quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Broch e Cortázar

Continuo enredado na escrita de Hermann Broch, mas o digno de nota não é isso. Existe, na Gallimard, um volume do escritor austríaco, com o título La Grandeur Inconnue, o nome do primeiro romance do autor. Contudo, existem nela mais coisas. Cartas para Willa Muir, ensaios, narrativas e um fragmento de romance. Como não conhecia nada disto, ontem decidi comprá-lo online. Fui à Amazon francesa, passe a publicidade, o livro estava disponível. Tinha o preço de 18,60€ e os portes de 8,07€. Fui espreitar se o mesmo livro existia na Amazon espanhola. Existia, custava um pouco mais, 18,95€, mas os portes para Portugal eram gratuitos. Encomendei-o eram cerca das 11 horas de ontem. Recebi-o hoje por volta da mesma hora. É possível que de Espanha nem bom vento, nem bom casamento. Tenho alguma experiência do vento espanhol, mas não de casamento. Na verdade, o primeiro, não é grande coisa; o segundo, não me pronuncio. Sei, todavia, que os livros vindos de lá chegam rapidamente. Talvez venham a fugir do vento ou de um casamento que lhes desagradou. Tudo é possível, embora as pessoas tendam a não acreditar na proliferação das possibilidades. Estes enredos em Hermann Broch são apenas diurnos. À noite, nos períodos de insónia, vou lendo O Jogo do Mundo (Rayuela), de Julio Cortázar. Em conversa com um amigo disse-lhe que estava a gostar da obra, mas não tanto como teria gostado há trinta ou quarenta anos. Hoje, aquele ambiente intelectual e boémio de Paris, presente pelo menos no primeiro terço do romance, não me causa qualquer exaltação. Pelo contrário. Dou comigo a pensar que se trata de uma rêverie de adolescência ou de primeira juventude, mas que há pouca seriedade nela. Não afasto a possibilidade de mudar de opinião, caso os dois terços que me faltam ler tenham esse poder. Estes escritos estão a ficar fastidiosos, quero dizer: estão a ficar ainda mais fastidiosos. Talvez seja o efeito da operação ao pé esquerdo. A anestesia local pode ter provocado uma mais intensa paralisia da imaginação. Tenho de voltar às reflexões sobre o estado do tempo, isto é, do clima.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Midinettes

Numa conferência, La vision du monde donnée par le roman, Hermann Broch, a certa altura, para exemplificar um tipo de arte preocupada em produzir um qualquer fogo-de-artifício, diz: Je choisis Zola, car personne n’osera prétendre que Zola ait écrit des romans pour midinettes. Apesar de Zola ter escrito romances para produzir fogo-de-artifício, isto é, para vender uma certa ideia, Broch exemplifica, não chegou a cair nesse abismo de onde não há regresso, escrever para midinettes. O que terão feito estas pobres raparigas para que seja negativo um escritor importante fazer romances para elas? A palavra resulta de uma aglutinação de midi + dînette. Literalmente, significa que janta ao meio-dia, isto é, que toma uma refeição àquela hora. Quem o fazia, em Paris, no tempo de Zola, eram as costureirinhas. São elas as midinettes, referidas por Broch. Nelas se consuma a sentimentalidade ingénua e a simplicidade frívola. Todo essa gente que ganhava a vida costurando para que outros andassem vestidos, estava à partida excluído da grande arte, mesmo quando não era assim tão grande ou não era mesmo arte. Contudo, o primeiro nome que refere o escritor austríaco é o de Hedwig Courths-Mahler, uma escritora alemã que escreveu mais de 200 romances de amor, na primeira metade do século XX, que por certo fariam o encanto das descendentes sociais das costureirinhas parisienses. Podemos imaginar que os romances da senhora Courths-Mahler tocariam a sentimentalidade ingénua e a simplicidade frívola de qualquer costureirinha. A vida da autora, porém, está longe de ter sido cor-de-rosa e é possível que tenha sido pouco dada a frivolidades e ingenuidades. Quando se julga que a grande arte resulta de vidas ricas e duras, é possível que se esteja errado. O mais plausível é que entre arte e vida exista um claro divórcio, e só por uma ingénua e frívola concepção de arte se pensa que esta tem a sua causa eficiente no que foi vivido pelo artista.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

A primavera outonal

O tempo continua a passar. Não é uma abertura brilhante, mas talvez seja verdadeira. O talvez deve-se a não haver certeza de que exista uma coisa a que damos o nome de tempo. Ora, se o tempo não existir, então não pode passar. Estou a perder-me. A manhã foi passada em estágio para o que iria acontecer à hora de almoço. Essa preparação foi acompanhada por um número infinito de concertos para rebarbadora e corta-relva. Não sou refractário à música contemporânea, mas há coisas que excedem os meus poderes. Às empresas que foi concessionada a manutenção dos jardins e parques municipais falta-lhes a sensibilidade que havia nos antigos serviços camarários, onde tudo era mais lento e com enormes intervalos que deixavam o auditório descansar contemplativamente. Pela hora de almoço, dei entrada no bloco operatório para excisão de um sinal no pé esquerdo. As enfermeiras, antes da chegada dos médicos, anestesista e cirurgião, falavam de sopa de tomate, se era refogada, se era à alentejana, conversa que desembocou em tomatada com ovos escalfados. Chegados os médicos, a conversa mudou de rumo. Cheguei a participar dela, mas já não me lembro bem qual o assunto. Uma anestesia no pé acaba por ter um efeito na mente. A continuar assim, chego ao fim-de-semana cheio de aventuras, para ilustrar a minha gesta. O pior é conseguir andar. Vale-me um poema de Hermann Broch que, a certa altura, diz, na tradução francesa: Oh printemps automnal ! / Il n’y eut jamais de plus beau printemps que cet automne-là. / Le passé se mit à pousser des bourgeons, toutes les fleurs s’épanouirent / C’était le calme délectable qui précède l’orage. / Le Dieu Mars même souriait. Só espero que a tempestade seja no mar alto, naqueles lugares onde nem os barcos passam. Só espero que Marte, depois de sorrir, se sinta furioso por terem sido frustrados os seus planos, pois mesmo um cavaleiro andante tem os seus limites.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Luta com um moinho de vento

Comecei o dia da melhor maneira possível, irritando-me com a pessoa que me atendeu, através de contacto telefónico, num serviço público. Conforme ia pondo as questões, respondia-me com a ironia que se utiliza perante a insistência de estúpidos contumazes, a que se associava um tom paternalista, maternalista, no caso, para vincar a sua supina superioridade intelectual perante um representante imaculado do império da estupidez. Que eu seja estúpido, aceito-o com bonomia, pois ninguém pode fugir ao que é. Que outros me pensem estúpido, também o aceito sem reclamações. Que comentem nas minhas costas a infinita estupidez de que sou proprietário também não me levanta qualquer objecção. Que me o façam notar, isso ultrapassa a linha da vida civilizada. Eu sei que era cedo, mas a pessoa é paga para responder a questões e prestar esclarecimentos. Se está descontente por não poder, no exercício das suas funções, candidatar-se a prémio Nobel do que quer que seja, paciência, procure outra ocupação onde possa chegar à glória. Eu compreendo que a função seja de um aborrecimento mortal, que as pessoas lhe ponham mil vezes as mesmas questões, mas ninguém tem culpa da natureza esotérica da burocracia nacional, nem da inimizade para com o cidadão com que são construídos os sites dos serviços públicos. A certa altura, acabei por me irritar e dizer que ela estava ali para prestar esclarecimentos, que era essa a sua função e que também lhe cabia ter paciência para os que estão perdidos nos arcanos da literatura pública. Não foi bem assim, pois não perceberia a linguagem. A partir daí a situação tornou-se mais produtiva e os esclarecimentos foram prestados, descodificando siglas e não sei mais o quê, dando as informações pretendidas. Não há como começar a semana com um combate com um moinho de vento.

domingo, 17 de setembro de 2023

Domingo

Gosto destes dias de chuva, cada vez mais raros, de fim de Verão. Somos devolvidos a um mundo mais sério e autêntico, marcado pelo cheiro da terra molhada. O Verão é um tempo fantasioso, apesar do calor funesto. Agora, o Sol brilha, mas há pouco chovia intensamente. Não tarda, o Sol será ocultado por densas barreiras de nuvens escuras e a água cairá mais uma vez dos céus para fecundar a terra, numa manifestação da virilidade celestial e da feminilidade terrestre. O masculino e o feminino, em mitos de muitas tradições, tinham uma função ordenadora da realidade. O homem e a mulher eram apenas uma manifestação dessa estrutura que organizava o mundo e lhe fornecia um princípio de compreensão. Talvez porque vivamos numa época desencantada, onde o mito parece moribundo, o masculino e o feminino perderam não apenas a sua função estrutural, mas também a evidência com que se manifestavam. Este, porém, é um assunto que caiu no alçapão do debate ideológico e foi capturado pela política, o que o exclui deste espaço, onde um narrador dedicado cumpre as ordens de um autor que decidiu rasurar esse assunto que tanto ocupava o ócio dos cidadãos gregos. Descubro, não sem surpresa, algumas folhas amarelas nas acácias da praceta. Vêm muito mais cedo do que o habitual. O chão molhado do campo de jogos da escola aqui ao lado reverbera. Na rua, não passa ninguém. É domingo e a vida parece suspensa. Ah passa um carro, vagaroso e tímido. Não tarda, recomeça a chover.

sábado, 16 de setembro de 2023

Uma tarde desportiva

Passei parte da tarde a ver o jogo de Râguebi. Portugal perdeu, mas não seria de esperar outra coisa, já que o País de Gales pertence a outra galáxia. Contudo, não foi mau, a distância entre ambas as selecções já não é infinita. O gosto por esta modalidade, ocorrência não muita antiga, acabou por ser uma reminiscência. Na adolescência, numa época em que já teria nascido a RTP 2, eram transmitidos os jogos do Torneio das 5 Nações, aos sábados à tarde. Se não tinha nada melhor para fazer, ver os jogos era uma alternativa muito decente a estudar. Passada essa época, o Râguebi foi esquecido, mas há uns vinte cinco ou trinta anos, já nem sei bem como, voltei a ver, sempre na televisão, jogos de Râguebi. Quando posso – isto é, quando passam em canal aberto, já que não assino canais desportivos – vejo um jogo. Dá-me mais prazer do que o futebol, pois o ethos do jogo é muito diferente, mais decente, sem manhas e truques, sem perdas de tempo, sem violência, apesar de ser muito duro. Há muito que não tinha uma tarde desportiva.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Silêncio

Sexta-feira tornou a ser um dia de libertação e, ao mesmo tempo, de melancolia, pois sabe-se que a libertação é passageira, e as duras garras da realidade voltarão mais depressa do que se deseja. A madrugada desponta e mais um dia / Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da madrugada / Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui / Ou ali, ou algures. No meu começo. Por mim, penso ao ler estes versos de Eliot, deixava ir o calor, pedindo ao vento do mar que o levasse para longe, e ficava com o silêncio, pois não tenho outro começo que não o silêncio. É nele que tudo começa, mesmo o ruído mais abominável ou o gesto digno do maior louvor. O silêncio é uma casa, a minha casa comprada sem prestação mensal, sem pagamento a pronto, herdada dos dias de nevoeiro ou das noites veladas à luz estelar. Caminho pelos corredores do silêncio, entro em cada um dos seus quartos, em cada uma das suas salas, e ele é sempre diferente, como são diferentes os dedos de uma mão. Há dias em que habito não o silêncio, mas o vento, um certo vento que desliza sobre a terra de um modo que só eu reconheço. Dançava diante da escola onde aprendi a ler, e por isso aprendi a ler, e se amo a leitura foi porque amei antes dela o vento que a trouxe, nesse começo que era, ao mesmo tempo, começo e continuação e, ainda, fim, mas isso eu não sabia, pois nesse tempo a sexta-feira ainda não era um dia de libertação. Tudo era então mais lento, e havia que esperar a chegada do sábado ao início da tarde, quando saía da escola, e o vento esperava por mim para me guiar à casa do silêncio, onde ouvia as vozes que dobavam, para o meu prazer, o silêncio infinito que me cabia.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Solipsismo neurónico

Retorno a uma das minhas ocupações desesperadas. Consultar as previsões para a evolução do estado do tempo. Tornei-me um amante da meteorologia. O calor retornou e o corpo, miserável e incapaz, protestou, recusando-se a grandes pressas. O pior, contudo, é o cérebro. Sinto-o empapado, sem vontade que nele os neurónios se entreguem à feroz actividade exigida pelas sinapses. Quando o calor cai sobre mim, os neurónios, todos eles, tornam-se solipsistas e recusam qualquer contacto com outros neurónios, cuja existência é negada não sem veemência. Em dias como o de hoje o meu cérebro é habitado entidades solitárias que se negam a trabalhar. Daí os meus pensamentos serem o que são, fruto de uma mente implantada num cérebro deliquescente.  Apesar disso, nem tudo tem sido mau. Recebi uma notícia agradável, relativamente inesperada, mas cujo conteúdo omito. Falo do assunto, para evitar espalhar a impressão de que só me preocupo com os males e não dou a devida atenção aos bens recebidos. Imagino que a esta hora o calor tenha declinado e vou sair um pouco. Talvez o vento me arrefeça o cérebro, os neurónios comecem a trabalhar e me nasçam algumas ideias que, caso não as esqueça, utilizarei amanhã.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Paisagens

Em 2020 foi roubado do museu de Groninger um quadro de Van Gogh. Foi agora recuperado. O título da obra é O Jardim do Presbitério Neunen na Primavera. Tudo no quadro, porém, é outonal, as corres sombrias, a natureza representada, mesmo a figura humana com o seu vestido negro. Imagino que uma pintura destas não fosse possível num país do Sul da Europa. Também não consigo imaginar uma indiferenciação entre o crepúsculo que antecede a noite e aquele que anuncia a manhã. É possível que aquilo que cada um é e o modo como vê e representa o mundo dependa tanto da geografia como dos genes. Imagino que sejamos filhos das paisagens, pois são elas o pano de fundo onde se desenrola o drama de cada um. Quanto mais poder essas paisagens têm sobre nós, menos damos por elas. Tornaram-se carne da nossa carne. Aquelas que se impõem à atenção são as que são estranhas. Podem ser belas, mais belas que as nossas, mas nelas somos sempre estrangeiros. Talvez o jardim do presbitério de Neunen nunca tenha sido abençoado com uma Primavera.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

O absoluto

É na “Introduction” à sua obra God, Freedom and Evil que o filósofo norte-americano Alvin Plantinga propõe a distinção entre crer em Deus e crer que Deus existe. Nesta última formulação, crê-se que um conjunto de proposições acerca de Deus são verdadeiras. Na primeira formulação, a crença ultrapassa dimensão epistemológica e implica um compromisso com essa crença. Seria um compromisso com o absoluto e, para ser autêntico, seria um compromisso absoluto. Esta ideia de um compromisso absoluto, a certa altura da história da Europa, e a Europa é muito mais do que a Europa, emigrou da relação com o divino para outras áreas. Para a política, para a arte, para o amor. Em todas estas dimensões, a procura do absoluto redundou em desilusão, no melhor dos casos, ou em tragédia, como aconteceu nessa terrível ligação entre a política e o absoluto. A razão de ser da desilusão ou da tragédia é fácil de compreender. Nem na política, nem na arte, nem no amor, existe um absoluto, ao qual alguém se possa entregar até à extinção de si, do seu ego. Aqueles são sítios humanos, demasiado humanos, para que o absoluto resida neles. A distinção de Plantinga é interessante não porque assegura que Deus existe, mas porque, sub-repticiamente, mostra que crer em Deus, nesse absoluto absolutamente perfeito, é uma resposta, a única resposta, ao desejo de um compromisso absoluto que habita o coração de muitos seres humanos, senão de todos, mesmo que disso não tenham consciência. David Hume estava errado ao pensar que a ideia de Deus tem a sua origem numa reflexão sobre as operações da mente humana e eleva sem limites essas operações de bondade e sabedoria que encontrou na mente humana. A ideia de Deus nasce de uma fome de absoluto, de um desejo que as coisas terrenas, mesmo as mais sublimes, não saciam. Dito de outra maneira, a ideia de Deus nasce do desejo humano. Nada disto prova, porém, que Deus existe, mas também não prova que não existe.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Uma rapaziada

Tudo tem um tempo. Findo este, tentar prolongá-lo torna o prolongador não apenas insensato, mas também ridículo. Uma consulta, na capital de distrito, antes de almoço. Outra, na capital do antigo reino, depois de almoço. A conjugação das duas levou à supressão do almoço. De retorno a casa, sem almoçar tive a estulta ideia de uma rapaziada. Que tal uma sandes de leitão, ali mesmo à saída da auto-estrada? Se bem o pensei, melhor o executei. Na altura, tudo me pareceu perfeito. Depois descobri o ridículo de um narrador a quem retiraram a vesícula, a biliar, crer que tinha direito a certo tipo de rapaziadas. Não tem. Resume-se nesta experiência trivial todo o drama metafísico da finitude do homem, a tensão entre um desejo infinito – nem que seja de uma sandes de leitão, num dia sem almoço – e os limites de um corpo. Salvou-me o dia a pontualidade dos médicos, eu que tantas vezes sublinho a sua tendência para os mais inexplicáveis atrasos. Como castigo, além da caminhada, embora lenta, que já fiz, eximo-me à tarefa de jantar. Entrego-me, como penitência, ao jejum, embora a Quaresma ainda venha longe, mas já ninguém jejua na Quaresma. Agora jejua-se não por amor a Deus, mas por amor à forma física, isto é, por amor a si mesmo. Temo que o meu próximo jejum se inscreva nesta última categoria. Também é verdade que quem quer conquistar a glória do altar não se torna narrador e não se põe a escrever sobre coisas sem nexo, o que, segundo a crença de Einstein, não é particularmente bem vista por Deus, o qual, di-lo o eminente físico alemão, não joga aos dados e muito menos à roleta russa, acrescento eu.

domingo, 10 de setembro de 2023

Contra a querela

A certa altura, no século XVII, desencadeia-se em França uma querela que ficou famosa, a denominada Querela dos Antigos e dos Modernos. Que tipo de arte é superior, aquela que imita os clássicos greco-latinos ou a que pretenda inovar? Como acontece nestes conflitos de ideias, as posições extremam-se e acabam por parecer incompatíveis ou mesmo incomensuráveis, como se a arte clássica e as suas imitações pertencessem a um universo e a arte moderna pertencesse a outro, e entre eles não houvesse possibilidade de estabelecer mediação. Muito curiosamente a Querela estava fundada numa exclusão, a da arte medieval, de acordo com a ideia de que a Idade Média tinha sido uma era de trevas. Havia no espírito do tempo uma propensão para a exclusão. O que fará sentido, porém, é a atitude contrária, perceber que a arte de uma certa época terá de carregar com o peso do passado, terá de apropriar-se das tradições e reinventar-se nesse solo mil vezes adubado e por isso fecundo. A que propósito vem isto? Ocorreu-me e não encontro razões conscientes para falar deste assunto, mas é plausível pensar que haverá razões inconscientes que, através dos artifícios que só o inconsciente conhece, tivessem desencadeado em mim a vontade de escrever sobre ele. Talvez, ao contrário ao dos modernos, o meu inconsciente não esteja inclinado a matar o pai, dando-lhe um lugar e fazer da arte um lugar onde o novo, o inédito, se insere num culto dos antepassados, como acontece em certas tribos arcaicas.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Uma inclinação nacional

Hoje, pisei a areia pela primeira vez este ano. Quase ninguém no areal, o mar enrolado em algas, um céu cinzento. Eis, para mim, um dia perfeito de praia. Passeei com o meu neto e tive de esforçar-me para correr atrás dele. Valeu a pena depois de uma manhã inteira entregue ao ócio da realidade. É provável que sofra de um défice cognitivo não diagnosticado, mas ainda não consegui perceber a capacidade que as pessoas têm para inventar coisas cuja utilidade é zero, ou, para ser mais rigoroso, negativa. Imagine-se uma qualquer instituição, pública ou privada. Imagine-se ainda que se acha que ela tem de ser melhorada. O que acontece muitas vezes é que as acções tomadas para a melhorar a tornam pior, acelerando a sua decadência. Creio na existência de um gene português que nos inclina para a irrelevância e perdição. Agora, vou ao parque infantil, embora não me seja permitido andar de baloiço e deslizar no escorrega.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Essa é uma questão filosófica

Mas essa é uma questão filosófica, e, após a sentença, continuou a derramar sobre o assunto, para logo de seguida acrescentar, para vincar a certeza, mas essa é uma questão filosófica, o que não foi suficiente para acalmar o derramamento, pois este prolongou-se até chegar novamente ao estribilho, o motivo real do escrito, mas essa é uma questão filosófica. O assunto não vem ao caso, a escrita aconteceu numa caixa de comentários de um blogue, cujo nome e autor omito. Fiquei a meditar no sentido da frase, enquanto olhava o céu. Uma parede de nuvens apresentava, por vezes, abertas por onde passavam quentes e ameaçadores raios solares. A expressão é usada, amiúdo, num sentido pejorativo. Quer dizer: essa é uma questão obscura que não interessa a ninguém. Outra possibilidade é que sobre essa questão cada um diz o que lhe der na veneta, como se sobre o assunto pudesse exsudar os sentimentos que lhe atormentam a alma. O estranho é que as questões filosóficas são, em geral, claras e pouco consentâneas com a democratização opinativa corrente, porque a generalidade das pessoas não tem capacidade para as pensar – mais por falta de disciplina, do que de inteligência – e aquilo que as pessoas chamam pensar não passa de uma amálgama de desejos, sentimentos, emoções, interesses pessoais, tudo articulado por uma sintaxe generosa que permite confundir expressão com pensamento. Quando se ouve, e tantas vezes se ouve, mas essa é uma questão filosófico, o melhor é pensar que é um ouriço-caixeiro ou uma zebra pintada de azul a sair do autocarro que vai para o Cais do Sodré, pois, por certo, não será uma questão filosófica. O mais provável é ser um eflúvio que se desprendeu de uma mente sobressaltada com qualquer emanação vinda de um órgão do corpo em funcionamento deficiente. Também é verdade que se o meu corpo fosse completamente são, não teria escrito este texto, mas a manhã vai avançada, tenho coisas para fazer e espero, depois de almoço, o meu neto.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Experiências matinais

Hoje fui a uma agência bancária, sítio onde não ia há muito. Fiquei espantado. Quase não havia funcionários, também eram poucas as pessoas que solicitavam os serviços desses funcionários. O lugar para o público combinava o aspecto de uma sala de espera de um consultório médico com o de um café. Tudo se resolveu com rapidez, no meio de um silêncio reverente, o que me fez suspeitar que aquilo seria também uma espécie de igreja, com bar e lugar para os crentes prepararem as suas confissões. Um exemplo de metamorfose moderna, que ainda não descobriu o seu Ovídio para a cantar. Ao sair, encontrei o mundo profano que deixara ao entrar. Respirei fundo e caminhei descansado para o carro. Chegado a casa, depois desta vibrante aventura, dei uma vista de olhos pela imprensa online. Parece que as máscaras estão a começar a voltar aos hospitais, ainda por causa da COVID-19. Temo que esse retorno se propague. O que me chocou, porém, foi saber que a nossa espécie esteve quase para não chegar à existência. Um tenebroso colapso populacional, ocorrido há 900 mil anos, reduziu os nossos antepassados, em idade reprodutiva, para cerca de 1280. Note-se a precisão do número aproximado, passe a incongruência. Não foram cerca de 1300 ou de 1200, mas cerca de 1280. Foi uma sorte esses 1280 não terem entrado todos num convento e feito votos de castidade ou terem trocado os encontros presenciais por contactos virtuais, ou mesmo terem achado o sexo uma prática repugnante e desistido dela. Não, fiéis ao compromisso que tinham para assegurar que nós haveríamos de existir, decidiram nada de entradas em conventos, nada de uso de telemóveis, nada de repugnâncias com a troca de fluidos. Sacrificaram-se, usando os sexos, para que nós tivéssemos a possibilidade de vir à existência. Devemos admirar e honrar o seu altruísmo.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Assim seja

Hoje tomei um banho não no mar, mas na realidade, e esta é opressivamente maçadora, mata o espírito de uma pessoa pelo tédio. Não passa de uma água chilra, onde se adiciona uma quantidade significativa de soporíferos, ao mesmo tempo que se mistura doses significativas de fantasias adequadas à primeira infância. Nunca fui adepto das desconstruções, mas posso converter-me às desrealizações, uma tarefa hercúlea para tornar manifesto quanto a realidade é perversa. Quase podia fazer minhas as palavras do primeiro verso do “Recanto 11”, de Luiza Neto Jorge, O verão deu-nos uma volta aos olhos. Só não faço, porque não é necessário o Verão para nos dar a volta aos olhos, basta a realidade, basta a existência de realistas, simulacros de seres humanos que dizem amar a realidade e que com eles não há cá fantasias. Esta gente dá-me volta aos olhos, põe-me estrábico, como se os olhares que me saem de ambos os olhos fossem cordéis a que deram nós cegos. Estou com pouca paciência e tenho uma caminhada pela frente, de onde posso varrer, caso tenha cuidado com a circulação, a realidade realista. É uma forma de me lavar do contacto com o real. Assim seja.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Notas biográficas

A minha vontade, alimentada por uma inclinação natural, era de falar sobre o tempo, não a duração, mas o clima. Contenho-me, pois não tenho habilitação meteorológica, e o que é demais, é demais. Já para falar da duração, teria habilitação, desde que não falasse mais de três minutos, o que é obviamente pouco. Talvez pudesse discorrer acerca do conflito entre guelfos e gibelinos, mas isso foi há tantos séculos que, apesar de ter participado nessas lutas, já não me recordo do resultado, nem do lado a que ofereci os meus primeiros serviços, embora, como se sabe, tenha combatido ora de um lado, ora de outro. Se foi essa a verdade, pois tudo em mim está difuso, não se pense que eu chefiava uma comandita que usava mercenários para combater pelo lado que melhor pagasse. Nesse tempo, o meu espírito ainda não se tinha rendido à economia de mercado. O que me movia nesses séculos finais do medievo, se bem me recordo, era um espírito de equanimidade, no sentido de advogar a igualdade e a imparcialidade, oferecendo os meus serviços a quem estivesse em pior posição, de modo a repor a igualdade entre os contendores. A minha alma não se movia nem pelo papado nem pelo império, mas pela ideia de equilíbrio. Consta que esta posição foi, desde muito cedo, atacada, pois ela significava um prolongar infinito da guerra. Para que haja paz, é necessário que uma das partes fique mais fragilizada e se submeta, o que acabaria por promover a felicidade do maior número de intervenientes no conflito, argumentou-se. Ora, posso jurá-lo, nunca o utilitarismo me moveu, o que me terá levado a rejeitar com acinte as críticas, continuando apostado na promoção de equilíbrios, sempre que um desequilíbrio surgia. Tudo isso se passou há muito, bem antes de ter partido nas naus portuguesas e, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, ter aportado a terras de Vera Cruz, e ter acompanhado a redacção da carta de Pêro Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel, o primeiro dessa denominação no rol dos reis pátrios. Cansado de tantas peripécias, sento-me agora à janela e vejo a chuva cair, para adormecer de seguida, acordando se algum trovão ribomba, sentindo um leve ânimo se o horizonte se abre num clarão ou um raio fende a atmosfera cinzenta e entra pela terra.

domingo, 3 de setembro de 2023

Pobres planos

Chove e troveja, venta, parece um pequeno temporal, com um céu de cinza e chumbo. Lamento os meus planos, pobres enganos. A caminhada da tarde, com os respectivos pontos cardio, está comprometida. Resta-me esperar que S. Pedro, o meteorologista-mor em exercício, se apiede de mim e mande suspender o temporal. Os santos, todavia, regem-se por uma lógica que os pobres pecadores não compreendem. Não sei se isso será da santidade ou da falta cultura filosófica. Talvez São Tomás de Aquino seja mais lógico, mas não lhe foi dada a incumbência de reger o clima. Pior do que isso acontecia, segundo o poeta Rilke, ao Rei de Münster: Já não se sentia legitimado: / o senhor nele era moderado / e o coito era falhado. Talvez a pobre majestade tivesse medo da trovoada, o desejo sucumbisse ao ruído dos trovões e o sentimento real se apagasse à luz dos relâmpagos. É possível que impérios tenham caído por coisas de menos importância. Portanto, podemos pensar que o brevíssimo reino de Münster tenha sucumbido por motivos tão triviais como esse. Convém, no entanto, não confundir os reinos de Munster e de Münster, o primeiro, na ilha da Irlanda, foi duradouro, o segundo, na Vestefália, resistiu um ano. Foi governado por Jan Leiden, um alfaiate holandês, de orientação religiosa anabaptista, e proporcionou não pouca diversão. Para além de tornar obrigatório o rebaptismo, pôs em comum os bens e decretou a poligamia. Imagino que as competências do alfaiate não estivessem ao nível do que era proposto, o que permitiu que os inimigos da experiência sitiassem a cidade, se apoderassem da corte tresloucada e executassem os seus membros. Se me perguntarem qual a opinião de S. Pedro e de S. Tomás, confessarei que não faço a mínima ideia. Talvez, no momento da conquista da cidade, S. Pedro tenha mandado uma tempestade, e S. Tomás, escrito, no paraíso celeste, mais umas páginas da Summa Theologica. Isto, porém, são especulações intempestivas de alguém que é, por natureza, anacrónico. Os trovões calaram-se, mas continua a chover. Münster será reconquistada.

sábado, 2 de setembro de 2023

Curva de Gauss

É no início do décimo primeiro capítulo do romance A Rebelião que Joseph Roth escreve: O dia em que Andreas devia comparecer no tribunal despontou como um dia inteiramente normal, como todos os dias que o tinham precedido. Imagino que seja este paradoxo que torna a vida possível. Qualquer acontecimento anormal – uma ida a tribunal, um casamento, uma declaração de amor, a morte – tem o seu lugar na existência no quadro de um dia normal. Isto significa que tudo o que é excepcional, tem por pano de fundo a trivialidade, e esta acaba por colonizar o extraordinário, contaminando-o com a sua vulgaridade. Os antigos gregos – por exemplo, o velho Aristóteles – viam no espanto o início do filosofar. Ora, este não é mais do que a redução desse assombro, desse espasmo perante o anormal, à normalidade da investigação. Os seres humanos, por muito que pensem o contrário, não foram feitos, nem lhes foi dado por destino, o viverem na assombração. Por isso, os dias, com a sua variabilidade sem fim, nunca deixam de ser normais, para que nós possamos adoptar a nossa anormalidade a essa norma e evitar um destino funesto, como sermos fulminados por um raio ou transformados em estátuas de sal. Por muito que protestemos, as nossas vidinhas, mesmo quando matamos dragões e combatemos gigantes, cabem todas dentro da curva de Gauss.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O encoberto

Hoje foi o dia em que estive mais perto da areia. Passei pela travessia que divide duas praias com o mesmo nome, mas que se distinguem por que uma é do Norte e a outra do Sul. O caminho aliás é duplo, um para carros, em alcatrão, e outro para peões, em cimento. Passei por ali como peão e fui sentar-me numa esplanada voltada para a praia do Norte, onde, outrora, passeava e mergulhava nas águas frias do Atlântico. Estava um dia espantoso, com um enorme nevoeiro que mal se via o mar. Havia pessoas deitadas na areia a apanhar banhos de névoa. Esta, com o passar dos minutos, ia ficando mais densa. Do mar veio o barulho de uma sirene ou qualquer coisa do género. Pensei que seria o barco que traria D. Sebastião. Se ele vinha, não desembarcou. Penso, porém, que qualquer rei encoberto, mesmo quando chega a algum sítio, nunca perde essa característica e, por mais que se manifeste, nunca deixa de estar oculto. Este texto, em particular este último período, é a minha contribuição teórica para o desenvolvimento do sebastianismo em Portugal, talvez a mais importante de Fernando Pessoa para cá, ou mesmo desde antes dele. É plausível, penso agora, que o nevoeiro seja uma forma de me contrariar, quando penso que o Verão se vai prolongar por dentro do Outono. Será, antes, o contrário, uma invasão outonal na terra do Estio. O jovem Werther reforça esta intuição, pois de uma intuição se trata. Diz ele, a 4 de Setembro, apesar de estarmos a um: Tal como a natureza se encaminha para o Outono, também dentro de mim e em meu redor faz-se Outono. As minhas folhas amareleceram e as folhas das árvores vizinhas já caíram. Ele, tão jovem, parece-me muito impressionável, mas, é preciso não o esquecer, está apaixonado e sofre, uma coisa que, em naturezas delicadas e submissas às impressões, pode acabar em suicídio, embora eu não seja psicólogo para o asseverar. Quanto à areia, consegui não lhe tocar. Na esplanada, estava um casal alemão, mas não me constou que fosse Werther, agora menos jovem, e a sua amada Lotte. Ele talvez fosse o encoberto, quem sabe?

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Requiem

Está nas últimas, este Agosto, mas mesmo nas vascas da morte há-de prolongar o seu espírito pérfido até bem dentro de Outubro, baforando calores e, como um dragão desatinado, lançando sobre a terra o fogo aceso com o fósforo dos infernos. Perante mim, repousam dois romances portugueses, um do ano de 1955 e outro de 1964. Em comum têm as folhas por cortar, o que me vai obrigar a um prolongado exercício, pois em conjunto somam quase 900 páginas. Um, o de 1964, ainda contém uma assinatura ilegível e a indicação de Lisboa /Dezembro /1967, assim como se fosse a estrofe de um poema experimental, onde nem faltou o aspecto gráfico de um traço sob o ano. O outro não tem vestígios do seu passado. O autor escreveu algumas obras catalogadas por ele, presumo, como sátiras sociais. Também escreveu um estudo patológico, imagino que seja um romance naturalista, onde ficcionará um qualquer carácter mórbido, neste caso de uma mulher, pois a obra tem nome de mulher. Consta que tinha inclinações políticas doentias, não muito diferentes das do grande Knut Hamsun, mas, por certo, faltar-lhe-á o génio deste. Não se pode ter tudo, apesar de ter um título, daqueles que Almeida Garrett dizia: Foge, cão, que te fazem barão. Ao que o pobre animal respondia: Para onde, se me fazem Visconde? Não quer este narrador fazer espúrias comparações, pois é distante o talento de um e outro, mas está ele, o narrador, quase como Vitorino Nemésio no programa televisivo Se bem me lembro. Começava a falar em alhos e acabava em bugalhos, num exercício estilístico onde imperava a corrente de consciência, coisa que parece ter tido a sua origem literária no Hamsun, já aqui aludido, e teve em Joyce um dos grandes cultores. Eu também me entrego à corrente de consciência, não porque queira ficcionar o que se passa na minha mente, mas porque tenho uma percepção deslassada do mundo. Não se pense que uma coisa deslassada não tem importância. Ainda ontem, por aqui, um bolo deslassou, o que foi acolhido com grande consternação e não menos pesar. Descobriu-se, depois, que houvera uma troca de um dos produtos, efeito de uma confusão no momento da compra. Aventou-se que seria uma estratégia comercial para escoar certas mercadorias, mas concluiu-se, de modo prosaico, que fora apenas a falta de óculos. Este é o meu requiem pelo mês de Agosto.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A morgada e o castelhano

A sonoridade do castelhano é muito desagradável, comentei. Na esplanada, um casal espanhol conversava. A certa altura dei por mim a escutar não o que diziam, mas a música utilizada para dizerem o que diziam. Ela era, apesar da idade, uma mulher muito elegante, o mesmo, quanto à elegância, não se podia dizer dele. Pensei que ela devia usar outra língua, o italiano, talvez o francês. Ficar-lhe-ia tão bem quanto aquilo que levava vestido. Ele podia – melhor, devia – continuar a usar a algaraviada dos nossos vizinhos, que, por vezes, parece uma selecção de grunhidos emitidos por alguém indisposto. Estou a ser injusto. É possível que o português, aquele que usamos na Europa, também não seja muito agradável para ouvidos alheios, embora a variante do Brasil, com a sua musicalidade, diz-se que perto daquela que era usada por cá no tempo de Camões, possa aproximar-se do agrado que italiano e francês proporcionam ao ouvido incauto. Não era disto que queria escrever, mas da morgada de Romariz, que conheci há pouco. Antes de se perguntar quem era a morgada, mais vale saber como era ela. Era uma senhora de espavento, avermelhada, com as frescuras untuosas e joviais dos quarenta anos sadios, seios altos e aflantes, pulsos roliços e averdugados pela compressão das pulseiras cravejadas de esmeraldas e rubis. Podemos assim imaginá-la, talvez com uma certa inclinação lúbrica, na sua frescura untuosa, na jovialidade que lhe cabia aos quarenta anos, mas quem era ela? A mulher do comendador Francisco José Alvarães e, mais que qualquer outra coisa, personagem criada por Camilo Castelo Branco. Imaginemo-la no teatro, ao lado do marido, assistindo à representação de Santo António, o taumaturgo. O que podemos ver? Ora, a morgada de Romariz, lagrimando com inteligência na prosa da oratória, assim que algum personagem pegava de rimar, ria-se. Persuadira-se de que a missão dos versos era como a das cócegas. E talvez a morgada tivesse razão. Era uma morgada a que não faltava filosofia, mas essa é uma história que não me cabe contar. Imagino que, apesar dos seios altos e aflantes, não seria injusto que falasse castelhano, ao contrário da castelhana da esplanada. Este mundo é pouco inclinado à perfeição.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

O melhor do mundo

Nova viagem de ida e volta ao sítio de há uma semana. Contudo, a distância foi significativamente menor, apenas oito graus Celsius. Para lá do me levou ao lugar onde passo o ano quase inteiro, tive a oportunidade de almoçar com o meu neto. A princípio o diálogo foi evasivo, mas a partir do momento em que entrou em cena uma pistola, tudo mudou de figura. Não se pense, todavia, que é uma daquelas pistolas que eu tive em criança para imitar os filmes de cowboys, as que tinham rolos de fulminantes e eram usadas em épicas perseguições e combates de bons e maus, de índios e os ditos vaqueiros do Arizona ou do Texas, ou sei eu lá de onde. A tia que lhe ofereceu a arma jamais pensaria numa coisa dessas. É uma pistola transparente com um mecanismo interno que rodopia, ao ser accionado pelo gatilho, e produz vento, acendendo ao mesmo tempo uma luz. A finalidade não é participar numa batalha decisiva entre o bem e o mal, mas mergulhar a ponta numa espécie de godé com um líquido que, depois de empurrado pelo vento produzido pelo tiro, se transforma em inúmeras bolas de sabão. Seja como for, serviu para fazermos experiências, calcular a pressão a exercer pelo dedo de modo a regular o tamanho das quimeras que, depois de voltear por uns instantes, logo se desfazem. Constatei, mais uma vez, que Grande é a poesia, a bondade e as danças… / Mas o melhor do mundo são as crianças. Tenho de comprar uma para mim, para me entreter nas horas vagas, e, caso haja à venda, outra com fulminantes, para lhe oferecer.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Pecado de Onan

Fim de festa, por aqui. Pouca gente nas praias, pouca gente nas esplanadas, pouco trânsito. Tem sido um bom ano de praia. Ainda não pus os pés na areia, mas tenho sérias e fundadas dúvidas que consiga levar a proeza até ao fim, e este ainda vem relativamente longe. Um poema de Fernando Guimarães tem por título o nome de uma poetisa, Anna Akhmatova. Penso que os poemas não deveriam ter título, mas suspeito estar enganado. Os títulos estão para os poemas como os nomes para as pessoas, alguém, na minha mente, argumenta. O problema será esse, respondo também dentro da minha mente. É um diálogo mental. Problema? Sim, pois ninguém é o seu nome. Um nome, continuo, é uma etiqueta e, mais do que isso, uma forma de obstar a que cada um se confronte com a questão quem sou eu? O nome oblitera a indagação, pois apresenta uma solução juridicamente suportada. Não rasura apenas essa questão, mas também a que viria a seguir, o que sou eu? Ora, se um nome tem este efeito de obscurecimento para uma pessoa, também um título oculta, nessa enunciação breve, o mundo que se apresenta no poema. Depois, ainda na minha mente, eu digo que talvez não existam poetas e poetisas, nem poemas, nem títulos, a não ser em mim, uma das muitas ilusões que o génio maligno encontrado por Descartes lá põe para eu imaginar que existe um mundo onde há praias com areia, esplanadas, poemas e outras coisas insensatas que estou sempre a imaginar que existem. Pergunto-me, por vezes, sobre as razões que levaram esse génio maligno todo-poderoso a criar só a mim, isto é, só a minha mente, que ele se entretém, eternidade atrás de eternidade, a enganar, criando nela quimeras. O mais terrível pensamento que me ocorre é que o génio maligno sou eu, isto é, a minha mente que se autocriou para derrotar o nada e se entreter a si mesma num onanismo cognitivo produtor de fantasias. Estas são causa, como se sabe, de não poucos exercícios onanistas, caso estes existam, coisa pouco provável, pois exigem um corpo, daqueles corpos que andam pelas areias da praia, mergulham nos oceanos e, o pior de tudo, falam. As mentes – e há só uma – não se podem entregar ao pecado de Onan, embora não exista consenso sobre o que foi realmente compreendido como pecado no comportamento do neto de Jacob.

domingo, 27 de agosto de 2023

Um simulacro

Leio um poema de Rainer Maria Rilke. Corrijo, leio uma tradução de um poema de Rainer Maria Rilke. Desconfio de algumas palavras usadas pela tradutora. Procuro o original e encontro-o online. O alemão é-me incompreensível, mas recorro a traduções automáticas e confirmo que há palavras acrescentadas. Servem para compor a rima e, o pior de tudo, dar uma pretensa tonalidade poética à linguagem da tradução. É esta tentativa de simular uma poeticidade que constitui o núcleo central da traição que existe em toda a tradução de poesia. Poder-se-á pensar que só poetas deveriam traduzir poetas, mas mesmo isso é incapaz de assegurar a transposição de um poema de uma língua para outra. Um poema é um acontecimento irrepetível, um caso em que um certo som se combina com um certo sentido. Enquanto num texto em prosa é possível que a sonoridade não seja essencial, num poema ela é uma condição necessária. Ler um poema só é possível na língua original. Quando se lê uma tradução – e faço-o com frequência, pois são poucas as línguas em que posso ler o original – já se lê outra coisa, eventualmente, um poema, mas já não o mesmo, mas um sucedâneo ou, melhor, um simulacro do original.

sábado, 26 de agosto de 2023

Versatilidade

Acabo de bocejar, isto é, abri a boca com sono. Podia ser um sinal de aborrecimento, mas nada nem ninguém nesta hora me aborrece. O facto de não estar a fazer nada poderia aborrecer-me, mas não é o caso. Por outro lado, estando sentado à secretária sem vivalma por perto, também não posso imputar a outrem um aborrecimento. Resta-me o sono. Há razões para crer nessa solução. Um almoço tardio e generoso, um consumo no limite da moderação de um tinto, uma pequena sombra de calor, tudo isto torna verosímil o facto de ter aberto a boca involuntariamente com sono. O mais sensato seria dormir em vez de estar a escrever isto. Contudo, tenho de o confessar, estar a escrever tem, neste caso, uma função instrumental. Faz parte da luta contra a preguiça e a sonolência que, mancomunadas, me invadem o corpo. Parte desse combate está também na leitura de Chesterton. Diz ele que Carlyle terá afirmado que os homens eram maioritariamente idiotas. Isso faria parte de uma argumentação a favor da aristocracia. Contudo, o criador das aventuras do Padre Brown discorda. Na sua perspectiva, derivada do Cristianismo, todos os homens são idiotas. Parece-me uma correcção razoável e, tanto quanto se refere a este narrador, plenamente corroborada pelos factos, pelos actos, pelos escritos e pelos ditos. Não esquecer as omissões, pois também se peca por estas. Uma coisa que me espanta – para ser franco, que me assunta – é a minha versatilidade. Começo o texto pela fisiologia do bocejo e arriscava-me a acabá-lo numa meditação teológica, não fora terem-se intrometido considerações de ordem psicológica. Tudo matérias que, versatilmente, ignoro.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Meditações linguísticas

O Word tornou-se um processador de texto com ambições de grande educador dos desqualificados que utilizam a língua nacional. Não se contenta já com sublinhar a vermelho – ou será a encarnado? – os erros ortográficos, nem o descansa o tracejar a azul as frases onde desconfia uma infidelidade gramatical. Está, agora, na fase professoral de chamar à atenção dos indígenas para o uso de chavões e plebeísmos. Parece incompatibilizado com a linguagem ao gosto popular. Perante plebeísmos e frases feitas, põe-lhes por baixo uma espécie de pesponto – seja lá isso o que for – também a azul, como quem usa um sarcasmo perante uma inabilidade social. Este amor à correcção, todavia, é um inimigo encarniçado da língua, pois mata a possibilidade de evolução, que se faz, sob a designação da lei do menor esforço, por sucessivas infidelidades e traições. Não vou aqui discutir se o uso de infidelidades e traições é uma redundância, embora o Word também se agaste com ela, a pobre redundância. Aliás, este é um lugar onde a discussão foi banida, pois as opiniões expressas são tidas como dogmas inabaláveis, mesmo que no dia seguinte ou até na frase seguinte se diga o contrário ou, para ser logicamente mais rigoroso, se formule uma proposição contraditória. Note-se, contudo, que a palavra dogma é muito mais complexa do que se pensa. Aparentemente, um dogma é uma opinião imposta pela autoridade e aceite sem exame crítico, mas isso é uma aparência. Na origem da palavra dogma está o vocábulo grego dógma, que significa decisão, decreto. Como qualquer um sabe, toda a decisão pode ser anulada e todo o decreto, revogado. Na origem de qualquer dogma está a possibilidade da sua anulação e revogação. Se ele se mantém é porque resistiu às tentativas críticas de o pôr de lado, às tentativas de falsificação, para usar um chavão popperiano. O mais sensato é parar o escrito por aqui, antes que seja pronunciado por heresia lexical.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A tragédia da escolha

Decidi-me pela leitura de Mistérios, de Knut Hamsun. O escritor norueguês é um caso curioso. A sua biografia tem aspectos, no campo político, nada recomendáveis, pelos quais pagou, embora um preço muito mais baixo do que o pago pelo escritor francês Robert Brasillach. Do ponto de vista literário é um dos precursores – senão mesmo dos cultores – do modernismo, ao mesmo tempo que, enquanto pessoa, era um anti-moderno, embora afirmando, de forma hiperbólica, uma das características da modernidade, o individualismo. É possível que seja desta amálgama ideológica que nasça o poder de atracção que têm as suas narrativas. Pode-se pensar que escolher entre duas obras qual ler em primeiro lugar é uma aventura irrelevante. Sê-lo-á apenas na aparência. Nunca se tem em contra nem o drama da deliberação, com o seu pesar dos prós e contras, nem a tragédia da decisão, que implica sempre eliminar todas as alternativas menos uma. Em toda a escolha há um elemento trágico, uma negatividade que se consuma. E tudo isso traz consigo um enorme cansaço e uma indisposição para partilhar os pensamentos íntimos e as feridas a sangrar no recôndito da alma, caso este tenha veias e artérias.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Despovoamento

Até aqui, onde o Inverno começa a 1 de Agosto, está calor. Exultam os viciados em areia, raios solares e água do mar. Caem em bando pelas praias em vez de procurarem uma clínica para tratamento da adicção. Fui a uma esplanada, apenas com o nobre intuito de classificar o pastel de nata que por lá se vende, mas não me demorei, pois, mesmo sob uma sombra protectora, estava calor. O pastel de nata era bom, mas não me parece, contra outras opiniões, que mereça estar no top five ou top ten dos pastéis de nata. Contudo, não sou especialista no assunto. Recebo um email e penso que a paisagem se está a despovoar. Sou informado que morreu alguém que conheço há décadas. Não era pessoa com quem tivesse grande proximidade, mas tínhamos uma relação cordial de conhecidos de há muito. A última vez que falámos foi num serviço de lavagem de automóveis, quando esperávamos que os nossos carros ficassem com um aspecto civilizado. Não tornaremos a falar. É isso que a morte tem de tenebroso. Impede as pessoas de continuarem a falar ou de se ver. Introduz o martelo da certeza num ambiente feito de acasos e incertezas, esmagando todas as possibilidades que poderiam existir. Numa estante ao lado da secretária, está Mistérios, um romance do norueguês Knut Hamsun, a única obra traduzida do autor que ainda não li. O livro tem a capa e a contracapa pretas, mas a lombada é azul. Foi isso que me perturbou. Uma lombada azul num livro de capas pretas. Ao considerar aquele azul, designei-o como azul-cobalto. Fiz uma pesquisa para avaliar a minha designação e descubro, consternado, que são legião os azuis designados desse modo. Entre tantos, também se encontrava o da lombada, o que me pacificou. Enquanto não acabo a leitura do primeiro volume de Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, tenho de decidir se o próximo livro a ler será o de Hamsun ou o de Gyula Krúdy, As aventuras de Sindbad. Antes disso, porém, terei de almoçar.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Tal como eu

Hoje já fiz uma viagem de ida e volta de doze graus Celsius, mais doze para lá, menos doze para cá. Mesmo cá, porém, há graus a mais. Isto impede-me de caminhar, de fazer quilómetros e pontos cardio, coisa que o meu coração, suponho, agradeceria, embora eu só vejo a minha cara, e quem vê caras não vê corações, segundo a sabedoria popular. Resta-me beber água, para me hidratar. Até comprei uma garrafa daquelas que os bebedores inveterados de água usam. Como tenho sempre uma certa inclinação para o cepticismo, não sei se quem transporta esse tipo de garrafas, em vez de água, tem lá xarope de limão ou groselha, talvez aguardente. Por exemplo, as garrafas que têm pretensão a serem garrafas-termo podem conter um belo Alvarinho fresco e a pessoa vai-se hidratando sem descurar o prazer. Este é o problema da hidratação. A água é, lamentavelmente, incolor, inodora e insípida, ao contrário do Alvarinho, que tem cor, odor e sabor. No términus da viagem, decidi ir almoçar a um lugar na moda por aqui. Não bebi um Alvarinho, mas um rosé da Bairrada, que fez muito bem o seu papel. Não apenas tinha odor e sabor, mas uma cor belíssima, discreta. O sítio tem uma garrafeira, ao lado do restaurante, de boa qualidade. Tinha à venda umas garrafas de vinho clarete, coisa que, depois de décadas de abandono, parece estar em recuperação. Custavam 41 euros e eu pensei que tinham endoidecido. Dei uma volta pelo mercado online e descobri que há garrafeiras a pedir quase 50 euros por uma dessas garrafas. Tentei perceber as razões e lá descobri que o vinho foi produzido num processo relativamente complexo e que merece ser guardado, pois promete muito com o envelhecimento. Não me deixo tentar, pois olhando para a minha experiência, o envelhecimento não me tornou melhor em nada. O mais avisado é ficar por alguma coisa que seja incolor, inodora e insípida, tal como eu.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Consultório matrimonial

Descubro que as redes sociais – pelo menos aquela que, por desfastio, visito, mas imagino que as outras também – estão ao rubro por causa de um beijo público, e logo nos lábios, entre uma jogadora de futebol e um presidente da federação daquele desporto. Sobre o assunto, não tenho qualquer opinião, pois não conheço as circunstâncias, e como ensinou Ortega y Gasset, já que o caso se passa entre espanhóis, o homem é o homem e a sua circunstância, o que também se aplicará à mulher. Depois do post de ontem, onde abordo a difícil temática da dissolução do matrimónio, também posso, no de hoje, dar conselhos para o caso daquele beijo acabar em casamento. Consta – ou constou-me em tempos através de fonte bem informada – que, antigamente, quando não havia astrólogos intelectuais cheios de cursos e pós-graduções, as previsões astrológicas dos jornais, incluindo os de referência, eram entregues aos jornalistas estagiários. Faz aí os horóscopos, diziam-lhe, para acalmar a ansiedade dos caranguejos, dos touros, dos leões e, acima de todos, dos virgens. Assegura-lhes que é agora que... e acabavam a frase sempre nas reticências, o que causou engulhos em alguns candidatos, pouco dados à hermenêutica astral. Já não tenho idade para estagiário seja do que for, mas posso exercitar-me como conselheiro matrimonial, com o mesmo grau de competência que os jornalistas estagiários tinham em astrologia. Para começar, não me parece boa ideia um casamento entre uma jogadora de futebol e o presidente da respectiva federação. O motivo é kantiano. A relação hierárquica existente destrói a reciprocidade que, segundo Kant, deve existir em qualquer casamento. Daí, ele ser contra os casamentos de pessoas de classes sociais diferentes. Não por preconceito, mas por defesa da igualdade daqueles que dão esse terrível passo – o matrimónio – para poderem desfrutar do sexo do outro. Mantenho-me na linguagem de Kant, note-se. É verdade que este em matéria de casamentos tinha tanta competência quanto os tais jornalistas estagiários em astrologia, se é que neste campo pode existir qualquer competência. Provavelmente será mentira  mais um dos mitos que se criou à volta do professor Kant  mas quando, em velho, lhe perguntaram por que motivo não se tinha casado, terá respondido: quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela; agora que tenho dinheiro, não preciso dela. Juro que me contaram isto. Munido destas informações, talvez abra aqui um consultório matrimonial, a que por certo não faltará sucesso. Tenho uma alma de empreendedor.

domingo, 20 de agosto de 2023

Exclusões e omissões

A Ípsilon e o Capa separaram-se, informaram-me. É pena, respondi, gostava dos três. Dos três? Sim, da Ípsilon, do Capa e do casal que ambos faziam. Eles é que, parece, deixaram de gostar do terceiro elemento, daquilo que os fazia um casal. Isto, porém, são suposições, acrescentei, para evitar distorções comunicacionais. Sabe-se lá as razões que os outros têm para os seus actos. Nem as nossas, quanto fará as alheias. Não sei bem a causa, mas lembrei-me de uma passagem do livro de contos Ficções, de Jorge Luís Borges, onde alguém estreita com outro alguém uma dessas amizades inglesas que começam por excluir as confidências e que muito em breve omitem o diálogo. Não sei se a citação é completamente fiel, mas presumo que sim. O que se pode discutir é se a exclusão das confidências e a omissão do diálogo são condições de possibilidade da amizade – pelo menos na modalidade inglesa – ou se são uma consequência dessa amizade. Nunca esqueci esta frase e sempre a achei uma ideia reguladora das relações humanas. Fundamentalmente, na parte que diz respeito à exclusão de confidências. Pergunto-me, agora, se esse ideal das relações humanas não poderia salvar o casamento da Ípsilon com o Capa. Talvez, especulo, por defeito de formação, se desde o início excluíssem confidências mútuas e em breve tivessem omitido o diálogo, o casamento fosse mais robusto e não tivesse naufragado. A maioria das confidências que dois seres, ligados pelo desvario de Eros, fazem entre si são inúteis, e aquelas que não são inúteis, o melhor é não as fazer. Que cada um guarde para si aquilo que tem de perturbante na vida. A omissão do diálogo, numa era em que toda a gente pretende expressar-se e comunicar, terá as suas vantagens. Não havendo diálogo – isto é, não havendo recurso ao logos a dois, ao esgrimir de razões – não se dizem coisas que depois abrem buracos no pano cru da vida comum. Eu sei que esta omissão é difícil, pois todos nós temos uma acentuada inclinação para a tagarelice, mas a troca de palavras não tem de ser um diálogo. Por outro lado, e esta é a minha tese para hoje, os seres humanos têm outros recursos para além de usar os órgãos que conduzem directamente à discussão e à dissensão. Um casamento não é um parlamento.

sábado, 19 de agosto de 2023

Sem impunidade

Não é raro, pelo contrário, durante a noite, naqueles momentos que antecedem a queda no sono, ser invadido por ideias extraordinárias, assim me parecem naqueles breves instantes, sobre coisas a escrever. São projectos que estão longe da insensatez. Depois, adormeço e, ao acordar, não consigo encontrar o menor indício desses pensamentos. Julgo que a noite passada, depois de ter fechado o livro de Alexander Kluge e apagado a luz, essas ideias claras e distintas assaltaram-me, mais uma vez, motivadas, imagino, pelo que acabara de ler. Hoje não me lembrava de nada, como é hábito. Da Cónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, estão publicados, em Portugal, dois volumes. Cada um deles ronda as quinhentas páginas, mas estas são de pequenas dimensões. Parecem livros de bolso, embora com um tamanho de letra decente. Por curiosidade, fui procurar a edição francesa e tive um choque. Os dois volumes publicados em França ultrapassam, cada um, as mil páginas. Procurei, depois, a edição alemã. Também a soma das páginas dos dois volumes ultrapassa as duas mil. Parece que, enquanto português, só tenho direito a uma selecção dos textos originais. Sempre posso comprar a edição francesa, é verdade. No início do segundo volume da edição portuguesa, num texto com cerca de uma página, Kluge, a certa altura, escreve: Um dos castigos de Deus é o do afundamento no terreno da realidade. Há os que perdem todas as ilusões (perda de realidade). E há os que perdem o tempo em que vivem (perda da História). Ambos os casos crescem a olhos vistos. Ora, há muito que eu descobri que tanto a realidade como a História são coisas pouco frequentáveis, ambas umas megeras do pior. Por isso, nada tenho contra cair para fora da realidade e da História. O problema, porém, é que ambas, após cada queda, voltam a entrar pela porta dentro, ainda uma pessoa está na cama envolvida por ligaduras que escondem as terríveis escoriações, pois cair para fora da realidade ou da História é sempre um grande trambolhão. Mesmo os padres do deserto, uma forma antiga de cair fora da realidade e da História, apesar da vida pura de oração e de combate feroz ao demónio, tinham marcas assinaláveis das quedas sofridas. Nunca se cai impunemente.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Em ordem

Uma garrafa de água, quatro folhas A4 de cartolina preta, duas caixas de óculos, uma coluna redonda, um marcador de livros, uma revista Electra, um telemóvel, uma ficha para ligar cabos USB à rede eléctrica, um monitor, tudo isto para além de um teclado, de um tapete e o respectivo rato. Por outras palavras, a secretária está um caos. Detesto o mundo caótico, pertenço à tribo daqueles que preferem o cosmos ao caos. Consta que será devido à posição dos astros no momento do nascimento. A verdade, porém, é que não faço ideia nenhuma do momento do meu nascimento, quanto mais da posição dos astros nessa hora. Depois de um almoço de sardinhas assadas, a disposição para fazer alguma coisa que me interesse é nula. Resta-me enumerar a desarrumação e pensar que tenho por finalidade, no dia de hoje, pôr a secretária em ordem, o que me levará alguns, poucos, minutos. Ficará como uma casa de um país escandinavo, ou, pelo menos, como a ideia que tenho sobre as casas nesse mundo longínquo. Não há quem não tenha mitologias privadas. Também as possuo. Uma delas é que sou habitado por um gene nórdico. Este manifesta-se, entre outros sinais, pelo conflito com o tempo quente do Sul, um ódio persistente ao Verão, para ser mais exacto. Contudo, há coisas que desmentem essa ideia. Por exemplo, o prazer que certos produtos mediterrânicos me dão. Haverá coisa mais extraordinária do que o vinho e o azeite? Não, não há. Ora, naquelas paragens onde teria habitado, em tempos, esse meu suposto gene, não há possibilidade de fazer azeite, nem sequer vinho, pelo menos com decência. Não passo de um sulista com fantasias nórdicas, que sonha com as paisagens de certos filmes de Ingmar Bergman, como as de Os Morangos Silvestres, obra que já vi não sei quantas vezes, talvez tantas quanto Um Táxi Cor de Malva. Vou entregar-me ao suplício da arrumação.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Uma questão genética

É possível que seja genético. Aliás, não há mal que não seja creditado na conta-corrente dos genes, da herança genética, para ser mais preciso. A situação não deixa de ter a sua curiosidade. A herança social, seja cultural, de status ou económica, tem sempre uma certa possibilidade de reversão. A genética, não. Isso deixa-nos uma certa tranquilidade, pois se os genes são maus, aquele que os recebeu em herança nada fez para os ter. Não somos, por enquanto, responsáveis pelos genes que temos, apenas por aqueles que transmitimos ou pelo facto de os transmitirmos. Tenho o discurso à deriva. Quando escrevi É possível que seja genético, tinha uma certa intenção. Queria sublinhar que todos nos comprazemos, por semelhança genética inerente à espécie, na partilha de certos males. É um modo de combater a solidão. Isto vinha a propósito de um assunto que, entretanto, esqueci. Queria falar sobre ele, mas imagino, agora que ele me abandonou, que não deveria ter qualquer importância, o que faz lembrar a fábula da raposa e das uvas. Esta fazia parte de um livro de leitura da escola primária. Como é possível lembrar-me disso e não daquilo que tinha, há instantes, pensado como motivo deste texto? A versão que li não foi a de Esopo, nem de La Fontaine, mas de Bocage, em verso. Também eu volto o focinho, quando cai alguma parra, pensando que era um bago, o que se desprendia da alta latada. Talvez este texto estudado tão lá atrás tenha contribuído para que um dia me tivesse interessado sobre a distinção entre a aparência e a realidade e como a raposa tenha sempre confundido a primeira com a segunda. Será, também, genético.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Falta de luz

Tinha por objectivo escrever sobre o facto de não ter objectivos. O problema é que a noite está a cair e perdi a oportunidade de o fazer. Para meditar sobre a vexata quaestio de não ter objectivos é necessário que a luz do sol brilhe. Para quê? Para iluminar a meditação e evitar que me arraste por caminhos tortuosos. Leio ao acaso, num livro que hei-de começar a ler um destes dias: As voltas e reviravoltas dialécticas da Fenomenologia de Hegel constituem sem dúvida uma doutrina esotérica. Também algumas considerações que faço por aqui constituem partes de uma doutrina esotérica, mas que é de tal modo secreta que nem o seu autor, talvez por ser destituído de inclinação dialéctica, a consegue decifrar, apesar de ter sido, noutros tempos, iniciado em diversas dialécticas, entre elas a do senhor Hegel. Há quem ache, porém, que o problema do autor reside no facto de possuir uma mente confusa, uma mente a que falta clareza e distinção, como se pode ver pela proposição tinha por objectivo escrever sobre o facto de não ter objectivos. O livro onde Hegel é trazido à colação tem por título Sinceridade e Autenticidade, de Lionel Trilling, publicado em Portugal pela Imprensa da Universidade de Lisboa, uma editora com um belíssimo catálogo, apesar de relativamente exíguo. O que me levou a comprar o livro foi o índice. Este contém a designação de seis conferência dadas pelo autor em Harvard, no ano lectivo de 1969/1970. Por exemplo, a segunda conferência, ou palestra como é designada, denomina-se “A Alma Honesta e a Consciência Desintegrada”. Agora, é noite escura, altura pouco propícia a meditações luminosas, apesar da opinião contrária de S. João de Ávila.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Livre-arbítrio

Este é o feriado menos visível no conjunto dos dias em que a realidade quotidiana dá lugar a uma outra realidade, onde se distingue a marca da excepcionalidade. Nos dias que correm, a excepcionalidade não provém da sacralidade do dia ou do seu significado cívico, mas do facto prosaico de o tempo ser propriedade da própria pessoa. Nos outros dias, as pessoas alugam o seu a terceiros ou a si próprios, pois possuem corpo e este tem um conjunto de necessidades que exigem o mergulho no tédio da quotidianidade, com a sua procissão de horas de trabalho. Uma das grandes questões da existência é a da negociação que cada um tem de fazer para ser proprietário do seu próprio tempo, para o poder dispor segundo o seu arbítrio. Isto supõem que este, o arbítrio, seja livre. Caso não exista livre-arbítrio, então nada do que foi dito faz sentido. Tudo se inscreve numa cadeia causal e aquilo que acontece a cada um está determinado de tal modo que a sua vontade vale rigorosamente zero. Hoje, no uso do meu livre-arbítrio, fiz um número significativo de pontos cardio. Começo a fazer caminhadas, agora que o pé direito se está a libertar das consequências da intervenção a que foi sujeito. As minhas netas estão a fazer as malas e não tarda vão-se embora. A casa vai ficar mais vazia. Perante o facto, começo a desconfiar da minha crença no livre-arbítrio. Talvez exista uma incompatibilidade entre os diversos livres-arbítrios e será ela que nos dá a ilusão de que o determinismo é verdadeiro. Vale-me ser feriado. Não se perde tudo.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Sem moralidade

Não sei bem a razão, talvez a fome devido ao atraso do almoço, mas na minha mente, até eu tenho uma, dançou a ideia de falar sobre a teoria do flogisto e os processos de combustão e de calcinação decorrentes da libertação dessa matéria imaterial que seria o flogisto. Apesar do esforço do Georg Ernst Stahl, um médico alemão e também químico, para fortalecer a sua teoria, pois foi ele que a criou, embora não do nada, pois ex nihilo nihil, Antoine de Lavoisier, um francês e químico, mostrou que Stahl vivia num mundo fantasioso e explicou a razão por que as coisas entram em combustão. A vida, contudo, nem sempre é justa para quem se entretém a fazer descobertas acertadas. Consta, pelo menos em certa enciclopédia geral produzida por autores anónimos e benévolos, que o matemático Joseph-Louis de Lagrange disse: Não bastará um século para produzir uma cabeça igual à que se fez cair num segundo. Ora, a cabeça que se fez cair num segundo foi a de Antoine Lavoisier, no dia 8 de Maio de 1974. Vivia-se uma época em que, por França, as cabeças rolavam em quantidade e a grande velocidade. Não consta que Stahl tenha perdido a sua, apesar do erro que ela produzira. Pelo contrário, acabou a vida – talvez na cama – como médico de Frederico I da Prússia. Esta história, apesar da aparência, não contém qualquer moral que se possa extrair para edificar os leitores. É uma descrição de factos e nos factos, por muito que se procure, só existem factos e não ideias morais. Lá dentro qualquer coisa se agita, as adolescentes fazem-se ouvir, talvez tenha chegado a hora de almoço. O que também não contém qualquer moralidade.

domingo, 13 de agosto de 2023

O amor à conspiração

Imagino que todos nós amemos conspirações. Há aqueles que fazem desse amor uma razão de vida. Em tudo vêem conspirações e por detrás destas descobrem agentes obscuros, embora possam ser nomeados, que conjugam uma inteligência diabólica e uma vontade malévola. Não vale a pena dar exemplos. Contudo estes amantes das teorias da conspiração são péssimos na arte de as amar. Um autêntico amante de conspirações, um daqueles que não apenas leu, nas versões aplicadas ao amor do conspirativo, a Arte de Amar, de Ovídio, mas também a Metafísica do Sexo, de Julius Evola, sabe que tudo é conspiração e que essa omni-conspiração se funda na conspiração das conspirações, a conspiração essencial. O modo de vida que agora se leva resulta de uma conspiração contra o modo de vida que se levava na infância. Toda a conspiração – para os amantes autênticos e letrados de conspirações – está assente no objectivo de nos destruir a infância. É evidente que nunca ninguém teve uma infância, pois quando estamos nela não temos consciência de que aquilo é a infância, e quando saímos dela já a perdemos. Então, o organismo, guiado pelo cérebro, põe-se a inventar a infância e, ao mesmo tempo, descobre a terrível conspiração contra essa infância fantasiada, conspiração que visa matar-nos a boa vida e os bons tempos em que éramos infantes. Se se reparar com atenção, todas as teorias da conspiração – tratem elas da terrível conspiração que nos quer fazer crer que os homens foram à Lua ou pretendam alcançar a dominação mundial através da disseminação da ideia de que Terra é redonda ou que houve uma pandemia do COVID-19 – são reconfigurações dessa conspiração contra a infância que cada um inventa. Por isso, estamos constantemente a dizer que eles estão a fazer isto e aquilo. O isto e aquilo não interessa o que seja, o que interessa mesmo é que o eles se refere a esses conspiradores que estão em toda a parte e cuidam não de nós, mas da destruição da nossa infância, isto é, de uma coisa que nunca tivemos.

sábado, 12 de agosto de 2023

Do sublime

Um dos capítulos, pequenos capítulos, diga-se, termina assim: Portanto, é essencial dirigir todos os olhares para essa cena terrível. A questão, porém, é se todos os olhares suportam cenas terríveis. Como se sabe, existem olhares fracos e fortes, olhares impiedosos e olhares grávidos de piedade. Será que todos eles são capazes de enfrentar cenas terríveis? A ideia de quem escreveu a frase é de que os olhares, ao depararem com o terrível da cena, ficariam horrorizados e rejeitariam a peça que ali conduz. Eis um erro de perspectiva. Haveria olhares, talvez mais do que se pensa, que ficariam fascinados pela visão, e o fascínio seria tal que nasceria na vontade de muitos o desejo de repetir, senão mesmo de multiplicar, aquela cena tida como terrível, pois neste reside também o sublime e este, por pavoroso que seja, tem poderes encantatórios sobre as almas, e não apenas sobre as mais fracas. De que estou a falar? Isso é irrelevante e não vem ao caso. O particular é apenas o exemplo de uma lei universal. Pensamentos destes, inúteis e confusos, nascem em certos sábados de Agosto, em que o almoço se prolonga mais do que é devido, onde o passar das horas tem o condão de aniquilar a censura que todos trazemos dentro do coração ou que ostentamos por decoro.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Em quarta mão

Vender produtos em quarta mão. O produto para venda é a ideia de que, em certa altura, no mercado parisiense de Les Halles se produzem mais figuras de estilo num só dia do que em toda a Eneida. Porquê quarta mão? Porque vi a afirmação num artigo de António Guerreiro no Público. Este repetia o gramático Pierre Fontanier (1765-1844), que por sua vez ecoava (sic) o poeta Nicolas Boileau, nascido em 1636. O assunto que motiva o texto de AG não me interessa, mas a frase orienta o olhar para uma realidade diferente daquela que esperamos. Cremos que a linguagem comum seja mais dada à referencialidade directa, menos propensa à equivocidade semântica, enquanto a literária seria um trabalho de jardinagem em que se cultivaria o adorno discursivo através do recurso às figuras de estilo. A realidade poderá ser outra. A linguagem comum – e haverá linguagem mais comum, mais corrente ou vulgar, do que aquela que se usa num mercado? – será um lugar borbulhante de inovações semânticas, uma espécie de fogo-de-artifício contínuo, onde a linguagem se inventa, se cria e recria, além de se recrear, enquanto o trabalho literário é um exercício de contenção desde borbulhar, a troca da exuberância de um vinho espumoso, por um denso e austero tinto, com uma longa vida ainda pela frente. A arte poética não estaria tanto no metaforizar, mas no conter da metáfora dentro de uma frugalidade rigorosa. Com tudo isto quero apenas dizer que produtos em quarta mão podem ajudar muito bem a pensar e que a sabedoria reside na reciclagem e não na produção contínua de desperdício.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Animação extramusical

Como temia, repetiu-se no concerto de ontem a cena do de domingo. Quem comprou os bilhetes online tinha-os com indicação de lugar, ao contrário de quem os comprou na bilheteira. A organização ainda tentou sentar, no seu lugar, a pessoas com lugares marcados, mas em vão. No meu, estava um senhor que, fui de imediato informado pela funcionária da organização, se recusava sair daquele lugar, aquele era o dele, desse por onde desse. Teria mais uns vinte anos do que eu. Só pedi que nos dessem quatro lugares seguidos e que não fôssemos incomodados pelos detentores daqueles lugares. Uma confusão sem fim, que atrasou o concerto em quase vinte minutos. De vez em quando, o pianista, Artur Pizarro, espreitava, meio divertido, a confusão. Tudo acomodado, a organização pediu desculpa, mais uma vez, mas a responsabilidade era da empresa que vendia os bilhetes online. A tradição ali é não haver lugares marcados, o que dava razão ao senhor que ocupara, de modo selvagem, o lugar que deveria ser o meu. Depois de agradecer o aplauso do público no fim de tocar as peças de Fauré, o pianista informou os presentes de que o cachet para solista era maior que o dos artistas de música de câmara e que ele tinha contas para pagar, precisava de receber como solista. Disse-o em português e em inglês. Depois, pediu para desligarem os telemóveis. Alguém se entreve a receber mensagens enquanto o concerto decorria, num diálogo com a música de Gabriel Fauré. Para além do desempenho de Pizarro, o programa extramusical foi dos mais interessantes a que já assisti e as minhas netas estavam divertidíssimas com a animação ou talvez com a expectativa de irem à feira andar de carros de choque, que nunca se sabe o que vai na cabeça de qualquer adolescente.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Perplexidades

Há um quadro famoso do pintor florentino do século XVII, Lorenzo Lippi, que alimenta inúmeras controvérsias, a começar pelo título da obra, Mulher com Máscara ou Alegoria da Simulação. São múltiplos os ensaios interpretativos, com a exploração da simbólica presente no quadro – a máscara, na mão direita, e a romã, já fendida, na esquerda – e também da figura da jovem mulher. Há duas coisas que me deixam perplexo. Em primeiro lugar, a indecisão sobre a acção representada. A mulher está a tirar ou a pôr a máscara, ou nem uma coisa nem outra, apenas a exibe sem intenção de a utilizar? O mesmo se passa com a romã. Foi acabada de receber ou, pelo contrário, está a ser oferecida, ou é apenas uma exibição do fruto? A segunda perplexidade deve-se ao estranho afastamento entre os dedos anelar e médio da mão direita, a que segura a máscara. Olha-se e fica-se com a sensação de que ali caberia outro dedo ou que falta um dedo entre aqueles dois. Estas duas perplexidades parecem-me ser a porta que fecha para sempre o mistério do quadro, o que tem um efeito interessante. Quebra a tentação narrativa, a ideia de contar uma história interpretativa da obra, obrigando à suspensão do discurso para dar lugar à pura contemplação da obra. Agora, depois deste discurso contra o discurso, vou recolher-me para tomar uma decisão. Será que devo tomá-la fazendo o caminho da deliberação, o raciocínio prático do velho Aristóteles, ou suspendo o discurso e deixo que uma intuição me ilumine na decisão a tomar? Não se pense que é uma coisa importante, apenas se devo ou não comprar um certo produto. Se a deliberação estiver errada ou a intuição me iluminar mal, não perderei grande coisa.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Por uma Teologia científica

Não admira que a Teologia seja, nos tempos que correm, uma área científica menosprezada. A culpa, ao contrário do que pensam mentes pouco iluminadas – seja pelo espírito das Luzes, seja pelo Espírito Santo, seja pela luz eléctrica – não está no êxito transbordante das chamadas ciências empírico-analíticas, que com o seu sucesso permitem conhecer a realidade e encher o mundo de dispositivos que servem para tudo e mais alguma coisa, inclusive para dar cabo do mundo. A culpa desse longo ocaso da Teologia reside no pouco interesse, ou mesmo nulo, que os teólogos profissionais votam aos problemas teológicos verdadeiramente pregnantes. Por exemplo: que distância vai do vestíbulo do inferno à antecâmara do paraíso? Se os teólogos se interessassem pelo problema, diriam, por certo e dentro da sua previsibilidade, que sendo o inferno e o paraíso, a priori, locais incomensuráveis, a distância entre ambos é infinita. Não precisamos de recorrer à experiência para saber uma coisa que até a razão natural sabe. Embora não sendo teólogo, posso dar um contributo para uma Teologia científica, matematicamente fundamentada e que coloque os teólogos no devido lugar. A distância entre o vestíbulo infernal e a antecâmara do céu é de dezassete graus celsius, medida hoje entre dois locais onde estive. Num, por acaso o sítio onde entretenho a minha existência, estavam 41o. No outro, aquele onde me refugio do bafo atenazador dos diabos, o termómetro marcava 24o, por certo a temperatura do Éden quando o Senhor Deus dava por lá os seus divinos passeios e Adão e Eva se escondiam, já encalorados, sabe lá bem porquê. Como se demonstra aqui, não apenas a Física pode ser matematizada, mas a própria Teologia se deve constitui como uma Teologia matemática. Prova-se assim que a distância entre o inferno e o paraíso é uma distância térmica, mensurável por qualquer aluno do ensino básico. Fica aqui o meu contributo para o desenvolvimento da ciência. Amanhã, caso me lembre, irei reflectir, no campo da linguística, sobre o estranho caso da palavra pregnante. Sou um poço de sabedoria, onde me afundo a toda a hora.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Com e sem lugar marcado

Comprar livros em segunda mão online não tem só vantagens. Também há inconvenientes. Tive em tempos, embora nunca tenha chegado a ler, um romance de Julien Green denominado Moïra. O que lhe aconteceu, não sei. Decidi comprar outro exemplar num alfarrabista que vende em plataformas tipo olx. O livro veio em bom estado. O único problema é que o antigo proprietário deveria ter uma fixação na sua rubrica. Muitas páginas – quase metade, por certo – está rubricada. Gostava de perceber o que terá passado pelo cabeça da pessoa que decidiu, por amor à propriedade, afirmar a posse daquela maneira exuberante. O cuidado foi inútil, pois o livro voltou para o mercado e aquela assinatura já não serve para nada, a não ser para estragar o livro. Ontem, com as minhas netas, fui ver um concerto com o pianista japonês Jun Kanno. Mozart, Chopin e Debussy. Uma viagem do classicismo ao impressionismo, com passagem pelo romantismo, embora nada disso tenha uma grande importância. Elas, as minhas netas, aproveitam estas ocasiões para fazerem, com os avós, um programa complementar ao agrado delas. O pior do concerto foi o facto de o público estar dividido em duas facções. Os que compraram bilhete na bilheteira e os que compraram online. Os primeiros não tinham lugar atribuído. Os segundos, pelo contrário, traziam inscritos nos bilhetes o lugar que lhes competia. A interpretação da organização era de que não havia lugares marcados, o que gerou uma bela confusão na sala. As coisas lá se compuseram sem grandes atritos, o pianista entrou na sala e a confusão desapareceu. Foi uma experiência nova e interessante. Estou expectante com o que vai acontecer no concerto de quarta-feira.

domingo, 6 de agosto de 2023

A nódoa

A única vez que falei aqui do assunto, um dos mais fundamentais na existência da humanidade, foi a 1 de Setembro de 2019. Isso, devido àquela história da pandemia, significa que foi noutra era. Sobre ele, o assunto, há várias teses, embora não tenha a certeza de que sejam incompatíveis entre si. Existem teses negativas e teses afirmativas. Um exemplo de uma tese negativa diz-nos que as mulheres, às refeições, nunca põem uma nódoa na roupa que trazem vestida. Talvez existam alguns casos esporádicos, o que mostraria a tese como falsa, mas há outra possibilidade para interpretar esses escassos eventos. Nesses fortuitos encontros entre a nódoa e a roupa feminina, a mulher não estava a ser mulher, mas sofria de um súbito toque viril e, nesse instante, estava possessa por uma substância que lhe é estranha. Portanto, acontecimento raro e que não refuta a tese. As teses afirmativas dizem respeito aos homens ou a algum em particular, neste caso eu. No campo das teses gerais, há uma que diz que a propensão a pôr nódoas na camisa é inerente ao cromossoma sexual ípsilon. É uma tese respeitável, corroborada por muita gente. A tese particular, a que me diz respeito, sublinha que sou um praticante desastrado e desatento da arte de comer sem se sujar. Por vezes, são retirados corolários que põem em evidência o meu desacerto com a realidade. É possível que seja assim, mas há coisas que têm uma atracção fatal por mim. Melgas, moscas e nódoas. Deixemos os insectos para outra ocasião. Como se sabe, a nódoa é um ser parasitário. Sem um hospedeiro, não existe. Quando uma nódoa ainda não o é, mas existe já em projecto, observa os circunstantes à mesa e, por norma, escolhe a roupa que eu trago vestida. Posso aceitar que todos os homens sejam potencialmente hospedeiros, mas faço-o contrariado. Quero pensar que elas, as nódoas, têm uma terna inclinação por mim e me escolhem para virem ao ser, tornando o mundo mais rico e variado.

sábado, 5 de agosto de 2023

Expulsão do paraíso

Em tempo de férias, tiro o relógio e esqueço o calendário. A desmemoriação, porém, não é tarefa fácil. Não faltam por aí relógios a debitar as horas e não é empreitada simples esquecer a sequência dos dias da semana. Não tenho a certeza, mas penso que foi no primeiro dia da escola primária que o tempo entrou na minha vida. Até aí, não havia dias úteis e dias inúteis, não havia horas ou minutos, apenas a regulação maternal das horas de dormir e de estar acordado, ou os tempos das refeições. Não me consigo recordar, mas imagino que não separaria as manhãs das tardes, apenas o dia e a noite se mostravam no seu antagonismo. Dos primeiros dias dos anos lectivos que vivi, e não foram poucos, só me lembro do primeiro, de ser acompanhado à escola pela minha mãe e de lá haver uma turbamulta azougada. Não percebi que, nesse instante, eu era um pobre Adão a ser expulso do paraíso, cujas portas foram irremediavelmente fechadas. O facto de não perceber não significa que o ferrete não se tenha inscrito duradouramente em mim, de tal modo que estou agora, passadas tantas décadas, a falar dele, num tributo ao princípio e irresponsabilidade que toda a infância significa. Pior do que eu, está o meu neto. Ainda antes de entrar na escola, já se encontra na escola travestida de pré-escola, o que significa que o progresso educacional da humanidade é feito à custa de uma expulsão do paraíso sempre mais precoce, como se se cometesse o pecado original cada vez com menos idade.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Contra a abdução

Poderia recorrer à abdução, a um argumento a favor da melhor explicação. Contudo, acho a melhor explicação destituída de espírito. Oiço – e não estou com alucinações auditivas, embora não o possa provar – o ruído insuportável de um aspirador. Como poderia justificar a tese de que o aspirador é ruidoso? A melhor explicação seria que a mecânica do aspirador não é suficientemente sofisticada para o tornar silencioso. Isto, porém, é justificação que se dê? Claro que não. O aspirador é ruidoso por dois motivos. O primeiro é que faz parte activa e consciente de uma conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo. Não existisse uma conspiração contra mim e o aspirador seria uma das máquinas mais silenciosas ao cimo deste pobre planeta. Uma segunda razão, talvez tão fundamentada quanto a primeira, diz-nos que caso o aspirador fosse silencioso, este narrador não teria o que escrever. Eu sei que os lógico-dependentes acharão as minhas razões estapafúrdias, pouco plausíveis, como eles logo afirmariam. Contrariam o natural bom-senso e o argumentário a favor da melhor explicação, uma estratégia lógica com a finalidade de fazer prevalecer o bom-senso sobre a falta de senso. Ora, o que é o mundo e a vida mundana senão falta de senso. A minha tese é que se tudo se regesse pelo bom-senso, o mundo não existiria, implodiria devido à pasmaceira universal instalada. Não há como uma citação apócrifa para demonstrar a minha razão. Apesar de não ter sido proferida por Tertuliano, apesar da absurda e contumaz insistência, a proposição Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo) é um fundamento indestrutível da minha crença de que a falta de senso é superior ao bom-senso. Enquanto se mantiver a conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo e eu não encontrar motivo para escrever, os aspiradores continuarão apostados – sim, eles têm vontade própria – em escolher das ondas sonoras aquelas mais desprezíveis e mais malévolas do que a Rainha da Noite. Por mim, tenho encontro marcado com a Rainha de Copas, que me convocou. Seria falta de senso não respeitar uma convocação de Sua Alteza.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Ver o Papa

Ontem acabei a postagem com a referência à visão – literal – das minhas netas da pessoa do Papa. Só mais tarde recebi a notícia de que o meu neto também viu sua Santidade. Imagino que ele, a caminho dos cinco anos, não faça a mínima ideia de quem seja o Papa. O primeiro Papa de que me lembro foi de João XIII. Não propriamente dele, mas da sua morte, portanto já não era ele. Era coisa que os noticiários não calavam. Nunca esqueci esse facto, mas era mais velho que o meu neto é agora. Ele irá esquecer o acontecimento. Constou-me que Lisboa está uma animação. Francisco parece-me um desafiador de dragões, mas não estou certo de que seja um S. Jorge, apesar do nome civil. Os dragões são uns finórios dissimulados e fingem que as estocadas que caem sobre o seu corpo escamoso nada têm a ver com eles, convencidos de que possuem um poder de regeneração mais forte do que a ousadia daquele que conspira para os liquidar. Esperam que o Papa se torne, como este narrador, num cavaleiro da triste figura, um D. Quixote de que se rirão. Longe da capital, entrego-me à difícil tarefa de nada fazer. É preciso ser claro. Não me devoto ao lazer, nem ao ócio, tão pouco à preguiça ou sequer sofro de acédia. Obrigo-me à suspensão de fazer seja o que for. Nem praxis, nem poeisis. Isto é, nem me entrego a pôr em prática uma teoria ou ideia, nem a dar origem a qualquer coisa que antes não existia. Poder-se-á discutir qual dos vocábulos gregos - πρᾶξις ou ποίησις – é esteticamente mais agradável à vista. Por mim, prefiro a contenção da ποίησις. O ξ dá à πρᾶξις uma exuberância desnecessária. Imagino que o Csi (ξ) seja uma espécie de antena, talvez um antepassado do Bluetooth, que liga a teoria que está na mente à vontade que impele a materialidade do corpo a fazer qualquer coisa, que, por norma, não devia ser feita. Portanto, uma transferência de dados, o que me parece ultrapassar o decoro com que nos devemos pautar, pelo menos nos dias de Agosto, ainda mais quando somos visitados por um Papa que combate dragões. Mais logo, terei de fazer uma ronda pelos netos, para saber qual deles viu hoje o Papa. Talvez isto seja já um pecado contra a minha decisão de nada fazer. Por certo, se confessado, será perdoado.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Vida quotidiana

Por aqui, o Sol ainda não deu um ar da sua graça, remetido para lá da muralha de nuvens. Estas deixam coar uma luz esbranquiçada e indecisa, que o vento faz rodopiar, antes de a levar para outras paragens. Parece que há, no que escrevi, uma incongruência. Que eu saiba, o vento, com o seu passo arrastado, mesmo se sopra a muitos quilómetros por hora, não tem o condão de arrastar consigo as ondas-corpúsculos que constituem a luz. Ora, se eu escrevesse apenas coisas com congruência, o mais certo seria não escrever nada. O que me impede de imaginar os fotões a serem empurrados pelo vento? Hoje, após quase um mês calcei sapatos, sapatos a sério e fui com eles ver o mar. Estava orgulhoso de ter os pés calçados como deve ser e ser levado por eles desde o carro até à esplanada, como se tudo tivesse voltado à normalidade, o que é quase verdade. Durante a estadia na esplanada, chegou um grupo de jovens casais espanhóis, carregados com filhos pequenos. Elas foram tirar uma fotografia num barco que faz parte da decoração do estabelecimento, enquanto eles tomavam conta da criançada e lhe aprontavam a comida. Falavam num castelhano sem exuberância e apenas uma criança, ainda no carro de bebé, chorou. Depois, acabaram por se ir sentar fora do alcance da vista e fiquei sem história para contar. Tenho de suspender estas idas à esplanada, pois caio sempre na tentação de comer um pastel de nata, coisa que, com a minha idade, seria de bom tom evitar. Por volta do meio-dia, no retorno da tal malfada esplanada, as minhas netas ligaram. A mais nova estava eufórica, pois quando caminhavam não sei bem para onde, viram o Papa. Gritaram, elas e as amigas, e ele voltou-se para elas, certamente para perceber que barulho seria aquele. Um acontecimento, para contarem aos netos. Tenho de diminuir a verborreia.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Para canto

Fiz uma nova viagem de uma centena de quilómetros, mas agora a conduzir. Ao aproximar-me do destino, constatei a realidade do ditado da zona Oeste: Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Apanhei chuva na estrada, e à chegada esperava-me um céu cinzento carregado, embora sem chuva. A manhã correu-me bem. Só esperei cerca de vinte minutos pela consulta com o cirurgião. Quando entrei, abriu-se num sorriso. Já saiu o resultado da anatomia patológica, está tudo bem, anunciou. Com estas coisas, acrescentou, nunca se sabe. Eu não lhe disse que sabia que nunca se sabia, sabia-o até por deformação formativa, o que parece uma contradição. Aliás, tinha já notado, nas duas consultas anteriores, alguma ansiedade dele em relação ao resultado das análises dos materiais recolhidos. Respondi apenas que a espera pelos resultados é como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Ficou suspenso, depois disse: bom, essa espera é menor. Anuí. Ele ficou a pensar que sou um maluquinho da bola e eu fiquei a saber que ele não faz a mínima ideia de quem é Peter Handke ou Wim Wenders, ou a relação deles com a marca da grande penalidade. Isso, porém, não interessa. É um rapaz mais novo que os meus filhos, bem-disposto e que até acabou por me fazer o curativo no pé para me orientar o tratamento nos próximos dias. Eu, com as minhas referências pseudo-eruditas, é que pertenço a um mundo muito mais antigo e decadente, um mundo sem futuro, enquanto ele ainda tem um futuro diante de si. Quando saí do consultório, respirei fundo, embora não tenha sido o único. Esta foi desviada para canto, pensei.