Os olhos secam, tal o calor que está por aqui. Bebo água para me hidratar, mas ninguém consegue usar os neurónios seja no que for com estas temperaturas. Já pensei em recorrer ao ar condicionado, mas aí tudo se complica. A garganta protesta, a voz enrouquece e o espírito começa a duvidar sobre se o corpo não se terá contaminado com o novo vírus que anima a realidade pelo mundo fora. Fui levantar umas encomendas a um posto dos CTT incrustado numa loja que vende livros e materiais escolares. Toda a gente de máscara, o que terá vantagens estéticas e sociais assinaláveis. A continuar assim, chegaremos ao dia em que teremos pudor em mostrar o rosto, mesmo os praticantes de nudismo hão-de fazê-lo de máscara. Uma das minhas leituras actuais é a de um filósofo de língua alemã, de origem sul-coreana, com o inusitado nome de Byung-Chul Han. A obra é Do Desaparecimento dos Rituais. Uma leitura suave e que não há-de agradar nem a gregos nem a troianos, os bandos rivais que enxameiam a praça da filosofia. Nem aqueles que vêem nela um cálculo lógico e transparente como o cristal, nem os que a julgam um exercício esotérico de linguagem indecifrável, que quer sempre dizer outra coisa. Isto, todavia, não interessa a ninguém e a verdade é que os rituais, com o seu jogo de repetições, estão mesmo a retirar-se do mundo. As encomendas que fui levantar eram sapatos que comprei online. O ritual de ir a uma sapataria, com o calça e descalça, o experimenta este e o outro, o abre e fecha caixas, foi substituído pelo relação digital e anónima de espreitar num monitor e de tratar tudo sentado numa secretária. A minha comodidade é um punhal cravado na garganta de um mundo decente. Como se sabe, tenho uma certa propensão para a hipérbole, a que convirá dar o devido desconto.
sexta-feira, 4 de setembro de 2020
quinta-feira, 3 de setembro de 2020
Aparência e realidade
Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de
identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que
medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não
pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que
pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma
tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de
toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua
imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito
a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A
segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim
para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil,
um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei
a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen.
Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los
Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título
francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da
voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta
que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo
quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não
deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do
Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é
a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é
não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre
isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a
minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade
seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este
calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises
que esqueci no consultório.
quarta-feira, 2 de setembro de 2020
Efeito Föhn
Hoje é o primeiro dia de oito em que as temperaturas estarão
entre os 35 e os 38 graus. Há dias vi uma explicação sobre a razão de aqui
estar um tempo quente e seco e do outro lado da serra ser mais fresco e húmido.
A causa seria o efeito Föhn resultante da existência de uma cortina montanhosa –
serras da Sintra, Lousã, Montejunto, Candeeiros e Aire – que se interpõe nos
caminhos dos ventos vindos do mar, gerando o tempo típico do Oeste, de um dos
lados, e a aproximação ao deserto deste lado. Como é assunto que me escapa e
não tendo vocação para ser especialista em tudo, ou mesmo numa única coisa,
acho a teoria esteticamente aprazível e tomo-a por verdadeira, mesmo que o não
seja. Depois, sempre me permitiria escrever palavras como barlavento e
sotavento, embora o não tenha feito para as poupar para um próximo texto. Setembro
começa ao ataque. É um mês cruel, com instintos homicidas. Há nele um rancor
que seria dispensável. Olha para nós e ri-se, enquanto arquitecta estratégias
para nos submeter às suas humilhações. Reparo que tenho uma gaveta da
secretária aberta e lembro-me que deveria procurar a minha caderneta militar. É
verdade, apesar de não passar de um narrador sem narrativa, também possuo o
documento que comprova que servi a pátria. Foi um mau serviço, a avaliar pela
fotografia que lá se encontra. Um tipo ridículo, posso assegurar, sem o garbo
de cavaleiro andante ou o aspecto feroz e implacável de um soldado de elite. Se
eu fosse a pátria, ter-me-ia posto do lado de fora do quartel a pontapé. A
pátria, porém, foi condescendente e disse-me vem, aqui também há lugar para
gente grotesca, irrisória, caricata. Não te importas de endireitar a boina ou
também tu sofres do efeito Föhn? Deveria evitar o recurso à prosopopeia, mas é
o que se arranja. O que eu gostaria mesmo de saber era onde meti o raio da
caderneta. Deve estar na outra gaveta.
terça-feira, 1 de setembro de 2020
Um Janus bifronte
Se Setembro fosse apenas a anunciação de um Outono benévolo,
se não passasse de um declinar lento do Estio mergulhado na fragilidade da velhice,
hoje seria um belo dia. Foi com este pensamento que me levantei e me preparei
para enfrentar o inevitável, que como um Janus bifronte, se estende
inexplicavelmente para o passado e para o futuro, a tudo contaminando com o
ranço da necessidade. Na comunicação social, devotos de várias confissões
defrontam-se sobre festividades, rituais e liturgias, como se alguma coisa de
decisivo se tratasse. Há nos seres humanos uma tendência inultrapassável para a
hipérbole, esquecendo que a morte a tudo acaba por tornar igual. Aquilo que
inflama os corações hoje, não merecerá mais do que um encolher de ombros amanhã
e, daqui a umas semanas, só será lembrado por exaltados que ainda não
descobriram toda a caridade que existe num tranquilizante. Hoje espreitei as
torres do castelo, depois olhei para o friso das orquídeas, já quase todas sem
flor. Exceptua-se a branca que está em floração contínua há mais de ano e meio.
Na avenida, passa um casal. Vão presos na indiferença que os consome, fiéis ao
destino com que a vida, escrava do imperativo da multiplicação, os enganou. O sol
dispara raios de aço sobre as paredes da escola aqui ao lado, elas abrem gretas e
sangram lentamente, cobrindo com o véu do silêncio a dor que as dilacera.
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
Um país lento
Hoje percorri parte da cidade. Havia nela uma estranha
combinação de tristeza e calor, como se uma coisa e outra se intensificassem
mutuamente. Nas ruas, muita gente cobria essa tristeza com máscaras, muitas
delas com cores que escapavam ao padrão cirúrgico. Os corpos incapazes de
ocultações passavam devagar, esmagados pela atmosfera, fechados sobre si mesmos,
como se o ar envolvente fosse pestilento. Prédios em ruínas, casario que o
tempo submeteu ao seu juízo impiedoso. Tudo isto gera uma cultura de nostalgias,
cheia de pequenos mitos, tentativas frustes de reencantar aquilo que só foi
encantado pela inocência do olhar infantil ou pela ingenuidade dos primeiros
amores. Chegado a casa, pensei que deveria evitar estas deambulações. Ir aonde
tenho de ir, olhar o menos possível para a realidade e voltar pelo mais curto
caminho que houver. Agosto encerra hoje a sua actividade. Está cansado e deixou
cair a sua fadiga sobre tudo o que existe. Não é fácil viver num país que tem
quase novecentos anos, que já viu coisas demais, que se saturou de Agostos tórridos,
que sabe que qualquer inflamação acabará por passar, mesmo que os
anti-inflamatórios não sejam grande coisa. É um país lento. Na passada
segunda-feira, fiz duas encomendas. Uma em empresa portuguesa e outra numa
sediada em Espanha. A enviada pelos nossos vizinhos já a recebi há vários dias,
a outra talvez seja hoje que chegue. E tudo isto me maravilha, pois há uma
sabedoria que fora daqui não existe e não se percebe. Há muito, muito tempo,
numa loja de ferragens de uma outra cidade de província, no início da tarde, talvez
porque eu tivesse dado sinais de alguma impaciência, a pessoa que me iria
atender esclareceu-me sobre a essência da pátria: não tenha pressa, que eu só
saio daqui quando forem sete horas.
domingo, 30 de agosto de 2020
Uma gota no oceano
É tão breve o tempo de suspensão entre o prazer e a
realidade que acabo por não saber o que fazer com este domingo. Talvez por
antecipar que estão a chegar os dias do ruído, descobri um álbum do Coro da
Rádio da Letónia com o magnífico título O Fruto do Silêncio. É composto
por sete peças de outros tantos compositores letões. De todos apenas conhecia Pēteris
Vasks, cuja peça dá título ao álbum. É uma experiência desconcertante escutar
música produzida por compositores dos países bálticos. Há neles uma
profundidade espiritual, de coloração religiosa, que praticamente desapareceu
da música erudita ocidental. A composição de Martins Vilums denomina-se O
Tempo Cintila, a de Ēriks Ešenvalds, Uma Gota no Oceano. E isto diz
tudo o que, neste momento de suspensão, posso dizer de mim, miserável narrador
sem narrativa. Enquanto o tempo cintila, fruto do silêncio, não passo de uma
gota no oceano, ou nem isso.
sábado, 29 de agosto de 2020
Vida de provinciano
O meu idílio com a balança não apenas se mantém, como se
intensifica. Hoje, primeiro dia pós-férias, confidenciou-me que eu tinha menos
dois quilos do que antes de as começar. Olhei-a embevecido, jurei-lhe amor
eterno, que teria sempre muito cuidado quando a pisasse. Enquanto me desfazia
nesta conversa pateta, como o são todas as conversas de amor, pensava com alívio
que iria evitar o olhar reprovador do médico, o qual, como todos os médicos,
fazem da saúde do paciente um exercício de virtude moral, à qual, muitos deles,
se julgam no dever de se furtar. Hoje a empresa de jardinagem que tem por
hábito, aos sábados de manhã, vir cortar a relva nas pracetas circundantes
esqueceu-se da sua cruzada contra a preguiça e a eventual lascívia matinal dos
moradores. Foi, porém, substituída por um cão da vizinhança que, talvez
espantado por não ouvir os corta-relvas, decidiu ladrar até me acordar. A isto
se resume a vida de um provinciano, pensei. Pendências com médicos, férias
acabadas, preocupações com barulhos vindos do exterior. O que me está a valer é
o romance do Tomás de Noronha, passado na capital, que ainda era do Império, em
ambientes sublimes, onde há condessas e marquesas. Fiquei rendido quando, ao
referir-se à técnica de selecção social de uma certa marquesa, escreveu: Quem
lhe orientava o protocolo era a sua filha, uma trintona nevrotica,
destrambelhada, que sabia como ninguém disfarçar o estonteante desejo de se
franquear sob a apparencia artificial de ser dificil. Basta o estonteante
desejo de se franquear para que a leitura não seja pura perda. Se o tempo
fosse feminino, pensei então e sem ligação com o que pensara antes, seria uma
górgona, que avançaria com o seu olhar petrificante e a cabeça envolta em serpentes.
Sendo masculino, dá-se aparências menos teatrais, e em vez de nos transformar
em pedra, desfaz-nos e às nossas vis pretensões em pó. A manhã vai alta,
calo-me, para que o alarme de um carro possa ecoar no fundo do meu ser.
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
A gestão do dia
O dia nasceu sombrio, e eu hesito em avaliar o fenómeno. Vestiu-se
de luto pelo meu último dia de férias? Decidiu poupar-me aos transtornos
físicos – e metafísicos, já agora – da canícula? Sinto no centro do peito uma
estranha opressão vinda do futuro, mas entretenho-me com a gestão do dia. Um
amigo enviou-me um conto publicado pela mulher, vou lê-lo. Outra pergunta-me se
quero ir jantar com eles, o clã familiar. O padre Lodovico quer saber quando
vou a Lisboa. Uma transportadora deixa-me à porta uma encomenda com o triciclo
que comprei para o meu neto. Anoto que, quando for à capital, não posso esquecer-me
de levar os hoverboards das netas. Continuo com a minha investigação
sobre quem terá sido o T. Noronha que escreveu Volupia que Salva. Graças
ao cruzamento dos catálogos de duas bibliotecas municipais cheguei a uma tese
verosímil. Trata-se de D. Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias
com o título De capa e Batina sobre a estúrdia coimbrã do seu tempo. O
fidalgo cursou letras e, depois, teologia, tendo-se formado em ambas. Para
teólogo não estava mal. Consta que, juntamente com um tal Pad-Zé e um Vicente
Arnoso, foi um dos grandes animadores, em Coimbra, da boémia estudantil. Também
escreveu, entre outras coisas sem relevo, um livro de versos com o título Tempos
Perdidos. Talvez um sinal de arrependimento. Acabados os cursos foi para o Oriente,
para exercer como professor de inglês e alemão no Liceu Nova Goa. A fidalguia
já andava, naqueles tempos, pelas ruas da amargura. Na biografia que descobri –
um texto hagiográfico da personagem – não consta a referência ao romance que
narra os amores de Octavia e Valeria, mas verifiquei que é publicado pela mesma
editora – a J. Rodrigues & Cª, sediada no 186 da Rua do Ouro, em Lisboa –
que dá à estampa, como se dizia, as tais memórias de estudante. Posso ainda
informar que em 1906, ao voltar das Índias, foi recebido e louvado pelo rei D.
Carlos e pela rainha D. Amélia, devido a uma iniciativa sobre a Assistência
Escolar aos indígenas (a palavra não é minha). Uma coisa é certa, contínuo a
ser um repositório de informações inúteis, mas a verdade é que, com a idade, a
fronteira entre o útil e o inútil se diluiu. Vou fechar as persianas que o sol
voltou a ameaçar.
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
A volúpia das coincidências
Um aviso ao eventual leitor: estou sem assunto. Como não
sofro da angústia da página em branco, talvez escreva sobre o magno problema
das coincidências. Entre uma pilha de livros comprados, há uns anos, em segunda
mão, ou terceira, sabe-se lá, encontro um romance com o título Volupia que
Salva, obra de um tal T. Noronha. Quem é o autor ou por que razão possuo o romance
não faço qualquer ideia. O livro chegou-me encadernado, em bom estado para a
idade avançada. Folheio-o e deparo-me logo à entrada com duas citações de Safo
e uma de Anacreonte. Leio as primeiras páginas e fico a saber que a Octavia
Rodrigues Saavedra e a Valeria Prado têm um caso. Vejo que o livro tem quase
cem anos e tento descobrir quem é o autor. Com esforço sou informado que o T.
significa Tomás, portanto Tomás Noronha. Faço uma pesquisa por este nome e
descubro que um conhecido locutor de televisão e escritor afamado tem como
herói das aventuras com que ilumina o universo um Tomás Noronha. Bem, não será
esse. Uma outra pesquisa diz-me que no século XVII houve um escritor, fiel
escudeiro de D. Sebastião, com esse nome. Tanta fidelidade a D. Sebastião não
lhe permitiria por certo tratar do affaire – estou mesmo velho – da
Octavia e da Valeria, ainda por cima mulheres modernas. Coincidências, penso,
mas quem no início do segundo quartel do século XX teria a ousadia de escrever
um romance sobre os delíquios amorosos da Octavia e da Valeria? O que é
espantoso, por falar em coincidências, é a seguinte informação, inscrita na
última página impressa, que nos diz: Este livro acabou de se imprimir no dia
28 de Maio de 1926. No dia em que Portugal entrava naquele período em que
qualquer volúpia, fosse de que cor fosse, deveria ser banida, e caso tivesse mesmo que ser, então que passasse à clandestinidade ou se desse no
recôndito do leito matrimonial, com as excepções que todos sabemos,
publicava-se um romance que proclamava a volúpia como salvação, talvez da alma,
mas não posso assegurar. Independentemente de todas estas dramáticas
coincidências, há uma coisa que me agrada em Tomás Noronha. Escreve crystal,
condessa de Nellas, d’uma, etc. Portanto, um autêntico insurgente
contra a pouco voluptuosa simplificação ortográfica de 1911. Um monárquico libertino.
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
A bailarina alemã
Depois da minha tarefa matinal de abrir e fechar persianas
para conter os raios enviados pelos cacarejos do Sol, um exercício militar que
executo com afinco, a primeira coisa com que me deparei, ao sentar-me à
secretária e dar um giro pelos sites abertos no browser, foi com
uma fotografia de uma bailarina alemã. Segundo a investigação que fiz, ela
teria, no momento em que foi fotografada, no ano de 1910, dezoito anos.
Tinha uma daquelas belezas que deixam o espírito perplexo e tomado por uma
profunda dúvida. É um ser enviado do céu ou uma agente dos poderes infernais?
Só uma mente ingénua – e ser ingénuo depois dos quarenta não é ingenuidade, mas
burrice, como não se cansava de repetir há muitos anos uma amiga – poderia conceber
a tortuosa ideia de que o belo e o bem são a mesma coisa. Independentemente daquela
bailarina ter descido do céu para nossa salvação ou subido do inferno para a
nossa perdição, a verdade é que uma beleza como a dela não merece o castigo que
o passar dos anos impõe. Quando uma mulher é bela, a sua beleza, no momento em
que atinge o zénite, deveria ser preservada dos efeitos do tempo, mesmo que
vivesse cem anos. Chegada a hora da morte, seria arrebatada da vida ainda esplendorosa.
Entre os vários homúnculos que habitam na caverna da minha consciência, há um
com propensões igualitárias que, mal formulei o meu pensamento sobre o destino
das mulheres belas, começa uma cantilena onde me acusa de injustiça, de ser um
agente da discriminação, um racista estético. E por que razão os homens ou as
outras mulheres, as que não receberam a graça da tua bailarinazinha, não
deveriam ter a mesma sorte, interrogou-me. Não são todos iguais perante a lei
ou, se quiseres, não são todos filhos de Deus, continuou ele. Respondi-lhe que
não me interessava discutir as consequências da revolução francesa nem enredar-me
em estéreis discussões teológicas. Que fosse para o fundo da caverna e se mantivesse
invisível e inaudível. E, para o calar de vez, acrescentei que a verdadeira
justiça é tratar como excepção aquilo que é excepcional. Ele lá se recolheu a
murmurar slogans igualitários, enquanto eu dava uma última vista de
olhos pela bailarina alemã e passava para o site da meteorologia.
terça-feira, 25 de agosto de 2020
Redução vocabular
São poucos os dias que Agosto ainda tem, antes que a sua
folha morta caia da árvore do calendário. Por vezes, a retórica que uso dá-me
vómitos. Dedilho-os, aos dias, como se não soubera contar e franzo o sobrolho.
Por vezes, escrevo de noite recados para que faça alguma coisa quando a próxima
manhã chegar, com a luz que for a dela. Raramente, olho para eles. Chega-me um
vídeo do meu neto. Há duas palavras que ele domina na perfeição. Não e pára.
Parecem-me óptimas e as mais adequadas ao tempo que vivemos. Também, caso
pudesse ou tivesse coragem para tanto, resumiria o meu vocabulário ao advérbio
não e ao verbo parar. A primeira utilidade seria a que deixaria de escrever
estes textos, as outras, e não seriam poucas, revelar-se-iam com o tempo. Há
uns anos, um amigo contou-me que uma pessoa da sua família foi encurtando,
pouco-a-pouco, o vocabulário que usava, até que chegou o momento em que se
recusou a pronunciar qualquer palavra. Ouvia os clientes do seu estabelecimento,
mas nunca usava a voz para lhes dizer fosse o que fosse. Gestos de mãos,
expressões de rosto, meneios corporais. Os clientes habituaram-se, não o
abandonaram, e talvez um ou outro lhe tenha seguido o exemplo. Como dizia esse
meu amigo, os bons exemplos devem frutificar. Por agora, seria menos radical, usaria
ainda o advérbio não e o verbo parar. Voltar-me-ia para este Agosto prestes a
render-se a Setembro e dir-lhe-ia: Não. Pára! Ele responder-me-ia na mesma moeda:
Não paro. É o que faz a falta de assunto numa tarde de Agosto.
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Um sonho cinematográfico
Em 1955, o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson visitou
Portugal e fez um conjunto de fotografias que tem tido ao longo dos anos uma enorme
fortuna. Hoje deparei-me com uma delas, extraordinária como as demais. Nos
Jerónimos, junto a uma coluna, um confessionário minimalista, apenas um tabique
de madeira, certamente com uma abertura velada por um gradeado que permitia
falar e escutar e, ao mesmo tempo, manter secreta, ou quase, a identidade das
confessadas. Sob essa abertura havia de ambos os lados apoios para os braços. Sentado
de pernas abertas, o sacerdote, de cabelos brancos e trajado com a respectiva
batina, escutava a longa confidência de uma mulher ajoelhada, vestida de preto até
aos pés, véu negro sobre a cabeça. Olho a fotografia demoradamente e imagino o
que poderia fazer a partir dela caso fosse realizador de cinema. Filmaria a
mulher a levantar-se do confessionário, haveria por certo um zoom que
permitisse apreender a elegância dela e acabasse por se centrar na beleza do
rosto, acompanhá-la-ia no trajecto em direcção a um altar para cumprir a
penitência, enquanto mostrava, em fundo, o sacerdote a erguer-se da cadeira e
espreitar a mulher, tomado por uma curiosidade invencível. Nesse momento, ela voltava-se
sorridente para ele que, ao sentir os olhos dela nos dele, estremecia e deixava
aflorar um esgar de terror no rosto. A mulher que confessara, descobria então,
era a sua própria morte. Portugal, naqueles tempos, era um país escuro, muito
escuro, pensei, enquanto ouvia o correr da água que alguém num andar próximo
deixava cair sobre umas plantas exaustas pelo calor. Uma sirene lembrou-me que
deveria ir almoçar, pois o cinema não é coisa que me diga respeito.
domingo, 23 de agosto de 2020
Uma aventura ao domingo de manhã
Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma
coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma
pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos
próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio,
sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta
para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter
sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será
agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim
que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui
tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para
a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me
fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me
sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer
a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos
destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas,
que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do
exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma
construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois
montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à
altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me
à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola
é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O
problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia.
Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar.
Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos
alunos.
sábado, 22 de agosto de 2020
Inimigos de sábado
Quando acordei, eram oito horas, nem queria crer que hoje é
sábado. Uma fúria sonora entrava-me pelo quarto, vinda da praceta em baixo. A
empresa responsável pelos espaços públicos acha que o dia adequado para cortar relva
é o sábado. Talvez as lâminas deslizem melhor, as folhas estejam mais aptas
para o corte ou, uma hipótese, considere imoral as pessoas, no início do
fim-de-semana, prolongarem o sono pela manhã. Não é que me levante mais tarde,
mas acordar ao som da metralha dos corta-relvas não faz parte do melhor dos
mundos possíveis. Levantado, comecei a barricar-me dentro de casa, fechando todas
as janelas por onde outro inimigo, o sol, possa entrar. O combate com o astro,
pensei enquanto descia as persianas, ainda não saiu da idade média. Há que
construir muralhas e evitar que o inimigo possa passar por elas. Entretanto, o
afã ruidoso suspendeu o massacre dos inocentes moradores, mas a manhã
apresta-se para pôr fim à sua curta existência. Oiço vozes na rua, talvez
pessoas na esplanada, enquanto me envolvo no manto sombrio da escuridão. Não
tarda terei de ir à rua. Reparo que o word me assinala uma incorrecção
gramatical, mas o domínio da gramática é uma competência que o word
ainda está longe de ter adquirido com sucesso. Talvez um efeito da pandemia. Necessitará
de aulas de recuperação, suponho.
sexta-feira, 21 de agosto de 2020
De volta ao habitat natural
Retornei ao meu habitat natural. A cidade parece
estar exactamente como a deixei. O calor, de momento, não será tão avassalador,
os carros deslizam na Sá Carneiro como antes da pandemia e, nos passeios, os transeuntes,
com ou sem máscara, procuram as sombras que as copas das árvores projectam no
chão. Há em tudo isto uma reminiscência mourisca, pensei, uma espécie de
pertença climática àquele mundo que se inicia no norte de África. O computador
informa-me que o adobe acrobat reader foi actualizado com êxito,
eu fico agradecido pela melhoria do programa, mas não consigo evitar um ataque surdo
de inveja. Também eu poderia ser actualizado com êxito, mas não. Cada
actualização que sofro é para pior e quanto mais êxito elas têm pior fico. O hardware
está caduco, um modelo descontinuado há muito, sopra-me alguém que vive dentro
de mim e que tem por hábito dar opiniões que ninguém lhe pediu. Hoje não fui à
esplanada perto do mar ler o jornal, a mulher que em silêncio olhava o
horizonte desapareceu para sempre, resta-me pôr a vida nos carris onde estava
antes de ter saído daqui. Leio que se está perante uma aceleração do tempo
histórico. Talvez esteja já em excesso de velocidade e seria justo que a
História fosse multada, por não respeitar as regras de trânsito. As cevadilhas
da escola ao lado continuam a florir, as acácias da praceta estão pujantes,
vestidas de verde escuro, e o parque infantil permanece interdito às crianças.
Tudo isto enquanto a história acelera e o meu hardware obsoleto é
incapaz de receber um programa que o actualize e rejuvenesça. Hoje ainda não
avistei nenhum dos anjos que moram nos telhados da rua onde entardeço.
quinta-feira, 20 de agosto de 2020
Uma velha pendência
Olho para as previsões meteorológicas e calculo perdas e
ganhos, projecto cenários de dor e prazer, arquitecto estratégias de defesa,
pois as de ataque não estão disponíveis no mercado da meteorologia. O clima
tornou-se uma guerra, pensei, uma guerra em que apenas podemos implorar por
abrigo. Hoje tem chovido e parece que vai continuar durante todo o dia. Isso contenta-me,
sinal de que já me satisfaço com pouco. Recebi há pouco um email de Lodovico Settembrini,
o padre Lodo, como todos os amigos o tratam. Disse-me estar preocupado com uma
coisa que escrevi aqui sobre o príncipe Saurau. Fê-lo lembrar o Leo Naphta, e Deus
me perdoe – escreveu o padre – apesar de ter, como ele, dado em jesuíta, não
suporto a personagem e as suas malditas ideias, sopradas pelo demónio. Eu que
me cuide, escreve, pois há muito que desconfia existir em mim uma certa inclinação
para o cepticismo. É preciso ter fé, continuou, seja no for, nem precisa de ser
em Deus. Eu rio-me da velha pendência dos dois padres e penso que talvez não
devesse escrever isto, mas nem sempre consigo resistir às tentações. Talvez
seja do meu cepticismo ou da minha falta de fé, seja no que for. Oiço os
pássaros e o seu canto mistura-se com o rumor do trânsito. A vida é um exercício
de paciência, penso.
quarta-feira, 19 de agosto de 2020
Triste sorte ser cliente
Sejam públicos ou privados, os serviços neste país conspiram
contra a sanidade mental dos clientes, como se ser cliente fosse um acto
execrável, uma maldade que apenas merece, como resposta, um tratamento
ineficiente e, se for possível, punitivo. Foi isto o que me ocorreu depois de
passar parte da manhã a tentar resolver assuntos através daquelas linhas de apoio
ao cliente, um eufemismo para esconder uma má vontade acintosa e contumaz. Lembrei-me,
então, de uma impressão antiga, quando ainda não havia as grandes superfícies,
e era local o comércio que animava as terras. Havia comerciantes que pareciam
fazer um favor muito especial em atender os clientes, vender-lhes aquilo que
eles precisavam, como se a sua vida estivesse acima daquele acto miserável de
trocar mercadoria por dinheiro. As razões que movem as pessoas são sempre secretas
e, o mais das vezes, um enigma para os próprios. Agora que consegui
resolver tudo, já não tenho como recuperar a manhã perdida, e isto é o que há
de mais cruel na vida. Nada nela é recuperável. As boas horas pela sua bondade,
as más para sua correcção, tudo isso deveria poder ser recuperado. Eu sei que
estou a mentir. A vida seria muito pior, se se pudesse recuperar o tempo que se
perdeu. Os homens estariam sempre a retroceder à infância e à adolescência para
tentar consertar o que nelas sempre se desarranja, e isso seria o pior que
poderia acontecer à espécie. O calor não me faz muito bem e conduz-me sempre
por caminhos meditativos que não levam a lado nenhum. Sempre preferi ao jardim
dos caminhos que se bifurcam, les chemins qui ne mènent nulle part.
Desta preferência, porém, não há qualquer ilação a extrair, note-se. O
melhor mesmo teria sido ter-me dedicado ao comércio e transformar-me num
daqueles respeitabilíssimos comerciantes de vila de província que faziam o
especial favor de atender os seus patéticos clientes. O problema é que nunca
descobri o ramo que mais se coadunava com os meus talentos. Não por falta de
ramos, claro.
terça-feira, 18 de agosto de 2020
O terrível que há no belo
Os loendros, com as suas flores rosas e brancas, estão
exuberantes. Quem se deixar prender apenas pela extrema beleza que estes
arbustos exibem não faz ideia de quão mortais podem ser. Talvez seja isso o que
há de mais enigmático no que é belo, a sua capacidade homicida. Terá sido por
isso que, na primeira elegia de Duíno, Rilke usou o adjectivo terrível para
qualificar os anjos. Não todos, por certo, pois aqueles que vivem na minha rua
sendo belos não o são em excesso. As pessoas pensam que são pombos, mas aqueles
pombos não voam nem poisam nos telhados como pombos, mas como anjos. E se um
pombo voa como um anjo, poisa como um anjo, canta como um anjo, só pode ser um
anjo. Talvez estes anjos sejam também terrivelmente belos, mas disfarçam-se
para esconderem essa beleza e poderem assim ser suportados pelos mortais. Hoje
vi de novo a mulher que olha o horizonte. Lá estava ela na esplanada, fechada
na sua dor de olhar horizontes, a beber o café, a pôr a máscara, a sair e a
caminhar em direcção ao horizonte. Nas mesas ao lado, alguns casais deixavam
cair para o chão a tristeza que havia dentro de cada uma daquelas mulheres.
Eles liam o jornal, olhavam para o telemóvel, elas desfaziam-se num óleo desconsolado
e viscoso, que alastrava como um pântano por um chão manchado de desespero e
silêncio. Muitos casamentos são uma radiosa lástima, pensei.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020
Atravessar o horrível
As férias não deixam de ser um tempo de encontros
inusitados. Passeava eu, como um animal perdido, fora do meu habitat
natural, quando oiço uma voz a chamar-me e a perguntar-me se não me lembrava
dela. Claro que lembro, como poderia esquecer, retorqui. Não nos vemos desde
quando, perguntou. Não sei, há mais de trinta e cinco anos, por certo. Perguntei-lhe
o que lhe acontecera. Quando acabámos a faculdade, saí para o estrangeiro e
instalei-me por lá. Um exílio, disse eu. Não propriamente. Tornei-me pintora e
esqueci o que aprendera naqueles anos, disse e riu-se. Confessei que não sabia.
Contou-me o acidente, como lhe chama, disse-me as colecções onde estava
representada, mostrou-me fotos de quadros seus. Como sabes, disse-me, a beleza
e a harmonia pouco interesse têm. Ou talvez não seja assim, disse. A arte, o
artista tem de rasgar o véu ilusório que os olhos apreendem como beleza e
mergulhar no horrível. O horrível é uma camada da realidade muito densa e
funda, diz-me ela enquanto acende um cigarro, mas não posso evitá-la. Não pinto
para decorar salas, pinto à procura da verdade, os olhos brilham-lhe. Não digo
que os meus quadros sejam a verdade, são apenas ensaios em busca da verdade. É
preciso descer mais fundo, atravessar a camada horrível e tentar chegar ao
outro lado. E o que esperas encontrar, perguntei. Não sei, sou apenas pintora,
a filosofia não me interessa. Talvez encontre a beleza, a verdadeira beleza,
mas não sei sequer se existe uma beleza verdadeira e outra falsa, talvez só exista
o que está aquém do horrível. Fiquei a pensar no tempo em que nos demos e
naquilo que o tempo lhe tinha feito, mas não tocámos nessas memórias. Falámos
de famílias, de exposições, comparámos países e oportunidades e combinámos um
novo encontro, que ambos sabemos que nunca irá acontecer. Agosto começa a
escorregar pela folha do calendário. Vejo nuvens no céu e dois cães ladram
quando passo por eles, como se eu fosse o horrível que eles têm de atravessar.
domingo, 16 de agosto de 2020
Um sapo perturbado
É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou
esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade
que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que
pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril.
Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me
a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo
o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental,
personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos,
famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e
sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele
não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da
sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim
como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos.
Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas
Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século
XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido
no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga
claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação
da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo
do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que
começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e
se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do
homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como
naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os
outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas
talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas
não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na
jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão
morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda
haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo
de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi
isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador,
com os seus amigos mais próximos.
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