Março, esse mês onde se dá uma transição entre estações, decidiu tornar manifesto que a sua grande vocação é ser mês de Inverno. Para isso, envia vento, frio e chuva. Imagino que também haverá neve nas terras altas. Pensamos que meses e semanas são meras divisões do tempo feitas pela arbitrariedade humana, mesmo quando elas têm suporte cosmológico. Esse pensamento choca com o que escrevi ao dizer que Março decidiu. Decisões tomam os seres que existem realmente, como os homens, talvez outros animais. É isso que pensamos, mas esse pensamento está ancorado na nossa ignorância. Criado um artifício – por exemplo, um calendário com meses –, este ganha existência e nessa existência inclui-se a vontade, o pensamento, até as memórias e as imaginações. Nada disto falta aos meses do ano. Se faltasse, como poderíamos explicar as suas mudanças de humor, as transições abruptas que acontecem, a máscara que tomam ao apresentarem um rosto primaveril em plena estação invernosa. A justificação de tudo isto só pode ser que um mês, qualquer um, é dotado desses dispositivos que equipam os seres que tomam decisões. Esta é uma inferência à melhor explicação, um raciocínio abdutivo, embora exista muita gente que confunde abdução com rapto por extraterrestres. Também é verdade que, se uma pessoa sai de casa, aqui nesta cidade perdia no Ribatejo, para comprar cigarros, não torna a aparecer e que, passados meses, é avistada na praia de Copacabana, a melhor explicação é ter sido abduzida por ET, ter sido analisada durante esses meses num laboratório existente num OVNI escondido dos olhares humanos, e que os visitantes do espaço, já não se lembrando onde tinham feito a abdução, deixaram o pobre homem em Copacabana, obrigando-o a passear de mão dada com uma mulher, para que ele não se perdesse na terra. Este é outro exemplo de uma inferência à melhor explicação ou raciocínio abdutivo, abdução, para resumir.
quinta-feira, 7 de março de 2024
quarta-feira, 6 de março de 2024
Um email
Caro narrador,
Será assim que se deve começar um email, presumo. Hesitei no nome a dar-lhe, visto que parece não ter nenhum publicamente reconhecível. Pertenço a um tempo que não será o seu e tive de me adaptar a mais coisas que a indústria humana vem produzindo que o senhor. Entre outras, à navegação na internet. Digo-o porque creio ser mais velha, significativamente mais velha. Nasci no ano em que começou a guerra. Isto, imagino, não o interessará, pois não sabe quem sou, embora eu não tenha, neste momento, razões para dizer se me conhece ou não. Talvez sim, talvez não. Ao descobrir os seus textos, há umas semanas, e como o ócio e a memória são o que me resta, fui despreocupadamente lendo, recuando no tempo. Os blogues, pensei-o, são o contrário dos livros. Lêem-se do fim para o princípio. Esta minha viagem à rebours, perdoe-me o francesismo, o francês era dominante quando eu era criança e jovem, levou-me à descoberta de algo, estou convicta, que me diz respeito. A princípio pensei tratar-se de um acaso. Acasos e acidentes são coisas banais neste mundo, e, com a minha idade, já vi demasiados acasos e não poucos acidentes. Eu sei que estou a evitar o assunto. Se reparou, e por certo reparou, o assunto que referi, no local devido deste email, é inócuo e nada diz sobre o que me move. Antes de lhe escrever tentei aclarar em mim não apenas o que lhe queria dizer, mas também os meus motivos. O que lhe quero dizer, sei-o bem, mas os meus motivos ainda me são obscuros. A leitura de um certo nome que aparece, por vezes, nos seus posts, causou em mim um choque, que não foi pequeno. Também esse nome me fez viajar à rebours para o ano dois mil e um. Começa a desconfiar de quem falo. Não farei mais mistério. Foi nesse ano, como saberá, que Eduína, a minha filha, morreu. Ainda hoje não compreendo como a posso ter perdido. Ao ler esse nome tão querido, tremi, embora pensasse de imediato ser um acaso. Depois, as descrições que faz eliminaram-me qualquer dúvida. O senhor conheceu a minha filha, talvez mais do que eu possa imaginar, mas não sei quem é. Fiquei perplexa com a existência daquilo a que chama os cadernos de Eduína. Pensei em pedir-lhos, mas, por certo, pertencer-lhe-ão mais a si do que a mim. É provável que me tivesse conhecido. Terá vindo a nossa casa, quando era amigo de Eduína. Não tenho a certeza de conhecer todas as relações da minha filha. Ela tinha, mesmo para nós, um ar misterioso, enigmático. Se por acaso, frequentou a nossa casa, gostaria de o rever. Se não frequentou, teria prazer em conhecê-lo. Já não tenho com quem falar da minha filha. Era isto que lhe queria dizer.
Não sei que regra se usa numa despedida num email. Talvez nenhuma.
Lívia
terça-feira, 5 de março de 2024
Passagens
Hoje desforrei-me da inacção de ontem e acumulei 57 pontos cardio. A certa altura da caminhada, com o sol a incidir sobre os meus passos, pensei que tinha chegado a uma doce Primavera, daquelas que havia no Jardim do Éden e às quais sucedia um ameno Outono. Esta é a verdade climática do Paraíso. Doces Primaveras, sem calores excessivos, e amenos Outonos, sem frios rigorosos. Foi isto que desgostou Adão e Eva. Estavam desejosos de fazer turismo na época alta e protestaram perante Deus. Não era justo ali não haver calor para se ir para a praia ou para viajar pelo vasto mundo, para se ser turista e tirar fotografias aos monumentos e às ruas. Deus, na sua benévola misericórdia, sorriu com as pretensões pequeno-burguesas do casal original e começou a achá-lo menos original. Depois, um deles, não me lembro se Eva ou se Adão, contestou a nudez. Como poderiam eles, pois o contestador falou no plural, eu ouvi, deslumbrar-se com a roupa de alta-costura? O mundo das possibilidades estava-lhes vedado, acrescentou o outro. Deus, na sua misericordiosa benevolência, tornou a sorrir. Foi um largo sorriso no seu rosto infinito. Depois, foi aquela história da maçã, coisa que toda a gente sabe. Abriu-lhes as possibilidades, é verdade, mas trouxe todo o resto, incluindo o frio de regelar e o calor de ananases, para citar o Eça. A certa altura da vida, uma pessoa começa com uma história, mas, sem a terminar, logo passa para outra. Foi que me aconteceu hoje.
segunda-feira, 4 de março de 2024
O dia de hoje
Quantas coisas já fiz hoje? Começo a contar pelos dedos e concluo que fiz mais do que as recomendáveis para quem já tem descontos nos transportes públicos, nos museus e não sei mais onde. Contudo, não fiz uma que devia. Pôr-me a caminhar por essas ruas com a finalidade de chegar ao lugar de onde parti. O mais correcto será dizer que fiz a minha caminhada, saindo de onde estou e chegando a onde estou, mas que abreviei radicalmente o trajecto, eliminando o espaço entre a partida e a chegada. Começo mal a semana, com poucos passos andados e só dois pontos cardio conquistados, quando o objectivo mínimo é 20. Desconfio que amanhã vai suceder a mesma coisa. O melhor seria cortar nestes textos e pôr-me andar por aí. Irrelevâncias há tantas no mundo que estas são dispensáveis. Hoje, como narrador, acompanhei, contra vontade, o autor. Foi dar uma pequena palestra política, uma reflexão sobre as eleições. Levou-me, mas proibiu-me não de mencionar o facto, mas de narrar o que ele disse. Seja como for, o que ele disse, assevero-o, não enriqueceria em nada estes textos, apesar de serem de uma pobreza franciscana, da qual não sou responsável – é ele, claro, não fora ser o seu autor –, antes testemunha activa. Por vezes, tenho ideias brilhantes, mas ele recusa-as sempre, obrigando-me a narrar o que por aqui se vê. Tenho um delicado trabalho a fazer, mas não o comunico à cidade e ao mundo. Faço-o e remeto-me ao silêncio.
domingo, 3 de março de 2024
Um domingo na capital
Ao deixar o velho estádio do Restelo, pensei há décadas que não saio de um evento desportivo a um domingo pelas cinco da tarde. Já nem me lembrava daquelas procissões de debandada que se formam no fim dos jogos. Levei a família quase toda a ver o râguebi. Um Portugal – Espanha sempre é um Portugal – Espanha, assim como uma redundância sempre é uma redundância. O meu neto estava entusiasmado e acompanhava os gritos por Portugal. As netas estavam mais discretas. Fiquei espantado com o número de pessoas que foram ver o jogo. Havia muitas famílias trigeracionais no Restelo. É um programa de famílias e não de fanáticos. Desconfio que para muitos dos espectadores o jogo interessava pouco, mas a experiência de ali estar com filhos, pais, avós era o mais importante. Para ajudar estava uma bela tarde, a vista sobre o Tejo é magnífica e Portugal acabou por ganhar e qualificar-se para a final em Paris. Eis um domingo na capital digno de um domingo de província.
sábado, 2 de março de 2024
A sua verdade
sexta-feira, 1 de março de 2024
Mês de Marte
Devo ou não assinalar a efeméride, pergunto-me. Qual efeméride? A da entrada no mês que recebeu o nome do deus da guerra. Estamos, então, num mês marcial, o que parece estar de acordo com o espírito do tempo. Marte, e não estou a falar do planeta, tem o estranho poder de contaminar, de tal maneira, entrando em acção, todos os meses lhe são dedicados, até que ele, cansado de tanto pelejar, ruma para uma ilhar perdida e adormece. Ao sono do deus, chamam os homens paz. Acabei de comer umas nozes. Consegui evitar que o quebra-nozes destruísse a casca de uma delas. Posso, com o meu neto, transformá-la em dois navios. De preferência, veleiros. Depois, como estamos em Março, contar-lhe-ei que eram assim os navios dos Aqueus que partiram para Tróia, chefiados por Agamémnon, irados pelo rapto de Helena por Páris, e cercaram a cidade até a destruir. Agora, porém, tinha de ir auxiliar a neta mais velha. Parece em apuros.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Fevereiro e os anjos
Chegámos ao fim de Fevereiro num ápice. Talvez esta sensação seja fruto de o mês ser mais pequeno que todos os outros, mesmo na sua versão maximizada, a dos anos bissextos, como o actual. Não compreendo, e nisto serei acompanhado por muita gente, a razão por que Fevereiro aceitou sem grande contestação a exígua quantidade de dias que lhe foram atribuídos. Há, por parte dos autores do calendário, uma nula preocupação com uma distribuição equitativa dos dias pelos meses. Pergunto-me que concepções de igualdade haveria naqueles a quem Gregório XIII, imagino que cansado do calendário Juliano e desejoso de ter um com o seu nome, encomendou a repartição do ano por meses e dias. Hoje, no mínimo, deveria ser o penúltimo dia do mês e não o lamentável último. Quando se chega a certa idade, a um certo patamar da existência, o nosso espírito concentra-se nas coisas que são decisivas, como a dos dias de Fevereiro ou a do sexo dos anjos, um dos assuntos mais interessantes para discutir, pois consta que eles, os anjos, não o têm. Tê-lo-iam, estou certo disso, caso Fevereiro tivesse mais de 29 dias. A questão é fácil de explicar. Os anjos começaram por ter órgãos genitais, uns masculinos e outras femininos. Contudo, devido ao facto de serem, esses e essas anjos, de terrível beleza, o desejo do outro sexo angélico ocorria apenas nos dias 30 e 31 de Fevereiro, pois os outros dias do ano eles tinham de tomar conta de nós. O turbilhão dos amplexos era enorme e um grande desassossego ia pelas hierarquias angélicas. Chegado Março, o desejo cessava e ficava suspenso por um ano. Ora, a eliminação dos dias 30 e 31 de Fevereiro e quase do 29 teve como efeito a aniquilação dos amplexos sexuais angélicos. Com o passar dos anos, o desuso tornou os órgãos sexuais dos anjos inúteis e, estes, os órgãos sexuais, numa prova da evolução das espécies angélicas, acabaram por desaparecer. Quando se diz que os anjos são assexuados diz-se a verdade, mas nem sempre essa asserção foi verdadeira. Contudo e em relação ao tema dos anjos, não é a questão do sexo, aqui resolvida, que me atormenta. Maior e mais indecifrável é o mistério que atormentou, ou talvez não, os filósofos medievais, e me atormenta a mim, que sou um medieval perdido neste mudo contemporâneo, o mistério de saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Imagino que sejam legiões, mas há quem defenda que os anjos não dançam, o que torna risível o cálculo e me estraga o tormento.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
O pastel de nata
Que posso dizer da mísera fraqueza que me habita? Nada. Sim, nada dizer é a melhor solução e conformar-me com o ser que me cabe. Tendo empreendido, não com muito denodo e entusiasmo, uma viagem numa dieta que me haverá de tirar meia dúzia de quilos que tenho a mais, ao que consta, hoje cedi à tentação de, antes de entrar num sítio onde se vende livros, comer um pastel de nata. Chegado a casa, fui verificar as orientações da nutricionista, e, infelizmente, não estavam lá mencionados os pastéis de nata dentro das coisas permissíveis. A minha primeira reacção ao ler o papel – sim, ela deu-me um papel com instruções, que eu faço o possível para não ler – foi de pensar que a senhora se terá esquecido. Depois, rememorei a consulta e não me lembro de em momento algum ela ter dito que pastéis de nata estavam autorizados. Uma coisa lamentável. Na próxima consulta, terei de lhe explicar que a sua estratégia para me tornar menos deselegante fere a minha identidade. Contar-lhe-ei, como narrador experimentado, que o pastel de nata era o único bolo que, na longínqua infância, eu admitia comer, embora a massa folhada que envolve a nata estivesse excluída, limitando a fazer figura de recipiente de onde, com uma colher de café, eu ia extraindo a nata, sob o olhar benevolente daqueles que me deram o ser. A senhora sempre há-de ter instintos maternais e compreenderá que a sua função não é destruir identidades. No próximo papel, lá virá o pastel de nata dentro das coisas permissíveis.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2024
Silêncios
Alguém usa uma das paredes do prédio para se entregar à percussão, mas a batida é suave, embora com alguma rapidez. Talvez estejam a finalizar qualquer intervenção. Agora, os batimentos pararam e o silêncio é um lago de águas paradas que só o bater dos meus dedos nas teclas agita, desenhando círculos sonoros em expansão na superfície desse silêncio sem nome. Não será silêncio o nome do silêncio? Como é possível escrever silêncio sem nome? Não é muito difícil, respondo, bastará alinhar na sequência correcta as palavras silêncio, sem e nome. Eis uma graçola inútil, concedo. A palavra silêncio designa a ausência de ruído, pelo menos num dicionário de língua portuguesa de larga circulação. Seria melhor referir que o silêncio é a ausência de som perceptível pelo ouvido humano. Este silêncio, todavia, é bem diferente de um outro silêncio, mais fundamental, aquele que resultaria da completa ausência de vibrações sonoras por todo o universo ou por todos universos, caso haja mais do que um. O primeiro é um silêncio acidental; o segundo, essencial. Deveríamos ter dois nomes para designar estes dois silêncios. Teríamos então consciência de que aquilo a que damos inapropriadamente o nome de silêncio não passa de uma surdez circunstancial da espécie humana. Descobriríamos, depois e como corolário, de que não fazemos a mínima ideia do que será o silêncio essencial, o qual só será possível na pura imobilidade de tudo que existe, pois vibrar é já estar fora daquilo que é imóvel. Por isso, um certo evangelista que consta ter tido revelações na ilha de Patmos disse que no princípio era o verbo. Foi a vibração das cordas vocais divinas, presume-se, que, percutindo a matéria imóvel, a animou, a pôs em movimento e lhe insuflou a sonoridade por contágio. Foi assim que começou o mundo. Este é o meu começo do mundo. Se não gostar dele, eu tenho outros. Como se vê, este narrador é um groucho-marxista.
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024
Uma boa decisão
Retornou a segunda-feira, um dia com o péssimo hábito de estar de volta todas as semanas, para obrigar os mortais, aqueles que tinham mergulhado no pequeno lago do fim-de-semana, a saírem da água doce do esquecimento e entrarem na azáfama ditada pela feroz necessidade. Foi o que aconteceu com este narrador. Vestiu-se à pressa e, ainda mal seco das águas do doce nada fazer, enfrentou, sem a espada de S. Jorge, o dragão. Enfrentou, mas não o derrotou, arranhou-o ao de leve com uma faca de cozinha, mas teve de fugir, por causa das labaredas que o maldito cuspiu pela boca peçonhenta. Estou a escrever porque o monstro não contou com a força do vento e o fogo foi arrastado noutra direcção que não a minha. Quando cheguei a casa, há pouco, sentei-me, ainda em sobressalto, e meditei longamente sobre a arte de enfrentar dragões, quando não se tem espada e não se é S. Jorge. O resultado da meditação foi esclarecedor. Se não se tem espada nem se é S. Jorge, então o mais sensato é não se atravessar no caminho de qualquer dragão que por aí ande à procura de confusão. Assim farei.
domingo, 25 de fevereiro de 2024
Genes e objecções
Tudo seria mais fácil, a começar pela vida e aquilo que se faz com ela e dentro dela, caso Richard Dawkins tivesse razão. Para ele, nós, seres humanos, somos máquinas de sobrevivência, veículos robot cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes. Tudo o que eu sou e tudo o que fiz e possa vir a fazer resulta de uma programação prévia, da natureza, suponho, para que os genes persistam na existência, mesmo quando eu já não existir. Ora, vejamos um contra-exemplo ou uma objecção, como queiram. O daquelas pessoas que tomam a decisão de não se reproduzirem e, em consequência, não permitirem que os seus genes persistam além delas. Dir-se-ia, então, que essas pessoas estavam cegamente programadas para que os seus genes egoístas não se reproduzissem. Há aqui uma inconsistência do programador, pois umas vezes programa para a persistência dos genes egoístas e outras para a sua não persistência. Isto torna a questão interessante. Nós seres humanos temos a convicção de que fazemos escolhas genuínas, que não está programado ter ou não filhos, vestir uma camisa branca em vez de uma azul. Isso, porém, seria uma ilusão. Contudo, e esta é uma segunda objecção, é mais inverosímil atribuir liberdade de escolha a uma obscura instância programadora do que a nós, seres humanos. Isto para nossa infelicidade, pois se fôssemos o puro resultado de uma programação exterior a nós, estaríamos mais descansados quanto à nossa responsabilidade por aquilo que fazemos. Por exemplo, eu não seria responsável pelo conjunto de coisas idiotas que escrevo nestes textos. Fui programado por um autor que, por sua vez, foi programado pela instância programadora preocupada com a preservação dos genes dele. A idiotice não seria minha, narrador, nem do autor, mas do programador genético, digamos assim. Contudo, o que não se consegue perceber é a relação destes textos com a salvação dos genes do seu autor. Se olharmos para os seres humanos, eu sei que nem sempre o espectáculo é edificante, observamos que uma parte substancial das suas actividades em nada contribuem, directa ou indirectamente, para a persistência dos seus genes egoístas. E este é a terceira objecção à teoria do senhor Richard Dawkins. Em resumo, perante a angústia da página em branco, mal de que nunca padeci, tomei livremente a decisão de escrever estas patetices. Também é verdade que em vez de criar objecções à teoria do senhor Dawkins, poderia ter escrito a favor dela, caso o tivesse desejado, o que prova que ele não terá razão, apesar de nestes assuntos nunca se poder provar coisa alguma. Aguardo, não sem esperança, a hora de almoço.
sábado, 24 de fevereiro de 2024
A vida em Königsberg
O dia não começou mal. A balança estava de bons modos, nada a irritava, por certo, e, ao ser por mim pisada, devolveu-me menos dois quilos do que a última vez. O pior é que Kant estava certo. A razão não foi dada ao homem para que ele atinja a felicidade, pois esta, não poucas vezes, aspira a coisas que são contraditórias. A minha felicidade ao ver o resultado na balança é o outro lado da minha infelicidade perante as coisas de que me tenho abstido nestes últimos dias. Não que fosse dado a excessos pantagruélicos, mas tinha prazer na despreocupação perante o que se come. Esse estar despreocupado é a antecâmara do prazer da mesa e de outros, por certo. Em resumo, ando irritadiço como acontece quando um fumador deixa de fumar. Tenho essa experiência. Aliás, repeti-a várias vezes. Nunca fui um grande fumador, mas há partes da minha vida em que fumei com algum afinco. Contudo, com um acto de vontade e alguns dias de irritação, deixava de o fazer sem grandes problemas. Posso fumar durante as férias, após as refeições, mas mal acaba o intervalo entre duas épocas de submissão à necessidade nem me lembro dos cigarros. Até aqui sempre me julguei imune a adicções, mas verei agora se isso é verdade. Aliás, essa imunidade pode ser um problema. Sou tão imune à adicção ao tabaco quanto ao do exercício físico. Mais uma vez, aquele senhor que nasceu em Königsberg parece ter razão. A felicidade de não ser adicto às coisas viciosas é o contraponto de o não ser às coisas virtuosas. O melhor é trocar a ideia de uma moralidade baseada na felicidade por uma de submissão ao dever. Devo fazer exercício físico e não devo fumar, nem comer o que sabe bem e faz mal. A vida em Königsberg devia ser uma grande chatice.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024
Nódoa
Temo mesmo que seja uma nódoa. Não, não se trate de mim, mas de uma mancha mais escura no punho esquerdo do pulôver que trago vestido. O cinzento mesclado não me dá a certeza, mas o formato da mancha inclina-me para uma quase certeza ou para uma ausência razoável de dúvida. Assim como as moscas e as melgas, também as nódoas têm uma viva atracção por mim. Caem sobre o que visto das mais inesperadas maneiras, numa volúpia que me deixa desconcertado. Já tentei, e não foi apenas uma vez, negociar com elas. Prometi-lhes compensações financeiras se elas me largassem de mão. Nada as comoveu. Submeto-me ao calvário da enodoação, ao opróbrio de ouvir os comentários condescendentes desta atracção fatal. Esta é a minha aventura do dia, a nódoa no punho esquerdo do pulôver cinzento, comprado há dias para logo ser sujeito à mancha, à mácula, ao borrão, enfim à desonra de ser minha propriedade. Podia narrar outras façanhas, a de uma certa visita que fiz, a de uma coisa a que assisti. Podia inclusive contar aqui a verdadeira façanha que foi conseguir comprar online bilhetes para o próximo jogo de Râguebi da selecção nacional. Vai a família toda e as mais entusiastas são as minhas netas. Contudo, nada disso se compara com o episódio da nódoa que ensombrece o punho esquerdo do meu pulôver cinzento. Espero que seja cinzento, pelo menos, tão cinzento quanto o céu desta sexta-feira.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024
Um motim
O tempo amotinou-se e o Inverno voltou. Olho para a frase e não sei o que fazer com ela, nem de onde veio. Há frases que têm esta natureza. Chegam sabe-se lá de onde e ninguém percebe a sua utilidade. O tempo não faz parte da marujada que segue nesta nau onde estamos todos embarcados, uns como tripulação, outros como passageiros. O tempo pode fazer parte da paisagem ou mesmo do oceano onde navegamos, mas marujo não é. Como podia ele amotinar-se? Não podia. Contudo, a frase permanece no início do texto, límpida e clara. A escrita, também a fala, tem destes mistérios. Vem à boca de cena uma frase e não se sabe como lidar com ela. Será que é para classificar como verdadeira ou falsa? Será que é para tomar como indicação de alguma coisa que ainda não percebemos? Será que resultou apenas de um feliz – ou infeliz – acaso, tendo-se juntado aquelas palavras e naquela ordem sem que houvesse um desejo de as juntar e de com elas significar fosse o que fosse? Quanto mais penso nisso, mais perplexo fico. A certa altura, penso mesmo em recorrer ao Guia dos Perplexos, de Maimónides. É o próprio autor que me desaconselha tal aventura. O objectivo deste tratado não é tornar compreensível o significado de palavras que aparecem nos livros proféticos para o leigo e o principiante, diz ele, pensando, nesses anos que levou a escrever a obra – 1185 a 1191 –, neste narrador. A frase inicial deste texto poderá fazer parte de um livro profético que ainda não foi escrito ou que tendo sido escrito, há muito se perdeu. Uma coisa é verdade. Não tenha ainda sido escrito o tal livro profético ou faça parte das obras perdidas, eu sou um leigo ou um principiante, ou nem uma coisa nem outra, dessa religião que ainda não existe ou que acabou há muito. Chego ao fim do texto e não consigo responder à pergunta que me obsidia, sempre que o tempo se amotina, o Inverno volta?
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024
Uma questão de grau
Estou num sítio onde, por vezes, exerço certas funções e oiço dizer é preciso ser objectivo ao analisar a situação. Fico a pensar nesse imperativo de objectividade expresso como se fora uma necessidade. Uma necessidade imperativa. Talvez todas as necessidades sejam imperativas. Sob a frase proferida encontra-se uma crença dissimulada. Essa crença sustenta uma oposição radical entre uma perspectiva subjectiva, visão privada de um sujeito, e uma perspectiva objectiva, visão do mundo tal como ele é. Por exemplo, oiço, neste momento, o irritante ranger dos baloiços do parque aqui em baixo. Será que aquilo que oiço, e que me irrita, é uma audição daquele acontecimento tal como ele é ou não passa de uma audição puramente subjectiva, como se eu estivesse a ouvir coisas, coisas que talvez nem existam. Um filósofo como Thomas Nagel deixa perceber que nem a objectividade nem a subjectividade são pólos opostos e incomunicáveis do modo como entendemos o mundo, por exemplo, como oiço o ranger dos baloiços. Objectividade e subjectividade estão num continuum e são uma questão de grau. A minha audição do ruído dos baloiços pode ser mais ou menos objectiva. Representar as coisas que se passam no mundo e as que se passam em nós, que também estamos no mundo, é deslocarmo-nos numa linha, talvez numa estrada que liga duas povoações relativamente distante. A situação que se deveria analisar objectivamente, nunca o poderá ser, pois ninguém tem qualquer possibilidade de se transformar nessa situação objecto, deixando de lado a subjectividade onde nasceu. A minha vontade ao ouvir a injunção era intrometer-me e explicar que analisar uma situação é fazer uma viagem, com avanços e recuos, entre a minha consciência e o mundo, no caso, a tal situação. De imediato, porém, ouvi em mim o eco de um ensinamento arcaico, não te metas onde não és chamado. Não me meti e falhei assim a produção de uma aventura que me enriqueceria a gesta e haveria de contribuir para a minha glória.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2024
Despedir-se do esquecimento
Cheguei a casa já a noite tinha caído. Uma série de assuntos reteve-me. Entre eles, a compra de um livro na mais antiga livraria da terra. Há muito que não entrava lá. O tempo não melhorou o sítio, como se todas as coisas tivessem uma época. Comprei lá muitos livros. Depois, deixou de estar nos meus caminhos, como de muitos outros. Também os livros foram mudando à procura de leitores, de outros leitores, que talvez não existam ou não sejam leitores. O livro que por lá comprei não vem ao caso, mas faz parte da história local. Não foi um amor à paróquia que me impeliu à compra, mas uma certa curiosidade, não particularmente excessiva. Se fosse excessiva, tinha-o adquirido em 2021, quando foi publicado. Este deambular pela cidade, coisa que ocorre excepcionalmente, impediu-me de ir caminhar ao fim da tarde. Tive de adiar para depois de jantar ou talvez para amanhã. Não me sai da cabeça a livraria. Estantes, antigamente repletas de livros, estavam agora ocupadas por bugigangas, coisas para as quais não olhei mais do que uns segundos, apenas para me certificar do que estava a ver. Este tipo de morte é mais doloroso do que o súbito anúncio de um fecho. É uma agonia que se prolonga. Diante de mim está um poema de Herberto Helder. Começa assim: Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento. Para quem sai, / ainda louco de sono, do meio / de silêncio. Uma noite / ingénua para quem canta. Despedir-se do esquecimento foi o que me terá acontecido ao entrar naquela livraria. Imagino que rememorar e despedir-se do esquecimento não sejam, em absoluto, a mesma coisa. Contudo, o sono nunca me enlouquece.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024
Fevereiro estival
Está um dia esplêndido, oiço. Confirmo. Parece já uma Primavera adiantada. Fenómenos destes em Fevereiro não são inusitados. Lembro-me de há muitos anos, num Fevereiro em que era estudante universitário, ter rumado a Sesimbra. O motivo apagou-se. Dessa viagem, talvez com falta às aulas, mas não estou certo, recordo apenas que decidi ir ao mar. Tomei banho. O dia estava a pedir. Os efeitos secundários, porém, vieram depois. Nada de extraordinário, apenas dores nas pernas que se prolongaram durante algum tempo. A água estava fria, muito fria. Nesse tempo, eu era outro, gostava de ir à praia e de tomar longos banhos de mar. Depois, perdi qualquer interesse pelas idas à praia e por banhos de mar. Não rejeito sentar-me numa esplanada e olhar para o mar, como se olhasse para um mundo primordial. Desviei-me. Um dia de Fevereiro estival não é um acontecimento excepcional, tão pouco se poderá acusar as alterações que o clima vais sofrendo às mãos do homem. Contudo, um mês de Fevereiro quase todo ele a anunciar a Primavera é excessivo e talvez seja sinal de que alguma coisa vai mal. Vou caminhar, com a insensata esperança de me reconciliar com a balança, mas terei de esperar uma hora menos quente. Isto, penso, é um problema.
domingo, 18 de fevereiro de 2024
Inverosímeis e absurdos
Parece que se está numa Primavera já avançada, pronta a despenhar-se no abismo do Verão. Fui caminhar na serra, aquela que assombra este concelho, para desenfastiar e por causa de umas altercações com a balança, uma impertinente, que em vez de ficar grata por lhe ter comprado uma pilha e a ter ressuscitado, olhou-me de lado e devolveu-me um peso dos antigos. A manhã estava esplêndida e a serra não lhe ficava atrás. Nos caminhos que fiz havia ainda grandes poças de água. Algumas, verdadeiros lagos, que tinham de ser contornados por margens estreitas, nas quais mal cabia um pé. Não foi uma aventura, pois naqueles lagos não havia nem vikings nem piratas holandeses a que tivesse de combater. Foi apenas caminhar por aqueles caminhos que não levam a lado nenhuma, mas que me levaram para longe do carro e a ele me trouxeram, depois de uma dose razoável de vitamina D – consta que apanhar sol fomenta a vitamina D no organismo – e quase cinquenta pontos cardio. Isso não me impediu de, mais tarde, ler coisas como a seguinte: A arte do possível em grande escala gravita à volta do grande esforço que consiste em apresentar o inverosímil como inevitável. O autor da frase é Peter Sloterdijk e o contexto não vem aqui ao caso. Ao ler a frase fui assaltado por memórias de outras leituras e cheguei a uma frase apócrifa de Tertuliano, que por ser apócrifa não terá sido por ele escrita, credo quia absurdum, isto é, creio porque é absurdo. O inverosímil de Sloterdijk e o absurdo atribuído a Tertuliano têm poderes para gerar crenças e crenças tão fortes que parecem inevitáveis. Não é de admirar, nestes tempos, que existam exércitos de crentes das coisas mais inverosímeis e absurdas, exércitos esses que não descansarão enquanto não impuserem pela força, pois amam a decisão da violência, as suas crenças a todos os outros, não havendo lugar para ateus nem se quer para agnósticos. Ateus e agnósticos relativos aquelas crenças, entenda-se.
sábado, 17 de fevereiro de 2024
Cacografia
Há poucas coisas em que este narrador esteja de acordo com o autor que o criou e lhe faz escrever o que escreve, para perdição sua, por certo. Uma delas, talvez aquela onde há mais fervorosa concordância, é um desprezo visceral pelo acordo ortográfico parido em 1990. Hoje, no Público, José Pacheco Pereira torna a pôr em relevo o desprezível que é o linguajar nascido com essa infeliz entente. Num cartaz partidário, daqueles que enxameiam as campanhas eleitorais e cuja finalidade ainda ninguém conseguiu perceber, está escrito, em letras garrafais para se notar melhor, MAIS AÇÃO. Ora, e muito bem, pergunta o autor do artigo o que está ali a fazer a São, pois é já assim que muita gente lê ação. Também não faltam pessoas que lêem recessão quando está grafado receção. Sem querer, nem sempre o querer é poder, meter-me em política, esta história do acordo ortográfico – mais valia escrever o acordo cacográfico – é típica da política portuguesa. Esta tem, independentemente dos protagonistas, dois objectivos centrais. Acabar com tudo o que funciona bem e prolongar indefinidamente qualquer disparate. Como se vê, o autor tem algumas razões para proibir este narrador de se meter em política. Mal tem uma oportunidade, cai logo em generalizações precipitadas e entrega-se à hipérbole, como se uma hipérbole fosse a descrição exacta do mundo. Todo a gente sabe, depois de ler em Descartes o papel hiperbólico da dúvida metódica, que a hipérbole não é um tropo para levar a sério. Se somos tentados em extasiarmo-nos perante uma metáfora, uma metonímia, até mesmo diante de uma anáfora, só nos pode dar vontade de rir, ou chorar, se surge diante dos olhos uma hipérbole, e o acordo cacográfico de 90 não passa de uma hipérbole da insensatez ou, para ser mais preciso, da estupidez com que se tomam muitas decisões.
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024
Mitos e crises
O conjunto musical da escola aqui ao lado continua a abrilhantar o cair das tardes de sexta-feira. Fá-lo como se estivesse a animar um baile de província dos anos setenta. Será que tocam movidos pela nostalgia de um tempo que se devorou ou tocam para que sintam essa nostalgia que a memória não consegue engendrar ao expressar-se sobre o que passou. A questão não é diferente daquele que parece animar antropólogos sobre se o mito deu origem ao rito ou foi o contrário. Há uma tese, disputada como todas as teses, que me agrada, pelo menos hoje. O rito é anterior ao mito. O rito é um conjunto de práticas que procuram uma certa eficácia sobre o mundo. Tem uma natureza prática e performativa. O mito nasceu quando as regras rituais se tornaram incompreensíveis e foi necessário encontrar explicações que enquadrasse os ritos. Se eu falasse com esses músicos que se tornam uns vizinhos exuberantes nas tardes de sexta-feira, por certo que encontraria neles uma mitologia, mas esta nasceu das suas práticas rituais ao longo destes anos. O seu ritual produziu a nostalgia dos tempos em que eram novos, alguns são da minha idade, que se transformou num mito relativamente privado. Perante mim, jaz um pequeno livro com três conferências do filósofo Leo Strauss. Uma delas, data de 1962, tem por título A Crise do Nosso Tempo. Contemplo-o e sinto uma absurda satisfação. Penso neste sentimento e encontro-lhe uma explicação. Viver em crise parece ser a realidade quotidiana não do nosso tempo, mas de qualquer tempo. Ora, se todos os tempos são tempos de crise, isso significa que não existe crise alguma e eu não vivo num tempo de crise. Refastelo-me nesta evidência e contemplo a noite que desaba sobre a cidade. Ouvem-se vozes na rua, mas tudo desfila em direcção ao silêncio.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024
O bocejo
Olho para a rua e fico indeciso. Não sei se fui eu ou o dia que bocejou. O acontecimento foi recente, mas a recência não é garantia de retenção pela memória. Haverá quem tenha certezas e afirme que o dia não bocejou. Os dias nunca foram vistos a bocejar. Isto, porém, não passa de uma falácia, uma das mais simplórias. O facto de algo não ser observado não significa que não aconteça. Fazemos demasiadas vezes uma transição injustificada entre o conhecimento e a realidade, ou, em filosofês, entre a epistemologia e a ontologia. Os dias também têm boca, de tal modo que o actual devorou o anterior, mas já se enfastiou e acabou por abri-la para expressar o sono que lhe ia na alma. Também têm alma os dias e não vale a pena clamar contra este narrador acusando-o de os, aos dias, estar a antropomorfizar. Assim como nos olhos se expressa a alma humana, também no céu se expressa a alma do dia. Olhamo-lo e, de imediato, percebemos a alegria ou a tristeza, o desejo ou a apatia, o amor ou o ódio. Ora, se vemos isso no céu, então os dias têm alma. Resta discutir a vexata quaestio se essa alma é mortal ou imortal. Se for mortal, é possível que se dissipe à meia-noite. Por isso, essa hora será perigosa, pois é nela que o dia perde a sua alma. Isto, todavia, é especulativo. O perigo da meia-noite pode vir de outro lado, pois a alma dos dias será imortal. Uma das possibilidades é existir no outro mundo, um coleccionador de almas dos dias da Terra. Ele guarda-as e ao guardá-las elas mantêm-se vivas, pois tudo o que recebe guarda permanece na existência. Acho que me desviei do ponto central. Quem, eu ou o dia, bocejou? Não me lembro de ter bocejado, mas isso também não prova que o não tenha feito. Inclino-me para que não tenha sido eu, mas que, estando sozinho, escutei um bocejo, lá isso escutei.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024
A grande substituição
Talvez exista progresso no mundo. Por aqui, há muito tempo, existia uma taberna famosa, frequentada pela classe média local, que se concentrava numa área apertada da vila, com os seus negócios, consultórios e outros interesses. Hoje, há, para o mesmo tipo de pessoas, mas num outro lado mais aberto da agora cidade, um bar de tapas, onde o vinho é seleccionado, a ementa está de acordo com os tempos modernos e o tipo de estabelecimento. Havia múltiplas padarias, que foram fechando devoradas pela boca informe das grandes superfícies. Abriu, porém, há uns tempos já, uma padaria muito diferente das antigas, que se preocupa com a qualidade e a diferenciação. Já falei dela por aqui. Havia uma casa, um ícone do comércio local, propriedade de dois irmãos, que fazia chaves e consertava chapéus de chuva. Fechou, pois os irmãos envelheceram e acabaram por morrer. Agora há uma casa, também de dois jovens irmãos, que não conserta chapéus de chuva, mas faz chaves, programa comandos, trata de fechos centrais de automóveis ou de portões de garagem que se movem devido à electrónica. Eis a grande substituição. As novas gerações tomam o lugar das mais velhas, cujos filhos nunca estiveram interessados nos negócios dos pais. A vida tende a reproduzir-se e por isso a persistir. Será isso o progresso, uma grande substituição.
terça-feira, 13 de fevereiro de 2024
Uma bonomia condescendente
Só agora, já passam das seis da tarde, é que me lembrei que é Dia de Carnaval. Na rua, não avistei qualquer movimento carnavalesco. Antigamente, sempre apareciam uns mascarados espontâneos que espraiavam a sua tristeza pelas ruas. Agora, cada um transporta a tristeza como pode, poupando os outros às suas figuras. Um avanço civilizacional, penso. É plausível pensar que o Carnaval seja uma reminiscência de festividades dionisíacas. Contudo, ao perder o carácter sagrado, o Carnaval alienou a sua natureza mais funda e tornou-se num divertissement profano e superficial, um exercício de comércio turístico. Por aqui, o dia tinha cara de Quarta-feira de Cinzas. Talvez esta tenha sido antecipada. Troquei a folia pelo trabalho, o que poderá ser visto como uma forma de penitência quaresmal, mas talvez a verdade seja outra, a minha incapacidade para ser um verdadeiro folião. Há pessoas que têm um dom, diria mesmo uma vocação para foliar, outras há, pobre delas, a quem o fado não concedeu essa inclinação e não sentem qualquer impulso para a exibição de uma alegria espaventosa. Talvez prefiram alegrias mais secretas, ocultas do público. Desprezam a gargalhada, preferem um sorriso. Impedem-se o escárnio e o maldizer e cultivam a ironia. Para estas, não há Carnaval, pois, há, muito descobriram que a vida quotidiana é um Carnaval, que olham de longe não sem condescendente bonomia.
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024
A natureza recalcitrante
David M. Estlund abre o capítulo seis do seu livro Utopophobia – on the limits (if any) of Political Philosophy com uma citação de outro filósofo, Thomas Nagel, retira do de Equality and Parciality. A citação diz Assim um inicialmente atractivo ideal moral é bloqueado pela recalcitrante natureza humana. Este ideal moral tinha uma expressão política. Deixemo-la, todavia, de lado. O problema não é daquele ideal moral em particular. Existe sempre um conflito entre qualquer ideal moral e a natureza recalcitrante dos seres humanos. Aliás, só existem ideais morais porque a nossa natureza é aquilo que é, recalcitra sempre que vê os seus desejos limitados. Por vezes, ela é tão ardilosa que tenta mostrar como ideal moral o que é imoral. Nietzsche, na sua diatribe contra a moral platónico-cristã tentou convencer os leitores, e alguns terá conseguido persuadir, de que ela era a expressão da imoralidade, de uma moral de escravos para enlear nas suas artimanhas os senhores. Aqui o ardil estará do lado de Nietzsche, que talvez imaginasse pertencer a uma casta superior e que não estaria submetido aos imperativos morais do homem comum. Que tenha enlouquecido parece ser um argumento poderoso contra o seu pensamento, mas talvez este seja um pensamento de um escravo incapaz de perceber o super-homem e uma moral que está para lá do bem e do mal.
domingo, 11 de fevereiro de 2024
Coroas de canela e amêndoa
Acabei de comer duas fatias da coroa de canela e amêndoa. Podia – e deveria – ser frugal, mas a tentação foi forte e achei que o melhor seria consumar a tentação em vez de a evitar. O resultado parece convincente. Agora, não me apetece mais nenhuma fatia. A padaria que um casal novo decidiu abrir nesta terra onde levo a minha obscura existência de narrador em busca de narrativa é um centro de tentações. Tanto pelo pão como pela pastelaria. Vê-se que tudo é pensado, que nada resulta de um hábito instalado, que, numa coisa tão prosaica como fazer pão, há uma grande vontade de inovação, sem que se encha a boca com palavras como inovação, empreendedorismo e outros mantras com que os portugueses disfarçam a sua falta de criatividade e a sua incapacidade para empreender seja o que for. O resultado é um discreto, mas efectivo, fomento da gula, com a desfaçatez de tornar um trivial pão de trigo num objecto propiciador de pecados mortais. Não estou a afirmar que tudo aquilo resulta de um pacto com o tinhoso, mas imagino que seja uma feliz exploração de alguma abertura que tenha havido no reino dos céus. Coloquei o problema, ainda há pouco, ao padre Lodo, na nossa conversa dominical. A resposta que me deu foi que quando fosse a Lisboa não me esquecesse de lhe levar um pão de trigo, outro de centeio e duas coroas de canela e amêndoa. Não compreendo, disse-lhe. É um excesso para uma pessoa e não me parece que seja suficiente para aqueles que partilham a residência da Companhia. Não se preocupe, respondeu, conheço bem as pessoas, as frugais, as moderadas e as que pouco se freiam. A encomenda está adequada à natureza dos residentes. Bem, respondi, não tenho nada que ver com o assunto, mas não queria ser o causador, ainda que involuntário, da perdição de ninguém. O pão, respondeu o meu amigo, é o Corpo de Cristo, e esse não perde ninguém. E as coroas de canela, perguntei. Não me parece que sejam coroas de espinhos, acrescentei. Do outro lado, apenas se ouviu um riso, e a conversa mudou para assuntos políticos, dos quais não me é permitido aqui falar.
sábado, 10 de fevereiro de 2024
Poupem-me as evidências
Seremos, de facto, um povo com QI baixo. Nos momentos em que vejo televisão, e são poucos, concentro-me num certo canal desportivo europeu. Não é que dê atenção aos desportos que por lá se exibem. Presumo que sejam aqueles que os canais comercias não querem. Dou alguma atenção ao snooker e ao ciclismo. Aos outros deixo-os ficar por ali, sem que lhes dê a mínima atenção. Infelizmente, os dois desportos que gosto mais de ver, o râguebi e o hóquei no gelo, foram comprados pelos canais comerciais. Ora, havia uma coisa que me agradava bastante no canal em causa. A qualidade da publicidade. Anúncios internacionais, muito poucos, e muito bem feitos, inteligentes e esteticamente apurados. Descobri agora que a política de publicidade da estação terá mudado e são passados anúncios portugueses. Também são, felizmente, poucos. Cada vez que vejo um sinto-me insultado. Parece que a publicidade dirigida aos portugueses é feita a pensar em mentecaptos que precisam de se babar com um engraçadismo soez. São anúncios dirigidos ao grande público, mas é preciso descer tão baixo na escala estética e moral? Se os publicitários assim organizam as campanhas publicitárias, então é porque quanto mais idiota for a publicidade mais consegue ela vender. Desconfio que a minha atenção, já reduzida ao mínimo, ao canal desportivo vai desaparecer por completo. Se nós portugueses temos assim um QI tão baixo, prefiro que me poupem às evidências.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
Palavras e imagens
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024
Um acto de civilização
Tenho uma relação difícil com os carros. Em primeiro lugar, conduzir aborrece-me, embora o faça sem problemas, mesmo em grandes viagens. É uma seca. Há gente da minha geração que ainda fala na adrenalina de conduzir. Talvez porque tome há muito beta-bloqueantes para descer a adrenalina e com ela a tensão arterial, conduzir não entra no grupo das coisas capazes de me fazer subir a adrenalina que tenho de baixar continuamente. Outra coisa difícil na minha relação com os carros é cuidar deles. Faço os mínimos. Hoje, olhei para um pneu e vi-o em baixo e achei melhor passar por uma casa que trata de pneus. Resultado, mudaram-me os quatro e ainda me recomendaram ir a Fátima agradecer por nenhum deles ter rebentado. Não fiquei particularmente preocupado com o meu descuido, porque só utilizo aquele carro para as voltas por aqui, onde raramente chego aos 50 km/h. O resultado da aventura é que o carro parece outro, mais leve e maleável. Se vivesse numa grande cidade, acho que dispensaria o carro de vez. Transportes públicos, um táxi ou um uber, e para viajar alugaria um carro. Tinha enormes vantagens. Acabavam problemas de estacionamento, não precisava de seguro, nem de oficina, nem de combustível, nem de pneus. E não precisava de lhe dar atenção. Não ter carro parece-me, neste momento, um acto de civilização. Isso, porém, não pode acontecer numa pequena cidade de província, uma cidade que se fosse elevada a vila teria uma enorme promoção. Aqui não há lugar para ideias civilizadas.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024
Em busca de uma iluminação
Não fora este ano ser bissexto e, no fim do dia, teríamos completado o primeiro quarto do mês. Assim teremos de esperar seis horas para comemorar a efeméride. Nos anos não bissextos, o mês de Fevereiro é o mais perfeito dos meses. Contém precisamente quatro semanas. Os outros meses alargam-se para lá do limite razoável. Uns dois dias, outros três. Nem sempre Fevereiro se contém, mas isso só acontece de quatro em quatro anos. O desejo de expansão vai crescendo, crescendo, até que se transforma num dia a mais. Esta minha explicação de Fevereiro, nos anos bissextos, conter mais um dia parece-me muito mais interessante – e por isso mais verdadeira – do que a explicação rotineira baseada na necessidade de manter o calendário anual coerente com a translação da Terra. Em vez da coerência o desejo, e onde entra o desejo tudo se torna mais palpitante. E as pessoas gostam daquilo que as faz palpitar. Tenho estado a ver um documentário sobre o escritor de ficção científica Isaac Azimov. A personagem parece-me interessante, mas nunca fui um leitor desse tipo de literatura. A razão talvez resida na minha falta de imaginação, no facto de não conseguir transportar-me para mundos fora da Terra ou mesmo dentro da Terra que, cada vez que tentei ler e ainda li algumas obras, sempre me pareceram terrenos, demasiado terrenos, embora enxertados de umas estranhezas que teriam a função de mostrar que se estava num outro mundo. Talvez esteja a ser injusto, mas o gosto não é uma questão moral e, por isso, não gostar de ficção científica não justo nem injusto. Vou meditar nas minhas razões para não gostar de ficção científica ou nos mistérios do calendário. Talvez tenha uma iluminação.
terça-feira, 6 de fevereiro de 2024
Mitologias
Pensei que se tinha perdido no caminho entre Inglaterra e esta casa onde me recolho, mas era um pensamento precipitado. Chegou hoje, para minha surpresa, pois o site continua a dar informações contraditórias, o livro da filósofa Mary Midgley, com o título The Myths We Live By. Quase no início, ela escreve Mitos não são mentiras, nem histórias isoladas. São padrões imaginativos, redes de símbolos poderosos que sugerem caminhos particulares de interpretação do mundo. Isto reconduziu-me ao Iluminismo, aos séculos XVII e XVIII, e à tentativa desesperada dos homens se emanciparem dos mitos. A isso chamou-se o triunfo da razão. Esse triunfo, porém, nunca deixou de ser uma fantasia, pois o triunfo da razão é ele próprio um mito que enquadra a interpretação do mundo. Imagino, não poucas vezes, que a razão não é mais do que uma imaginação coagulada, despida da sua fluidez, onde os mitos secaram, como secam as frutas expostas ao sol. Perdem a humidade. Eu, por exemplo, expando-me numa mitologia pessoal onde surjo como um narrador sem narrativa, um herói sem aventuras, um pensador sem pensamento. Perante estas autodescrições, pergunto-me se elas serão, enquanto figuras de retórica, oxímoros ou paradoxos. Imagino que no interior de cada mito exista um núcleo contraditório e é a partir desse núcleo tenso que emergem as redes simbólicas. Contudo, isto não é pensamento que se tenha a esta hora em que a tarde declina e com ela a luz e a minha vontade de escrever.
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024
Atenções
domingo, 4 de fevereiro de 2024
Uma escultura
De onde me encontro posso ver uma escultura em bronze, datada de 1956/57, de Lagoa Henriques, uma figura feminina com bicicleta. Está num conhecido complexo habitacional de Lisboa, importante na história da arquitectura moderna portuguesa. A figura feminina, penso ao contemplá-la na sua nudez, obedece a um padrão de beleza que, entretanto, caiu em desuso. Isto mostra, entretive-me a pensar, que o desejo tem uma forte dimensão social. Aquilo que é desejável eroticamente obedece aos padrões impostos pela moda, o que significa que a pulsão natural é envolvida por uma capa de carácter cultural. Ora, é esta capa que permite não apenas a diferenciação do que é desejável ao longo do tempo, como uma diferenciação social entre os que desejam segundo os modelos mais sofisticados e os que desejam segundo modelos mais simples e arcaicos. Esta diferenciação trazida pelas dinâmicas culturais não se instala sobre uma igualdade natural, pois igualdade na natureza parece ser um bem escasso, como se pode constatar pelo facto de todos os seres humanos terem impressões digitais diferentes, mas substitui essas diferenças dadas por diferenças criadas socialmente, as quais podem acentuar as hierarquias naturais, mas podem também subvertê-las. Olhando para a escultura de Lagoa Henriques, volta a questão da natureza de um valor como a beleza. A diferenciação no tempo – e também no espaço geográfico – do que se considera belo é um argumento a favor do relativismo cultural. Contudo, talvez seja possível compatibilizar a ideia de que a beleza é um valor objectivo e universal com este relativismo cultural. Para os domingos, dias sagrados de descanso, a melhorar solução de compatibilidade teria uma tonalidade platónica. Existe a priori uma ideia de beleza, a da verdadeira beleza, uma ideia objectiva e universal. As ideias relativas provenientes da cultura são interpretações limitadas e variáveis dessa ideia, a qual é apenas entrevista como uma sombra. Amanhã, poderia encontrar outra explicação, mas por hoje esta basta. Tenho de ir almoçar com as netas.
sábado, 3 de fevereiro de 2024
Uma derrota
Sem uma aventura para adicionar à gesta gloriosa em que transformei o meu quotidiano, resta-me narrar uma desventura. Dirigi-me a uma farmácia, longe de casa, para comprar um certo medicamento. Receita electrónica no bolso, isto é, no telemóvel, passada em meados de Dezembro. Das seis unidades receitadas, tinha adquirido apenas duas. Restavam-me quatro. Quando mostro a prescrição, recebo a informação de que todas as unidades tinham sido dispensadas, não me restava nenhuma. Fiquei perplexo, quero dizer, fiquei com cara de parvo, sem saber o que dizer, perante alguém que nunca me vira. Só comprei duas embalagens, aliás, nem vendem mais, disse, como se apresentasse um argumento decisivo para que me vendessem o medicamento. A funcionária – talvez fosse a dona da farmácia, sabe-se lá com quem se fala numa farmácia desconhecida – para me consolar, disse não se preocupe, pois eu também não tenho essa versão do medicamento. Respirei fundo. Estar ali o medicamento e não o poder levar era muito pior do que não haver medicamento. Chegado a casa, fui investigar a aplicação e lá percebi que na farmácia que frequento devem ter cometido um erro. Venderam-me duas embalagens e consideraram que me tinham dispensado as seis. O meu problema com esta desventura não é a falta do medicamento, mas não saber em que página da minha epopeia ela cabe. Um herói que se preze não tem apenas vitórias. As derrotas, desde que não contumazes, testam a sua resiliência, a sua capacidade de ultrapassar os momentos amargos. Um momento amaríssimo é aquele em que se utiliza a palavra resiliência e eu acabei de o fazer.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024
Da euforia à apatia
O mundo anda inflamado, ouvi. Como a conversa não era comigo, assenti, mas apenas mentalmente, sem deixar transparecer concordância ou, tão pouco, ter escutado a afirmação. Depois, o pensamento, o meu, apresentou a si mesmo a natureza da inflamação, o calor deste Inverno. Parece ainda não ter sido descoberto um anti-inflamatório eficaz para estas perturbações, pensei. Sexta-feira, o dia desliza insensato para o seu fim e eu acompanho-o, sou arrastado pela voracidade que se apoderou do calendário. Há pouco subi e desci uma certa artéria da capital. Fi-lo propositadamente devagar, tentando enganar o tempo e esperando que ele diminuísse a sua marcha. Manteve-se impávido, ignorando-me, ignorando a minha estratégia, fazendo finca-pé na fidelidade que tem às dimensões das suas divisões, recusando-se a que um segundo dure mais que um segundo. Esta recusa, arrasta todas as outras. Como se vê, a fidelidade nem sempre é uma virtude. Por falar em fidelidade, disse o padre Lodo, com quem almocei e contara a minha artimanha, li que o mundo está a renunciar ao sexo, que se passou da euforia da libertação sexual à apatia da libertação do sexo. No meu país, a Itália, prosseguiu vivaz, os estudos mostram que um milhão e seiscentos mil jovens, entre os 18 e 35 anos, nunca tiveram qualquer relação sexual e que um terço dos jovens até aos 25 anos apenas teve sexo virtual. Há 220 mil casais estáveis, nas mesmas idades, que são sexualmente abstinentes. Isto é um problema, exclamou. Olhei-o divertido. Parece que a revolução sexual dos anos sessenta foi muito mais eficiente em gerar o desprezo pelo sexo do que a prédica de dois mil anos da Igreja, respondi. Olhou-me compadecido da minha inclinação para a heresia. A Igreja, disse, nunca desprezou o sexo, apenas quis fazer dele uma coisa rara e, por isso, valiosa, ripostou. Tão valiosa que deve estar encerrada na esfera das coisas sagradas, concluiu. Sim, sim, disse eu, mas também admitia excepções para os membros do clero. Esses estavam livres da sacralidade do sexo e abstinência era coisa para os outros. Franziu o sobrolho, pegou na garrafa de vinho e ao ler o rótulo, exclamou que o sexo não é tudo na vida e que até na região de Lisboa se encontram óptimos vinhos. Coisa com que concordei sem vontade de proferir nova heresia.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024
Subir para baixo
Começou Fevereiro. Quando, ao levantar-me, constatei o facto, surgiu-me uma inquietante dúvida no espírito. Se Janeiro tem o seu nome em honra do deus Janus, o deus bifronte, e Março honra Marte, o deus da guerra, a que deus, caso seja algum, honrará Fevereiro, esse mês amputado de dias. Pensei que talvez fosse uma divindade que tivesse sofrido alguma excisão. Por exemplo, poderia ser um deus a que tivessem excisado um dente, um dedo. Investiguei e descobri que Fevereiro vem do latim Februarius, nome inspirado em Fébruo, o deus da morte na mitologia etrusca ou na sabina, não se tem a certeza. Eis uma descoberta tétrica, mas logo se percebe a razão. Fevereiro, isto é, Februarius, era o 12.º mês, e último, do calendário lunissolar romano extinto em 46 a.C. O ano morria em Fevereiro, por isso é absolutamente racional a escolha do deus da morte como inspirador da denominação do mês. Resta, todavia, uma discussão a fazer em torno de Fevereiro. Passar de último mês do ano para segundo, conforme os calendários juliano e gregoriano, foi promoção ou despromoção? Apesar de a transição de 12.º para 2.º não lhe ter retirado o estatuto de mês amputado de dias, há uma notória despromoção funcional. Agora, Fevereiro liga Janeiro a Março, dois meros meses. Antes, porém, ligava um ano ao outro. Era um mês terminal que anunciava um novo ano, uma nova vida, um novo mundo. Eis um exemplo que todos devemos ter em atenção. Quantas vezes subir numa hierarquia não passa de uma despromoção? Muitos são aqueles que sobem para baixo.
quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
Liberalismo climático
Janeiro despede-se em clima primaveril. Trata-se de uma vitória assinalável do liberalismo climático. Depois de tanta insistência por parte dos defensores do clima livre, S. Pedro decidiu acabar com a regulação meteorológica, a qual já sofria de algumas deficiências. Entregue a si mesmo, o clima aposta em trazer a Primavera ou mesmo o Verão em pleno Inverno, ou prolongar Verões até ao começo do Inverno. Dizem os liberais climáticos que o clima desregulado atende melhor aos desejos do mercado, e aquilo que o mercado gosta é de calor, tempo estival, dias propícios para ir para a praia. Eis uma explicação que ultrapassa em rigor analítico as que são dadas pela ciência sobre as alterações climáticas de origem antropogénica. De facto, e aqui os cientistas geofísicos têm razão, o clima está a mudar devido ao homem, não, porém, à sua acção produtora de dióxido de carbono, mas ao seu desejo – um desejo insensato, sublinho – de praia, de torrar ao sol, de mergulhar nas águas do oceano, de se enfarinhar na areia. Por isso, este Janeiro do qual nos despedimos, foi o que foi. Uma resposta do clima à procura no mercado.
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
Um dia glorioso
Alguém, um desocupado, por certo, está a perfurar uma parede. Ao mesmo tempo perfura-me o sossego, a paciência e a atenção. Todas as máquinas deveriam ter um processo de absorção das ondas sonoras que, ao trabalhar, produzem em abundância. Acumulavam as ondas sonoras e transformavam-nas, posteriormente, em água, o que ajudaria a combater, não com pouca eficácia, a seca. Como se vê, bem tento contribuir para melhorar o mundo, mas ninguém parece interessado nas magníficas ideias que me ocorrem. Só nesta jornada a verrumar paredes, se poderia produzir uma meia dúzia de metros cúbicos de água. Levantei-me relativamente tarde, pois, ao acordar, tive uma súbita iluminação. O melhor é pegar no telemóvel e ir validar as facturas na aplicação. Não tarda é tempo de IRS. Falta menos de um mês para acabar o prazo e, antes que me esqueça, resolvo já o assunto, enfrentando o dragão do fisco com a lança acerada da prontidão. É verdade que segui aquele conselho lido num dos livros da escola primária. Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Não guardei. Tinha mais de quatrocentas facturas para classificar e validar, coisa que fiz no conforto da cama. Esta foi a minha aventura do dia, uma peça fundamental na gesta que me conduzirá à glória e espalhará a minha fama num horizonte tão amplo quanto aquele que o meu irmão de aventuras, o fidalgo D. Quixote, alcançou na sua vida heróica. O dia está ganho, uma ideia genial capaz de salvar o planeta e um combate com o dragão fiscal são aventuras mais que suficientes para um dia só. Contudo, há dias assim, tenho ainda de enfrentar a víbora da burocracia. Chegaram-me uns papéis para ler e dar o meu assentimento. Se utilizei uma lança para derrotar o dragão do fisco, terei agora de usar uma espada para cortar a cabeça da víbora da burocracia. Um dia glorioso.
segunda-feira, 29 de janeiro de 2024
Viandâncias
Hoje comecei o dia demasiado cedo. Ainda por cima a noite foi mal dormida, com tempo para pensar em adormecer e tempo em que, o pensamento derrotado, me entreguei à leitura, não sem antes ir tomar um comprimido para acalmar uma certa dor que teimava pairar num dos joelhos. Há dores que durante o dia não damos por elas, tão pequenas e insignificantes são. As mesmas, na sua insignificância, durante a noite, tornam-se um adversário poderoso de quem quer dormir. Não há maneira de chegar a um tratado de paz, que permita compatibilizar a vocação da dor para doer e o desejo do paciente em conviver com bonomia com essa inclinação que habita qualquer dor. Entregue à leitura, sob o efeito químico do colírio seleccionado, dei conta de a dor se ir afastando, não com pressa, mas com um passo aceitável. Quando ela se retirou por completo, pus a leitura de lado e adormeci. Sono de pouca dura, pois o alarme logo tocou e tive de me levantar. Um compromisso aguardava-me e eu não gosto de fazer esperar os compromissos. Cheguei a tempo, isto é, ainda antes da hora marcada. Depois do compromisso, fui caminhar para me esquecer do que tinha estado a tratar. Estava a meio da manhã e o sol tentava romper as nuvens, o que conseguiu a certa altura. Na viandância, não encontrei ninguém conhecido, mas agora inventei uma palavra. Os dicionários não registam viandância, mas o que fará um viandante se não a viandância? Se um peregrino faz peregrinações, um viandante só pode fazer viandâncias. Faço imensas viandâncias sem sair do mesmo lugar. Ponho-me a viandar, mas nunca saio de onde estou. Acontece também que, muitas vezes, farto-me de viandar para chegar ao sítio onde estava, aquilo que no jogo do monopólio se chama ir para a casa da partida. Bem, não sei se era nesse, se era no jogo da glória, ou noutro qualquer.
domingo, 28 de janeiro de 2024
Cinza de domingo
Domingo de cinza. Uma luz difusa atravessa o muro de nuvens e abre-se, esbranquiçada e plangente, sobre a cidade. Um tempo em que ressoa no fundo do coração um Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius. Tudo isto para dizer que apesar de se estar longe da Quaresma, o domingo parece uma sexta-feira de Paixão. De manhã, fui caminhar, com esperança de me poder reconciliar, daqui a uns tempos, com a balança. Neste momento, entre mim e ela não há conflito real, pois ela recusa a devolver-me o peso. Preciso de mudar-lhe a pilha, mas, acto falhado, tenho-me esquecido de a comprar. Olho para a pilha e vejo um disco achatado. O pior é que há inúmeras versões destes discos achatados e só uma delas se adapta à minha inimiga de estimação. Não faço ideia qual é e ainda não me dei ao trabalho de remover a gasta para a levar ao sítio onde se vende aquele tipo de coisas. Enquanto caminhava, ia meditando na diferença dos hábitos de hoje e os de há cinquenta anos. Naqueles dias, os domingos eram coisa séria. Hoje, porém, são leves e desportivos. Antigamente, as pessoas iam à missa preocupadas com a alma. Hoje, caminham, correm, fazem desporto, preocupadas com o corpo. Se alguém argumentar que as dores de alma são piores que as do corpo, ninguém acreditará. Rendemo-nos ao império do visível. Os corpos vêem-se, as almas não. Olho pela janela e parece que o tempo se suspendeu. A realidade imobilizou-se e imóvel persiste diante dos meus olhos. Nem o vento abana a ramagem das árvores, nem pessoas passam na praceta, nem carros rasgam a avenida. Procuro os corvos que costumam voar, ao longe, saltando entre árvores, mas também eles se imobilizaram. Toda a cidade entrou no domingo e parece não querer sair dele. Oiço, agora, um carro, mas não o vendo sou forçado a admitir que talvez não seja um carro, mas apenas uma turbulência sonora que imita o barulho de um carro para me iludir.
sábado, 27 de janeiro de 2024
Vulgaridades
O meu desejo é de dormir uma boa sesta. Falta-me, porém, uma desculpa aceitável. Por exemplo, ter dormido mal durante a noite. Esta noite, talvez para contrariar a priori o meu desejo deste momento, dormi bem, sem interregnos para adiantar leituras. O drama humano, talvez a tragédia, é a necessidade de encontrar desculpas – chamamos-lhes, muitas vezes, justificações – para fazer certas coisas. Sem desculpas, há acções que não têm qualquer direito à realização, mas uma boa desculpa torna-as legítimas. No que escrevi, há um equívoco. Não se trata de um drama, muito menos de uma tragédia. Serve-lhe bem um título de Balzac, a comédia humana. A comédia retrata as acções – e também as paixões – dos homens vulgares, enquanto a tragédia mima as acções dos homens nobres. A mim apenas cabe a comédia. A comédia não é aquilo que faz rir, embora os dicionários se tenham convertido a essa acepção, mas o que permite ver a vulgaridade que há nos seres vulgares. A minha vulgaridade está, neste momento, toda ela na propensão para dormir, para deixar cair o queixo sobre o peito e ressonar, enquanto um fio de baba se escapa da boca. A descrição é nojenta, mas não se pode esperar da vulgaridade de uma pessoa vulgar outra coisa. O nojo habita naquilo que é comum. Ora, não sendo da estirpe de um Édipo, filho de Laio, nem de Agamémnon, filho de Atreu, só me cabe a vulgaridade das coisas que acontecem aos mortais desprovidos de laços sanguíneos com os deuses. Tenho a vantagem de não matar o pai e casar com a mãe ou, espero, de não ser assinado pela mulher e o amante desta, destinos que os deuses concederam como uma graça ao filho de Laio e ao filho de Atreu. Os deuses são caprichosos. Talvez por isso foram substituídos por um Deus único que, ao olhar para a justiça, não faz acepção de pessoa e não distingue aqueles que merecem uma tragédia e aqueles cuja vida não passa de uma comédia. Agora, vou dormir a sesta.
sexta-feira, 26 de janeiro de 2024
Sem porquê
Anoiteceu. Os dias estão a crescer há mais de um mês, mas ainda são pequenos. A natureza progride lentamente, oiço-me pensar. Depois, rio-me. Não, a natureza não progride. Nela não há progresso nem retrocesso. Há apenas o acontecer, mas esse acontecer não significa nada a não ser o próprio acto de acontecer. Progresso e retrocesso só podem existir onde existe um sentido. É este que permite a existência de objectivos e finalidades, os quais são os marcos miliários, pelos quais se medem avanços e recuos. Ora, naquilo que apenas acontece não há avanços nem recuos. Pensar nisso, pensar que a generalidade das coisas apenas acontece, conduz a uma vertigem da nossa consciência, a qual se recusa a conceber que tudo pode ser destituído de sentido, incluindo ela e aquele em que ela vive. Um certo filósofo alemão do século passado, cuja fama não foi comprometida pelas ínvias opções que fez a certa altura da vida, alicerçou a sua glória na tese de que toda a história da filosofia é a história do esquecimento do ser, do esquecimento da pergunta pelo ser. Podemos pensar que esse ser esquecido não é outra coisa senão o puro acontecer sem qualquer significado senão acontecer. Será destituído de sentido fazer perguntas sobre aquilo que não tem sentido. Este texto é prova de que estou a entrar nos dias de ócio. Só a perspectiva da ociosidade me poderia levar a escrever coisa tão ociosa, tão destituída de sentido. Tivesse este narrador talento e teria escrito a apenas uma frase, aquela que Angelus Silesius, para sua eterna glória, escreveu, a rosa é sem porquê.
quinta-feira, 25 de janeiro de 2024
Trolls
Janeiro, o mês que já esteve envolvido em chuvas e frios, abriu-se numa Primavera temporã, fechando-se ao negro das nuvens pesadas e ao fustigar dos chicotes do vento. Este desarranjo entre o clima e o calendário daria se não uma epopeia, pelo menos uma ode. Um autor preocupado com a deficiente gestão das estações acabaria por compor uma tragédia, onde um Édipo se haveria de cegar ou uma Antígona se entregaria à morte. Descubro que Frederico Lourenço, na sua tradução da poesia completa de Horácio, decidiu dar títulos aos poemas que os não tinham. Não comento a opção, mas não deixo de sorrir lendo [Trolando um arrivista]. Eis um título da nossa época, adequado a um tempo em que não faltam trolls. Bem Horácio pode escrever: Passeia lá, empertigado pelo teu dinheiro: / a riqueza não altera a linhagem. O empertigado arrivista fará o seu caminho e por muito que seja trolado pelas palavras, não deixará de ser ele a trolar quem passe diante de si. Por mim, aceito-me como um autêntico troll vindo do folclore escandinavo, um troll feio, desagradável e burro. Cada um distingue-se como pode e o meu caminho da distinção é esse. Contra factos não há argumentos, embora a maior parte das pessoas acredite que contra argumentos não existem factos que lhes resistam. Em suma, Janeiro está a ser trolado não sei se por um arrivista, se por um santo cansado da gestão do clima. Que se reforme, se for esse o caso.
quarta-feira, 24 de janeiro de 2024
A espera
Como a imaginação escasseia, retorno à citação. Andrea Köhler, uma correspondente, estabelecida em Nova Iorque, do diário suíço Neue Zürcher Zeitung, tem um ensaio denominado O Tempo que Passa – Um ensaio sobe a Espera. Não o conhecia, mas vi o livro na mão de uma pessoa amiga e dei uma vista de olhos pelo conteúdo. Descobri, no início do capítulo «Desiste!», página 40 da tradução portuguesa, o seguinte: Fazer esperar é um privilégio dos poderosos. No piso da administração, onde nos deixam entregues à espera, há quem supervisione o nosso tempo e o consuma voraz e irreflectidamente. Quem nos faz esperar celebra o poder que detém sobre o nosso tempo de vida, e a dúvida sobre se não é justamente essa a razão para sermos deixados à espera é o que confere a esse poder o seu aspecto mais ameaçador. O meu conflito contumaz com as esperas nos consultórios tem aqui a sua raiz. O bem mais precioso que recebemos ao sermos concebidos é o tempo. Que outro disponha do nosso tempo a seu bel-prazer é não apenas uma humilhação, mas um ataque violento contra a nossa autonomia. Todos temos de gastar o tempo dos outros, mas há diversas formas para o fazermos. Esse gasto pode resultar de um acordo justo entre as partes. Pode também proceder de um exercício de poder daquele que se encontra numa posição superior e que, por isso, dispõe do tempo do outro. As relações entre chefes e subordinados, entre empregadores e empregados, entre médicos e pacientes, são todas elas propícias a um exercício de poder irracional fundado na disposição arbitrária do tempo do outro. Esse poder sobre o tempo dos outros pode acontecer em qualquer circunstância, mesmo as mais inesperadas. Há muito tempo, vivi durante um ano numa cidade do Alentejo. Um dia, precisava de uns parafusos, dirigi-me a uma loja de ferragens. O tempo ali passava muito devagar. A certa altura, o empregado percebendo em mim alguma impaciência, disse-me para não ter pressa, pois ele só saía dali às sete horas. Seriam pouco mais de três. Havia naquela graçola uma vingança. Ele tinha de perder o seu tempo a trabalhar para outrem e vingava-se naqueles que necessitavam do seu atendimento. Sempre que tenho um compromisso esforço-me para chegar a tempo, para não fazer o outro esperar, pois a espera não é o princípio de esperança, mas o sinal de uma distorção na relação entre seres dotados de razão, que devem respeito uns aos outros.
terça-feira, 23 de janeiro de 2024
Lidar com o tempo
Ontem recebi uma chamada. Era só para recordar que amanhã tem uma marcação para vir pôr o Holter, ouvi. Ah sim, obrigado, respondi. Está marcado para as onzes horas, mas pedimos que venha um quarto de hora mais cedo. Disse que sim, que estaria um quarto de hora mais cedo. Tinha a vaga ideia de ter este exame para fazer, mas já nem me recordava quando. E lá fui hoje, de modo a chegar um quarto de hora mais cedo, imaginando que me despacharia rapidamente. Não foi inocência minha. Apenas burrice, pois, como diz uma amiga, inocência depois dos quarenta é apenas burrice. Saí de lá uma hora depois, sem o aparelho colocado. Tinha um compromisso inadiável e não podia esperar mais. Não, não foi no serviço público. Parece que a incompatibilidade entre cumprir horários e exercer a profissão de médico se alargou para os outros serviços de saúde. Desde que os técnicos de saúde se apresentam e são apresentados como doutores, imagino, que tenham também herdado, para além do título, a prerrogativa de não cumprir horários. Em tempos um antigo professor meu da faculdade deu aulas em Medicina sobre ética e saúde. Nessa altura, achei que fazia sentido, mas estava muito longe dos quarenta e a inocência era-me permitida. Hoje continua a fazer sentido que professores de Filosofia tenham lugar para ensinar nos cursos de formação de médicos. Não sobre ética, mas, de preferência, sobre metafísica, onde se trata do problema do tempo. Uma meditação sobre o tempo e a sua irreversibilidade. Desfazer a confusão de que parecem sofrer os praticantes de profissões médicas entre tempo e eternidade. Umas boas aulas de metafísica poderiam, inclusive, ajudar a saber ler um horário e perceber, com a ajuda da ética, o seu carácter imperativo. Tudo isto seria um contributo inestimável que a Filosofia poderia dar aos pobres mortais que, querendo adiar o desfecho que a sua natureza impõe, recorrem aos serviços de saúde. Aquele tempo que gastam em salas de espera seria aproveitado em coisas mais interessantes, mesmo que fizessem mal à saúde. Estamos em época de eleições, sobre as quais não falarei. A política está-me vedada, mas faço uma confissão. Irei ler os programas de todos os partidos e coligações concorrentes, no capítulo da saúde, para ver se algum deles se propõe enfrentar o pior de todos os problemas que afectam a saúde em Portugal, a dificuldade de as profissões ligadas à saúde lidarem com o tempo.
segunda-feira, 22 de janeiro de 2024
Uma ferida
Na praceta aqui em baixo, adolescentes jogam à bola enquanto esperam o começo das aulas no centro de línguas. Nestes jogos onde nada se joga há uma plenitude que em nenhum outro lado se encontra. Os jogadores não têm outro objectivo que não seja jogar. Coincidem com o seu próprio acto e são inteiros na finta que fazem ou no pontapé que dão. Estão a despedir-se de uma inocência de que não possuem qualquer consciência e é nesse não saber que reside a sua inteireza e a sua inocência. Estes jogos espontâneos são um adeus ao paraíso de que estão, paulatinamente, a ser expulsos. De súbito, fez-se silêncio. Terão entrado para uma aula. Um dia destes já não jogarão, pois deixaram de coincidir consigo mesmos. Essa cisão crescerá como uma ferida. Descobrirão que é uma doença crónica. Haverá aqueles que procurarão a cura e perder-se-ão de si. Outros haverá que aprenderão a viver com a doença, permanecendo dentro do seu próprio horizonte. Caso cheguem a velhos, pensarão sobre isto, sobre o modo como conviveram com a doença crónica e a tornaram num instrumento da sua própria saúde. Nessa altura, sentirão, primeiro, uma leve nostalgia pela inocência em que o seu corpo coincidia consigo mesmo quando um pé encontrava uma bola e a garganta gritava golo. Depois, sentirão o alívio de nunca terem querido curar a ferida aberta pela cisão que os constitui.
domingo, 21 de janeiro de 2024
Progresso e regressão
A certa altura, uma altura recente, da história da humanidade iniciou-se um culto fervoroso pelo progresso, pela evolução do homem. Uma autêntica religião, embora cindida em diversas igrejas, com a sua liturgia, os seus rituais e os seus sacramentos. O século XX foi, porém, uma época propícia para o cultivo da dúvida. O agnosticismo e o ateísmo em relação à evolução da humanidade cresceram, reduzindo o número de fiéis e ainda mais o de praticantes. Da crença na evolução, ficou apenas a certeza do progresso da técnica e um medo terrível de que a moralidade humana estivesse longe de ser capaz de acompanhar o ritmo do desenvolvimento técnico. Este culto público do progresso e da evolução da humanidade sempre foi acompanhado de um outro culto, com raízes muito antigas, mas de natureza quase secreta. Há quem acredite que os seres humanos não estão em evolução, mas em involução. Desde há muito que vivemos numa fase de regressão da nossa humanidade. Em tempos, todos os seres humanos teriam sido mais sábios e sensatos, a vida entre eles era justa e aprazível. Depois, entraram num processo de decadência que se vem acelerando ao longo do tempo. Poder-se-á mesmo afirmar que, para esses cultores da regressão, o progresso técnico é inversamente proporcional à qualidade da humanidade. Quanto melhor a humanidade, menos necessidade da técnica ela tem. Quanto maior recurso à técnica, pior é a humanidade. Estas duas perspectivas têm o condão de sublinhar a necessidade que temos de contar histórias e, ainda mais, de contar histórias que permitam contar todas as outras. Estas duas histórias contadas aqui são histórias enquadradoras, são elas que permitem que contemos todas as outras, sejam elas quais forem. A dificuldade, a minha dificuldade, é que não sei em que campo hei-de enquadrar a história deste domingo. Será a história de mais um passo na evolução da humanidade ou, pelo contrário, será a prova da sua regressão. Ora, não será uma coisa nem outra, pois neste domingo não tenho nada para narrar e este é o ponto de equilíbrio, um ponto neutro, entre a crença no progresso e a fé na involução. A utilidade dos dias úteis, por certo, dar-me-á mais imaginação para encontrar assunto.
sábado, 20 de janeiro de 2024
Interesses
Retornei a O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Li-o há muito e vi algumas vezes o filme que Visconti fez a partir dessa obra. Estou naquele momento em que Angelica, a bela filha de Dom Calogero, chega ao jantar dado, no regresso a Donnafugata, pelo príncipe de Salina. É extraordinária a forma como Lampedusa mostra a mudança de poder, a queda lenta e inexorável da velha aristocracia e a subida de uma nova casta, ainda rude, mas que fará do interesse próprio a espada com que, sem contemplações, triunfará. Os privilégios da velha aristocracia fundavam-se num ethos do serviço, o qual dissimulava ou sublimava o interesse próprio. Os que triunfaram com Garibaldi puseram de lado esse ethos do serviço e legitimaram o interesse próprio como única razão para agir neste mundo. Poder-se-á pensar que o triunfo dos novos senhores teve o condão de tornar manifesto aquilo que era oculto. É verdade, mas também é verdade que condenou à irrelevância a ideia de servir os outros ou mesmo a necessidade de sublimar, no sentido de tornar sublime, aquilo que era apenas um impulso egoísta. Olhando para essa mudança de poder social que se iniciou no século XVII, em Inglaterra com a Gloriosa Revolução, passou pelas Revoluções Americana e Francesa e se prolongou até à primeira guerra mundial, constata-se que os novos poderes, ao perseguirem os seus interesses próprios, muitas vezes com uma rudeza extrema, acabaram por proporcionar um mundo mais benevolente para a maioria das pessoas. É aquilo a que Hegel chamou de astúcia da razão. Do ponto de vista de uma contabilidade utilitarista, a mudança de poder foi moralmente boa, ao proporcionar a felicidade de um maior número. Contudo, o espírito sente, perante o ethos triunfante uma certa repulsa, pois a conduta dos indivíduos é movida por aquilo que uma longa tradição, que junta o legado grego e, principalmente, o cristão, sempre considerou adverso à virtude moral, o agir segundo o interesse próprio. Cristo, o modelo do homem na cultura ocidental, morreu na cruz movido pelo interesse dos homens e não pelo seu interesse pessoal.
sexta-feira, 19 de janeiro de 2024
Contra a colaboração
Estou em maré de citações. Citar outrem é aliviar-se do encargo de pensar por si. É uma espécie de coexistência espúria, como o são todas as coexistências. Ouvi-o a Bernardo Soares e li-o no seu livro do desassossego, quando passei os olhos pelo trecho Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir. Descobri, em tempos, que vivemos num mundo de colaboradores e que colaborar é uma virtude primeira das relações sociais. Essa descoberta deixou-me sempre desconfortável. Eu não sou um colaborador, falta-me a alma de colaboracionista. A minha revolta contra o verbo colaborar era estética. A colaboração é uma coisa feia. O Bernardo Soares, porém, veio ajudar-me a compreender o fenómeno. Há na colaboração uma morbidez metafísica. Uma decomposição metafísica não cheira menos mal do que uma decomposição física. Pelo contrário. Imagine-se o mau cheiro que deita a putrefacção de uma alma. Começa com um cheiro a enxofre e a partir daí a gama dos odores é cada vez mais repelente. Em vez de desperdiçar a nossa personalidade em orgias de coexistência, a expressão é do Soares, entreguemo-nos à ascese da existência, digo-o eu para evitar que o acto de citar cubra todo este texto. Chegou a sexta-feira, o que me poupa a algumas orgias da coexistência. Entro nela como se entrasse para um eremitério.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
Trazer à linguagem
Albert Manguel, o conhecido autor de Uma História da Leitura, na Nota Prévia ao romance de ficção científica Solaris, de Stanisław Lem, afirma Na nossa arrogância só vemos o que queremos ver, vendando os olhos para o resto. A ciência elabora argumentos de ficção científica para nos consolar ou entreter, mas, na realidade, limita-se a dar respostas a expectativas tradicionais. Há nas palavras de Manguel uma insurreição contra o hábito. Nem a ciência escapa à submissão à tradição. Para completar a diatribe revolucionária, acrescenta Ficam por dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Ester ardor contra o instalado esbarra, como qualquer projecto revolucionário, com aquilo que se propõe. Dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Há dois equívocos neste programa. O inacreditável ocupa um lugar não despiciendo nos actos de fala e de escrita. Muitas são as coisas inacreditáveis que são ditas e escritas. Por vezes, são-no de tal modo que, apesar de absolutamente inacreditáveis, elas são acreditadas e multidões há que juram serem verdadeiras. Se há uma coisa que está no poder da linguagem humana é dizer o inacreditável. O segundo equívoco nasce do programa utópico de dizer o impensável e o inimaginável. A linguagem tem um vínculo com o pensado e o imaginado. Aquilo que não pode ser pensado ou, tão pouco, imaginado não pode ser dito e isto não se deve à submissão dos homens ao hábito ou a uma tenebrosa tradição, mas à natureza do impensável e do inimaginável. Contudo, a linguagem tem tido um enorme poder para trazer à expressão aquilo que ainda não tinha sido pensado ou imaginado, mas que, em última análise, não era ontologicamente impensável e inimaginável. Se a linguagem fosse sempre dependente de um hábito ou de uma tradição, o mais plausível seria que ainda não existisse uma verdadeira linguagem humana, mas apenas um sistema rudimentar de vocalizações que se repetiriam infinitamente, um sistema pré-babélico partilhado por todos os animais humanos. A confusão das línguas resultante da aventura de Babel não é outra coisa senão o símbolo de uma humanidade que procura trazer à linguagem aquilo que ainda não foi pensado ou sequer imaginado, mas que não é, por natureza, impensável ou inimaginável.
quarta-feira, 17 de janeiro de 2024
Desolação
A meio da manhã fui a uma grande superfície. Quando ia para sair, chovia desalmadamente. Sem guarda-chuva que me protegesse corpo e alma, guardei-me da chuva indo até ao sítio, também grande, onde existe um posto dos CTT, um centro de cópias, melhor de fotocópias, venda de material de escritório e escolar, assim como de brinquedos e também de livros, em quantidade apreciável, diga-se. O desolador, porém, é constatar aquilo que anima o comércio livreiro. A quantidade de lixo publicado em forma de livro é extraordinária. Imagino que essas publicações substituíram as antigas fotonovelas Corin Tellado e outros títulos do género. A minha desolação não deriva desses livros serem publicados em abundância, mas de continuar a haver procura. Havendo procura, logo haverá quem esteja disposto a produzir a oferta que responderá ao desejo. A desolação nasce da constatação de que um aumento exponencial da frequência escolar não alterou o gosto, nem produziu gerações mais interessadas naquilo a que se pode chamar, talvez com presunção, alta cultura. Ao contrário do ensino, a excepção não se democratiza, e procurar o excepcional parece não fazer parte daquilo que se ensina. Olhava para as estantes e por cada romance digno desse nome havia mais de cem que não passavam de um renovamento das antigas fotonovelas, agora sem fotografias. Talvez o progresso esteja aí, na transição da curta legenda pespegada numa fotografia para centenas de páginas de texto sem imagens. O problema que ruminei ao ver aquele papel cheio de palavras foi o de saber quantas gerações serão necessárias para que a quantidade se transforme em qualidade. Talvez essa ideia não passe de uma ilusão dialéctica. Seja como for, cada um lê o quer ou pode, pois é isso o que pressupõe uma certa interpretação da liberdade. Esta ruminação melancólica demorou o suficiente para deixar de chover e poder fazer-me ao caminho, já que a farmácia me esperava, embora ela não o soubesse. Uma visita de surpresa.
terça-feira, 16 de janeiro de 2024
Justa medida
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024
Obras apócrifas
Salvo por uma chamada de telemóvel. Sentei-me para escrever este texto. Sem saber o que dizer, acabei por adormecer. A meditação deve ter sido tão profunda que mergulhei no reino dos sonhos, embora não tivesse sonhado. Um amigo, a precisar de uma indicação na manipulação de um certo software, ligou-me e eu retornei ao estado de vigília para lhe dar a indicação e enfrentar o texto que espera a minha decisão para se manifestar. Isto significa que o texto que estou a escrever existe a priori e que eu não sou o seu criador, mas aquele que, sem saber como, o revela, trazendo-o do mundo invisível para o visível. Esta transição entre mundos, como todos sabemos, é problemática e, por norma, representa uma queda. É o que acontece com estes textos. No mundo invisível, eles, suspeito-o, são brilhantes, mas quando opero a transição entre mundos, eles degradam-se e acabam naquilo que se vê. É verdade que nunca recebi qualquer reclamação do outro mundo por diminuir a qualidade da obra. Quando penso nisso, e penso-o muitas vezes, nunca consigo chegar a um acordo sobre as razões desse silêncio. Será que quem vive nesse mundo onde se produzem textos brilhantes é benevolente e compreende a imperfeição do mediador? Será que é condescendente e aceita a degradação textual com um encolher de ombros, como se não se pudesse fazer nada? Será que não quer saber do assunto para nada, já que o que se passa neste mundo não lhe diz respeito? Fico sempre indeciso perante a pluralidade de hipóteses. Acabo por não investigar qualquer delas e aceitar a ignorância. Quem ler o que acabei de escrever julgará que é uma artimanha para colmatar a ausência de assunto. Puro engano. Imaginemos qualquer obra literária, desde as mais importantes até às que não têm qualquer importância. Os seus autores são todos eles desconhecidos. O que nós conhecemos são mediadores. Ulisses ou O Processo existiam a priori nesse mundo invisível. Estavam prontos há séculos, apenas esperavam que chegassem os mediadores certos. E eles acabaram por chegar, como sabemos, pois podemos comprar esses romances. Um corolário de tudo isto é que já estão escritas as grandes obras que se manifestarão daqui a um, dois ou cem séculos. Esperam a hora em que o mediador certo venha à existência e esteja pronto para as descobrir e tomar-se como seu autor. Um segundo corolário é mais dramático. Não há obra literária, genial ou medíocre, que não seja apócrifa. O mesmo se passa com estes textos.