Chegámos ao quarto mês do ano. Uma efeméride conhecida pelo Dia das Mentiras. Não sei se ainda é prática, mas antigamente os jornais, tanto de informação geral como de informação desportiva, tinham a sua mentira para comemorar o evento. Tanto quanto me lembro, a mentira era fácil de descortinar e ainda não havia o hábito de recorrer à prática do fact check. Também as pessoas – algumas, claro – se esforçavam por contar uma mentira aos seus conhecidos. Não sei qual foi o destino deste velho hábito, ainda por cima num mundo onde a mentira tem tanto valor quanto a verdade. Tem-se a sensação de que todos os dias são dias da mentira, portanto não valerá a pena sublinhar o primeiro de Abril. Na caixa do correio estava um livro de Martha C. Nussbaum, com o título The Monarchy of Fear, um excelente título, diga-se. A filósofa pensa sobre o caso dos Estado Unidos, mas o medo está a estender os seus tentáculos um pouco por todo o mundo. Estamos a passar de uma monarquia para um império, o império do medo. Talvez o comboio da existência tenha descarrilado em algum lado e, agora, toda a gente entre na carruagem com temor e tremor, implorando para que o maquinista saiba o que está a fazer. Nussbaum cita, a certa altura, Lucrécio, quando este se refere aos deuses, não são escravizados pela gratidão, nem manchados pela raiva. Talvez os antigos pensassem os deuses como modelos arquetípicos dos homens. A verdade, porém, é que dificilmente os seres humanos se aproximam desses impassíveis modelos. A mancha da raiva cresce facilmente nos seus corações, uma raiva movida pelo medo. Este leva à mentira e, por isso, haver um dia consagrado ao acto de mentir não faça já sentido. Há que inventar uma outra efeméride, para que o primeiro de Abril tenha a comemoração adequada aos novos tempos, aqueles em que o medo cresce por todo o lado e se transforma em manchas de raiva.
segunda-feira, 1 de abril de 2024
domingo, 31 de março de 2024
Conversa pascal
Então, um bom Domingo de Páscoa, ouvi no telemóvel. Retribuí. Sabe, escutei, estive quase mal. Quase mal, não é estar mal, respondi. Pois não, mas foi por pouco. Um começo de pneumonia, mas foi debelada a tempo. Melhor, está a ser debelada, mas como sou optimista, acrescentou o padre Lodo, vejo já o fim e não me impressiona o meio do caminho. Talvez fosse melhor ter cuidado, sugeri. Tenho de confiar na Providência Divina, nesse cuidado permanente de Deus. Afinal, sempre sou um jesuíta e não entrei para a Sociedade para ter uma carreira na vida. Se as coisas correrem mal, paciência. Terá chegado a minha hora, mas acho que escapo desta. Nestes dias de repouso, continuou, foi lendo e meditando os sermões de Mestre Eckhart, a sua predicação do desapego, de um desapego radical e de confiança na Vontade Divina, pois, segundo ele, nada do que acontece está desligado dessa Vontade. E o mal gratuito, aquele mal que não serve para nada e não há razão para ele, também é vontade de Deus, perguntei. Meu caro amigo, respondeu, terá de voltar às lições do velho Leibniz. Sim, sim, imagino, disse eu com um tom trocista. Eu sei que vivemos no melhor dos mundos possíveis e que se fosse possível outro melhor, Deus tê-lo-ia criado. Não o fez, ironizei, porque a matéria-prima da criação é grosseira e depois surgem acidentes como aqueles da ponte de Baltimore ou um ataque descabelado de terroristas. A lista de males que não servem para nada, prossegui, é infinita. Não vale a pena continuar, respondeu. Sabe perfeitamente que a mente humana, finita e miserável, é incapaz de compreender todos os desígnios do Deus infinito. E quanto mais ferirem a sensibilidade dos homens, mais incapaz é este de os compreender. Também eu não compreendo, mas reconheço a minha finitude e não me rebelo, concluiu. Então, o padre mudou de assunto, e perguntou-me pela família. Respondi que está bem e que estou à espera de todos. O meu almoço de Páscoa vai ser frugal, informou. E vou beber apenas um copo de vinho. Quando vier a Lisboa, podemos ir almoçar a um sítio decente. Combinado, respondi. Ligo, quando for.
sábado, 30 de março de 2024
Palavras
sexta-feira, 29 de março de 2024
Dos jogos de infância
Aproveitei uma aberta, na qual o sol marcou presença continuada, para ir fazer a minha caminhada, acumular pontos cardio, seja lá isso o que for, e observar as metamorfoses que se estão a dar na cidade. Foi uma caminhada citadina, pois aquela que poderia fazer junto à margem do rio teria implicações para a limpeza do calçado. Com a chuva que tem caído, o caminho deve estar todo enlameado. Já não tenho idade para esse exercício. Quando criança, jogava ao prego (não confundir com o jogo que se realizava na praia ou com outros realizados em terra húmida, mas com diferentes objectivos), um jogo de guerra em que cada um tinha o seu castelo, em forma de triângulo, e o objectivo era entrar no castelo do adversário, e espetar três vezes o prego – na verdade, um ferro aguçado aís com vinte a trinta centímetros – no castelo adversário, o que significava a tomada da praça. O jogo implicava um conjunto de regras e também um rigoroso planeamento estratégico, com a construção de muralhas virtuais que evitariam a aproximação do inimigo. Hoje esse jogo seria interdito de imediato pelos pais, não fosse algum rapaz espetar o ferro na cabeça de outro. Os pais de então não lhes ocorria esse problema, pois a experiência arcaica não lhes dava sinal dessa possibilidade. Todos sabíamos que não seria boa ideia espetar o ferro no outro. Esse jogo praticava-se em terrenos húmidos e, por vezes, quase enlameados. Os jogos eram sazonais. O jogo do prego era numa época, o do botão numa outra, o do berlinde ainda noutra. Estes eram jogos tipicamente masculinos e por isso morriam na adolescência. As coisas são o que são, uma tautologia a que me habituei e que me é útil para encher o texto. Comecei a falar de caminhadas e acabei a meditar sobre os jogos da infância. Falando em infância, naqueles tempos, no dia de hoje, Sexta-Feira de Paixão, a televisão suspendia a programação habitual e transmitia apenas música dita clássica, imagino que alguma Paixão de Bach, o que implicaria que seria barroca a música e não clássica. Talvez a opção não fosse destituída de virtude, uma espécie de desintoxicação.
quinta-feira, 28 de março de 2024
Ter noção
Está frio, chove, um dia triste, tristíssimo, de uma tristeza sem fim, ou sem início, ou sem qualquer outra coisa. O essencial é a falta de qualquer coisa, pois haverá sempre qualquer coisa para nos faltar. Estou a ficar confuso e o texto está a perder o nexo. Agora, segundo percebi, as novas gerações dizem não tens noção. No meu caso, estarei a perder a noção, caso alguma vez a tivesse possuído. O não tens noção é um desconhecer absoluto e quando é atirado como arma de arremesso significa que o alvo é burro todos os dias. Enquanto eu, sem noção, me perco em conversas destituídas de qualquer interesse e também de noção, há coisas terríveis a acontecer por esse universo fora, como, por exemplo, a explosão de um buraco negro a 800 milhões de anos-luz, buraco que era um objecto em pura quietude e agora, a cada 8,5 dias, emite massas de gás, para depois retornar ao estado contemplativo de um Buda universal. Segundo os cientistas é um soluço periódico, uma metáfora para embelezar a situação, digo eu, mas que não consegue estabelecer a relação analógica presente em toda a verdadeira metáfora, pois do soluço ouve-se o som, mas não se vê o gás. Podiam dizer, com maior propriedade, que é um buraco negro vítima de flatulência. Há outras explicações talvez mais plausíveis e menos patológicas. O buraco negro não é mais do que o fornilho de um cachimbo gigante, usado por um fumador descomunal e aqueles gases são o fumo do tabaco evolando-se para uma atmosfera longínqua. É preciso ter noção para se encontrarem metáforas decentes e nem sempre os cientistas têm a criatividade poética e retórica necessária para explicar a estranha realidade que descobrem. Se me consultarem, não terei problemas em oferecer meia-dúzia de metáforas e, caso precisem de mais, cobrarei à peça – isto é, à metáfora – com um desconto para ajudar o desenvolvimento da ciência. Ainda oferecerei um par de metonímias, três oxímoros e um cartucho de anáforas.
quarta-feira, 27 de março de 2024
Quarto email
Meu caro amigo,
Permita-me que o trate assim, agora que já recebi dois emails seus. Dar-me-á a ilusão de uma proximidade e, apesar da minha idade, essa ilusão reconforta-me. Crê-se que viver muito ajuda a perder as ilusões. Talvez seja verdade. Por isso, por ter perdido muitas ilusões, preciso de encontrar outras. Não creio que seja possível estarmos vivos sem que a vida seja recoberta por um véu de fantasia. A sua proximidade com a minha filha acendeu em mim uma nova fantasia, a de que tenha em si alguma pista que me permita compreender o desaparecimento de Eduína. Sim, eu sei que tudo está explicado. Os acontecimentos são claros. Não há na sua morte sombra de dúvida, por horrível que tudo aquilo tenha sido. O que me atormenta nem o sei explicar muito bem. Tento formular a pergunta, mas parece-me sempre ridícula. O que terá levado Eduína ao encontro da sua própria morte? Eu sei que a questão parece tola, que estou a ver causalidades onde não há mais do que simples acasos. A questão, porém, não me abandona desde a hora que recebi a notícia. Haverá qualquer coisa escondida em algum lugar que me dará uma pista, um simples indício que me permita compreender. Nesse momento terei paz. Espero que um dia decida vir visitar-me.
Lívia
terça-feira, 26 de março de 2024
Hostes invernais
Os castanheiros da marginal e as tílias da Sá Carneiro cobrem-se de folhas, indiferentes às tropelias invernosas deste começo de Primavera. Se pudesse, também eu me cobriria de folhas verdes, mas sou árvore seca, onde nenhuma folha voltará a nascer. Isto é uma prosa indigna, tal a facilidade. Podia escrever outra coisa. O terror do Inverno fende a muralha e entra pelos campos da Primavera. São bandos invernais montados a cavalo. Ouve-se o ulular da trupe e os gritos de pavor das hostes primaveris, surpreendidas por um inimigo que pensaram morto e enterrado. Inocência, ouve-se, um inimigo mesmo morto e enterrado nunca deixa de ser um inimigo e, ao mínimo descuido, ele renasce e ataca de surpresa, conquistando território que não lhe pertence, almejando um saque rendoso. Também isto é deplorável. Quem suspenderia a descrença perante uma narrativa assim começada? Ninguém, presumo. São quase seis da tarde e não me ocorre nada. O melhor será desistir da empreitada –que falta de persistência! – e ir comer umas nozes ou umas amêndoas de chocolate. Julgo que a nutricionista não ficaria embevecida com a minha tentação pascal, ela que procura limitar-me o número de nozes. Será o papel dela. O meu é fazer o que me apetece. Reparo agora que também as acácias da praceta estão a encher-se de folhas verdes. Talvez seja a Primavera a expulsar as hostes invernais.
segunda-feira, 25 de março de 2024
Uma excepção
Saí de casa e, ao chocar com a ventania, pensei que de Espanha nem bom vento nem bom casamento. Isto foi um péssimo pensamento. Pior, foi um falso pensamento. Quer dizer então que de Espanha pode vir bom vento e até um bom casamento? Não exageremos. Bastou aquele casamento que acabou por nos trazer os Filipes para se saber que daqueles lados os casamentos, por excelentes que sejam e corram, são sempre maus. É uma questão histórica. E aquilo que é histórico, o melhor é não o contestar. Então, significa que de Espanha vêm bons ventos? Ó não, se há um ditado que nos diz que de lá não vêm bons ventos, o melhor é acreditar no ditado. Onde está a falsidade do meu pensamento ao chocar com a ventania? O vento não vinha de Espanha, mas era vento de noroeste, vinha do mar mais ao norte. Chegado a casa fui estudar as previsões meteorológicas e constatei, mais uma vez, que S. Pedro, o CEO do clima, precisa de ser substituído. Vamos ter uma semana de Páscoa toda ela chuvosa, nem uma abertura no domingo, o dia da grande festa dos católicos. É possível que um defensor do magistério de S. Pedro argumente que o santo está na plena posse das suas faculdades gestionárias, mas, para não parecer parcial ao beneficiar os seus, exime-se de interferir na evolução dos estados do tempo sempre que está em jogo uma festividade religiosa. Não quer ser acusado de favorecer a sua religião e prejudicar outras, enviando-lhes raios e coriscos nos seus festivais, enquanto para a sua oferece tempo ameno, sol moderado, sem chuva, vento ou frio. Admiro quem é capaz de ser imparcial, mas sou um europeu do sul e como tal tenho uma certa compreensão para com aqueles que acham ser seu dever proteger os seus. É uma questão de amor à família. Vamos lá S. Pedro. Uma pequena excepção não será problema de maior.
domingo, 24 de março de 2024
Aceleração do tempo
No email, uma factura de etectricidade e gás. O valor será descontado a partir do 15 de Abril, informam-me. Estranho a antecedência, mas os serviços de facturação podem estar a ser afectados pela aceleração do tempo que deverá estar a ocorrer neste planeta. Se houvesse uma prosódia da vida, tudo seria senão mais fácil, pelo menos mais ritmado, evitar-se-iam as arritmias e as entradas antes ou depois de tempo. Poderíamos viver sob uma dada métrica. Uns viveriam como versos heróicos, outros como sáficos. Isto para aqueles que se ficariam pelo decassílabo. Quem sofresse de acentuado narcisismo vestir-se-ia de alexandrino e poderia pensar que ora era o maior, ora que era dois, caso o afectasse a cesura no meio do verso. Os dados ao fado viveriam como redondilhas maiores, os mais humildes como redondilhas menores. A vida seria então um concerto, ritmada, nada de surpresas na musicalidade social. O pior, porém, é que toda a gente acha que é verso livre, o que introduz uma acentuada contingência nas relações sociais, pois nunca se sabe se estamos a lidar com um verso descomunal, daqueles que ocupam quase toda a largura da folha, ou com um mínimo, não mais que uma ou duas letras, talvez três, formando uma palavra raquítica que se esganiça para parecer um verso. Ocorreu-me, neste momento, que a aceleração do tempo pode estar ligada à introdução do verso livre. Enquanto os versos não se tinham emancipado, o tempo andava regulado pelo ritmo das estações, dos relógios e dos calendários. A vitória do verso livre, ao introduzir incerteza prosódica nas relações sociais, assim como a há, segundo Werner Heisenberg, no interior do átomo, descompassou o tempo e este começou a acelerar, acelerar, um celerado e não apenas um acelerado. Por isso terei recebido a factura três semanas antes de ser descontada. Pergunto-me se a aceleração do tempo não terá implicação sobre o ser, mas aqui estou a entrar por campos inúteis, ainda por cima em Domingo de Ramos.
sábado, 23 de março de 2024
Orquídeas e poeiras
De manhã, ao chegar perto do friso das orquídeas descobri a primeira florida, apenas uma flor, mas outros botões estão prestes a abrir-se. Cada uma tem o seu ritmo. Há algumas muito atrasadas, talvez nem venham a florir este ano, mas estou a especular. Constou-me, numa conversa aqui em casa, que não gostam de ser mudadas de vaso. Quando isso acontece, ressentem-se e não florescem ou fazem-no tardiamente. Isto prova que também no reino vegetal os indivíduos têm a sua peculiaridade, talvez um carácter, senão mesmo uma personalidade. Isso, protestará o leitor, significa dizer que os seres do mundo vegetal são pessoas, o que infringe a nossa intuição do que é uma pessoa. Ora, pode-se argumentar que não é pelo facto de algo infringir as nossas intuições que esse algo deixa de ser o que é. A crença de que a Terra não era o centro do universo infringia a intuição dos seres humanos e, no entanto, ela não estava mesmo no centro do universo. Poder-se-á, por outro lado, alegar que para algo ser uma pessoa terá de ter a capacidade para determinar os seus próprios fins e que as orquídeas recebem a sua finalidade da natureza e não de si próprias. Isto, porém, é pressupor que eu, ao dar a mim mesmo os meus próprios fins, o faço independentemente da minha natureza, que existe uma não coincidência entre mim, enquanto ser natural, e mim, enquanto ser que se dá os seus fins. Está na natureza que eu sou escolher os fins que persigo na vida. Posso estender este raciocínio às orquídeas e afirmar que elas também se dão a si mesmas os seus fins, mesmo que eu não perceba. Logo, serão pessoas e como tal devem ser tratadas. As poeiras vindas de África estão-me a afectar mais do que pensava. Caso estivesse um dia normal, jamais me ocorreriam estas meditações que anulam a distância que há entre mim e os outros indivíduos do reino da vida, como se pertencêssemos todos a uma fraternidade de seres vivos, apesar de uma parte deles se alimentar da outra. Vou contemplar a cor do céu para tentar descortinar a dimensão da invasão a que estamos sujeitos, quanto tempo estaremos cercadas pelas poeiras sarracenas.
sexta-feira, 22 de março de 2024
Da necessidade da alma
Saí de casa e estava uma atmosfera irrespirável. Os carros cobertos de poeira pareciam ter saído do deserto. Aconselha-se a não fazer exercício ao ar livre. Talvez se devesse aconselhar a não fazer exercício de todo. Que os atletas dêem, estes dias, descanso ao corpo, para evitar que as garras acutilantes do cansaço o façam cair. Para quer serve um corpo caído, mesmo a uma alma elevada? Nada, por certo. Também é verdade que elevação de alma é mercadoria escassa. A escassez, porém, não lhe aumentou o valor, pois a procura é quase nula. Quem aspira a ter elevação de alma? Aliás, para não se ter má consciência por andar com alma por terra, descobriu-se que o melhor era negar a existência de almas. Se não existem almas, não se pode sentir qualquer infracção moral. Não se discute, por aqui, se existem ou não almas, um assunto metafísico que me faz desejar chocolates, o que me estragaria a dieta. Discute-se o ardil de negar a sua existência para se poder suportar a baixeza existencial. Vejamos as coisas do seguinte ponto de vista. No dia em que é executado, Sócrates discute com os amigos a imortalidade da alma. A sua crença na imortalidade ajudava-o no transe a que iria ser sujeito. Bebeu o veneno com a alegria de quem ia para uma festa há muito desejada. Isto, porém, é o menos interessante. O mais interessante é o uso da alma, sendo ela imortal, para dizer que as pessoas nesta vida se devem portar bem, pois caso não o façam são terríveis os castigos reservados à sua alma no além. Mesmo que não exista uma alma imortal, a crença nela tem um sentido cívico fundamental. Proclamar a sua não existência, mesmo que isso seja verdade, é abrir a porta para o pior. Uma pessoa começa a falar de poeiras e acaba na imortalidade da alma e da sua magna utilidade para uma vida boa. Sinal de aproximação do fim-de-semana.
quinta-feira, 21 de março de 2024
Chatbots, cafés e exame prévio
Infelizmente, não vivo numa dessas aldeias onde, no dia de hoje, se realiza o Acordar a Primavera, embora eu desconfie que a informação ontem recolhida, e aqui partilhada, junto de inteligência artificial tenha alguns problemas com os factos. Reparei que os chatbots são bastantes generosos nas informações que fornecem e, não poucas vezes, confundem a realidade com o desejo. Não, não, eu não estou a dizer que os chatbots possuem desejo. Eles são muito mais sofisticados do que isso. Desejo é uma coisa que serve para atormentar os humanos, os quais, não poucas vezes, se sentem presas dos seus desejos. Os chatbots não possuem faculdade de desejar, mas põem-se a adivinhar os desejos dos humanos que com eles interagem e, querendo ser prestáveis e solícitos, dão respostas que, imaginam eles, satisfazem os nossos desejos. Foi o que aconteceu ontem com este narrador. Alguns chatbots são até muito criativos nas respostas que dão aos nossos prompts, isto é, aos nossos comandos. Eu não tinha qualquer intenção de falar disto, mas aconteceu. Vinha partilhar a experiência do processo de envelhecimento. O primeiro sintoma, um sintoma ainda muito inicial, é a altura em que se deixa de beber café depois de jantar. Mais tarde, bem mais tarde, elimina-se o café do meio da tarde e fica-se com um café ao pequeno-almoço, outro ao almoço e um a meio da manhã. Era assim, há muito, a minha existência no reino da cafeína. Há umas semanas, sem fazer qualquer esforço, dei por mim a eliminar o café do meio da manhã. Pensei nisto enquanto bebia um café acompanhado por uma tarte de amêndoa, tão divinal que nem me lembrei daquela rapariga que exerce as funções censórias e que tem o título de nutricionista. Com ela só me preocupo quando substituir a censura pelo exame prévio, mas isto é uma frouxa piada política que só gente reduzida a dois cafés consegue entender, e, por isso, me foi permitido o uso.
quarta-feira, 20 de março de 2024
Efemérides
terça-feira, 19 de março de 2024
Não sei o que me deu
Cheguei tarde a casa e, para dizer a verdade, a vontade é de sair de novo para ir jantar a qualquer lado. Não o faço, para não desmerecer da nutricionista, uma rapariga cheia de boa vontade e mesmo de boas intenções, que decidi consultar há um mês, e me prescreveu uma dieta que vou cumprindo na medida dos meu apetites e dos meus humores. A ideia aqui é sublinhar menos apetites e humores e mais o vou cumprindo. Lido com o assunto como se a dieta tivesse um significado dupla. Por vezes, prescritivo; outras, facultativo. Como hoje me consultei com ela e dos nove quilos a perder, que pactuámos que eu perderia num prazo relativamente alargado, perdi um quarto, para não desmerecer do seu entusiasmo encenado hoje fico por um jantar em casa, tudo muito saudável. Amanhã, por certo, já terei esquecido a consulta de hoje e poderei transformar as indicações prescritivas em conselhos facultativos e tomar a decisão de que umas quantas coisas tocadas pelo vento das calorias serão, pelo menos, permitidas, para não dizer obrigatórias. Pior do que tudo isso é aquela passagem de “The Dry Salvages”, dos Quatro Quartetos, de Eliot, que reza assim: Para a maioria de nós há apenas o negligenciado / Momento, o momento dentro e fora do tempo, / O assomo de descuido, perdidos num feixe de luz de Sol. Não somos santos, queria o poeta dizer. Eu confirmo e embora não me entregue sem limites ao pecado da gula, a verdade é que o transformei de capital em venial, na taxionomia que a Igreja declinou, e não tenho inclinação para desprezar a boa mesa. Não sei o que me deu para ir consultar uma nutricionista.
segunda-feira, 18 de março de 2024
Comércio
Por aqui, a Câmara Municipal decidiu, em tempos, criar um corredor ecológico ao longo de um troço do rio. Se bem o decidiu, melhor o executou. As pessoas podem passear, correr, caminhar, admirar a paisagem. Há famílias, passeantes solitários, grupos animados, passeadores de cães. Ontem, fui experimentá-lo. Hoje, fiz lá a minha caminhada. Três quilómetros para um lado e mais três de retorno ao carro. Com isto, ganhei setenta pontos cardio, dos cento e cinquenta que a OMS, segundo a aplicação do telemóvel, recomenda por semana. Também queimei 422 calorias. Estou reconciliado com a natureza, apesar de ela ser, por vezes, demasiado natural. Ao crepúsculo, ainda estava na função, surgiram nuvens de insectos, coisa que era dispensável numa natureza que evitasse ser excessivamente genuína. Pelo que oiço, também existe uma mania de produzir pólenes, coisa que choca com pessoas alérgicas, o que não é meu caso. Falo por solidariedade e para demonstrar que uma certa contenção da natureza haveria de a tornar mais adequada aos seres humanos. Talvez amanhã volte ao corredor ecológico. Na verdade, a essência destas caminhadas é comercial. Chega-se ao grande balcão da natureza, paga-se 422 calorias, a moeda em uso nestas coisas, e recebe-se setenta pontos cardio. Um dia destes ainda descubro uma vocação atlética que desconhecia.
domingo, 17 de março de 2024
Fases da vida
Hoje está calor. Saí há pouco e fiz uma pequena caminhada. O sol já incomodava e a temperatura não era apenas amena, estava para lá dessa doce amenidade que se imagina existir nas paisagens bucólicas e pastoris designadas por locus amoenus. Enquanto caminhava e sentia os raios solares cravarem-se no corpo, meditava que não faltará muito para que esta terra, onde levo a minha pacata existência de homem privado, se torne um locus horrendus, uma terra devastada não por um Inverno hostil, mas por um Verão que se torna presente bem antes de ter chegado a hora de se apresentar ao serviço. Tudo isto, porém, já foi escrito por aqui, múltiplas vezes prova de que cheguei à idade das repetições. Imagino que a vida humana se move entre a idade dos porquês e a idade das repetições. Antes e depois disso a vida, apesar de humana, será um balbuciar, primeiro, ascendente; depois, descendente. Entre a interrogação dada pela perplexidade e a iteração induzida pelo medo de perder as certezas, a vida decorre num processo em que a perplexidade se vai transformando, pouco a pouco, até chegar à estabilidade de se estar certo, embora se possa estar completamente errado. Assim, passamos da perplexidade e da incerteza para a segurança, depois para a evidência, a seguir para a firmeza, a velha firmeza de carácter, o passo seguinte é a certeza, que será marcada pela infalibilidade. Quando se chega à iteração é porque a infalibilidade se mostrou, secretamente, falível e começamos a repetirmo-nos. Em resumo, já não estou num locus amoenus, mas ainda não cheguei a um locus horrendus. Tudo tem o seu tempo. Não há nada melhor para acabar um texto do que um lugar-comum.
sábado, 16 de março de 2024
Novidades
Um dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke, começa com uma referência ao novo, à novidade: Ouves o novo, Senhor / rugir e tremer? / Vêm os arautos / para o elevar. Houve um momento em que a Europa se rendeu ao novo, trocou por ele a experiência sólida do passado e lançou as comunidades numa experiência de inquietação, pois nunca sabemos lidar com o que aparece como sendo novo. Falta-nos o treino e o hábito enraizado. Se penso no assunto, o que por vezes acontece, pergunto-me se não haverá na nossa espécie um limite para a absorção de coisas novas. Rilke ouvia o novo rugir – ou ribombar, na tradução de João Barrento – e a tremer, imagino o barulho que o novo produzia, então, ao tremer. Hoje, o novo não ruge nem treme. Tornou-se um ruído de fundo, a música ambiente em que vivemos. É nesse ambiente que se pressente não apenas um desgosto, mas uma revolta contra o novo, como se a espécie, na sua declinação ocidental, tivesse chegado ao limite de novidades que consegue suportar. Os arautos do novo perdem audiência, enquanto outros arautos, proclamando o seu desdém pela novidade, são escutados, como se neles houvesse uma sabedoria. Não percebem que também são arautos e como tal portadores de novidades. Não se pode negar sabedoria à velha prática de um soberano mandar matar o mensageiro.
sexta-feira, 15 de março de 2024
A aposentação do deus
Ao meio-dia, a primeira metade de Março findou o seu serviço. Estamos já na curva descendente que levará o comboio deste mês sujeito ao deus da guerra para os braços de Abril, o mais cruel dos meses, aquele em que os lilases brotam da terra morta, o mês onde se mistura memória e desejo, tudo ideias roubadas a Eliot para me ajudar a compor a prosa. Ainda temos quase metade de Março para enfrentar e não sabemos – ou talvez saibamos bem demais – se o deus vai continuar enfurecido, arrastando a cólera sobre as terras da doce Europa, ou se decide ir de férias. O que desejaríamos, pois ainda temos uma réstia de memória, é que Marte pedisse a aposentação, deixando o lugar vago, mas sem candidatos ao seu preenchimento. Não há sinais de que ele se disponha a ir gozar um eterno, mas não merecido, descanso para uma ilha grega. Terá horror ao turismo e, mal por mal, prefere alimentar os campos onde os soldados se encontram para morrer uns ao pé dos outros, numa irmandade onde qualquer diferença se esbate. O dia esteve cinzento e chuvoso, mas agora o lençol de nuvens está esburacado, vendo-se, entre os buracos, um céu azul-claro, cheio de melancolia. Algumas nuvens reverberam tocadas pela luz, que se inclina para o mar e para a noite. Voltaram os pássaros meus vizinhos. Cantam como se estivessem na Primavera. Não estão. Nem eles, nem eu.
quinta-feira, 14 de março de 2024
Novo email
Caro narrador,
Agradeço, nem imagina quanto, a sua resposta. Não precisa de se justificar, pois não tinha qualquer obrigação em responder-me de imediato. Nem sequer tinha de me responder, embora aprecie a reciprocidade. Terei sido educada nesse princípio. Sabe onde vivo, mas nunca nos cruzámos. Veio, como diz, várias vezes a minha casa, mas sempre em alturas que não estava cá. Desconhecia esse padrão de conduta de Eduína. Reservava para si uma esfera de amizades que não partilhava com a família. As pessoas da sua idade que por aqui passavam, quando estávamos em casa, eram nossas conhecidas, gente cujos pais e avós conhecíamos. Nunca tinha dado por isso. Imaginava que era o círculo de amizades de minha filha, mas começo a suspeitar que Eduína não tinha laços significativos com esses amigos. Quando ela saiu de Portugal, essas pessoas não deixaram de vir. Algumas, poucas, ainda me visitam, outras telefonam-me na altura dos anos ou das festas, a maioria desapareceu, sem que eu me tivesse apercebido. Sou uma velha e os anos que me separam dessa geração, apesar de não serem assim tantos, são o suficiente para que se esqueçam de mim e eu deles. Não sabe se me virá ver. Espero que tome, um dia destes a decisão de voltar aqui. Não encontrará Eduína, mas a sombra em que me tornei com o seu desaparecimento. Não lhe peço nada. Espero. É uma eternidade o pouco tempo que me resta.
Lívia
quarta-feira, 13 de março de 2024
Equilíbrio
Hoje, ao sair de casa, descobri que a Primavera está a chegar. Um calor agradável, uma boa disposição na face dos transeuntes, uma certa forma do corpo pisar a terra. Estes são os sinais. É possível que o Inverno ainda reivindique o que lhe pertence, mas a vitória da nova estação é inexorável. Ao chegar a casa fui ver as orquídeas. Ainda não há nenhuma florida, mas não lhes faltam botões. Este será um ano de esplendor, preguntei ao olhá-las. Elas permaneceram mudas. Não sei o que pensarão, o que vão decidir. Há anos de grande exuberância, outros em que uma qualquer indisposição as tolhe e ficam-se numa beleza pálida, como se fossem iluminadas por uma luz anémica. A consulta de hoje foi quase a horas, o que significa que não tenho motivos de irritação, a não ser o do preço da consulta que em seis meses aumentou quase vinte por cento, o que significa que o médico conseguiu bater a própria inflação. Imaginei que estava a pagar o privilégio de ser atendido quase a horas. Se fosse mesmo a horas, nem sei a quanto me ficaria a consulta. Conformei-me e pensei que não se pode ter tudo. Ou se tem consultas quase a horas ou se tem consultas a preços um pouco acima do razoável, que era o preço que pagava há seis meses. Saído da consulta de cardiologia, onde exibi umas análises gloriosas, decidi passar pela FNAC e comemorar com a compra de uns livros. Como estava sozinho, era hora de almoço, decidi continuar a comemoração na Portugália, pois aqui também há uma Portugália. Não que goste particularmente do que ali se come, mas com colesterol e triglicéridos tão saudáveis senti necessidade de alguma coisa que me equilibrasse, não vá ficar com saúde a mais. Como amanhã não vou fazer análise, não há problema, pensei.
terça-feira, 12 de março de 2024
Notas do dia
Ouve-se o ranger dos baloiços do parque infantil. É uma música de fundo irritante. Não bastava o que tenho entre mãos para desconsolo da alma, ainda tenho direito a um concerto para o qual não comprei bilhete nem quero assistir. Terei de pensar no isolamento das janelas. Parecia fiável, mas não resiste a este tipo de musicalidade. Hoje, o dia esteve quase primaveril, mas o entardecer está a inclinar-se para as sombras de Inverno. Recebi agora um telefonema da clínica que frequento para vigilância aos devaneios e delírios do coração. Parece que se tornou corrente os serviços assegurarem-se de que os pacientes – e, não poucas vezes, é necessária uma grande paciência – não sofrem de amnésia e não vão faltar à consulta. Talvez seja a isto que ficou reduzida nos dias de hoje a reminiscência platónica, embora uma consulta não seja propriamente um exercício de contemplação das formas perfeitas que habitam no mundo ideal. Nas consultas, o que está em causa é mesmo o mundo sensível, a fisicalidade dos órgãos, a vigilância da sua mecânica. Pura materialidade, portanto. O concerto de roldanas cessou. Ouve-se um grito. Na rua, passa um carro vagaroso e duas pessoas sem sombra atravessam a praceta. Ao longe, as paredes do hospital são um pasto de fungos. Tenho de voltar para a tarefa que tenho entre mãos. O melhor seria deixá-la cair. Talvez se quebre.
segunda-feira, 11 de março de 2024
Um olhar dialéctico
Eis a natureza das coisas. Quais coisas, perguntar-se-á perante a proclamação. Aquelas que Wisłava Szymborska observava com os olhos com que escrevia. Por exemplo, ela via a realidade do futuro, do silêncio e do nada. Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado. //Quando prenuncio a palavra Silêncio, destruo-o. // Quando pronuncio a palavra Nada, / crio algo que não cabe em nenhum não-ser. Imagino que ela tem um olhar dialéctico, pois em cada coisa observa a sua negação. Descubro uma fotografia dela, talvez pouco tempo antes de morrer aos 88 anos. Tornara-se com o passar dos anos uma mulher bela, mais do que era nas fotografias em que surge bem mais jovem, como se a beleza humana se tivesse deserotizado e ficasse reduzida à sua essência. Também neste facto há qualquer coisa de negação dialéctica, de superação, para falar à maneira de Hegel. A natureza do futuro é transformar-se em passado, a do silêncio é a de tornar-se som, palavra, a do nada é a de devir alguma coisa. Esta é a natureza das coisas, mas o facto de ser a sua natureza não elimina o mistério que há em cada uma. Aliás, qualquer natureza é já por si mesma um mistério. Os olhos de Wisłava viam aquilo que nós não vemos, não porque ela sofresse de alucinações, mas porque os olhos dos poetas têm uma acuidade que os outros não têm, estão preparados para tocar no fogo ardente do mistério que cintila na realidade.
domingo, 10 de março de 2024
Uma humilhação política
Um dos problemas mais agudos da crítica literária é o de saber se autor e narrador têm direito, ou não, a dois votos numa eleição. Imaginemos o caso deste blogue. Autor e narrador não pensam da mesma maneira, não agem da mesma maneira, nem sequer sentem da mesma maneira. Por que razão haveriam de votar na mesma maneira? Levemos a experiência mental mais longe. Ricardo Reis votaria da mesma maneira que Alberto Caeiro? Só por acidente. E Álvaro de Campos teria as mesmas inclinações políticas que Bernardo Soares? Talvez nem por acaso. E não deviam todos eles ter direito de voto, caso ainda estivessem no mundo dos vivos? E o voto de Fernando Pessoa deveria confundir-se com o dos heterónimos, semi-heterónimos e quase-heterónimos? Hoje passei uma humilhação, uma humilhação política, note-se. O autor apresentou-se, acompanhado da mulher, no local de voto e foi acolhido com sorrisos, ele, ao chegar a sua vez, entregou o cartão de cidadão, uma senhora diligente procurou o nome numa lista, declinou-o em voz alta, o senhor que vigiava a urna entregou-lhe o boletim de voto e ele lá foi para a cabine e voltou, depositando o boletim dobrado em quatro na urna. Quando me apresentei, a senhora, até aí simpática, afiançou-me, não sem severidade, que não constava na sua lista ninguém chamado narrador. Talvez esteja recenseado noutra freguesia, sugeriu. O solícito senhor da urna não me entregou o boletim de voto e não me restou outra alternativa senão vir para casa lamentar a feroz perseguição que os narradores sofrem neste mundo, onde são impedidos de votar por não gostarem do nome deles.
sábado, 9 de março de 2024
Dia do espelho
Então, hoje temos um novo dia do espelho, ouvi ao atender o telemóvel. Seguiu-se um riso escarninho. Dia do espelho, está a falar de quê? Já me habituei a esta idiossincrasia e como tenho direito de voto desde os anos noventa do século passado, altura em que me tornei um italiano português, acompanho com o máximo interesse o dia antes das eleições. O espelho, meu caro amigo, é o lugar onde nos reflectimos. Que tenha sido criado um dia, antes do acto eleitoral, para apurarmos o narcisismo é uma extraordinária, embora pecaminosa, invenção portuguesa, continuou, com possibilidades nefastas. Com possibilidades nefastas? O silêncio das caravanas e das arruadas parece-me uma causa nobre. Substitui-se a estridência pela reflexão, concluí. Uma gargalhada veio do outro lado. Não me faça rir, respondeu o padre Lodo. Olhar para o espelho, é isso que significa reflectir, tem um forte poder de contaminar a decisão com interesses egoístas, enquanto aquilo que se pede é uma decisão que tenha em conta o bem comum e não o interesse próprio. Não lhe conhecia essa propensão comunitarista, respondi. Talvez ande a ler o Charles Taylor e Michael Sandel. Já não tenho idade para essas leituras, disse, embora, como sabe, pertenço a uma companhia que não será particularmente liberal, existimos para defender o chefe de uma comunidade e não as manigâncias dos vendilhões do templo. A salvação, prosseguiu, e ao contrário do que se pensa, é uma obra colectiva. Salvamo-nos uns aos outros. Então, retornei, a perdição é obra da individualidade. Eu conheço, respondeu, a sua inclinação para a heresia, se não mesmo para o ateísmo, mas por certo já terá ouvido aquilo que escreveu Mateus, aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Ah, então é isso, o velho padre Lodo entrou numa deriva contra o liberalismo, imagino que queira voltar aos dias em que a Igreja não estava dividida, à Idade Média. Não, pois nessa altura a Companhia não existia. Nós somos filhos do Concílio de Trento, mesmo que isso, nos dias de hoje, não pareça. Parece, parece, retruquei. Deixemo-nos destes jogos florais, liguei-lhe para saber se no fim-de-semana da Páscoa estará por Lisboa. Não me parece, respondi, uma ideia digna do Concílio de Trento jantar fora na Sexta-feira de Paixão ou mesmo no Sábado de Aleluia. Deixemos Trento no seu lugar, ouvi.
sexta-feira, 8 de março de 2024
Outro email
Caro narrador,
Não me respondeu. Será mais certo, espero, dizer ainda não me respondeu. Vi que não hesitou em publicar o meu email. Deparei-me com a sua publicação sem sobressalto. Admirei-me, porém, que me tivesse substituído o nome. O que escolheu serve-me perfeitamente. Era o nome de uma tia materna. Havia quem dissesse que eu era mais parecida com a tia do que com a mãe. Perguntei-me pelas razões que o terão levado a não ocultar o nome de Eduína. Imaginaria que ninguém associaria esse nome a uma pessoa real? Talvez esteja equivocada e projecte nos seus textos a figura de minha filha. O desejo inclina-nos a ver nas aparências realidades que não existem. O poema que citou a 15 de Fevereiro do ano passado deixou-me na dúvida. Nunca pensei que o discreto interesse de Eduína pela poesia passasse da leitura para a composição. Não posso dizer que essa passagem seja inverosímil. Desconheci-a. Uma mãe acaba por ignorar muito daquilo que os filhos são ou fazem. E desconhecem-no tanto mais quanto menos duvidam que os filhos lhes são transparentes. Cheguei a pensar que Eduína, na sua natureza diáfana, não tivesse segredos para mim. Iludi-me, claro. Haverá, nos cadernos, outros poemas? Existirão outros cadernos manuscritos na posse de outras pessoas. Nas coisas dela não encontrei nenhum. Talvez tudo isto não passe de uma confusão na cabeça envelhecida de uma mãe ainda inconformada com a perda da sua filha. Alguma, por mais tempo que passe, se conformará? Os dias estão frios e não sinto vontade de sair, pois ainda saio de casa sem a tutela de ninguém. Não sei por quanto tempo. Os dias estão frios, fico no calor da casa e penso no que me abandonou, penso na difícil equação de ter perdido o essencial e não ter morrido. A mecânica do mundo revolta-me. Ainda tenho folgo para essa revolta. Seria mais fácil Eduína lidar com a minha morte do que eu com a dela. Entre pais e filhos não há qualquer simetria. Um ar de família ou o amor não asseguram a reciprocidade. As mortes não têm todas o mesmo peso. Estou cansada.
Lívia
quinta-feira, 7 de março de 2024
Inferência à melhor explicação
Março, esse mês onde se dá uma transição entre estações, decidiu tornar manifesto que a sua grande vocação é ser mês de Inverno. Para isso, envia vento, frio e chuva. Imagino que também haverá neve nas terras altas. Pensamos que meses e semanas são meras divisões do tempo feitas pela arbitrariedade humana, mesmo quando elas têm suporte cosmológico. Esse pensamento choca com o que escrevi ao dizer que Março decidiu. Decisões tomam os seres que existem realmente, como os homens, talvez outros animais. É isso que pensamos, mas esse pensamento está ancorado na nossa ignorância. Criado um artifício – por exemplo, um calendário com meses –, este ganha existência e nessa existência inclui-se a vontade, o pensamento, até as memórias e as imaginações. Nada disto falta aos meses do ano. Se faltasse, como poderíamos explicar as suas mudanças de humor, as transições abruptas que acontecem, a máscara que tomam ao apresentarem um rosto primaveril em plena estação invernosa. A justificação de tudo isto só pode ser que um mês, qualquer um, é dotado desses dispositivos que equipam os seres que tomam decisões. Esta é uma inferência à melhor explicação, um raciocínio abdutivo, embora exista muita gente que confunde abdução com rapto por extraterrestres. Também é verdade que, se uma pessoa sai de casa, aqui nesta cidade perdia no Ribatejo, para comprar cigarros, não torna a aparecer e que, passados meses, é avistada na praia de Copacabana, a melhor explicação é ter sido abduzida por ET, ter sido analisada durante esses meses num laboratório existente num OVNI escondido dos olhares humanos, e que os visitantes do espaço, já não se lembrando onde tinham feito a abdução, deixaram o pobre homem em Copacabana, obrigando-o a passear de mão dada com uma mulher, para que ele não se perdesse na terra. Este é outro exemplo de uma inferência à melhor explicação ou raciocínio abdutivo, abdução, para resumir.
quarta-feira, 6 de março de 2024
Um email
Caro narrador,
Será assim que se deve começar um email, presumo. Hesitei no nome a dar-lhe, visto que parece não ter nenhum publicamente reconhecível. Pertenço a um tempo que não será o seu e tive de me adaptar a mais coisas que a indústria humana vem produzindo que o senhor. Entre outras, à navegação na internet. Digo-o porque creio ser mais velha, significativamente mais velha. Nasci no ano em que começou a guerra. Isto, imagino, não o interessará, pois não sabe quem sou, embora eu não tenha, neste momento, razões para dizer se me conhece ou não. Talvez sim, talvez não. Ao descobrir os seus textos, há umas semanas, e como o ócio e a memória são o que me resta, fui despreocupadamente lendo, recuando no tempo. Os blogues, pensei-o, são o contrário dos livros. Lêem-se do fim para o princípio. Esta minha viagem à rebours, perdoe-me o francesismo, o francês era dominante quando eu era criança e jovem, levou-me à descoberta de algo, estou convicta, que me diz respeito. A princípio pensei tratar-se de um acaso. Acasos e acidentes são coisas banais neste mundo, e, com a minha idade, já vi demasiados acasos e não poucos acidentes. Eu sei que estou a evitar o assunto. Se reparou, e por certo reparou, o assunto que referi, no local devido deste email, é inócuo e nada diz sobre o que me move. Antes de lhe escrever tentei aclarar em mim não apenas o que lhe queria dizer, mas também os meus motivos. O que lhe quero dizer, sei-o bem, mas os meus motivos ainda me são obscuros. A leitura de um certo nome que aparece, por vezes, nos seus posts, causou em mim um choque, que não foi pequeno. Também esse nome me fez viajar à rebours para o ano dois mil e um. Começa a desconfiar de quem falo. Não farei mais mistério. Foi nesse ano, como saberá, que Eduína, a minha filha, morreu. Ainda hoje não compreendo como a posso ter perdido. Ao ler esse nome tão querido, tremi, embora pensasse de imediato ser um acaso. Depois, as descrições que faz eliminaram-me qualquer dúvida. O senhor conheceu a minha filha, talvez mais do que eu possa imaginar, mas não sei quem é. Fiquei perplexa com a existência daquilo a que chama os cadernos de Eduína. Pensei em pedir-lhos, mas, por certo, pertencer-lhe-ão mais a si do que a mim. É provável que me tivesse conhecido. Terá vindo a nossa casa, quando era amigo de Eduína. Não tenho a certeza de conhecer todas as relações da minha filha. Ela tinha, mesmo para nós, um ar misterioso, enigmático. Se por acaso, frequentou a nossa casa, gostaria de o rever. Se não frequentou, teria prazer em conhecê-lo. Já não tenho com quem falar da minha filha. Era isto que lhe queria dizer.
Não sei que regra se usa numa despedida num email. Talvez nenhuma.
Lívia
terça-feira, 5 de março de 2024
Passagens
Hoje desforrei-me da inacção de ontem e acumulei 57 pontos cardio. A certa altura da caminhada, com o sol a incidir sobre os meus passos, pensei que tinha chegado a uma doce Primavera, daquelas que havia no Jardim do Éden e às quais sucedia um ameno Outono. Esta é a verdade climática do Paraíso. Doces Primaveras, sem calores excessivos, e amenos Outonos, sem frios rigorosos. Foi isto que desgostou Adão e Eva. Estavam desejosos de fazer turismo na época alta e protestaram perante Deus. Não era justo ali não haver calor para se ir para a praia ou para viajar pelo vasto mundo, para se ser turista e tirar fotografias aos monumentos e às ruas. Deus, na sua benévola misericórdia, sorriu com as pretensões pequeno-burguesas do casal original e começou a achá-lo menos original. Depois, um deles, não me lembro se Eva ou se Adão, contestou a nudez. Como poderiam eles, pois o contestador falou no plural, eu ouvi, deslumbrar-se com a roupa de alta-costura? O mundo das possibilidades estava-lhes vedado, acrescentou o outro. Deus, na sua misericordiosa benevolência, tornou a sorrir. Foi um largo sorriso no seu rosto infinito. Depois, foi aquela história da maçã, coisa que toda a gente sabe. Abriu-lhes as possibilidades, é verdade, mas trouxe todo o resto, incluindo o frio de regelar e o calor de ananases, para citar o Eça. A certa altura da vida, uma pessoa começa com uma história, mas, sem a terminar, logo passa para outra. Foi que me aconteceu hoje.
segunda-feira, 4 de março de 2024
O dia de hoje
Quantas coisas já fiz hoje? Começo a contar pelos dedos e concluo que fiz mais do que as recomendáveis para quem já tem descontos nos transportes públicos, nos museus e não sei mais onde. Contudo, não fiz uma que devia. Pôr-me a caminhar por essas ruas com a finalidade de chegar ao lugar de onde parti. O mais correcto será dizer que fiz a minha caminhada, saindo de onde estou e chegando a onde estou, mas que abreviei radicalmente o trajecto, eliminando o espaço entre a partida e a chegada. Começo mal a semana, com poucos passos andados e só dois pontos cardio conquistados, quando o objectivo mínimo é 20. Desconfio que amanhã vai suceder a mesma coisa. O melhor seria cortar nestes textos e pôr-me andar por aí. Irrelevâncias há tantas no mundo que estas são dispensáveis. Hoje, como narrador, acompanhei, contra vontade, o autor. Foi dar uma pequena palestra política, uma reflexão sobre as eleições. Levou-me, mas proibiu-me não de mencionar o facto, mas de narrar o que ele disse. Seja como for, o que ele disse, assevero-o, não enriqueceria em nada estes textos, apesar de serem de uma pobreza franciscana, da qual não sou responsável – é ele, claro, não fora ser o seu autor –, antes testemunha activa. Por vezes, tenho ideias brilhantes, mas ele recusa-as sempre, obrigando-me a narrar o que por aqui se vê. Tenho um delicado trabalho a fazer, mas não o comunico à cidade e ao mundo. Faço-o e remeto-me ao silêncio.
domingo, 3 de março de 2024
Um domingo na capital
Ao deixar o velho estádio do Restelo, pensei há décadas que não saio de um evento desportivo a um domingo pelas cinco da tarde. Já nem me lembrava daquelas procissões de debandada que se formam no fim dos jogos. Levei a família quase toda a ver o râguebi. Um Portugal – Espanha sempre é um Portugal – Espanha, assim como uma redundância sempre é uma redundância. O meu neto estava entusiasmado e acompanhava os gritos por Portugal. As netas estavam mais discretas. Fiquei espantado com o número de pessoas que foram ver o jogo. Havia muitas famílias trigeracionais no Restelo. É um programa de famílias e não de fanáticos. Desconfio que para muitos dos espectadores o jogo interessava pouco, mas a experiência de ali estar com filhos, pais, avós era o mais importante. Para ajudar estava uma bela tarde, a vista sobre o Tejo é magnífica e Portugal acabou por ganhar e qualificar-se para a final em Paris. Eis um domingo na capital digno de um domingo de província.
sábado, 2 de março de 2024
A sua verdade
sexta-feira, 1 de março de 2024
Mês de Marte
Devo ou não assinalar a efeméride, pergunto-me. Qual efeméride? A da entrada no mês que recebeu o nome do deus da guerra. Estamos, então, num mês marcial, o que parece estar de acordo com o espírito do tempo. Marte, e não estou a falar do planeta, tem o estranho poder de contaminar, de tal maneira, entrando em acção, todos os meses lhe são dedicados, até que ele, cansado de tanto pelejar, ruma para uma ilhar perdida e adormece. Ao sono do deus, chamam os homens paz. Acabei de comer umas nozes. Consegui evitar que o quebra-nozes destruísse a casca de uma delas. Posso, com o meu neto, transformá-la em dois navios. De preferência, veleiros. Depois, como estamos em Março, contar-lhe-ei que eram assim os navios dos Aqueus que partiram para Tróia, chefiados por Agamémnon, irados pelo rapto de Helena por Páris, e cercaram a cidade até a destruir. Agora, porém, tinha de ir auxiliar a neta mais velha. Parece em apuros.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Fevereiro e os anjos
Chegámos ao fim de Fevereiro num ápice. Talvez esta sensação seja fruto de o mês ser mais pequeno que todos os outros, mesmo na sua versão maximizada, a dos anos bissextos, como o actual. Não compreendo, e nisto serei acompanhado por muita gente, a razão por que Fevereiro aceitou sem grande contestação a exígua quantidade de dias que lhe foram atribuídos. Há, por parte dos autores do calendário, uma nula preocupação com uma distribuição equitativa dos dias pelos meses. Pergunto-me que concepções de igualdade haveria naqueles a quem Gregório XIII, imagino que cansado do calendário Juliano e desejoso de ter um com o seu nome, encomendou a repartição do ano por meses e dias. Hoje, no mínimo, deveria ser o penúltimo dia do mês e não o lamentável último. Quando se chega a certa idade, a um certo patamar da existência, o nosso espírito concentra-se nas coisas que são decisivas, como a dos dias de Fevereiro ou a do sexo dos anjos, um dos assuntos mais interessantes para discutir, pois consta que eles, os anjos, não o têm. Tê-lo-iam, estou certo disso, caso Fevereiro tivesse mais de 29 dias. A questão é fácil de explicar. Os anjos começaram por ter órgãos genitais, uns masculinos e outras femininos. Contudo, devido ao facto de serem, esses e essas anjos, de terrível beleza, o desejo do outro sexo angélico ocorria apenas nos dias 30 e 31 de Fevereiro, pois os outros dias do ano eles tinham de tomar conta de nós. O turbilhão dos amplexos era enorme e um grande desassossego ia pelas hierarquias angélicas. Chegado Março, o desejo cessava e ficava suspenso por um ano. Ora, a eliminação dos dias 30 e 31 de Fevereiro e quase do 29 teve como efeito a aniquilação dos amplexos sexuais angélicos. Com o passar dos anos, o desuso tornou os órgãos sexuais dos anjos inúteis e, estes, os órgãos sexuais, numa prova da evolução das espécies angélicas, acabaram por desaparecer. Quando se diz que os anjos são assexuados diz-se a verdade, mas nem sempre essa asserção foi verdadeira. Contudo e em relação ao tema dos anjos, não é a questão do sexo, aqui resolvida, que me atormenta. Maior e mais indecifrável é o mistério que atormentou, ou talvez não, os filósofos medievais, e me atormenta a mim, que sou um medieval perdido neste mudo contemporâneo, o mistério de saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Imagino que sejam legiões, mas há quem defenda que os anjos não dançam, o que torna risível o cálculo e me estraga o tormento.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
O pastel de nata
Que posso dizer da mísera fraqueza que me habita? Nada. Sim, nada dizer é a melhor solução e conformar-me com o ser que me cabe. Tendo empreendido, não com muito denodo e entusiasmo, uma viagem numa dieta que me haverá de tirar meia dúzia de quilos que tenho a mais, ao que consta, hoje cedi à tentação de, antes de entrar num sítio onde se vende livros, comer um pastel de nata. Chegado a casa, fui verificar as orientações da nutricionista, e, infelizmente, não estavam lá mencionados os pastéis de nata dentro das coisas permissíveis. A minha primeira reacção ao ler o papel – sim, ela deu-me um papel com instruções, que eu faço o possível para não ler – foi de pensar que a senhora se terá esquecido. Depois, rememorei a consulta e não me lembro de em momento algum ela ter dito que pastéis de nata estavam autorizados. Uma coisa lamentável. Na próxima consulta, terei de lhe explicar que a sua estratégia para me tornar menos deselegante fere a minha identidade. Contar-lhe-ei, como narrador experimentado, que o pastel de nata era o único bolo que, na longínqua infância, eu admitia comer, embora a massa folhada que envolve a nata estivesse excluída, limitando a fazer figura de recipiente de onde, com uma colher de café, eu ia extraindo a nata, sob o olhar benevolente daqueles que me deram o ser. A senhora sempre há-de ter instintos maternais e compreenderá que a sua função não é destruir identidades. No próximo papel, lá virá o pastel de nata dentro das coisas permissíveis.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2024
Silêncios
Alguém usa uma das paredes do prédio para se entregar à percussão, mas a batida é suave, embora com alguma rapidez. Talvez estejam a finalizar qualquer intervenção. Agora, os batimentos pararam e o silêncio é um lago de águas paradas que só o bater dos meus dedos nas teclas agita, desenhando círculos sonoros em expansão na superfície desse silêncio sem nome. Não será silêncio o nome do silêncio? Como é possível escrever silêncio sem nome? Não é muito difícil, respondo, bastará alinhar na sequência correcta as palavras silêncio, sem e nome. Eis uma graçola inútil, concedo. A palavra silêncio designa a ausência de ruído, pelo menos num dicionário de língua portuguesa de larga circulação. Seria melhor referir que o silêncio é a ausência de som perceptível pelo ouvido humano. Este silêncio, todavia, é bem diferente de um outro silêncio, mais fundamental, aquele que resultaria da completa ausência de vibrações sonoras por todo o universo ou por todos universos, caso haja mais do que um. O primeiro é um silêncio acidental; o segundo, essencial. Deveríamos ter dois nomes para designar estes dois silêncios. Teríamos então consciência de que aquilo a que damos inapropriadamente o nome de silêncio não passa de uma surdez circunstancial da espécie humana. Descobriríamos, depois e como corolário, de que não fazemos a mínima ideia do que será o silêncio essencial, o qual só será possível na pura imobilidade de tudo que existe, pois vibrar é já estar fora daquilo que é imóvel. Por isso, um certo evangelista que consta ter tido revelações na ilha de Patmos disse que no princípio era o verbo. Foi a vibração das cordas vocais divinas, presume-se, que, percutindo a matéria imóvel, a animou, a pôs em movimento e lhe insuflou a sonoridade por contágio. Foi assim que começou o mundo. Este é o meu começo do mundo. Se não gostar dele, eu tenho outros. Como se vê, este narrador é um groucho-marxista.
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024
Uma boa decisão
Retornou a segunda-feira, um dia com o péssimo hábito de estar de volta todas as semanas, para obrigar os mortais, aqueles que tinham mergulhado no pequeno lago do fim-de-semana, a saírem da água doce do esquecimento e entrarem na azáfama ditada pela feroz necessidade. Foi o que aconteceu com este narrador. Vestiu-se à pressa e, ainda mal seco das águas do doce nada fazer, enfrentou, sem a espada de S. Jorge, o dragão. Enfrentou, mas não o derrotou, arranhou-o ao de leve com uma faca de cozinha, mas teve de fugir, por causa das labaredas que o maldito cuspiu pela boca peçonhenta. Estou a escrever porque o monstro não contou com a força do vento e o fogo foi arrastado noutra direcção que não a minha. Quando cheguei a casa, há pouco, sentei-me, ainda em sobressalto, e meditei longamente sobre a arte de enfrentar dragões, quando não se tem espada e não se é S. Jorge. O resultado da meditação foi esclarecedor. Se não se tem espada nem se é S. Jorge, então o mais sensato é não se atravessar no caminho de qualquer dragão que por aí ande à procura de confusão. Assim farei.
domingo, 25 de fevereiro de 2024
Genes e objecções
Tudo seria mais fácil, a começar pela vida e aquilo que se faz com ela e dentro dela, caso Richard Dawkins tivesse razão. Para ele, nós, seres humanos, somos máquinas de sobrevivência, veículos robot cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes. Tudo o que eu sou e tudo o que fiz e possa vir a fazer resulta de uma programação prévia, da natureza, suponho, para que os genes persistam na existência, mesmo quando eu já não existir. Ora, vejamos um contra-exemplo ou uma objecção, como queiram. O daquelas pessoas que tomam a decisão de não se reproduzirem e, em consequência, não permitirem que os seus genes persistam além delas. Dir-se-ia, então, que essas pessoas estavam cegamente programadas para que os seus genes egoístas não se reproduzissem. Há aqui uma inconsistência do programador, pois umas vezes programa para a persistência dos genes egoístas e outras para a sua não persistência. Isto torna a questão interessante. Nós seres humanos temos a convicção de que fazemos escolhas genuínas, que não está programado ter ou não filhos, vestir uma camisa branca em vez de uma azul. Isso, porém, seria uma ilusão. Contudo, e esta é uma segunda objecção, é mais inverosímil atribuir liberdade de escolha a uma obscura instância programadora do que a nós, seres humanos. Isto para nossa infelicidade, pois se fôssemos o puro resultado de uma programação exterior a nós, estaríamos mais descansados quanto à nossa responsabilidade por aquilo que fazemos. Por exemplo, eu não seria responsável pelo conjunto de coisas idiotas que escrevo nestes textos. Fui programado por um autor que, por sua vez, foi programado pela instância programadora preocupada com a preservação dos genes dele. A idiotice não seria minha, narrador, nem do autor, mas do programador genético, digamos assim. Contudo, o que não se consegue perceber é a relação destes textos com a salvação dos genes do seu autor. Se olharmos para os seres humanos, eu sei que nem sempre o espectáculo é edificante, observamos que uma parte substancial das suas actividades em nada contribuem, directa ou indirectamente, para a persistência dos seus genes egoístas. E este é a terceira objecção à teoria do senhor Richard Dawkins. Em resumo, perante a angústia da página em branco, mal de que nunca padeci, tomei livremente a decisão de escrever estas patetices. Também é verdade que em vez de criar objecções à teoria do senhor Dawkins, poderia ter escrito a favor dela, caso o tivesse desejado, o que prova que ele não terá razão, apesar de nestes assuntos nunca se poder provar coisa alguma. Aguardo, não sem esperança, a hora de almoço.
sábado, 24 de fevereiro de 2024
A vida em Königsberg
O dia não começou mal. A balança estava de bons modos, nada a irritava, por certo, e, ao ser por mim pisada, devolveu-me menos dois quilos do que a última vez. O pior é que Kant estava certo. A razão não foi dada ao homem para que ele atinja a felicidade, pois esta, não poucas vezes, aspira a coisas que são contraditórias. A minha felicidade ao ver o resultado na balança é o outro lado da minha infelicidade perante as coisas de que me tenho abstido nestes últimos dias. Não que fosse dado a excessos pantagruélicos, mas tinha prazer na despreocupação perante o que se come. Esse estar despreocupado é a antecâmara do prazer da mesa e de outros, por certo. Em resumo, ando irritadiço como acontece quando um fumador deixa de fumar. Tenho essa experiência. Aliás, repeti-a várias vezes. Nunca fui um grande fumador, mas há partes da minha vida em que fumei com algum afinco. Contudo, com um acto de vontade e alguns dias de irritação, deixava de o fazer sem grandes problemas. Posso fumar durante as férias, após as refeições, mas mal acaba o intervalo entre duas épocas de submissão à necessidade nem me lembro dos cigarros. Até aqui sempre me julguei imune a adicções, mas verei agora se isso é verdade. Aliás, essa imunidade pode ser um problema. Sou tão imune à adicção ao tabaco quanto ao do exercício físico. Mais uma vez, aquele senhor que nasceu em Königsberg parece ter razão. A felicidade de não ser adicto às coisas viciosas é o contraponto de o não ser às coisas virtuosas. O melhor é trocar a ideia de uma moralidade baseada na felicidade por uma de submissão ao dever. Devo fazer exercício físico e não devo fumar, nem comer o que sabe bem e faz mal. A vida em Königsberg devia ser uma grande chatice.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024
Nódoa
Temo mesmo que seja uma nódoa. Não, não se trate de mim, mas de uma mancha mais escura no punho esquerdo do pulôver que trago vestido. O cinzento mesclado não me dá a certeza, mas o formato da mancha inclina-me para uma quase certeza ou para uma ausência razoável de dúvida. Assim como as moscas e as melgas, também as nódoas têm uma viva atracção por mim. Caem sobre o que visto das mais inesperadas maneiras, numa volúpia que me deixa desconcertado. Já tentei, e não foi apenas uma vez, negociar com elas. Prometi-lhes compensações financeiras se elas me largassem de mão. Nada as comoveu. Submeto-me ao calvário da enodoação, ao opróbrio de ouvir os comentários condescendentes desta atracção fatal. Esta é a minha aventura do dia, a nódoa no punho esquerdo do pulôver cinzento, comprado há dias para logo ser sujeito à mancha, à mácula, ao borrão, enfim à desonra de ser minha propriedade. Podia narrar outras façanhas, a de uma certa visita que fiz, a de uma coisa a que assisti. Podia inclusive contar aqui a verdadeira façanha que foi conseguir comprar online bilhetes para o próximo jogo de Râguebi da selecção nacional. Vai a família toda e as mais entusiastas são as minhas netas. Contudo, nada disso se compara com o episódio da nódoa que ensombrece o punho esquerdo do meu pulôver cinzento. Espero que seja cinzento, pelo menos, tão cinzento quanto o céu desta sexta-feira.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024
Um motim
O tempo amotinou-se e o Inverno voltou. Olho para a frase e não sei o que fazer com ela, nem de onde veio. Há frases que têm esta natureza. Chegam sabe-se lá de onde e ninguém percebe a sua utilidade. O tempo não faz parte da marujada que segue nesta nau onde estamos todos embarcados, uns como tripulação, outros como passageiros. O tempo pode fazer parte da paisagem ou mesmo do oceano onde navegamos, mas marujo não é. Como podia ele amotinar-se? Não podia. Contudo, a frase permanece no início do texto, límpida e clara. A escrita, também a fala, tem destes mistérios. Vem à boca de cena uma frase e não se sabe como lidar com ela. Será que é para classificar como verdadeira ou falsa? Será que é para tomar como indicação de alguma coisa que ainda não percebemos? Será que resultou apenas de um feliz – ou infeliz – acaso, tendo-se juntado aquelas palavras e naquela ordem sem que houvesse um desejo de as juntar e de com elas significar fosse o que fosse? Quanto mais penso nisso, mais perplexo fico. A certa altura, penso mesmo em recorrer ao Guia dos Perplexos, de Maimónides. É o próprio autor que me desaconselha tal aventura. O objectivo deste tratado não é tornar compreensível o significado de palavras que aparecem nos livros proféticos para o leigo e o principiante, diz ele, pensando, nesses anos que levou a escrever a obra – 1185 a 1191 –, neste narrador. A frase inicial deste texto poderá fazer parte de um livro profético que ainda não foi escrito ou que tendo sido escrito, há muito se perdeu. Uma coisa é verdade. Não tenha ainda sido escrito o tal livro profético ou faça parte das obras perdidas, eu sou um leigo ou um principiante, ou nem uma coisa nem outra, dessa religião que ainda não existe ou que acabou há muito. Chego ao fim do texto e não consigo responder à pergunta que me obsidia, sempre que o tempo se amotina, o Inverno volta?
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024
Uma questão de grau
Estou num sítio onde, por vezes, exerço certas funções e oiço dizer é preciso ser objectivo ao analisar a situação. Fico a pensar nesse imperativo de objectividade expresso como se fora uma necessidade. Uma necessidade imperativa. Talvez todas as necessidades sejam imperativas. Sob a frase proferida encontra-se uma crença dissimulada. Essa crença sustenta uma oposição radical entre uma perspectiva subjectiva, visão privada de um sujeito, e uma perspectiva objectiva, visão do mundo tal como ele é. Por exemplo, oiço, neste momento, o irritante ranger dos baloiços do parque aqui em baixo. Será que aquilo que oiço, e que me irrita, é uma audição daquele acontecimento tal como ele é ou não passa de uma audição puramente subjectiva, como se eu estivesse a ouvir coisas, coisas que talvez nem existam. Um filósofo como Thomas Nagel deixa perceber que nem a objectividade nem a subjectividade são pólos opostos e incomunicáveis do modo como entendemos o mundo, por exemplo, como oiço o ranger dos baloiços. Objectividade e subjectividade estão num continuum e são uma questão de grau. A minha audição do ruído dos baloiços pode ser mais ou menos objectiva. Representar as coisas que se passam no mundo e as que se passam em nós, que também estamos no mundo, é deslocarmo-nos numa linha, talvez numa estrada que liga duas povoações relativamente distante. A situação que se deveria analisar objectivamente, nunca o poderá ser, pois ninguém tem qualquer possibilidade de se transformar nessa situação objecto, deixando de lado a subjectividade onde nasceu. A minha vontade ao ouvir a injunção era intrometer-me e explicar que analisar uma situação é fazer uma viagem, com avanços e recuos, entre a minha consciência e o mundo, no caso, a tal situação. De imediato, porém, ouvi em mim o eco de um ensinamento arcaico, não te metas onde não és chamado. Não me meti e falhei assim a produção de uma aventura que me enriqueceria a gesta e haveria de contribuir para a minha glória.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2024
Despedir-se do esquecimento
Cheguei a casa já a noite tinha caído. Uma série de assuntos reteve-me. Entre eles, a compra de um livro na mais antiga livraria da terra. Há muito que não entrava lá. O tempo não melhorou o sítio, como se todas as coisas tivessem uma época. Comprei lá muitos livros. Depois, deixou de estar nos meus caminhos, como de muitos outros. Também os livros foram mudando à procura de leitores, de outros leitores, que talvez não existam ou não sejam leitores. O livro que por lá comprei não vem ao caso, mas faz parte da história local. Não foi um amor à paróquia que me impeliu à compra, mas uma certa curiosidade, não particularmente excessiva. Se fosse excessiva, tinha-o adquirido em 2021, quando foi publicado. Este deambular pela cidade, coisa que ocorre excepcionalmente, impediu-me de ir caminhar ao fim da tarde. Tive de adiar para depois de jantar ou talvez para amanhã. Não me sai da cabeça a livraria. Estantes, antigamente repletas de livros, estavam agora ocupadas por bugigangas, coisas para as quais não olhei mais do que uns segundos, apenas para me certificar do que estava a ver. Este tipo de morte é mais doloroso do que o súbito anúncio de um fecho. É uma agonia que se prolonga. Diante de mim está um poema de Herberto Helder. Começa assim: Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento. Para quem sai, / ainda louco de sono, do meio / de silêncio. Uma noite / ingénua para quem canta. Despedir-se do esquecimento foi o que me terá acontecido ao entrar naquela livraria. Imagino que rememorar e despedir-se do esquecimento não sejam, em absoluto, a mesma coisa. Contudo, o sono nunca me enlouquece.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024
Fevereiro estival
Está um dia esplêndido, oiço. Confirmo. Parece já uma Primavera adiantada. Fenómenos destes em Fevereiro não são inusitados. Lembro-me de há muitos anos, num Fevereiro em que era estudante universitário, ter rumado a Sesimbra. O motivo apagou-se. Dessa viagem, talvez com falta às aulas, mas não estou certo, recordo apenas que decidi ir ao mar. Tomei banho. O dia estava a pedir. Os efeitos secundários, porém, vieram depois. Nada de extraordinário, apenas dores nas pernas que se prolongaram durante algum tempo. A água estava fria, muito fria. Nesse tempo, eu era outro, gostava de ir à praia e de tomar longos banhos de mar. Depois, perdi qualquer interesse pelas idas à praia e por banhos de mar. Não rejeito sentar-me numa esplanada e olhar para o mar, como se olhasse para um mundo primordial. Desviei-me. Um dia de Fevereiro estival não é um acontecimento excepcional, tão pouco se poderá acusar as alterações que o clima vais sofrendo às mãos do homem. Contudo, um mês de Fevereiro quase todo ele a anunciar a Primavera é excessivo e talvez seja sinal de que alguma coisa vai mal. Vou caminhar, com a insensata esperança de me reconciliar com a balança, mas terei de esperar uma hora menos quente. Isto, penso, é um problema.
domingo, 18 de fevereiro de 2024
Inverosímeis e absurdos
Parece que se está numa Primavera já avançada, pronta a despenhar-se no abismo do Verão. Fui caminhar na serra, aquela que assombra este concelho, para desenfastiar e por causa de umas altercações com a balança, uma impertinente, que em vez de ficar grata por lhe ter comprado uma pilha e a ter ressuscitado, olhou-me de lado e devolveu-me um peso dos antigos. A manhã estava esplêndida e a serra não lhe ficava atrás. Nos caminhos que fiz havia ainda grandes poças de água. Algumas, verdadeiros lagos, que tinham de ser contornados por margens estreitas, nas quais mal cabia um pé. Não foi uma aventura, pois naqueles lagos não havia nem vikings nem piratas holandeses a que tivesse de combater. Foi apenas caminhar por aqueles caminhos que não levam a lado nenhuma, mas que me levaram para longe do carro e a ele me trouxeram, depois de uma dose razoável de vitamina D – consta que apanhar sol fomenta a vitamina D no organismo – e quase cinquenta pontos cardio. Isso não me impediu de, mais tarde, ler coisas como a seguinte: A arte do possível em grande escala gravita à volta do grande esforço que consiste em apresentar o inverosímil como inevitável. O autor da frase é Peter Sloterdijk e o contexto não vem aqui ao caso. Ao ler a frase fui assaltado por memórias de outras leituras e cheguei a uma frase apócrifa de Tertuliano, que por ser apócrifa não terá sido por ele escrita, credo quia absurdum, isto é, creio porque é absurdo. O inverosímil de Sloterdijk e o absurdo atribuído a Tertuliano têm poderes para gerar crenças e crenças tão fortes que parecem inevitáveis. Não é de admirar, nestes tempos, que existam exércitos de crentes das coisas mais inverosímeis e absurdas, exércitos esses que não descansarão enquanto não impuserem pela força, pois amam a decisão da violência, as suas crenças a todos os outros, não havendo lugar para ateus nem se quer para agnósticos. Ateus e agnósticos relativos aquelas crenças, entenda-se.
sábado, 17 de fevereiro de 2024
Cacografia
Há poucas coisas em que este narrador esteja de acordo com o autor que o criou e lhe faz escrever o que escreve, para perdição sua, por certo. Uma delas, talvez aquela onde há mais fervorosa concordância, é um desprezo visceral pelo acordo ortográfico parido em 1990. Hoje, no Público, José Pacheco Pereira torna a pôr em relevo o desprezível que é o linguajar nascido com essa infeliz entente. Num cartaz partidário, daqueles que enxameiam as campanhas eleitorais e cuja finalidade ainda ninguém conseguiu perceber, está escrito, em letras garrafais para se notar melhor, MAIS AÇÃO. Ora, e muito bem, pergunta o autor do artigo o que está ali a fazer a São, pois é já assim que muita gente lê ação. Também não faltam pessoas que lêem recessão quando está grafado receção. Sem querer, nem sempre o querer é poder, meter-me em política, esta história do acordo ortográfico – mais valia escrever o acordo cacográfico – é típica da política portuguesa. Esta tem, independentemente dos protagonistas, dois objectivos centrais. Acabar com tudo o que funciona bem e prolongar indefinidamente qualquer disparate. Como se vê, o autor tem algumas razões para proibir este narrador de se meter em política. Mal tem uma oportunidade, cai logo em generalizações precipitadas e entrega-se à hipérbole, como se uma hipérbole fosse a descrição exacta do mundo. Todo a gente sabe, depois de ler em Descartes o papel hiperbólico da dúvida metódica, que a hipérbole não é um tropo para levar a sério. Se somos tentados em extasiarmo-nos perante uma metáfora, uma metonímia, até mesmo diante de uma anáfora, só nos pode dar vontade de rir, ou chorar, se surge diante dos olhos uma hipérbole, e o acordo cacográfico de 90 não passa de uma hipérbole da insensatez ou, para ser mais preciso, da estupidez com que se tomam muitas decisões.
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024
Mitos e crises
O conjunto musical da escola aqui ao lado continua a abrilhantar o cair das tardes de sexta-feira. Fá-lo como se estivesse a animar um baile de província dos anos setenta. Será que tocam movidos pela nostalgia de um tempo que se devorou ou tocam para que sintam essa nostalgia que a memória não consegue engendrar ao expressar-se sobre o que passou. A questão não é diferente daquele que parece animar antropólogos sobre se o mito deu origem ao rito ou foi o contrário. Há uma tese, disputada como todas as teses, que me agrada, pelo menos hoje. O rito é anterior ao mito. O rito é um conjunto de práticas que procuram uma certa eficácia sobre o mundo. Tem uma natureza prática e performativa. O mito nasceu quando as regras rituais se tornaram incompreensíveis e foi necessário encontrar explicações que enquadrasse os ritos. Se eu falasse com esses músicos que se tornam uns vizinhos exuberantes nas tardes de sexta-feira, por certo que encontraria neles uma mitologia, mas esta nasceu das suas práticas rituais ao longo destes anos. O seu ritual produziu a nostalgia dos tempos em que eram novos, alguns são da minha idade, que se transformou num mito relativamente privado. Perante mim, jaz um pequeno livro com três conferências do filósofo Leo Strauss. Uma delas, data de 1962, tem por título A Crise do Nosso Tempo. Contemplo-o e sinto uma absurda satisfação. Penso neste sentimento e encontro-lhe uma explicação. Viver em crise parece ser a realidade quotidiana não do nosso tempo, mas de qualquer tempo. Ora, se todos os tempos são tempos de crise, isso significa que não existe crise alguma e eu não vivo num tempo de crise. Refastelo-me nesta evidência e contemplo a noite que desaba sobre a cidade. Ouvem-se vozes na rua, mas tudo desfila em direcção ao silêncio.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024
O bocejo
Olho para a rua e fico indeciso. Não sei se fui eu ou o dia que bocejou. O acontecimento foi recente, mas a recência não é garantia de retenção pela memória. Haverá quem tenha certezas e afirme que o dia não bocejou. Os dias nunca foram vistos a bocejar. Isto, porém, não passa de uma falácia, uma das mais simplórias. O facto de algo não ser observado não significa que não aconteça. Fazemos demasiadas vezes uma transição injustificada entre o conhecimento e a realidade, ou, em filosofês, entre a epistemologia e a ontologia. Os dias também têm boca, de tal modo que o actual devorou o anterior, mas já se enfastiou e acabou por abri-la para expressar o sono que lhe ia na alma. Também têm alma os dias e não vale a pena clamar contra este narrador acusando-o de os, aos dias, estar a antropomorfizar. Assim como nos olhos se expressa a alma humana, também no céu se expressa a alma do dia. Olhamo-lo e, de imediato, percebemos a alegria ou a tristeza, o desejo ou a apatia, o amor ou o ódio. Ora, se vemos isso no céu, então os dias têm alma. Resta discutir a vexata quaestio se essa alma é mortal ou imortal. Se for mortal, é possível que se dissipe à meia-noite. Por isso, essa hora será perigosa, pois é nela que o dia perde a sua alma. Isto, todavia, é especulativo. O perigo da meia-noite pode vir de outro lado, pois a alma dos dias será imortal. Uma das possibilidades é existir no outro mundo, um coleccionador de almas dos dias da Terra. Ele guarda-as e ao guardá-las elas mantêm-se vivas, pois tudo o que recebe guarda permanece na existência. Acho que me desviei do ponto central. Quem, eu ou o dia, bocejou? Não me lembro de ter bocejado, mas isso também não prova que o não tenha feito. Inclino-me para que não tenha sido eu, mas que, estando sozinho, escutei um bocejo, lá isso escutei.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024
A grande substituição
Talvez exista progresso no mundo. Por aqui, há muito tempo, existia uma taberna famosa, frequentada pela classe média local, que se concentrava numa área apertada da vila, com os seus negócios, consultórios e outros interesses. Hoje, há, para o mesmo tipo de pessoas, mas num outro lado mais aberto da agora cidade, um bar de tapas, onde o vinho é seleccionado, a ementa está de acordo com os tempos modernos e o tipo de estabelecimento. Havia múltiplas padarias, que foram fechando devoradas pela boca informe das grandes superfícies. Abriu, porém, há uns tempos já, uma padaria muito diferente das antigas, que se preocupa com a qualidade e a diferenciação. Já falei dela por aqui. Havia uma casa, um ícone do comércio local, propriedade de dois irmãos, que fazia chaves e consertava chapéus de chuva. Fechou, pois os irmãos envelheceram e acabaram por morrer. Agora há uma casa, também de dois jovens irmãos, que não conserta chapéus de chuva, mas faz chaves, programa comandos, trata de fechos centrais de automóveis ou de portões de garagem que se movem devido à electrónica. Eis a grande substituição. As novas gerações tomam o lugar das mais velhas, cujos filhos nunca estiveram interessados nos negócios dos pais. A vida tende a reproduzir-se e por isso a persistir. Será isso o progresso, uma grande substituição.
terça-feira, 13 de fevereiro de 2024
Uma bonomia condescendente
Só agora, já passam das seis da tarde, é que me lembrei que é Dia de Carnaval. Na rua, não avistei qualquer movimento carnavalesco. Antigamente, sempre apareciam uns mascarados espontâneos que espraiavam a sua tristeza pelas ruas. Agora, cada um transporta a tristeza como pode, poupando os outros às suas figuras. Um avanço civilizacional, penso. É plausível pensar que o Carnaval seja uma reminiscência de festividades dionisíacas. Contudo, ao perder o carácter sagrado, o Carnaval alienou a sua natureza mais funda e tornou-se num divertissement profano e superficial, um exercício de comércio turístico. Por aqui, o dia tinha cara de Quarta-feira de Cinzas. Talvez esta tenha sido antecipada. Troquei a folia pelo trabalho, o que poderá ser visto como uma forma de penitência quaresmal, mas talvez a verdade seja outra, a minha incapacidade para ser um verdadeiro folião. Há pessoas que têm um dom, diria mesmo uma vocação para foliar, outras há, pobre delas, a quem o fado não concedeu essa inclinação e não sentem qualquer impulso para a exibição de uma alegria espaventosa. Talvez prefiram alegrias mais secretas, ocultas do público. Desprezam a gargalhada, preferem um sorriso. Impedem-se o escárnio e o maldizer e cultivam a ironia. Para estas, não há Carnaval, pois, há, muito descobriram que a vida quotidiana é um Carnaval, que olham de longe não sem condescendente bonomia.
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024
A natureza recalcitrante
David M. Estlund abre o capítulo seis do seu livro Utopophobia – on the limits (if any) of Political Philosophy com uma citação de outro filósofo, Thomas Nagel, retira do de Equality and Parciality. A citação diz Assim um inicialmente atractivo ideal moral é bloqueado pela recalcitrante natureza humana. Este ideal moral tinha uma expressão política. Deixemo-la, todavia, de lado. O problema não é daquele ideal moral em particular. Existe sempre um conflito entre qualquer ideal moral e a natureza recalcitrante dos seres humanos. Aliás, só existem ideais morais porque a nossa natureza é aquilo que é, recalcitra sempre que vê os seus desejos limitados. Por vezes, ela é tão ardilosa que tenta mostrar como ideal moral o que é imoral. Nietzsche, na sua diatribe contra a moral platónico-cristã tentou convencer os leitores, e alguns terá conseguido persuadir, de que ela era a expressão da imoralidade, de uma moral de escravos para enlear nas suas artimanhas os senhores. Aqui o ardil estará do lado de Nietzsche, que talvez imaginasse pertencer a uma casta superior e que não estaria submetido aos imperativos morais do homem comum. Que tenha enlouquecido parece ser um argumento poderoso contra o seu pensamento, mas talvez este seja um pensamento de um escravo incapaz de perceber o super-homem e uma moral que está para lá do bem e do mal.
domingo, 11 de fevereiro de 2024
Coroas de canela e amêndoa
Acabei de comer duas fatias da coroa de canela e amêndoa. Podia – e deveria – ser frugal, mas a tentação foi forte e achei que o melhor seria consumar a tentação em vez de a evitar. O resultado parece convincente. Agora, não me apetece mais nenhuma fatia. A padaria que um casal novo decidiu abrir nesta terra onde levo a minha obscura existência de narrador em busca de narrativa é um centro de tentações. Tanto pelo pão como pela pastelaria. Vê-se que tudo é pensado, que nada resulta de um hábito instalado, que, numa coisa tão prosaica como fazer pão, há uma grande vontade de inovação, sem que se encha a boca com palavras como inovação, empreendedorismo e outros mantras com que os portugueses disfarçam a sua falta de criatividade e a sua incapacidade para empreender seja o que for. O resultado é um discreto, mas efectivo, fomento da gula, com a desfaçatez de tornar um trivial pão de trigo num objecto propiciador de pecados mortais. Não estou a afirmar que tudo aquilo resulta de um pacto com o tinhoso, mas imagino que seja uma feliz exploração de alguma abertura que tenha havido no reino dos céus. Coloquei o problema, ainda há pouco, ao padre Lodo, na nossa conversa dominical. A resposta que me deu foi que quando fosse a Lisboa não me esquecesse de lhe levar um pão de trigo, outro de centeio e duas coroas de canela e amêndoa. Não compreendo, disse-lhe. É um excesso para uma pessoa e não me parece que seja suficiente para aqueles que partilham a residência da Companhia. Não se preocupe, respondeu, conheço bem as pessoas, as frugais, as moderadas e as que pouco se freiam. A encomenda está adequada à natureza dos residentes. Bem, respondi, não tenho nada que ver com o assunto, mas não queria ser o causador, ainda que involuntário, da perdição de ninguém. O pão, respondeu o meu amigo, é o Corpo de Cristo, e esse não perde ninguém. E as coroas de canela, perguntei. Não me parece que sejam coroas de espinhos, acrescentei. Do outro lado, apenas se ouviu um riso, e a conversa mudou para assuntos políticos, dos quais não me é permitido aqui falar.
sábado, 10 de fevereiro de 2024
Poupem-me as evidências
Seremos, de facto, um povo com QI baixo. Nos momentos em que vejo televisão, e são poucos, concentro-me num certo canal desportivo europeu. Não é que dê atenção aos desportos que por lá se exibem. Presumo que sejam aqueles que os canais comercias não querem. Dou alguma atenção ao snooker e ao ciclismo. Aos outros deixo-os ficar por ali, sem que lhes dê a mínima atenção. Infelizmente, os dois desportos que gosto mais de ver, o râguebi e o hóquei no gelo, foram comprados pelos canais comerciais. Ora, havia uma coisa que me agradava bastante no canal em causa. A qualidade da publicidade. Anúncios internacionais, muito poucos, e muito bem feitos, inteligentes e esteticamente apurados. Descobri agora que a política de publicidade da estação terá mudado e são passados anúncios portugueses. Também são, felizmente, poucos. Cada vez que vejo um sinto-me insultado. Parece que a publicidade dirigida aos portugueses é feita a pensar em mentecaptos que precisam de se babar com um engraçadismo soez. São anúncios dirigidos ao grande público, mas é preciso descer tão baixo na escala estética e moral? Se os publicitários assim organizam as campanhas publicitárias, então é porque quanto mais idiota for a publicidade mais consegue ela vender. Desconfio que a minha atenção, já reduzida ao mínimo, ao canal desportivo vai desaparecer por completo. Se nós portugueses temos assim um QI tão baixo, prefiro que me poupem às evidências.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
Palavras e imagens
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024
Um acto de civilização
Tenho uma relação difícil com os carros. Em primeiro lugar, conduzir aborrece-me, embora o faça sem problemas, mesmo em grandes viagens. É uma seca. Há gente da minha geração que ainda fala na adrenalina de conduzir. Talvez porque tome há muito beta-bloqueantes para descer a adrenalina e com ela a tensão arterial, conduzir não entra no grupo das coisas capazes de me fazer subir a adrenalina que tenho de baixar continuamente. Outra coisa difícil na minha relação com os carros é cuidar deles. Faço os mínimos. Hoje, olhei para um pneu e vi-o em baixo e achei melhor passar por uma casa que trata de pneus. Resultado, mudaram-me os quatro e ainda me recomendaram ir a Fátima agradecer por nenhum deles ter rebentado. Não fiquei particularmente preocupado com o meu descuido, porque só utilizo aquele carro para as voltas por aqui, onde raramente chego aos 50 km/h. O resultado da aventura é que o carro parece outro, mais leve e maleável. Se vivesse numa grande cidade, acho que dispensaria o carro de vez. Transportes públicos, um táxi ou um uber, e para viajar alugaria um carro. Tinha enormes vantagens. Acabavam problemas de estacionamento, não precisava de seguro, nem de oficina, nem de combustível, nem de pneus. E não precisava de lhe dar atenção. Não ter carro parece-me, neste momento, um acto de civilização. Isso, porém, não pode acontecer numa pequena cidade de província, uma cidade que se fosse elevada a vila teria uma enorme promoção. Aqui não há lugar para ideias civilizadas.