 de novembro de 2020

O belo e o bom

A primeira semana de Novembro já entrou no mausoléu do passado. Embalsamada, espera que a esqueçam. Vai demorar o seu tempo, mas chegará o dia em que dela só restarão pequenos vestígios. Aquilo que nos acontece, seja o que nos alegra ou o que nos dói, possui uma intensidade espúria. Fora do nosso sentimento, praticamente ninguém nota. Está um domingo volúvel. Ora chove, ora faz sol. Temo pelo Verão de S. Martinho. Não é que seja dado a feiras e romarias, mas esse Verão parece-me benévolo e abençoado, ao contrário do outro. As notícias do mundo cansam-me, as da humanidade ainda mais. Quanto às notícias de mim próprio, a essas censuro-as. Já basta o que basta. Uma aplicação acaba de me informar que esta semana não só atingi os pontos cardio recomendados, como ultrapassei bem essa marca. Nem sei como agradecer a todas estas coisas que tanto se interessam por mim, que me controlam a saúde e o que mais lhes aprouver. Há instantes os telhados húmidos resplandeciam sob a luz solar, agora, porém, as nuvens cobriram o sol e tudo se tornou mais baço. Do bar da esquina saiu o Esteves, aquele da tabacaria. Também ele está baço. Deve ser do tabaco. As palavras são seres pouco confiáveis. Escrevi tabacaria e tabaco, logo me apeteceu acender um cigarro, sorver o fumo lentamente, intoxicar-me com aquelas substâncias que não conduzindo ao inferno, hão-de levar ao hospital. Como é belo uma pessoa sentar-se numa varanda, olhar o horizonte, beber um copo de vinho e fumar um cigarro. E com isto desminto aqueles que dizem que o bom e o belo são a mesma coisa. O Esteves continua a fumar no passeio. Por ele passa alguém que não o cumprimenta. Depois, passa outra pessoa e eu ainda oiço um olá Esteves, como vai isso? Talvez eu ande a ouvir o que não devia. Será que terei por aí algum cigarro perdido?

sábado, 7 de novembro de 2020

Uma época desprezível

Vivemos numa época desprezível, a época em que o cliente tem sempre razão. Não acordei mal-humorado, pelo contrário. Estou a reler um romance, Le Tentateur (Der Versucher), de Hermann Broch. É uma obra densa, não traduzida para português. Na edição francesa, tem mais de 550 páginas, numa letra minúscula. Quando o li há anos, a letra era bem maior. Fiz uma pesquisa para tentar encontrar uma edição mais nobre, isto é, com mais páginas e caracteres mais adequados aos meus olhos. Não há, mas descobri o comentário de um leitor, melhor de um cliente. Afinal a obra-prima inacabada de Broch é uma porcaria. Tem demasiadas descrições e meditações filosóficas que nunca mais acabam, o que estraga a história. O cliente, aquele que tem sempre razão, decreta que o génio literário Hermann Broch não sabe escrever, comete erros na narrativa. Este mundo, em que a clientela tomou conta de tudo, não passa de uma mercearia de aldeia, pouco asseada e de honestidade duvidosa. Para estes clientes, o escritor é um merceeiro que vende intrigas para distrair a clientela e amealhar uns cobres para a reforma. Omito a palavra que disse agora. Olho para a rua, esqueço o Broch e o cliente e lembro-me da minha videochamada de ontem. O meu neto, pela primeira vez, disse olá avô, e isso trouxe-me uma grande alegria. Rememoro o acontecimento, enquanto escrevo e olho a avenida. Uma mulher de máscara abre o saco e procura, em desespero, pela chave do carro. Lá a encontra, depois de o revolver, com gestos de enfado e complacência, durante minutos. Um homem ergue um braço e na mão, como uma bandeirola, ondula uma máscara batida pelo vento. De seguida, passam, sem o atavio protector, uma mãe e uma filha. Vão como se não tivessem pressa. Uma das acácias da praceta já amareleceu quase por completo e eu olho-a reverente e fascinado pela cor, enquanto dentro de mim ainda oiço olá avô e penso no livro de Broch, com aquelas letras que não foram feitas para mim. Amanhã será domingo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

As pequenas coincidências

Nunca deixo de admirar certas perfeições que existem no calendário, como acontece hoje, em que o sexto dia do mês corresponde à sexta-feira. Pequenas e infrutíferas coincidências alegram-me e fazem-me pensar que nem tudo no mundo estará assim tão mal. Se as coincidências ainda funcionam, não se perca a esperança. Chegado aqui, o pensamento turva-se-me, pois não sei qual haverá de ser o objecto dessa esperança. A tarde desce ronronante a calçada, apesar da chuva fria e da noite próxima que traz a escuridão sobre a terra. Da janela do meu escritório olho os campos ao longe. Estão verdes, mas na verdade não é essa a cor que vejo, mas um cinzento violáceo cada vez mais escuro, como se espalhasse, pela terra, uma imensa nódoa negra. Não param as mensagens no meu telemóvel. Trazem notícias sobre um mundo delirante, tecido de pequenos nadas que têm por finalidade empequenecer a realidade. Na Sá Carneiro, os carros passam com os seus fogaréus incendiados, enquanto nos passeios húmidos, as pessoas foram substituídas pela tristeza, que caminha invisível e, a cada passo, se expande para dentro dos olhos de quem observa. Nos bares, há luzes amarelas e mortiças, e, entre o folhedo de uma tília, diviso o círculo verde que me anuncia a farmácia. Estou aqui, penso, e não sei nada acerca do que vejo, nem do que está para lá da minha visão, como se tudo se me tivesse tornado incompreensível e insignificante.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma tarde cheia

Bebo lentamente o café. Não uso açúcar, o gosto é intenso e o amargor que a torrefacção lhe dá explode na boca, em instantes de prazer mais longos do que seria de esperar. É possível que esta inclinação do paladar para os sabores difíceis, para aquilo que é amargo, reflicta qualquer coisa do meu carácter que prefiro desconhecer. Deste modo meditativo, entro na tarde. Anuncia-se longa, cheia de videoconferências, esses exercícios de piedade que não convertem ninguém, mas que são essenciais numa realidade que perdeu qualquer sentido do que é razoável. Durante anos vi crescer à minha volta a irracionalidade e o niilismo, como se houvesse em algum sítio cujo nome me recuso a nomear uma fábrica de fomento de entropia nas instituições. As pessoas, essas ou sofrem os efeitos sem perceber o que se está a passar, ou são agentes, quase sempre ingénuos, do processo tenebroso que estende a teia por tudo o que é lugar. Não devia escrever coisas destas depois de almoço. Podem afectar a digestão, ainda por cima estou a ganhar o terrível hábito de falar por cifras. Ontem, estava-me a esquecer, ouvi o conjunto musical da escola aqui ao lado. Imagino uns professores cuja idade se deverá omitir a tocar um arremesso de rock sinfónico. Fico feliz, não pelo interlúdio musical que me oferecem – dispenso-o de bom grado – mas por aqueles músicos. Depois, penso que talvez nem fossem eles, mas apenas uma aparelhagem a reproduzir qualquer coisa gravada numa outra época. É possível. Vivemos num tempo de simulacros. Mansamente, vou deixar a tarde deslizar sobre mim com as suas videoconferências, as suas injunções à salvação das almas que se querem perder e odeiam salvadores, os seus sacerdotes perdidos num labirinto, sem que um fio de Ariane tenham para poderem voltar à luz do dia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Uma parábola

Sento-me e distribuo o pão pelos pobres. Cada um traz três pratos. Não pense o leitor que encho cada um dos que se apresentam à minha frente. Aquilo que cada pedinte leva cabe num único prato e as mais das vezes sobra. A caridade, porém, deve ser inovadora e abrir o leque das distribuições, pois vendo assim tanta louça à frente, o esfomeado, apesar de comer o mesmo, pensa que come mais, não tardando a comer menos, convencido de que quanto mais pratos lhe derem, maior a ração. Também o doador caridoso fica com a alma mais cheia. Chega a casa e diz à mulher, olha hoje dei três pratos de pão a cada pedinte que me cabe cuidar. Estou muito contente, a minha consciência transborda e o meu coração exulta. Ela, a mulher, pergunta-lhe, então, se endoideceu. Ele não sabe o que lhe responder. Desde quando é que te dedicas à caridade? Ele olha-a de viés e vai ver televisão. Distribuir o pão de um prato por três, multiplicado por dezenas de candidatos é um trabalho árduo e está exausto, mas orgulhoso com a sabedoria dos chefes da caridade. Os pedintes iam agora poder reflectir sobre que pão tinham mais dificuldade em comer. Bastava-lhes apontar um dos pratos e logo uma bateria de análises lhes diria a estratégia que deveriam seguir para o deglutir. Toda a gente andava feliz. Também eu estava muito feliz, mas quando acordei deste sonho pensei por que razão haveria de sonhar coisas tão idiotas. Talvez esteja na tua natureza, disse-me o homúnculo que habita na caverna da minha consciência. Pela primeira vez, estou de acordo com ele.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

O cruzeiro da noite

Cheguei aqui, ao lugar onde escrevo, já a tarde tinha sido engolida pela boca voraz do tempo. Olho pela janela do escritório, o hospital ao fundo, com as suas luzes vermelhas, amarelas e esbranquiçadas, é um cruzeiro tomado pela tristeza da doença a sulcar as águas negras do oceano da noite. As acácias da praceta, batidas pelo vento, ondulam as folhas exíguas banhadas pela tinta da escuridão. Lá em baixo, adolescentes ensaiam breves urros, num exercício de uma memória secreta que prende a humanidade a essas eras em que os homens ainda não o eram, e não havia hospitais, nem cruzeiros, nem luzes, nem quem se sentasse num escritório e escrevesse apenas porque não tem nada para dizer, apenas para ocupar parte desse tempo que medeia entre duas noites eternas, apenas porque não sabe o que fazer com a vida ou com a azáfama dos dias. Invejo os que têm uma mensagem, uma causa para viver e para morrer, um horizonte cheio de objectivos a alcançar, troféus para disputar. Como são beatos, na sua face sorridente. Sou como aquelas garrafas que alguém, não sem alarido, despeja agora no vidrão. Também eu fui despejado no mundo, uma garrafa entre garrafas que, depois de bebida, será atirada para o caixotão que a guardará até que volte ao pó de onde veio. Um carro pára, liga os quatro piscas e o amarelo que se apaga e acende vai alfinetando o veludo da noite. Num outro carro, alguém usa a buzina, e para todos estes acontecimentos não descubro linha que os cirza e com eles possa fazer uma coberta para o frio que há-de vir.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Crepúsculo e romantismo

Escrever ao crepúsculo deveria dar uma tonalidade romântica ao discurso, pensei, enquanto olhava para o céu cinzento do anoitecer. Quando penso nos grandes românticos, é sempre em paisagens crepusculares que os vejo chegar. Depois, o meu pensamento deu um salto, e vi-me internado num hospício. Tinha enlouquecido e, para defesa da sociedade, fora compulsivamente internado. Uma nova acrobacia e esqueço-me dos românticos e da minha loucura, e os meus olhos fixam-se na mulher que passa na praceta. Perscruto-lhe o rosto sob a máscara azul. Os olhos são promissores, belos e profundos, há neles sombras douradas sobre florescências de verde. Poderia apaixonar-me por aqueles olhos. Oiço-me dizer: quais olhos? Os daquela mulher, respondo. Não sejas idiota, ninguém, onde estás, consegue ver os olhos de quem passa lá em baixo. Comecei a pensar que talvez já estivesse internado no manicómio. Tenho delírios e visões, falo comigo mesmo. À minha frente, uma reprodução de um quadro de Caspar David Friedrich, pintado nos anos trinta do século XIX. Um homem caminha, perto da floresta, de cabeça curvada ao crepúsculo. Vai pensativo. Aquela figura não me é estranha e, de súbito, sinto uma grande vontade de falar com ele. Entro pelo quadro e persigo-o. Chamo-o, mas ele finge não me ouvir. Aproximo-me e torno a chamá-lo, ele volta-se para mim e descubro que aquele homem sou eu perdido num anoitecer de um século acabado há muito.

domingo, 1 de novembro de 2020

Todos-os-Santos

Já passavam das quatro da tarde quando me apercebi de que estávamos no mês de Novembro, no dia de Todos-os-Santos. Sempre achei espantosa esta solução para a difícil questão da celebração de cada um dos santos, tantos devem ser que não há calendário litúrgico que tenha dias disponíveis para acolher tal profusão de santidade. Não fora a minha vontade ser fraca, também eu haveria de trabalhar para fazer parte dessa legião que hoje se celebra. Seria um santo anónimo, que ninguém conheceria, mas se alguém visse uma estátua minha numa Igreja, haveria de ler na dedicatória: ao santo desconhecido. Mais tarde, começariam a dizer que era um santo anónimo. Passados mais alguns séculos, haveria o culto do Santo Anónimo. Seria eu, sem que ninguém o soubesse. Eu, da humildade da minha santidade, distribuiria as graças que me fossem dadas e também broas, daquelas de que muito gosto, e se fosse o caso e mo pedissem, um belo copo de tinto. A vontade, porém, é fraca. Não tenho inclinação para o jejum e outras práticas que conduzem directamente à glória dos altares, mas que tenho pena, lá isso tenho.

sábado, 31 de outubro de 2020

Despedida de Outubro

Outubro despede-se em glória, deixando atrás de si um halo de luz e um rasto daquele calor que torna a vida aprazível. Quando a tarde se aproxima do crepúsculo lembro-me dos momentos em que um grupo de velhos amigos se reunia à volta da mesa e deixava que o pão e o vinho abrissem o caminho a longos discursos, em que cada um corrigia a maldade do mundo e a perversidade dos corações, ou então falava da beleza ou da ocultação do sagrado. Ninguém, entre os convivas, cria nas suas próprias palavras, mas o momento era-lhes propício, e todos tinham jurado que, sendo adequada a altura, não haveriam de lhe faltar com a eloquência que fosse a sua. Bebíamos e falávamos, tudo nos parecia naqueles dias possível, embora soubéssemos que nos estávamos a mentir. Mentíamos para ocupar o tempo, pois a verdade é tão crua e tão seca que logo mata o discurso. Agora os meses limitam-se a passar. Por vezes, telefonamo-nos, perguntamos pelos filhos e pelos netos, se já os há. Há dias recebi uma chamada. Se queria ir jantar. Estaria presente a, e aqui omito o nome. Vão gostar de se ver. Eu não vejo aquela cujo nome não digo há mais de trinta anos e recuso o convite. Não suportaria destruir a beleza dela que ainda subsiste na minha memória pela frivolidade de um encontro. Há que saber hierarquizar as coisas, disse.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pensamentos

Ocupo o tempo não sei se em jogos florais se em guerras do Alecrim e da Manjerona. Como um pedinte que não pode abandonar a esquina onde recebe no chapéu roto as moedas com que transeuntes indiferentes aliviam a consciência, também eu, movido pela estrita necessidade, vivo num universo de mais pura irrelevância, concebido por um génio maligno, que tem ao seu serviço legiões de espíritos impuros. Caso exista um céu e que aos homens seja dado conquistá-lo, muito difícil me parece a tarefa, tendo de viver em lugar onde aquele que não se nomeia ordena, meticuloso, o caos. Este pensamento sombrio chegou-me depois de outro mais luminoso. Olhei para o Sol, para a luz, para o revérbero das paredes e disse-me que talvez este ano haja Verão de S. Martinho. Contrariamente ao Verão propriamente dito, o do santo alegra-me. Num leilão de livros online, vejo um livro de um jesuíta que foi meu professor. Uma das grandes figuras da cultura portuguesa do século passado. O seu livro, porém, vale à partida 1 euro, embora o mais provável é que não valha nada. É o mercado a funcionar. Também eu me leiloaria, não fora a inutilidade do gesto. Assim, em vez de me sujeitar a licitações fui comer uma broa dos santos, coisa que aqui tem maior culto e arrasta mais devoção do que os próprios santos do altar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A felicidade da falência

O dia acrepuscula-se não tarda. Ainda o sol está no horizonte e a luz já é frouxa, arrastando tonalidades de sombra e recordações da noite que há-de chegar. Atravessei a cidade várias vezes. Fui e vim, fingindo ter um destino. Não tenho destino, tenho necessidades, e são elas que me fazem ir e vir. Não as tivesse e seria inerte como uma estátua, imóvel como uma rocha que lançou as raízes no fundo da terra. E nessa pura imobilidade estaria toda a minha perfeição. Perfeito é o que não se move, que não muda. Seja como for, não é o meu caso, que a necessidade torna volúvel. Também os pássaros meus vizinhos são dados à imperfeição. Voam em círculos, ora largos, ora apertados, desenham figuras de ócio com as asas, planam como surfistas que cavalgam as ondas. E cantam. Tento decifrar-lhes a linguagem, mas no momento em que parece que lhe descubro um sentido, um novo gorjeio lança-me na incerteza, deixa-me perplexo, até que reconheço que falhei mais uma vez. Todos os dias elejo uma actividade em que seja impossível ter sucesso, aplico-me a ela com denodo e vigor, até que chega o momento da derrota e eu sinto toda a felicidade que há na falência do próprio desvario. Então leio Und dieser Zustand verging nicht. Não percebo, mas na outra página está a tradução, a mais adequada das traduções a esse estado que me acompanha em cada falência que construo com o ânimo de um conquistador.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Paixões vulgares

De manhã fui de tratar de assuntos do carro. Tudo agora obedece a uma organização que se pretende eficaz e protectora. Valha a verdade que os funcionários não são muito eficientes no cumprimento de regras de protecção, como se lhes faltasse a fé no credo sanitário que nos guia. Assunto tratado, rumei para a minha secretária onde me esperam mil insignificâncias e outras tantas minudências, com as quais atendo aos ditames da necessidade. Faço-o, ao atendimento, não só na secretária, mas também na entrega à pura representação de um papel para o qual me falta o talento e, com a passagem dos dias, o ânimo para não deixar morrer de fome a ficção com que entretive a existência. Com a pandemia e o uso da máscara, quase me sinto um velho actor grego. Ia mentir, mais uma vez, ao leitor. Estava pronto para escrever que não sabia se represento comédias ou tragédias. Eu sei. Tendo em conta quem sou, a tragédia, reservada aos caracteres nobres, está-me interdita. Apenas posso representar comédias, só me cabem as paixões dos homens vulgares. Dou por mim a escrever com o dedo no vidro que cobre o tampo da secretária. Depois recordo-me que Cristo, na perícope da adúltera, escrevia com o dedo no chão. O que terá escrito no pó apenas Ele saberá. O que escrevi no vidro, nem eu sei. Preciso de tomar café e isso tem o mérito de evitar prolongar indefinidamente esta conversa inútil.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os dias decrescem

Como um fósforo que mal se acende e logo o vento apaga, o dia amanheceu iluminado por um fogo descido do céu. Olhei-o surpreso, ainda mal refeito daquele momento de estupor que cai sobre mim ao acordar, mas de imediato as nuvens em tropel tomaram conta do firmamento, cobrindo a terra com uma mantilha de cinza. Outubro, esse mês de amenidades e prenúncios, caminha para o fim, enquanto os dias se estreitam e as noites erguem asas cada vez maiores. Vejo vultos na rua, gente com afazeres, alunos esquecidos das aulas, homens em trânsito entre negócios, mulheres que trazem na cara a faca da decepção, gente a quem a idade quebrou o vigor. Um cão corre à desfilada, no passeio do lado de lá. As torres do castelo, as duas que ainda avisto, contemplam com desdém a cidade. Hoje evitei as notícias logo pela manhã. Talvez tivesse deixado de crer que a leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno. A frase de Hegel fascinou-me em tempos, mas o deus que ali se cultua, descobri-o, é perverso, vingativo, e o seu odor não é o do incenso, mas o do enxofre. Olho a avenida, os carros passam, uns adolescentes trocam palavras agudas, enquanto eu penso que a cidade onde vivo é uma aldeia que bem merecia ser elevada a vila. Tem um castelo e um rio, um jardim público, uma praça grande que serve de brasão. O que mais precisará?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Uma Antígona melancólica

Olhei para um livro do Régio que tinha na secretária e ri-me do título, As Raízes do Futuro. Quando se chega a certa altura da vida, aquilo que era um mero pressentimento torna-se uma realidade iminente. Pouco interesse para o caso o tamanho da iminência. O pior nem é isso, mas a pergunta sobre o que se fez nesses dias em que havia um futuro, ou talvez nem seja nada disso e a única coisa a fazer seja celebrar o dia, beber o cálice até ao fim. Isto contou-me a Lu, quando me encontrou e convidou para tomar café com ela. Perguntei-lhe pela irmã, disse-me que fora apenas um susto, que tudo lhe ia bem e logo encerrou o assunto. Estava inclinada para a confidência e para a melancolia, coisa muito rara nela. Talvez as Antígonas devam morrer jovens, pensei, enquanto ela discorria sobre a existência, num exercício que parecia reunir a contabilidade e a confissão. Ouvi-a em silêncio, na minha mente perpassavam imagens dela quando nova. O tempo é sempre devastador, ouvi-a dizer. Respondi que ela não se podia queixar. Deixa-te disso, já não temos idade para galanteios desses. Depois, calou-se, olhou-me e exclamou: agradeço-te. Apesar de tudo faz-me bem. Rimo-nos e eu acrescentei temos de fingir. Sim é o que nos resta, disse. Saímos do café e separámo-nos. Ela foi à vida dela e eu comprar uma solução hidroalcoólica para desinfectar o que tiver a desinfectar.

domingo, 25 de outubro de 2020

Luz imóvel

A luz que ilumina a avenida, curvada à cinza que se desprende do exército de nuvens, dá uma estranha ilusão de imobilidade, como se o tempo tivesse suspendido a voracidade com que devora os seus filhos e se recusasse a passar. Imagino que o sentimento da passagem do tempo se deve todo ele às metamorfoses da luz, como se estas fossem sinalizadores de que não é na eternidade que vivemos, mas que tudo tem um princípio e um fim. Uma mulher vestida de preto, atravessa a passadeira. Outra arrasta atrás de si, pelo passeio molhado, um cão. Vestem-se de invernia. Lençóis de folhas mortas estendem-se junto aos passeios, enquanto os carros passam endomingados, uns à procura de um lugar para descansar, outros a dirigirem-se para outro lado, como se os seus condutores tivessem um destino, uma Penélope à sua espera, uma guerra para combater. Talvez estejam apenas atrasados para a Missa do meio-dia, aonde vão de consciência contrita e certos da indulgência que hão-de receber as iniquidades que, durante a semana, não se esqueceram de realizar. Um raio de luz mais intenso atravessou a atmosfera e fendeu a realidade, o tempo recomeçou a sua caminhada e o pequeno encanto de há minutos estilhaçou-se.

sábado, 24 de outubro de 2020

Triste tristeza

Suspendo a música e o sábado abre-se num vale de triste tristeza. Não tens vergonha de um truque tão fácil? Olho para o homúnculo que proferiu estas palavras e hesito entre ordenar que se vá deitar na caverna da minha consciência ou começar uma discussão com ele. Acabo por lhe responder e pergunto-lhe se ele queria que eu dissesse alegre tristeza. Depois, antes que abrisse a boca, fiz-lhe um gesto imperativo e ele desapareceu. Nem sempre as coisas são assim tão fáceis. Daqui a pouco irei a casa da minha mãe. Terei máscara, ela também. Impedirei que se aproxime de mim, pois não se sabe se sou um filho radioactivo e ela já não tem idade para estar perto da radioactividade. A seguir sairei e caminharei ao deus-dará, que é aquilo que tenho feito a vida toda, mesmo que eu o disfarce, mesmo que eu finja, nunca o meu caminho foi outro do que ir e vir à toa, sem destino nem propósito. Deixa-te de ficções. Voltaste, perguntei ao homúnculo. Voltei. Revolvem-me o estômago as tuas tiradas patéticas. Um pouco de pathos no discurso fica bem, retruco. Olhei para a cinza que envolve a rua e fiquei a meditar na fealdade do verbo retorquir. Os gramáticos, talvez por ociosidade, classificam os verbos em regulares e irregulares. Uma classificação miserável para esconder o moralismo que há neles. O que terão, os gramáticos, contra os modos de vida irregulares? Se fosse gramático, classificaria os verbos entre belos, horrendos e os que nem se dá por eles. Esta é a verdade crua. Muitos verbos passam por nós e nem damos por eles, falta-lhes a beleza que nos prende ou a fealdade que nos afasta, quando afasta. A campainha tocou. As minhas netas acabam de chegar. Correm para mim e o homúnculo assustado foi dormir.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Desactualizado e obsoleto

O Office informa-me que tem disponíveis actualizações, mas há que fechar algumas aplicações. É um mundo quase perfeito. Sê-lo-ia se também eu me pudesse ligar à rede, encerrar algumas aplicações, enquanto instalava actualizações que haveriam de fazer de mim o mais actual dos seres ao cimo deste pobre planeta. Digo-o com a máxima seriedade. Olho-me no espelho e, mesmo com máscara, não consigo esconder quanto as minhas aplicações estão desactualizadas. Isto quanto ao software. Quanto ao hardware a única palavra decente para me descrever é obsoleto. Sobre o meu estado de obsolescência há diversas teorias. Uma defende que me fui tornando obsoleto com o passar dos anos. É uma teoria sensata, mas benévola. Outra, menos benévola e menos sensata, estará mais próxima da verdade. Já nasci obsoleto. Nasci pronto para ser descontinuado. Há pessoas que nascem voltadas para o futuro. Eu nasci voltado para o passado. Não é que o passado seja um lugar mais aprazível que o futuro, mas é o horizonte que me coube. Esta conversa não tem pés nem cabeça, isso, todavia, é um efeito colateral de ser sexta-feira. Tenho de ir à rua. Não vou aglomerar-me, será que preciso de pôr máscara? Espirro. Uma, duas, três vezes. Uma dúvida abre-se no meu espírito. Estes espirros são sinais de desactualização do software ou da obsolescência do hardware? Cala-te, digo-me. Obedeço.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sacrifício ritual

Cheguei a casa exausto. Sentei-me em frente à televisão e liguei-a num canal desportivo. Homens trepam por uma montanha cavalgando bicicletas resplandecentes. Desenham-se-lhes rictos estranhos nos rostos. O cansaço, a luta contra o declive, a contabilidade de quem vai à frente ou atrás, tudo isso rouba-lhes a contemplação das paisagens magníficas que os envolvem e assistem indiferentes ao seu sofrimento, ao sacrifício ritual que os leva ao altar, onde, por um passe de mágica, se transformam de vítimas propiciatórias em sacerdotes escolhidos pelos deuses, para oficiar as cerimónias em seu louvor. Recomponho-me, respiro fundo, desligo a televisão e deixo os ciclistas entregues aos segredos da montanha, presos aos olhos dos espectadores que os aclamam como se fossem um exército vitorioso chegado do campo de batalha. Eles ainda não sabem que esse esforço desmedido é inútil. De pouco lhes servirá o nome num registo que o tempo fará esquecer. Essa inocência engrandece-os, pois toda a grandeza nasce de um não saber, de uma virgindade existencial que mergulha incauta nas águas turvas da vida. Hoje atravessei a cidade várias vezes. Nem dei por ela. Ela também não deu por mim, o que nos reconcilia. Reparo que as folhas das acácias começam a amarelecer. Têm um ritmo diferente das tílias e dos jacarandás. Cada coisa terá o seu ritmo, mas um maestro invisível subjuga-as à sua batuta para que uma música tensa e vibrante se erga da terra. O sol brilha anémico, alunos de um centro de línguas esperam agitados o começo da aula e eu esqueço-me dos pensamentos que me assaltam. As nuvens lembram grandes transatlânticos à deriva no oceano sombrio do céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ausência de sentido

O tempo desbarbariza-se. Há nuvens, vai chovendo, mas o vento sopra com mansidão e, no céu, lagos de azul deixam o sol chegar à terra. No campo de jogos da escola vizinha, um grupo de adolescentes corre sem pressa, num ritual de aquecimento que talvez anteceda algum jogo. Medito nas coisas que, com o tempo, se me foram tornando incompreensíveis. É possível que a morte não seja uma determinação biológica, mas um evento semântico. Quando a realidade perder sentido, então a morte chega para resgatar a pessoa da turbulência em que vive trazida pela ausência de significação com que o mundo se revestiu. Tudo é mais confuso do que se pensa e talvez não haja coisa mais obscura do que as razões que movem a morte. Um raio de sol ilumina a frota de nuvens que atravessa o meu horizonte. Elas resplandecem, enquanto eu penso no que tenha para fazer ainda hoje. Uma árvore podada estende os dedos curtos para o céu, mas nenhum anjo poisa nela. Os adolescentes recolheram-se, os carros passam na avenida, as pessoas entram e saem dos cafés, e eu olho para as páginas de um livro em que se discute a vexata quaestio se uma máquina pode pensar. Eu sei que não posso, mas não sou uma máquina.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

História de uma desconhecida

Entretive a manhã com certos problemas cuja solução atormenta os homens há muito. Não se pense que estive dedicado à sua resolução. Nem pensar. Entreguei-me apenas a torná-los claros para os distribuir a quem os queira apanhar. Ninguém, por certo. Valeu-me o toque da campainha. Era o correio. Trazia-me um embrulho com livros que comprara num alfarrabista online. Dois deles pertencem àquela colecção de capa amarela da Editorial Minerva. São edições do início dos anos sessenta do século passado. Um não foi aberto. Comprado na Bertrand, da Rua Garrett, custou 22$00. Não faço ideia quem seja o autor, Orio Vergani. O outro está aberto, possui uma assinatura feminina e a data de 13 de Abril de 1972. Quem foi a autora, Florence Barclay, também desconheço. Comprei os livros apenas porque a capa me agradou e o seu preço não era propício a arrependimentos e contrições. Talvez os venha a ler ou talvez os arrume e me esqueça deles e, quando um dia os meus livros forem parar a um alfarrabista, quem os descobrir vai dizer que um nunca foi lido, pois continuará fechado, e o outro pertencia a uma mulher, o que sendo verdade já não será toda a verdade. Penso no que se terá passado naquele longínquo 13 de Abril. Talvez ela tenha dado um salto a uma livraria, talvez alguma amiga se tenha lembrado do seu aniversário, talvez um apaixonado tenha encontrado na dádiva pouco imaginativa de um livro a expressão do seu amor. Porventura foi apenas uma mãe – aliás de origem estrangeira – que tenha oferecido aquele livro para completar a educação sentimental da filha. Continua a chover e não tarda terei de ir falar sobre questões que não interessam a ninguém que me vai ouvir. Se lhes falasse da antiga dona do livro, mesmo desconhecendo-a, seria outro o seu interesse e entusiasmo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sentimento num dia de chuva

Chove. A água interpõe entre os meus olhos e o hospital um véu de cinza. Tudo o que vejo é digno de um daqueles filmes sombrios que vinham do leste europeu. São imagens de exaustão, de um cansaço trazido pelos fungos às paredes dos edifícios. Procuro um nome para dar ao sentimento que toma conta de mim, mas não o encontro. São tão poucas as palavras que possuímos, mesmo aqueles que usam um vocabulário mais vasto, para uma realidade demasiado extensa, mesmo que essa realidade não seja mais do que a gama dos sentimentos humanos. Recebo uma mensagem da Protecção Civil. Avisa-me que vai haver chuva e vento forte nas próximas 48 horas. Risco de inundações. E eu debito um credo apropriado. Creio na Protecção Civil toda poderosa, informadora das ocorrências no céu e na terra, creio nos seus emails e sms. Creio…. De súbito, a memória irrompe neste devaneio patético e transporta-me para o tempo em que havia grandes inundações no Tejo. Nessa desgraça adivinhava-se uma grandeza sem voz, ânimos temperados pelo confronto com o desatino da natureza. Agora tudo se tornou um problema de gestão de caudais. Ao escrever isto não consigo deixar de sorrir. Também eu preciso de introduzir um programa de gestão da verborreia. Um dos homúnculos que habite na caverna da minha mente diz mesmo que nunca se viu quem tanto escrevesse sem ter nada para dizer. E isto é a pura verdade. Se eu tivesse alguma coisa para dizer, calava-me.

domingo, 18 de outubro de 2020

É falso tudo o que vou contar

Tudo o que vou contar é falso. Se o leitor acreditar numa palavra que seja, fica por sua conta e risco. Eu bem o avisei. Ontem fui visitar a minha mãe e, em vez de poluir a atmosfera com os gases do carro, pus os pés ao caminho. Saindo de casa dela, decidi que, também eu, tal como o velho genebrino Jean-Jacques me entregaria às minhas rêveries du promeneur solitaire. Pus-me a caminhar pela cidade, por sítios onde raramente ou nunca passo a pé. A certa altura a imaginação começa a importunar-me e a perguntar por que motivo, em dado momento da história do país, qualquer vilória, com poucos milhares de habitantes e uma existência tão cosmopolita como uma paróquia perdida sabe-se lá onde, quis tomar o nome de cidade. Não lhe soube responder e continuei a promenade. Quando passava diante de um cemitério, numa avenida que leva de uma rotunda a outra rotunda, que por sua vez levará a uma terceira, ocorreu-me um episódio da semana que tinha passado. Recebo uma chamada no telemóvel. Estou, respondo. É o senhor e declinam o meu primeiro nome. Ainda com bonomia digo o próprio. Aqui fala a Doutora… Ah, respondi, o seu pai conseguiu pôr-lhe o nome de Doutora. Deve ser muito nova. Quando fui ao registo civil para registar a minha filha também quis pôr-lhe o nome de Doutora, mas não me deixaram. Cheguei lá e disse quero registar a minha filha recém-nascida. E o nome, perguntou-me o funcionário já entradote. Quero que se chame Doutora e acrescentei dois apelidos da mãe e dois do pai, só para ela treinar a letra quando, na escola, escrevesse o nome. Não pode, retorquiu. Doutora não consta da lista de nomes autorizados. Não? Olhe, acrescentei, não estava preparado para isso. Que nome lhe hei-de pôr? Pode chamar-lhe Isabel, Madalena, Teresa, Sofia, Fátima ou Maria, que era o nome da Nocha Chenhora, foi assim que ele pronunciou. Eu respondi, se era o nome da Nocha Chenhora, fica Maria, e Maria ficou. Os tempos mudaram e agora há muitos pais a porem como nome aos filhos Doutor e Doutora. Lembrei-me de uma outra história, tão verídica como esta, de um rapaz também ele doutor e presidente da junta, mas talvez a conte num dia destes, se numa nova promenade me entregar a nova rêverie. Tudo o que narrei é falso, repito. Se acreditou numa só palavra, não culpe este pobre narrador, um mitómano contumaz, cuja papel é inventar coisas que nunca se passam.

sábado, 17 de outubro de 2020

Um sábado perfeito

No pequeno bosque da escola ao lado, as árvores petrificadas lembram estátuas esquecidas de uma civilização há muito abandonada. São símbolos a lembrar o passado, mas escondem a chave para os decifrar. O vento suspendeu a sua agitação e o sábado deixa-se invadir por uma luz tocada pela anemia. Olho o arvoredo e deixo-me devanear sobre a perfeição que existe em certos dias de Outono. Sou um ser outonal, não porque a idade assim o diz, mas porque sempre o fui. Por vezes, agrada-me a inocência de seres primaveris. Raramente a minha disposição é compatível com a exuberância dos estivais. Aos invernosos, olho-os com reverência, mas deixo-os pairar a uma distância conveniente. A vida é um exercício difícil de aproximações e distâncias, de procura de afinidades electivas, de gestão do espaço, no qual convém desenhar fronteiras que em caso algum devem ser atravessadas, mesmo se se tem passaporte. Dou uma vista de olhos pela imprensa, um velho hábito que não consigo erradicar, apesar de se ter tornado inútil. Deveria chamar-lhe um vício. O mundo continua a ser mundo e naquilo que leio poucas razões encontro para que não me torne num misantropo inflexível. Tivessem os homens a perfeição dos cedros, dos pinheiros, dos ciprestes que avisto e talvez a passagem da espécie pelo planeta não fosse um cortejo de indignidades. O vento voltou a soprar e levou com ele todos os meus pensamentos. Fico-lhe grato, pois melhor do que pensar é não pensar, ter a inocência de uma árvore presa ao seu silêncio.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Uma tarde animada

Mal entrei no Facebook deparei-me com um post de uma amiga cá de casa a agradecer sensibilizada a todos aqueles que lhe estão a endereçar felicitações pelo aniversário. Ao mesmo tempo, aproveitou a ocasião para informar que não fazia anos. Será mais tarde, para a próxima semana. Ainda bem que me eximo de distribuir parabéns pelo Facebook. Depois, saí e fui buscar a minha neta mais velha à estação da rodoviária. Foi a primeira viagem que fez sozinha, com mil recomendações parentais, pedido de guarda ao motorista, controlo da mãe e da avó através do telemóvel e os avós no terminal rodoviário à espera do expresso, ainda mal ele tinha saído de Lisboa, não fosse a viagem ser feita a 300 km por hora e a pobre adolescente ter de esperar num sítio inóspito, digno de uma distopia. Pobre, pois o que há-de ser alguém que, na adolescência, tem de ler coisas como estas: A definição de quociente entre dois quaisquer números racionais, sendo o divisor não nulo, coincide com a definição já dada para o quociente entre dois números racionais não negativos. Foi isto que li num livro que ela tem aberto ao lado do caderno em que escreve, enquanto a avó a massacra com exercícios, que metem mais e menos, quocientes, fracções e o que mais o peçonhento com pés de cabra há-de inventar para a perdição de uma rapariga numa tarde sem aulas. Comentei entre dentes que me parecia péssima literatura. Quando comecei a ler fiquei entusiasmado, o argumento tinha mistério. Qual será a definição de…? Fiquei suspenso, confesso. Chego ao fim e descubro que coincide com outra definição já dada. Afinal o prosador, sem imaginação, termina a narrativa com o mesmo desenlace do que a anterior. Para a compensar da tortura já marquei mesa para o restaurante de que ela mais gosta aqui na zona. Tremo só de pensar a hora em que terei de lhe ensinar a fazer inspectores de circunstâncias, ou a discutir se a liberdade da vontade é compatível com uma natureza completamente determinada, ou obrigá-la a escolher entre o imperativo categórico e o princípio de utilidade para avaliar a bondade das suas acções. Como se vê, está a ser uma tarde de sexta-feira muito animada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Uma súbita nostalgia

Não é implausível que, uma vez ou outra, no céu da minha consciência perpasse uma nuvem de nostalgia. Não uma nostalgia vulgar por alguma coisa que se viveu ou amou, mas pela mais autêntica das nostalgias, aquela que nasce de um amor nunca tido ou de uma coisa jamais realizada. Foi isso o que me aconteceu há dias, continuou Rogélio, um dos meus velhos amigos, quando vi à venda um livro do italiano Giovanni Papini. Nunca o lera, mas recordei as capas soberbas com que as Edições Livros do Brasil o punham à disposição do público português. Ao vê-lo, trata-se de Gog, na montra de uma papelaria esquecida numa vila remota do interior, nem hesitei. Uma estranha ânsia tinha tomado conta de mim, pois temi que, mesmo sem ninguém dentro do pobre estabelecimento, além do proprietário, algum cliente secreto ou invisível se interpusesse entre mim e o objecto do meu desejo. Ao pegar-lhe senti uma comoção, das mais autênticas que me tenho imaginado, e folheei-o com avidez. Há dias que o arrasto para onde quer que vá. Aqui Rogélio mostrou-me o livro. Estava ferozmente anotado nas margens com uma letra ilegível que reconheci ser a dele. É verdade que esta história não interessa a ninguém, mas também, embora sem nostalgia e de coração seco, me decidi a procurar o livro no primeiro alfarrabista que o oferecesse a um preço decente. Chegou-me hoje, com evidências claras de as suas páginas nunca terem suportado o peso do olhar de um leitor. Hesito por onde começar. Pela visita de Gog a Einstein, ou a Lenine, ou a Freud? Talvez comece pela que fez a Knut Hamsun. Ou talvez nem o leia ou nem sequer o tenha comprado, apenas tenha sonhado tudo isto quando, sentando-me diante do computador para trabalhar na salvação da humanidade, adormeci, até que alguém me comunicou que o meu ressonar deveria incomodar os vizinhos do prédio mais distante da rua.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

De perder uma alma

Antes de termos chegado ao lugar onde estamos, na escola aqui ao lado havia um conjunto musical, a que eu dava o nome de grupo de baile. Nas tardes de quarta-feira, a banda dedicava-se a ensaiar êxitos dos anos sessenta e setenta do século passado, num exercício de nostalgia que sempre achei estranho num sítio povoado por gente nascida depois do virar o milénio. O confinamento emudeceu aqueles bravos rapazes devotos da Nossa Senhora da Boa Memória, um deles, o único que identifico, chegou a estudar comigo. Este ano ainda não os ouvi, presumo que não recuperaram nem a voz nem a vontade de viajar para o tempo em que, conjecturo, terão sido felizes. Isto, contudo, sou eu a especular. Não os oiço, como não vejo há uns dias os anjos que vivem no telhado do prédio do lado. Imagino que se foram confinar para algum lugar longe dos homens, antes que sejam contaminados e lancem o caos nas urgências celestes, onde os anjos tratam as suas afecções mais persistentes, embora, como se sabe, eles não necessitem de ir para os cuidados intensivos. A sua condição não lhes permite grandes males e, por isso, não precisam de grandes remédios. O padre Lodo ligou-me esta manhã. Não devia ter escrito ontem, sublinhou o não, que os meus pecados eram insignificantes, que só Deus tem o metro para medir a significância pecaminosa de cada um. Estaria eu, disse-me ele, prestes a cair na tentação da blasfémia. Estava preocupado com a minha alma. Disse-lhe que não se preocupasse com ela, caso eu tivesse uma. Aqui faltou-me um módico de caridade e não consegui evitar um traço agnóstico suspenso sobre a conversa. Fora um exercício de pura humildade, declarei em tom compungido. Depois, acrescentei, quando for a Lisboa, ligo-lhe. Vamos jantar com o grupo habitual. Desta vez, respondeu com o seu português italianizado, tem de ser aquele que tem uns pastéis de massa tenra de fazer perder uma alma. Esse mesmo, respondi.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Tudo tem consequências

Por que razão gostamos daquilo que gostamos? Enquanto me entrego a uma corveia composta por gráficos, tabelas, análises de resultados e uma panóplia de coisas que, espero, me sejam averbadas no registo celeste para desconto dos meus insignificantes pecados, tenho estado a ouvir o que se chama música minimalista. Philip Glass, Steve Reich, John Adams, Terry Riley. Há quem deteste, mas sobre mim o movimento repetitivo de pequenos trechos musicais durante longo tempo tem um efeito encantatório. Quase que vejo nascerem mitos de dentro dessa música, histórias que irão ser contadas de geração em geração, os feitos de deuses ou as travessuras maldosas de seres gerados pela imaginação. É por isso que gosto dessa música. Não o sabia antes de o ter inventado para o escrever aqui. Não são poucas as coisas que só as sabemos na hora em que as escrevemos. Um sol outonal brilha sobre o pequeno bosque da escola ao lado, enquanto as folhas das acácias vão e vêm batidas por um vento que, parece-me, corre de norte. Daqui a pouco irei falar sobre a verdade e o cepticismo. Com tantas coisas cintilantes debaixo do sol, logo me haveria de calhar essa floração das trevas. Estou há horas para entrar na minha conta de homebanking. A cada tentativa, sou informado que é um erro, a página não existe. Algum deus desavindo com os mortais, nascido da música repetitiva que tenho estado a ouvir, terá feito desaparecer o banco. O meu amigo Rogélio bem me avisa. Cuidado, tudo o que se faça tem consequências. Nunca imaginei que o meu mau gosto musical fosse a causa de desaparecimento de um banco, mas é o que constato. Só espero que não seja preciso sacrificar nenhuma Ifigénia, para que o deus o devolva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um Zé Ninguém em dia de S. Nunca

Quanto tempo faltará para estarmos outra vez todos confinados? Esta pergunta não me pertence. Escutei-a por acaso na rua, ao passar por duas pessoas que, sem máscara, trocavam palavras, preocupações, temores e, certamente, gotículas, como agora, de uma forma com ademanes de erudição, se chamam os populares perdigotos. Recebo uma mensagem a dizer urgente. Olho para ela e digo-me que bem pode esperar. Se fosse dar urgência a tudo o que se diz urgente, acabaria por morrer de exaustão. A maior parte das coisas urgentes bem se podem tratar no dia de S. Nunca à tarde. Este dia do calendário litúrgico tem um correspondente em personagem teatral. Quando perguntado quem é, o Romeiro diz Ninguém. Não se pense, todavia, que o senhor Ninguém se finou nas páginas do Frei Luís de Sousa. Os tradutores portugueses amam-no verdadeiramente, desde que se chame Zé. Escuta, Zé Ninguém, uma diatribe de Wilhelm Reich, e E Agora, Zé Ninguém?, um romance de Hans Fallada. Como o leitor compreenderá ser um Zé Ninguém é uma chatice. Ou se está a receber ordens ou a ser interrogado. Todavia a pergunta com que se abriu este texto merece uma resposta metafísica. Estamos confinados desde sempre. Essa é a condição humana, a história da caverna de Platão. O confinamento decretado é apenas um reconhecimento de direito daquilo que acontece de facto. O mais sensato será acabar o escrito por aqui. Ninguém vai perceber o que acabou de ser dito, nem sequer o narrador ou, em especial esse, o autor. Por mim, corrigiria o Garrett e quando o Romeiro, esmagado pela realidade do confinamento, escutasse a pergunta sacramental, diria Zé Ninguém, sou um Zé Ninguém. E isto estaria muito mais de acordo com a sua condição. Pena o Garrett ter-se esquecido de me telefonar.

domingo, 11 de outubro de 2020

Paramedicamento

Os domingos são dias propícios a uma sentimentalidade espúria, a qual deveria ser ferozmente erradicada. Umas vezes, é a melancolia do domingo à tarde, quando a sombra negra da segunda-feira, com a sua penosa corveia, se ergue no horizonte. Outras, é uma nostalgia pelo que passou, e os domingos são construídos na memória como dias em que se passavam coisas. Na verdade, pouco se passava ou, mesmo que se passasse muito, tudo isso era tão irrisório que dá vontade de sorrir. Há pouco, fiquei a ver o triunfo de um ciclista português numa etapa da Volta a Itália, do Giro, como dizem entendidos e aficionados. Nada sei de ciclismo, mas gosto. Isto deve-se a uma influência paterna que me levava a ver a passagem dos ciclistas da Volta a Portugal. Era um espectáculo veloz. O tempo que eles levavam a passar era assombrosamente pequeno comparado com aquele que se esvaía na espera, mas tratava-se sempre de um acontecimento colorido, e eu gostava imenso. Um dia o meu pai levou-me a ver ciclismo em pista, em Alpiarça. Estávamos em Santarém e fomos lá. O que se passou, quem ganhou e quem perdeu, já o esqueci há muito. Saí de casa ainda não tinha chegado o meio-dia. Estava calor. Fui a uma parafarmácia comprar um paramedicamento. Um paramedicamento é uma daquelas coisas que não servem para nada, mas que convém ter em casa. Nunca se sabe quando são precisos. O facto de as ter tranquiliza o espírito. Quando a menina me perguntou o que desejava, estive quase a responder queria um placebo para a urticária. Não respondi, pois tive medo que ela me dissesse que não sabia o que era um placebo e que eu tivesse de informar que também não fazia a mínima ideia do que fosse a urticária. Das velhas colunas da minha aparelhagem sai o som de Lontano, uma peça do compositor György Ligeti. Reconcilia-me com o domingo e com a menina que não saberia o que era um placebo. Chega-me um vídeo do meu neto a andar de trotineta. Ainda não tem idade, penso, mas quem não tem idade para isso sou eu.

sábado, 10 de outubro de 2020

Um ser imponderável

Hoje, lamento, mas nada tenho para contar. Levantei-me nem cedo nem tarde, a balança dos sábados esteve amena e devolveu-me um peso dentro do que houvera sido acordado. Minto. Como pode um narrador ter peso? Sou um ser imponderável, apenas um conjunto de caracteres no monitor. Seres virtuais não têm peso nem sofrem dos efeitos da gravidade. São como os anjos destituídos de corpo. O autor, esse tem peso. Talvez mais do que devia. Também tem corpo, mas sobre isso não faço comentários. Sou um narrador prudente. Hoje está de mau humor. Ouvi-o resmonear contra as calças. Por que raio continuava a comprar calças com botões em vez de fechos. Não faço ideia o que tem contra os botões, mas isto mostra o nível intelectual das suas preocupações. Tive de ir ao supermercado. Encontrei a Lu. Estava abatida. Apesar da máscara percebi que não era a velha Antígona pronta para desafiar a ordem de um qualquer Creonte. Nos seus olhos, havia uma sombra e não fogo. Estou preocupada com a minha irmã. A irmã é a Marília, a que era do Dirceu. Não anda nada bem, agora que parecia feliz. Fiz silêncio e ela especulou sobre o destino. Eu ouvi até que nos despedimos. Fui ainda comprar duas garrafas de vinho e dirigi-me para a caixa para pagar. A menina não me pareceu nenhuma Antígona, nem Ismene e muito menos uma Electra. Era apenas a menina da caixa e nisso estava toda a sua grandeza. Quando voltei o autor continuava a barafustar pelos cantos da casa contra a ordem do mundo e a desordem que ia na sua cabeça, digo eu.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Fora eu uma árvore

Cheguei cansado ao entardecer desta sexta-feira, mas também a semana está tão pouco vigorosa quanto eu. A correria a que ela se entrega mal nasce só pode ter como consequência chegar ao fim com a língua de fora. Tenho pena das pobres semanas ajoujadas a um ritmo que não escolheram. Alguém me disse que não deveria antropomorfizar os seres não humanos. Respondi apenas que seria redundante a antropomorfizar os humanos, além de não me parecer boa ideia tornar os humanos ainda mais humanos. Basta ver o rol interminável de maldades e patifarias a que eles se entregam sem esse reforço de humanidade. Apesar das ameaças que pesam no horizonte, os tempos parecem ter voltado à normalidade. Da praceta chegam gritos verrumantes que ferem o estado de estupor em que me encontro. A criançada anda por ali, corre, grita, berra, enquanto as acácias, sem um grito, se deixam embalar pelo vento, balançando os ramos para cima e para baixo. Com o passar dos anos aumenta a minha admiração pela sábia indiferença com que as árvores olham para as coisas que as envolvem. Agora, umas funções do meu teclado decidiram declarar greve. Disse-lhes que era uma greve selvagem. Não se comoveram. Fora eu uma árvore e não teria problemas com teclados.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Contributos para a história do Rogélio

Perguntaram-me quem era o Rogélio que por aqui aparece. É sempre uma pergunta difícil de responder. Se me perguntarem quem sou eu, ver-me-ei em apuros para dar uma resposta com um módico de coerência, quanto mais quando se trata de uma terceira pessoa, e que pessoa. Conheci-o nos primeiros tempos da faculdade. Numa aula, fumava ele uma cigarrilha Café Creme, uma das suas imagens de marca, fez uma pergunta ao professor. Este perguntou-lhe o nome, ele debitou-o com tranquilidade, Rogélio. O professor então continuou dizendo ora veja Rogério… Aí o Rogélio interrompeu-o. Peço desculpa, professor, mas chamo-me Rogélio e não Rogério. Não me obrigue a contar a história do meu nome. O professor não obrigou, mas ele causou furor na turma com a lata da sua intervenção. Ficámos amigos. Ele é um autêntico coleccionador de ditos, máximas, apotegmas, aforismos e outras sentenças para uso diário e em situações extraordinárias. Os mais interessantes são da sua autoria. Acaba de ser anunciado a Nobel da literatura. Nunca li nada da senhora, mas a minha ignorância é infinita. O facto de muitos dos meus escritores favoritos, como Borges ou Kafka, não terem merecido a distinção deixa-me sempre de pé atrás. O remédio será pô-lo à frente, dir-me-ia o Rogélio, enquanto expelia uma baforada da sua inevitável cigarrilha. Não sem razão

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os limites do magnésio

Outubro perfaz hoje uma semana. Não sei o que possa fazer com esta constatação. Há pessoas que de qualquer coisa retiram utilidade, prazer, fortuna. A minha natureza não se acorda com préstimos e serventias e até da mais útil das coisas fabrico uma inutilidade. Sou um inutilitarista, para além de um improficiente. Há quem venda Platão para infelizes e Aristóteles para competitivos, eu prefiro ir comer uma fartura ali ao lado. Também tomo magnésio para as cãibras. Muito gostava eu de ser um realista ingénuo, de olhar para aquelas acácias, ainda esplendorosas, e crer que aquilo que vejo é mesmo acácias, mas temo que aquelas imagens a que chamo realidade não sejam mais do que um feixe de impressões na minha mente, ou, pior, que eu não passe de um cérebro numa cuba, que está a ser estimulado por um supercomputador para imaginar que está a ver acácias. Estes pensamentos demonstram, todavia, uma coisa. Se o magnésio combate as cãibras, não me ajuda no pensamento. Fica turvo e eu ainda não comprei um purificador de pensamentos. A realidade continua a ser minha inimiga. Os dias estão difíceis e Outubro ainda só tem uma semana.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Questões de mérito

Um pouco antes do crepúsculo irei caminhar. Não sei se será um exercício saudável, pois os trajectos disponíveis são partilhados com os escapes fumarentos de carros que precisam, também eles, de fazer exercício e libertar-se das toxinas que lhes enxameiam os motores. Mais do que libertar a toxidade que há no meu corpo, preciso de libertar a que me invade o espírito. Cada visita à realidade é um exercício penoso, mais penoso do que dar de comer a quem não tem fome. Encho-me de toxinas e o pensamento enviesa-se para a malevolência. Penso coisas que até eu me julgaria capaz de pensar. Cada um tem o que merece, diz nestas ocasiões o meu amigo Rogélio. Eu acabo por anuir. Um dia talvez explique como o conheci e, caso me recorde, poderei mesmo explicar o motivo de tão inusitado nome. Um acaso, posso adiantar. Fui levantar uma encomenda nada literária e acabei a comprar a minha quarta versão em português da Eneida de Vergílio, a segunda em poucos meses. Depois de uma traduzida por um professor de clássicas de Coimbra, agora uma traduzida por professores de clássicas Lisboa. Talvez seja isto a concorrência ou uma luta pela sobrevivência. Olho para o início do poema e deixo-me tocar não pelas dores do troiano, mas por expressões como praia de Lavínio ou violência dos deuses supernos. Estes deuses não cultivariam em excesso o amor e a misericórdia. Cobravam as ofensas, e como eles se ofendiam por coisa pouca, a um preço que dificilmente seria de saldo. Talvez também para estes heróis o destino não fosse mais do que a retribuição do seu mérito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Dores de crescimento

Acordei com algumas dores nas pernas. Nada que me causasse mais do que um pequeno incómodo, se deitado. Era uma injunção a que me levantasse. Cumpri a ordem. Tenho estas dores desde que me lembro de existir. Vão e vêm, umas vezes mais violentes, outras menos. Durante a infância e a adolescência, os médicos diziam que eram dores de crescimento. Seriam. Quando chegou a altura de parar de crescer, elas continuaram. Por volta dos cinquenta pedi ao médico que me seguia que pesquisasse a origem do mal. Fiz exames a isto e àquilo. Nada. O mal continuaria a ser um mistério. Ele, porém, não se atreveu a dizer que eram dores de crescimento. Enganou-se. Redondamente. Quando se passou dos velhos bilhetes de identidade, em que a menina do registo civil nos batia com a craveira na cabeça para determinar a altura, para os cartões de cidadão, onde toda a medida é electrónica, cresci três centímetros. Prova feita em dois registos diferentes. Grande é o desalento quando penso em tudo isto em que estou a pensar. Hoje, um dia em que deveria ter pensamentos elevados e patrióticos, penso em dores de crescimento. Seja como for, posso adiantar que sempre fui republicano, embora ache isso uma miserável cobardia. Deveria ser monárquico. Republicano, apenas se vivesse numa monarquia. Não tenho, porém, coração de talassa, nem a minha origem plebeia o aconselharia. Contento-me com o ir crescendo sempre que se muda o método de determinar a altura do cidadão. Com a evolução contínua da tecnologia, não admira que as dores de crescimento não me passem.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pura banalidade

Quando há pouco peguei num certo livro que tinha posto de lado tempos atrás verifiquei que havia nele vários marcadores. Não daqueles tradicionais, mas cartões e etiquetas que vou juntando para lhes fazer a vez. O cartão de uma churrasqueira take away, outro de um desentupidor de canos com o calendário de 2018, um terceiro de um restaurante nepalês em Lisboa, ainda outro que anuncia Charming rooms em Bilbau e, por fim, a etiqueta cartonada de uma marca de pólos, que ainda ostenta o tamanho, o preço e a loja onde o comprei. Por coisas como estas pode-se reconstruir uma vida e, como se vê, a minha é das mais banais que possam existir. Aliás, não se esperaria outra coisa. Há nos homens uma propensão para a distinção, mesmo o mais limitado se pretende distinto, diferenciado, pura singularidade. Ergue-se em heroísmos e a sua vida é repleta de feitos e façanhas. A imaginação não tem limites. Eu, pouco dotado de imaginação, não tenho proezas para apresentar no currículo, por isso colecciono numa caixa preta, ao lado de pilhas para comandos, tubos de cola seca, carregadores de telemóvel para mandar reciclar, colecciono, dizia, cartões com que marco os livros que outros escreveram. Hoje é domingo e as horas vão com tristeza pela avenida fora, cobertas de nuvens, atiçadas pelo vento, redemoinhando à volta das tílias, das acácias, dos jacarandás e de outras árvores cujo nome não me ocorre. Também elas, horas e árvores, fazem parte da banalidade que me envolve, e eu amo-as por isso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Vestir o ânimo

Estou há longos minutos a observar as árvores dos espaços envolventes. Quase imóveis, parecem estátuas que um divino escultor terá esculpido como símbolo de tudo o que há de misterioso no mundo. Há no arvoredo uma dignidade que escapa ao mundo animal. Neste, a inquietação da morte e a necessidade cruel tornam a vida uma manta onde se cosem truques e armadilhas para matar e sobreviver, um circo romano onde todos são à vez feras e cristãos. Contrariamente à volubilidade da vida animal, a existência das árvores é marcada pela constância, por uma fidelidade ao lugar, por uma elevação contínua, pelo silêncio com que deixam passar por elas os anos e as peripécias, sem que se lhes oiço um grito, um queixume, uma imprecação. Morrem de pé, como é dito na peça do asturiano Alejandro Casona, ou são traiçoeiramente abatidas pelos homens. Este prolongado fim de semana começa neste registo de melancolia, não porque esteja melancólico, mas porque é a tonalidade de espírito que melhor se adequa ao dia. Há muitos anos, numa conversa que nunca esqueci, alguém disse que deveríamos revestir o ânimo com o mesmo cuidado com que vestimos o corpo. O essencial é ter em atenção o tempo e, desse modo, há dias que devemos estar alegres, outros tristes. Em alguns devemos vestir a farda da ira, outras vezes o mais indicado é uma capa de nostalgia. Com o passar dos anos, fui descobrindo a sabedoria do conselho. São muito desavisadas as pessoas que se preocupam com o que lhes veste o corpo, mas andam pelas ruas com o ânimo nu, como se fossem indigentes e não houvesse lá por casa uma camisa de angústia ou um casaco de júbilo. Daqui a pouco ponho a gravata da melancolia e vou às compras. Logo terei cá o meu neto, e isso é o mais importante.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma tarde entre parêntesis

Mais e menos, abrir e fechar parêntesis, unidades e fracções. A mais de cem quilómetros de distância a minha neta mais velha está ser submetida a uma provação. Em videoconferência a avó soma avisos e injunções, dita-lhe exercícios, subtrai-lhe umas horas de brincadeira. Ela vai-se submetendo ao mundo do cálculo, à estratégia de aplicação de algoritmos, enquanto a cabeça devaneia lá por aqueles sítios onde, às sextas-feiras à tarde, se reúnem os espíritos adolescentes. Não sei se todo este admirável mundo novo será coisa boa. Está um maravilhoso dia de Outono. Ora chove, ora faz sol. O vento sopra agreste, enrola-se nos ramos das árvores, nos cabelos e saias das mulheres, grasna e cochicha por tudo o que é canto. As folhas secas desenham espirais no ar, enquanto as fracções se multiplicam e os números negativos tentam anular os positivos. Não, não é King que estão a jogar. Quando chegarão as raízes quadradas, pergunto-me. Agora fez-se silêncio, talvez todos os parêntesis abertos tenham sido fechados e as fracções somadas sejam unidades puras, inteiras, imaculadas, virginais. Talvez seja apenas o descanso antes da segunda vaga. O sol reverbera no telhado do pavilhão da escola ao lado, o ramalhar das árvores prende-me a atenção, o dia escorrega para a noite e a minha vida desliza para o nada, que é o sítio aonde tudo vai dar, mais soma menos subtracção, mais número inteiro menos fracção.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um dia octúbrico

Hoje está um dia verdadeiramente octúbrico, pensei enquanto uma chuva miúda descia sobre mim. Pena é que ainda não tenham inventado a palavra octúbrico, mas não vejo outra que possa designar a presença de Outubro neste primeiro dia do mês. Talvez alguém a tenha pronunciado ou mesmo escrito e eu não saiba. Muito vasta é a minha ignorância. Digo isto apenas para parecer humilde e não atrair sobre mim os maus espíritos que andam por aí a esvoaçar. Estive a oficiar durante duas horas ao ar livre. A máscara interpõe-se entre a minha voz e o mundo. Fico com a garganta arrasada. Chegado a casa, fui a uma das janelas para ver o que se passava na rua. Não se passava nada a não ser gente a passar, uns a pé e outros de carro. Olhei para os telhados dos prédios envolventes. Fiquei preocupado. Há uns dias que não vejo por lá os anjos que costumam poisar naqueles sítios. Talvez tenham ido em missão a algum sítio em dificuldade ou foram hospitalizados com o novo vírus. Nunca se sabe. Também é possível que se tenham disfarçado de pombos e andem por aí a esvoaçar, arrulhando por aqui e por ali. À saída do lugar de frutas e legumes onde entrei para comprar feijão-verde encontrei a Lu, a irmã da Marília do Dirceu. Estava risonha. Que a chuva a tinha impedido de acabar a caminhada. Disse isto com aquele seu ar de heroína grega, de Antígona que escapou às garras de Creonte, o que lhe diminui a faceta trágica, mas permitiu-lhe deixar um rasto de fogo no mundo. Tenho de me despachar e deixar de escrever idiotices. Esperam-me. Ainda tenho duas homilias para proferir. O pior é garganta.